OFENDIDO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
CRIME DE VIOLAÇÃO DO SEGREDO DE JUSTIÇA
Sumário

Deve considerar-se ofendido aquele que detém um interesse que é abrangido pelo âmbito de tutela da norma que institui o crime de violação do segredo de justiça, ínsita no art. 371.º do CP, justificando-se uma interpretação mais abrangente daquele conceito, alargando a legitimidade para a constituição de assistente nos termos do disposto no art. 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa foi proferido despacho judicial, datado de 10.09.2024, o qual não admitiu a constituição de AA como assistente quanto ao crime de violação de segredo de justiça.
2. Inconformado, e pugnando pela respetiva revogação e substituição por outro que admita a sua constituição como assistente, veio AA recorrer da decisão proferida, rematando o recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
A. A decisão recorrida, de indeferimento da constituição do Recorrente como assistente nos presentes autos, fundamenta-se numa noção restritiva do conceito de assistente, nos termos da qual ao Recorrente faltaria legitimidade para ser admitido como tal por não ser titular direto do interesse que constitui o objeto imediato do crime de violação do segredo de justiça.
B. Tal conceito restrito de ofendido encontra-se hoje ultrapassado, sendo antes assumido pela doutrina e pela jurisprudência o conceito amplo de ofendido, que alarga a legitimidade para a constituição de assistente nos termos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
C. Nos termos de tal aceção ampla, deve considerar-se ofendido aquele que detém um interesse que é abrangido pelo âmbito de tutela da norma que institui o crime de violação do segredo de justiça, ínsita no artigo 371.º do CP.
D. In casu, a posse por parte de um órgão de comunicação social de elementos constantes de um processo penal em curso, entre os quais excertos e relatos de interceções telefónicas, para mais, em violação do segredo de justiça, implica a devassa da intimidade e da vida privada do Recorrente
E. A suscetibilidade de exposição mediática, com um alcance imensurável, de factos que constituem prova num processo em que o Recorrente é arguido, viola sua honra, o seu bom-nome, a sua presunção da inocência e o dever deontológico de sigilo que lhe assiste na qualidade de advogado.
F. Constituem interesses protegidos do Recorrente, arguido em processo-crime cujo segredo de justiça foi violado, e advogado de profissão, não ver expostos publicamente factos que podem vir a ser julgados não provados, e, designadamente, não ver exposto fora do processo o teor de conversas telefónicas mantidas a título pessoal e profissional, inclusive a coberto de sigilo profissional.
G. É também esse o critério estabelecido pelo legislador no artigo 86.° do CPP, em particular nos seus n.ºs 3 e 7, ao aí determinar que "[s]empre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça", e, em qualquer caso, que "[a] publicidade do processo não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova".
H. Razão pela qual, em linha com a doutrina e a jurisprudência dominantes, é também esse o entendimento que tem sido firmado pelo próprio Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, designadamente, no seu Parecer n.º 60/2003, no qual se reconheceu que, "embora de forma indirecta ou mediata, a preservação do segredo de justiça serve igualmente a tutela do princípio da presunção de inocência do arguido, o seu bom nome, reputação e intimidade da vida privada".
I. Deverá, pois, ser revogada a decisão recorrida, contida no despacho datado de 12.09.2024, admitindo-se a qualidade de ofendido que o Recorrente inquestionavelmente assume nos presentes autos, e, consequentemente, a sua constituição como assistente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP, numa interpretação conforme ao artigo 32.º, n.º 7, da CRP.
3. O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso, no sentido de que o despacho recorrido não merece censura, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1. No caso do crime de violação do segredo de justiça esse ofendido é apenas um, o Estado na prossecução da realização da justiça e não se apresenta o recorrente como titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação prevista no art. 371°, do Código Penal (inserido no titulo dos crimes contra o Estado - Capitulo III- Dos crimes contra a Realização da Justiça)
2. O bem jurídico que de forma directa e imediata é protegido pela previsão do crime de violação do segredo de justiça é a administração da justiça, a qualidade e bom êxito da investigação de crimes e da justiça penal, interesse supra individual, para esta conclusão importa observar a titularidade do(s) interesse(s) protegido(s) por determinado crime tendo presente a análise do seu tipo legal e a sua inserção sistemática no diploma legal que o tipifica.
3. Resulta evidente na situação presente nos autos ser de excluir a constituição como assistente do recorrente pois, por um lado os interesses imediatamente protegidos pelo art 371º, do Código Pena, no crime de violação do segredo de justiça são os interesses da administração da justiça, e não há em concreto nenhum dano que o recorrente tenha alegado para sustentar a sua qualidade de ofendido, nenhuma noticia ou repercussão da mesma se indicia demostrada nos autos que nos leve a identificar o recorrente como ofendido na realidade objecto de investigação nestes autos, não sendo situação similar à analisada no Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º1/2003, referido pelo recorrente para sustentar o seu entendimento, inexiste lugar à formulação da mesma conclusão a que em tal acórdão de chegou.
4. Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, no caso de crime público em que o interesse tutelado seja exclusiva mente público, a regra é de que ninguém poderá constituir-se assistente, a qual tem excepções, é certo, mas excepções essas que não abarcam o crime de violação de segredo de justiça, como se constata da leitura do art. 68 n°1 e), do Código de Processo Penal.
5. E, ainda que o recorrente se possa considerar lesado, pela mediatização decorrente da divulgação por meios de comunicação social de elementos constantes no Processo crime 581/19.5TELSB, elementos esses onde não se alude sequer a si, mas ainda que aludissem a verdade é que lesado e ofendido assumem papeis distintos no processo penal.
6. No processo penal português teve cuidado o legislador em distinguir a figura processual de ofendido e de lesado, pelo que ofendido tem a susceptibilidade de se vir a constituir assistente, já o lesado, enquanto tal, nunca pode constituir-se assistente, mas apenas parte civil para efeitos de deduzir pedido de indemnização civil, e volvendo ao presente inquérito não é o recorrente ofendido.
Destarte, e sem necessidade de demais ponderações, considerações, nem citações, defende o Ministério Público que com a decisão recorrida, de indeferimento da constituição como assistente do recorrente não violou, nem erradamente interpretou o Tribunal recorrido a norma vertida no art. 68 n° 1 al. a), do Código de Processo Penal.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância.
5. Foi cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não tendo sido apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o Tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
Por conseguinte, conforme as conclusões da respetiva motivação, a questão a decidir é a seguinte:
• Da legitimidade material do recorrente para se constituir como assistente quanto ao crime de violação de segredo de justiça.
2. Elementos relevantes
2.1. Decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão sob recurso (transcrição):
Requerimento de fls. 41:
Concordando integralmente com a promoção de fls. 83, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, indefiro o pedido de constituição de assistente apresentado por AA, por falta de legitimidade do requerente, uma vez que o mesmo não assume a qualidade de ofendido titular direto do interesse que constitui o objeto imediato dos crimes objeto de investigação no âmbito dos presentes autos - crime de violação de segredo de justiça, previsto e punível pelo artigo 371° do Código Penal, e crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348° do Código Penal -, nos termos do artigo 68°, a contrario, do Código de Processo Penal.
Notifique.
2.2. Promoção Ministério Público
Para o que importa, é do seguinte teor a promoção do Ministério Público de 05.09.2024 que, por expressa remissão, se faz referência (transcrição):
No mais, remetem-se os autos ao(à) Mmo.(a) JIC para apreciação sobre a requerida constituição na qualidade de assistente apresentada por AA, com a seguinte promoção:
A fls. 41 e por requerimento datado de ........2024, sobre o qual ainda não recaiu pronúncia, vem o Sr. Dr. AA, na qualidade de suposto ofendido, requerer a sua constituição na qualidade de assistente, tendo auto liquidado a respetiva e necessária taxa de justiça, alegando de forma sucinta que pretende intervir naquela qualidade para proteção do segredo profissional, enquanto advogado.
Com efeito, alega que no âmbito dos autos de inquérito que deu origem à presente investigação por violação do segredo de justiça, foi ali alvo de interceções telefónicas “de forma praticamente ininterrupta, desde o dia ........2020", e tais registos estiveram (estão) na posse da “...”, justificando tal posse e conhecimento através da referência a um artigo jornalístico que melhor identificou em nota de rodapé.
Sucede que,
Compulsados os presentes autos, mais concretamente o teor de todas as notícias veiculadas e que revelaram publicamente elementos processuais como transcrições de interceções telefónicas, não se vislumbra que as mesmas estejam diretamente relacionadas com o requerente, nada ali tendo sido revelado quanto a tais interceções telefónicas ao mesmo nem quaisquer factos ou elementos pessoais que lhe digam diretamente respeito, pelo que o requerente não é titular de um interesse imediato e direto no desfecho do presente inquérito, na medida em que este não tem por objeto os factos que alega nem os supostos direitos e interesses violados (segredo profissional), mas a realização da Justiça penal, não sendo, pois, aqui ofendido, em termos de se poder dizer que é titular dos interesses que a lei “especialmente quis proteger com a incriminação”, pelo que os supostos e alegados interesses, a existirem, tão pouco constituem objeto jurídico imediato do crime que aqui se investiga.
Pelo exposto, tal pretensão não deverá merecer deferimento, o que se promove.
2.3. Requerimento constituição assistente
É do seguinte teor o requerimento apresentado a ........2024 pelo recorrente, visando a sua constituição como assistente nos autos (transcrição):
AA, advogado, com escritório na ... Arguido no Processo n.º ..., cuja violação do segredo de justiça se encontra em investigação nos presentes autos,
Na sequência da recente divulgação pública e mediática, por parte de alguns órgãos de comunicação social, de diversos elementos constantes do aludido processo, entre os quais excertos e relatos de escutas telefónicas,
Tendo sido noticiado, ademais, encontrarem-se tais órgãos de comunicação social na posse de «Quatro anos de escutas do processo …, a que a ... teve acesso exclusivo», e tendo o aqui Requerente sido visado por essas escutas, de forma praticamente ininterrupta, desde o dia ........2020,
Vem, muito respeitosamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, por ter legitimidade - nos termos melhor explanados no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.09.2021, Proc. n.º 7940/20.9T9LSB-A.L1- 5, atenta a sua qualidade de lesado por tal fuga de informação, e em cumprimento do dever deontológico que lhe assiste no sentido da proteção do sigilo profissional das conversações por si havidas na qualidade de ... -, por estar em tempo e se encontrar devidamente representado, requerer a V. Ex.a a sua constituição como Assistente.
JUNTA: Procuração forense, DUC e comprovativo de pagamento de taxa de justiça.
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3. Apreciando
Cumpre verificar da legitimidade material do recorrente para se constituir como assistente quanto ao crime de violação de segredo de justiça em investigação nos presentes autos, o que mereceu resposta negativa por parte do tribunal a quo.
Para tanto sustentar invoca o recorrente a posse por parte de um órgão de comunicação social de elementos constantes do processo penal em curso, entre os quais excertos e relatos de interceções telefónicas (em que é visado), em violação do segredo de justiça, o que, na sua perspetiva, implica a devassa da sua intimidade e vida privada.
Ora, olhando ao despacho recorrido, desde já adiantamos não subscrever a orientação posta em crise.
É que de facto o critério aí utilizado, que assenta na afirmação de que o recorrente não é titular direto do interesse que constitui o objeto imediato do crime objeto de investigação, não acompanha os avanços da doutrina e jurisprudência quanto ao conceito de ofendido.
Ao invés, justifica-se uma interpretação mais abrangente, alargando a legitimidade para a constituição de assistente nos termos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Concretamente, não pode dizer-se que, com o tipo legal em causa - violação de segredo de justiça -, só se quis proteger o bem jurídico público, mas antes também considerar-se a existência de um prejuízo a outra pessoa, bem como o grau desse prejuízo.
Ou no dizer das palavras do Ac. desta mesma 5ª secção da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Proc. n.º 7940/20.9T9LSB, “(…) não pode avaliar-se a admissibilidade ou não, da constituição de assistente somente a partir da natureza do crime, devendo-se atender ao conjunto do tipo, pois que, a incriminação do art. 371.º do CP para além do interesse do Estado na Realização da Justiça tutela ainda, directa e imediatamente, interesses privados dos visados (…).”
Verdadeiramente, aquilo que está em causa é um conceito alargado de ofendido, nos termos pugnados pelo recorrente, devendo considerar-se ofendido aquele que detém um interesse que é abrangido pelo âmbito de tutela da norma que institui o crime de violação do segredo de justiça, ínsita no artigo 371.º do CP.
Melhor dizendo, e citando Pedro Soares de Albergaria em comentário ao artigo 68.º do CPP (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, dezembro 2022, pág. 819, nota § 4), “Determinante é que aquele bem supraindividual se possa encabeçar, digamos assim, numa pessoa concreta; ou dito do avesso, necessário é que se demonstre no caso concreto que a mancha de danosidade que a incriminação quer tipicamente esconjurar tenha atingido ou intendesse atingir pessoa concreta. Essa é de resto a lição que se pode retirar do já significativo acervo de jurisprudência fixada pelo STJ: acs. STJ/FJ 1/2003 (falsificação de documento), 8/2006 (denúncia caluniosa) e 10/2010 (desobediência qualificada) e que tem o seu referente dogmático em JORGE DE FIGUEIREDO DIAS/ANABELA RODRIGUES (…) e hoje com larga aceitação na melhor doutrina (…)”.
Ora, no caso presente, temos também para nós, que “a suscetibilidade de exposição mediática, com um alcance imensurável, de factos que constituem prova num processo em que o Recorrente é arguido, viola sua honra, o seu bom-nome, a sua presunção da inocência e o dever deontológico de sigilo que lhe assiste na qualidade de ...” (cf. conclusão E).
Assim considerando, naturalmente que se impõem interesses de ordem particular, relacionados com a intimidade e vida privada do recorrente, devassada em razão da divulgação na “praça pública” (ou possibilidade dela) do conteúdo das interceções telefónicas a que também esteve sujeito, ou seja, com a eventual prática do crime de violação do segredo de justiça em investigação nos presentes autos, sem prejuízo ainda do direito de defesa e da presunção de inocência, de quem é visado em processo criminal.
Por conseguinte, e porque estão em causa direitos constitucionalmente protegidos - arts. 26.º e 32º ambos da CRP -, tem o recorrente legitimidade para se constituir como assistente, nos termos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP, quanto ao crime de violação de segredo de justiça em investigação nos presentes autos.
Em suma, é procedente o recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando, em consequência, o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que admita o pedido de constituição como assistente de AA, quanto à eventual prática de um crime de violação do segredo de justiça.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 6 de fevereiro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Sandra Oliveira Pinto
Alexandra Veiga