I - Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito.
II - Estando em causa, na violência doméstica, um bem jurídico plural ou complexo que poderá ser atingido por uma multiplicidade de condutas contempladas no tipo legal, releva a circunstância de as condutas em causa se verificarem no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela. É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um dos tipos legais que poderiam ser autonomamente preenchidos e o tipo de violência doméstica.
III - Não se identifica na formulação do tipo legal a exigência de que se verifique necessariamente uma relação de domínio ou subjugação.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO
1. No âmbito do processo comum singular n.º 227/22.4PBMTS, do Juízo Local Criminal de ..., foi submetido a julgamento o arguido AA, com os restante sinais dos autos, tendo sido proferida sentença que o absolveu da imputada prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.
O Ministério Público interpôs recurso da sentença absolutória, que foi provido por acórdão da Relação do Porto, de 12.06.2024, que, revogando a sentença recorrida, decidiu nos seguintes termos:
« Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência da verificação dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, determinam:
a) A alteração da decisão recorrida em matéria de facto, procedendo-se à eliminação da expressão «reiterado» da alínea c) da matéria de facto não provada e ao aditamento da matéria factual atrás mencionada ao elenco dos factos provados.
b) A condenação do arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, b), n.º 2, a) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica.
c) A suspensão da execução da referida pena de prisão, por igual período temporal e com regime de prova, assente num plano individual de reinserção social a elaborar pela DGRS, condicionada, ainda, à obrigação de frequência pelo arguido de programa específico de prevenção da violência doméstica.
d) Ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A do CPP e 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/8, a atribuição oficiosa de uma compensação à vítima BB, no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de reparação dos danos não patrimoniais causados, e a condenação do arguido AA no pagamento à vítima desse valor.»
2. O arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Vinha o arguido acusado pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.
2. Realizado o julgamento, decidiu o tribunal de primeira instância absolver o arguido, inconformado, o Ministério Público, recorreu da decisão e decidiu o Tribunal da Relação, condenar o arguido:
3. Pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, b), n.º 2, a) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica.
4. A suspensão da execução da referida pena de prisão, por igual período temporal e com regime de prova, assente num plano individual de reinserção social a elaborar pela DGRS, condicionada, ainda, à obrigação de frequência pelo arguido de programa específico de prevenção da violência doméstica.
5. Ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A do CPP e 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/8, a atribuição oficiosa de uma compensação à vítima BB, no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de reparação dos danos não patrimoniais causados, e a condenação do arguido AA no pagamento à vítima desse valor.
Sucede que,
6. Entende a defesa, salvo o devido respeito, que nos é muito, que o Tribunal a quo perante a matéria de facto dada como provada não poderia ter decidido como decidiu.
7. Senão vejamos, dos factos provados com relevância para a decisão da causa, resultam os seguintes:
Durante o relacionamento, em várias ocasiões, sobretudo no interior da residência comum, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”;
Em dia não concretamente apurado do mês de dezembro de 2018, pelas 14.00h, o arguido transportava a assistente para o local de trabalho, alegando que queria falar com ela, acabando o casal por discutir.
Quando o arguido abrandou a viatura, a assistente saiu do carro, refugiou-se na praia, onde se acalmou, tendo depois se dirigido para o local de trabalho a pé.
No dia 15 de fevereiro de 2022, pelas 14.30 h., no interior da residência comum, a assistente comunicou ao arguido que iria abrir a porta da habitação para onde se iriam mudar, sita na Rua do ..., e pretendia ficar lá a tarde toda à espera dos técnicos para ligarem a luz.
Nesse momento, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Vais para cima porque já tens um macho à tua espera!”.
A assistente deslocou-se para essa habitação, sendo seguida pelo arguido.
8. Nos presentes autos, não sobram dúvidas que o arguido e a ofendida mantiveram uma relação de namoro durante vários anos, com coabitação, tendo constituído entre si uma relação análoga à de cônjuges.
9. Da factualidade provada nos presentes autos não resulta a existência de qualquer ofensa corporal ou lesão no corpo da saúde da vítima, pelo que é forçoso excluir a verificação de maus-tratos físicos.
10.Relativamente às expressões proferidas é importante perceber o contexto em que o foram.
11.Estas condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão e fim de namoro, resultando da factualidade provada outras situações de discussão entre o casal (cfr. factos provados n.ºs 4, 7 e 9), bem como a existência clara de ciúmes e de sentimentos de desconfiança por parte de ambos (cfr. factos provados n.º 7 e 9).
12.Não resulta dos factos dados como provados que o arguido mantinha em relação à assistente comportamentos em análise que espelhassem uma relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a assistente, nem consubstanciam, pela sua gravidade, maus-tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente ou de a submeter a uma vivência de medo.
13.Tais expressões devem assumir uma dimensão ou intensidade bastantes para poder lesar o bem jurídico protegido, ofendendo a saúde física, psíquica ou emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal.
14.O que resulta expressamente dos factos dados como provados em sede de 1ª instância e que o tribunal a quo não alterou, e por isso são dados por assentes.
15.Nesta senda, o brilhante excerto extraído do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de abril de 2017, “(…) A violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.”
16.Nessa linha de pensamento, revisitando novamente o caso em apreço, à míngua de outros factos, já que, nesta sede, apenas podemos atender o elenco da factualidade dada como provada, não podemos considerar que os mesmos, quer isolada, quer conjuntamente analisados entre si, atendendo ao contexto em que ocorreram, consubstanciam uma conduta especialmente violenta ou uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, ou seja, não revestem a gravidade ou a intensidade do desvalor da ação e do resultado típicas do crime de violência doméstica, nos moldes acima explicados.
17.A factualidade não preenche os elementos objetivos do crime em apreço e, consequentemente, porque necessariamente dependente daqueles, o seu elemento subjetivo, pelo que está, assim, afastada a punição da conduta do arguido como integrante desse ilícito, impondo-se a sua absolvição quanto à prática do crime de violência doméstica de que vinha publicamente acusado.
18.Não preenche igualmente o elemento subjetivo, na medida em que é necessariamente dependente daquele, pelo que está, assim, afastada a punição da conduta do arguido como integrante desse ilícito, impondo-se a sua absolvição quanto à prática do crime de violência doméstica de que vinha publicamente acusado
19. Não resulta do acervo probatório que se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus-tratos.
20.Por razões de política criminal – só se justifica uma punição mais grave se se tratar de condutas que exprimam um lastro de danosidade social mais intensa ou comportem a tutela de um bem jurídico distinto, mas sempre com relevância jurídico-penal.
21.Dessa decorrência, perfilhamos o entendimento segundo o qual no crime de maus tratos/violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí referenciados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual, sendo nesse sentido que sempre se exprimiu a nossa jurisprudência, mormente nos Acórdãos da Relação do Porto de 03 de novembro de 1999 e da Relação de Coimbra de 06 de julho de 2005.
22.E que a mesma nunca esteve em causa no caso em apreço.
23. Certo é, porém, que aos factos dados como provados, apesar de não serem suficientes para integrarem a prática de um crime de violência doméstica, já o são para serem subsumidos à previsão legal contida nos artigos 143.º, n.º 1, 181.º, n.º 1 e 182.º, todos do Código Penal, representando estes crimes, como vimos supra, um minus em relação ao referido crime de violência doméstica, estando, por isso, em concurso aparente com este último.
24. Porém, ocorrendo esta alteração da respetiva qualificação jurídica, e no que diz respeito aos crimes de injúria, a questão que ora se coloca é a de saber da valia parcial duma acusação pública não precedida de acusação particular neste segmento em que o tribunal atendeu os factos como integráveis num crime autónomo de injúrias, como sucede no vertente caso, em que inexiste acusação particular (ainda que por adesão à acusação pública) quanto à imputação ao arguido daquelas expressões que este dirigiu à assistente.
25.O crime de injúria reveste natureza particular, pelo que se exige não só que o titular do direito apresente queixa e se constitua assistente, mas também que deduza acusação particular, nos termos dos art.ºs 113, n.º 1 e 188 do Código Penal, bem como de acordo com os art.ºs 48 a 52 do Código de Processo Penal. Nos presentes autos, a ofendida constitui-se como assistente, mas não acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público. Nem sequer deduziu pedido de indemnização civil.
26.A factualidade ocorreu, entre 2015 e 15 de fevereiro de 2022. Ora, tendo em consideração o prazo de prescrição do procedimento relativo ao crime de injúria (2 anos – cf. art.º 118.º, n.º 1, al. d), do CP) – e a data da apresentação da queixa (01/03/2022, cf. fls. 41), não nos é possível excluir a hipótese de o procedimento criminal por tais factos estar já prescrito, o que impede a condenação do arguido pelo crime injúria. Deste modo, o arguido não pode ser condenado pela prática dos factos que integram o crime de injúria, posto que o procedimento criminal quanto a tal crime, não é legalmente admissível e, por isso, o tribunal não pode dele conhecer.
3. O Ministério Público, junto da Relação respondeu ao recurso e concluiu carecer de razão o recorrente quando defende que os factos dados como provados não configuram o crime de violência doméstica por que foi condenado.
4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado na integralmente o acórdão recorrido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a questão que se coloca é a da subsunção da factualidade provada ao tipo legal de crime por que aquele foi condenado na Relação.
2. Factualidade provada
Estão provados os seguintes factos, após reconfiguração da factualidade provada e não provada no tribunal recorrido:
1) O arguido AA e a assistente BB mantiveram uma relação de namoro sem coabitação, a partir de finais de maio de 2015, tendo depois, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o início de 2016 e o início de 2017, estabelecido uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, tendo essa relação terminado a 15 de fevereiro de 2022.
2) Fixaram residência em casa da assistente, sita na Rua do ... e, em fevereiro de 2022 encontravam-se a fazer mudanças para uma nova habitação na Rua do ....
3) Durante o relacionamento, em várias ocasiões, sobretudo no interior da residência comum, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”;
4) Em dia não concretamente apurado do mês de dezembro de 2018, pelas 14.00h, o arguido transportava a assistente para o local de trabalho, alegando que queria falar com ela, acabando o casal por discutir.
5) Quando o arguido abrandou a viatura, a assistente saiu do carro, refugiou-se na praia, onde se acalmou, tendo depois se dirigido para o local de trabalho a pé.
6) No dia 15 de fevereiro de 2022, pelas 14.30 h., no interior da residência comum, a assistente comunicou ao arguido que iria abrir a porta da habitação para onde se iriam mudar, sita na Rua do ..., e pretendia ficar lá a tarde toda à espera dos técnicos para ligarem a luz.
7) Nesse momento, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Vais para cima porque já tens um macho à tua espera!”.
8) A assistente deslocou-se para essa habitação, sendo seguida pelo arguido.
9) Já no interior da habitação sita na Rua do ..., desenrolou-se outra discussão, na sequência da qual o arguido dirigiu à assistente as expressões: “Não vales nada! Queres é estar aqui sozinha, vem aqui o macho!”
10) A assistente abandonou a habitação, ligou para a sua irmã, a chorar, que a aconselhou a ir para casa, o que fez, sendo que pelas 20.00 h./20.30 h. iria ter com ela.
11) A irmã da assistente deslocou-se a casa desta a essa hora com elementos policiais, que registaram a ocorrência.
12) Durante o período compreendido entre 15 de fevereiro e 15 de abril de 2022, o arguido ligou várias vezes para a assistente e enviou-lhe várias mensagens de telemóvel, com um discurso de autovitimização e tentando persuadir a assistente a uma reconciliação.
13) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
Mais se apurou quanto ao arguido:
14) O arguido encontra-se desempregado, realizando apenas biscates para uma loja de eletrodomésticos, ajudando no transporte, entrega e reparação de equipamentos.
15) O arguido esteve internado nos cuidados intensivos, de 20/11/2021 a 06/12/2021, após diagnóstico de meningite bacteriana, sinalizando, desde a alta clínica, fragilidades ao nível físico. Em agosto de 2023, foi-lhe reconhecida incapacidade permanente de 69%, tendo-lhe sido atribuída uma prestação social para a inclusão, no montante mensal de 488,22€.
16) O arguido abandonou o sistema de ensino durante a frequência do 2º ano de escolaridade.
17) O arguido tem uma filha com 17 anos de idade e um filho com 9, ambos a residir com as respetivas mães. Com a filha não tem qualquer contacto desde 2014 e com o filho mais novo mantém contactos e convívios regulares.
18) O arguido reside com a irmã e a sobrinha, em casa arrendada pela irmã, por vezes pernoitando na garagem de um amigo. Não comparticipa no pagamento das despesas com a habitação e a economia familiar.
19) Arguido e ofendida não têm qualquer contacto – para além dos referidos em 12) – desde fevereiro de 2022, tendo o arguido neste momento outra relação afetiva.
20) Como despesas fixas mensais pessoais, o arguido apresenta o pagamento de prestação de uma dívida contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 118.84 euros mensais, bem como, a medicação para os seus problemas de saúde, em valor não concretamente apurado.
21) O arguido foi anteriormente condenado:
a. pela prática de factos ocorridos em 16-03-2021 que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, por decisão proferida em 17-03-2021 e transitada em julgado em 26-04-2021, no âmbito do processo n.º 21/21.0..., tendo sido a pena extinta pelo pagamento a 06-09-2021;
b. pela prática de factos ocorridos em 12-10-2020 que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa, por decisão proferida em 07-09-2021 e transitada em julgado em 07-10-2021, no âmbito do processo n.º 149/20.3..., tendo sido a pena extinta pelo pagamento a 06-10-2021.
Sabia o arguido que, comportando-se nos moldes descritos, lesava a sua namorada e companheira na sua saúde mental e na sua autoestima, humilhando-a e diminuindo-a como mulher, sabendo igualmente que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima, afetando negativamente a pacífica convivência doméstica e familiar, o que quis.
*
3. Apreciando
3.1. Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º»
Por sua vez, estabelece o artigo 400.º, n.º1, al. e), não ser admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.
In casu, o acórdão recorrido foi proferido, em recurso, pela Relação de Lisboa, determinando a condenação do arguido num caso em que a decisão da 1.ª instância tinha sido absolutória, inexistindo dúvidas, por conseguinte, quanto à recorribilidade para o STJ, que apenas conhece de matéria de direito, nos termos do artigo 434.º, do CPP.
Estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito – o que, no caso, não se verifica.
3.2. O recorrente questiona a qualificação jurídica efetuada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que entendeu, contrariamente ao decido pela 1.ª instância, estarem preenchidos os elementos do tipo de crime de violência doméstica.
Disse a Relação do Porto (transcrição em que se omitem as notas de rodapé):
«Estabelece o art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, sob o título “violência doméstica”, na redação em vigor à data da prática dos factos em análise:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos».
O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental .
A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus-tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Como diz André Lamas Leite (in “A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, páginas 23/66), identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pró-ativa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante».
Daí que, como observa este autor, «o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» .
Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante» .
Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus-tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.
Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus-tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc.
Para se assumirem como atos típicos de maus-tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus-tratos para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica.
Embora sendo predominante, a reiteração dos maus-tratos – configurando casos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória.
Como salienta Inês Ferreira Leite (estudo citado, pág. 19), «O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários eventos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica».
Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que «basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado.
Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária».
É de salientar, ainda, que estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.
Finalmente, o tipo legal da violência doméstica não exige qualquer elemento subjetivo especial, bastando-se com o comum dolo do tipo (art.º 14.º do CP).
No presente caso, ficaram inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações e ameaças) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado.
Diversamente considerou o tribunal a quo, fazendo notar, na sentença recorrida, que «as condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão e fim de namoro, resultando da factualidade provada outras situações de discussão entre o casal (cfr. factos provados n.ºs 4, 7 e 9), bem como a existência clara de ciúmes e de sentimentos de desconfiança por parte do arguido (cfr. factos provados n.º 7 e 9), acompanhados por estratégias de autovitimização e chantagem emocional (cfr. facto provados n.º 3)», e concluindo que «mesmo analisadas no seu todo, e à luz da supracitada jurisprudência, é forçoso considerar que os comportamentos em análise não espelham uma relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a assistente, nem consubstanciam, pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente ou de a submeter a uma vivência de medo».
Não acompanhamos as reservas enunciadas pelo tribunal a quo quanto à delimitação do tipo objetivo do ilícito em questão. Desde logo, e como já tivemos oportunidade de assinalar, o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, e parece ter sido pressuposto pelo tribunal a quo, a dignidade humana. É verdade que alguma doutrina apela também à dignidade da pessoa humana como bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, mas apenas como elemento complementar e nunca como exigência central de interpretação do tipo legal.
Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental.
Além disso, e como também já tivemos oportunidade de salientar, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus-tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor.
Este tipo de densificações introduzidas por parte da jurisprudência e acolhidas na sentença recorrida ferem o princípio da legalidade, na medida em que pretendem fazer introduzir na tipicidade dos delitos pressupostos que não foram delineados pelo legislador, como bem observa o recorrente. Com efeito, e para além do mais, podem existir maus-tratos físicos e psíquicos, típicos do art.º 152.º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente e o tipo sociológico prevalente das situações de violência doméstica). Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de “subjugação” .
Como exemplarmente se afirma no acórdão do TRC, de 22/9/2021 , condensando tudo o que acabámos de expor:
«I - O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação, de sequestro, de importunação sexual, de coação sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra.
II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.º do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima.
III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus-tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objetivamente representa».
O crime de violência doméstica não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal .
Deste modo, o comportamento do arguido, denotando o especial desvalor de ação pressuposto pelo crime de violência doméstica, justifica a sua autonomização face aos outros tipos de ilícito (designadamente, injúria e ameaça) com os quais se encontra numa relação de concurso aparente.
Procede, por conseguinte, o presente fundamento do recurso, impondo-se que este tribunal extraia as consequências do preenchimento do tipo de ilícito objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica, para além do respetivo tipo de culpa.»
Constitui matéria de debate a identificação do bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro.
Prevalece presentemente o entendimento de que o bem jurídico tutelado diz respeito, diretamente, à pessoa do(a) ofendido(a), muito embora ocorra no contexto de determinadas relações de proximidade afetiva/intimidade/filiação ou análoga ou de coabitação: é exatamente essa especial relação contemplada no tipo legal que, em regra, agrava a ilicitude e a culpa do agente, estando, por isso, em causa, um crime específico, normalmente impróprio (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 513).
Para Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é “a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da ação e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana” (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Segundo André Lamas Leite, “o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” (in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia”, Revista Julgar n.º 12, Set-Dez. 2010, p. 49).
Sobre o bem jurídico protegido, Pinto de Albuquerque entende ser a “integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra” (Comentário do Código Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, 2015, p. 591).
A posição dominante, tanto na doutrina como na jurisprudência, tem sido a de que o crime de violência doméstica visa tutelar não só a integridade física da pessoa individual, mas também a sua integridade psíquica, protegendo o bem jurídico “saúde” do agente passivo, entendido no seu sentido mais amplo.
É o entendimento de Taipa de Carvalho que identifica a proteção da “saúde” como bem jurídico complexo, abrangendo a saúde física, psíquica, mental e moral, orientada para o desenvolvimento harmonioso da personalidade (ob. cit., p. 512; André Lamas Leite, ob. cit., p. 49, entende que Taipa de Carvalho não está longe do seu pensamento, em função da referência ao “desenvolvimento harmonioso da personalidade”).
Fala-se, portanto, de um bem jurídico plural ou complexo que poderá ser atingido por uma multiplicidade de condutas contempladas no tipo legal.
Nas palavras de Margarida Santos [Sobre o(s) mau(s) trato(s) punível(veis) no crime de violência doméstica – contributos para a sua compreensão, Revista do STJ, n.º4), «está em causa mais do que a soma de diferentes bens jurídicos, nomeadamente da integridade física e psíquica, da liberdade pessoal, da liberdade e autodeterminação sexual, da honra. Parece-nos estar antes uma compreensão ampla da saúde, na aceção da Organização Mundial de Saúde, enquanto completo bem-estar físico, psíquico e social, estando, nesta medida, em causa a tutela de um estado de pleno bem-estar. Numa palavra, não está em causa a proteção isolada, por exemplo, da integridade física ou da liberdade sexual, “mas antes uma dimensão complexa e de certa forma antecipatória destas vertentes pessoais: a saúde”».
Para André Lamas Leite, “… difícil será apontar um tipo legal em cuja base se encontre um bem jurídico tão multímodo como o da violência doméstica”, entendendo que “uma boa parte do trabalho da doutrina e da jurisprudência deve concentrar-se na busca de um bem jurídico suficientemente amplo e operativo”. Segundo o dito autor, “… o bem jurídico que identificámos é uma concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25.º da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1, da Constituição) (…), ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana”. Identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que “é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude proactiva, porquanto em várias hipóteses do art. 152.º são divisáveis deveres legais de garante” (ob. cit. p. 48/51).
A nosso ver, reconhecendo-se que o bem jurídico protegido pelo tipo legal é complexo – identificado com a “saúde” do agente passivo, entendido no seu sentido mais amplo -, o mesmo compreende, ainda que reflexamente, a convivência familiar, para-familiar ou doméstica, uma confiança relacional nesse âmbito (Elisabete Ferreira, “Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica”, Julgar online, maio de 2017, p. 6/7).
No tipo de crime em questão impõe-se proceder sempre a uma avaliação da imagem global do facto, pois tal decorre da própria natureza (e construção) do tipo.
Abrangidos pela violência doméstica estão tanto os casos de “microviolência continuada”, como os actos isolados mas intensos.
Nuno Brandão (“A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, n.º 12, 2010, pp.19-20) exemplifica como agressões que entram na esfera dos maus-tratos físicos “empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos”. E como exemplos de maus-tratos psíquicos, “os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc ”.
Em suma, na violência doméstica podem distinguir-se comportamentos que não assumem relevância típica à luz de outros tipos de crime e comportamentos que podem logo assumi-la. Há condutas que, tomadas isoladamente, pela sua gravidade e intensidade, preenchem logo o crime de violência doméstica, bem como condutas que o realizam atenta já a frequência e a reiteração, tudo dependendo dos específicos contornos do caso e de acordo com uma avaliação da imagem global do facto.
O que significa que uma conduta que poderia não ser, num outro contexto, materialmente grave, neste contexto pode sê-lo, porque encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico.
Estando em causa um bem jurídico plural ou complexo que poderá ser atingido por uma multiplicidade de condutas contempladas no tipo legal, releva a circunstância de as condutas em causa se verificarem no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela. É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um dos tipos legais que poderiam ser autonomamente preenchidos e o tipo de violência doméstica. Não terá sido alheio ao pensamento do legislador o reconhecimento de que o tipo de relações em causa tem a potencialidade de gerar situações de dominação e de sujeição ou dependência, criando uma vulnerabilidade que pode propiciar um tratamento humilhante, de amesquinhamento, ou mesmo degradante, não raras vezes reiterado.
Terá sido por força dessa constatação que alguns sectores da doutrina e da jurisprudência identificaram a relação de domínio, subjugação ou de dependência como elemento a exigir para se considerar preenchido o crime de violência doméstica.
Porém, não se identifica na formulação do tipo legal a exigência de que se verifique necessariamente uma relação de domínio ou subjugação, como não se exige que a conduta a subsumir ao tipo se revista de particular intensidade, como requisito constitutivo do tipo objetivo de ilícito: uma conduta materialmente não grave (não intensa), se perpetrada no âmbito familiar e doméstico, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico (cf. Elisabete Ferreira, ob. cit.). Como realça Margarida Santos (ob. cit.), a exigência de intensidade não decorre expressamente do tipo legal, podendo a mesma – a existir – apenas advir da compreensão do próprio recorte do bem jurídico umbilicalmente ligado à especial relação subjacente, em ligação com as circunstâncias em que o mesmo é colocado em perigo ou lesado.
Não se segue, porém, que se deva aceitar um generalizado recurso ao tipo legal de violência doméstica como decorrência do simples facto de a ofensa de um dos bens jurídicos abrangidos pela tutela proporcionada pelo tipo legal do artigo 152.º, do Código Penal, ocorrer no âmbito de uma relação presente ou passada entre o agente e uma das pessoas mencionadas nas alíneas daquele normativo.
Como afirmou a Relação de Coimbra, em acórdão de 22.09.2021, proc. 158/19.5GABBR.C1 (www.dgsi.pt):
“A análise do tipo legal deverá fazer-se sem desconsiderar os elementos vertidos no texto da norma, mas fazendo apelo, também, a todo o conteúdo útil resultante do seu (con)texto. Explicitando mais detalhadamente esta linha de raciocínio (…) os elementos de um tipo legal de crime deverão resultar com clareza da norma, sendo de verificação necessária (é essa a essência do tipo legal, sob pena de não haver crime), ainda que possam concorrer elementos de verificação disjuntiva, como sucede sempre que a norma aponta diversas modalidades de execução ou diversos resultados, exigindo tão-só a verificação de uma das hipóteses para que o crime se tenha como consumado. A exigência da verificação de uma relação de domínio por parte do autor do crime deixaria de fora múltiplas situações que em bom rigor deveriam considerar-se abrangidas pela norma. A título de exemplo, suponha-se que no âmbito do relacionamento de um casal se criou uma acentuada relação de dependência por parte de um dos cônjuges relativamente ao outro, com manifestações evidentes em diversas situações da vida do casal e que, no entanto, o cônjuge mais fragilizado sistematicamente destrata publica e provocatoriamente o outro elemento do casal, causando-lhe acentuado sofrimento psicológico. Numa tal situação, a exigência de uma relação de dependência como condição de preenchimento do tipo, levada ao extremo, obstaria à verificação do crime, o que evidencia o desajustamento da exigência desse elemento que, na verdade, não tem apoio na letra do tipo legal de crime, ainda que porventura o tenha no seu espírito e que esteja presente, do lado do agente do crime, na esmagadora maioria das situações que chegam à barra dos tribunais.
Diversamente se passam as coisas com a exigência de que a ofensa tenha lugar por causa da relação. Aqui, já não estaremos perante um requisito estranho à descrição do tipo legal, mas sim perante uma interpretação restritiva exigida pela própria coerência do sistema. Veja-se o exemplo de escola apontado pela doutrina: um casal divorciado há mais de uma década e que não mais se encontrou, envolve-se num acidente de trânsito com duas viaturas, cada uma delas conduzida por um dos ex-cônjuges. Na sequência da discussão que se desencadeia por causa do acidente, um deles ofende verbalmente a honra do outro e desfere-lhe uma bofetada. Violência doméstica? Seria um absurdo, não contemplado na intenção do legislador, mas a que se chegaria se se levasse ao extremo a tese que vem sustentada pelo recorrente.
Entre esta situação limite e o crime que linearmente se oferece como subsumível ao tipo de violência doméstica será sempre possível encontrar situações que verdadeiramente não caem sobre a alçada do tipo legal previsto no art. 152º, independentemente da verificação de uma relação presente ou pretérita entre o agente e a vítima. O elemento distintivo resultará necessariamente da imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima e, nessa medida, o enquadramento será sempre casuístico. Sempre que as circunstâncias do caso evidenciarem que, apesar da relação conjugal, familiar ou análoga, contemporânea da infracção ou anterior a ela, a prática do crime se oferece como estranha a essa relação, poderemos estar perante um dos tipos de crime que tutelam a integridade física ou psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra, mas não já perante um crime de violência doméstica. Na verdade, este último crime não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal. A opção pelo tipo do art. 152º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação presente ou passada. É possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita? ocorre violência doméstica; esse nexo não pode ser estabelecido? a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objectivamente considerada representa.»
Diz-se no acórdão recorrido (transcrição sem notas de rodapé):
«Considera o recorrente que o tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do art.º 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, por ter entendido que a factualidade dada como provada não integra o crime de violência doméstica, apoiando-se no seguinte conjunto de argumentos: a) as condutas do arguido, pese embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão, ciúme e fim de namoro; b) não espelham relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a vítima; c) não consubstanciam, pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente.
Vejamos, então.
Estabelece o art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, sob o título “violência doméstica”, na redação em vigor à data da prática dos factos em análise:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos».
O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental .
A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Como diz André Lamas Leite (in “A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, páginas 23/66), identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-ativa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante».
Daí que, como observa este autor, «o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» .
Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante» .
Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.
Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc.
Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus tratos para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica.
Embora sendo predominante, a reiteração dos maus tratos – configurando casos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória.
Como salienta Inês Ferreira Leite (estudo citado, pág. 19), «O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários eventos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica».
Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que «basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado.
Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária».
É de salientar, ainda, que estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.
Finalmente, o tipo legal da violência doméstica não exige qualquer elemento subjetivo especial, bastando-se com o comum dolo do tipo (art.º 14.º do CP).
No presente caso, ficaram inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações e ameaças) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado.
Diversamente considerou o tribunal a quo, fazendo notar, na sentença recorrida, que «as condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão e fim de namoro, resultando da factualidade provada outras situações de discussão entre o casal (cfr. factos provados n.ºs 4, 7 e 9), bem como a existência clara de ciúmes e de sentimentos de desconfiança por parte do arguido (cfr. factos provados n.º 7 e 9), acompanhados por estratégias de autovitimização e chantagem emocional (cfr. facto provados n.º 3)», e concluindo que «mesmo analisadas no seu todo, e à luz da supracitada jurisprudência, é forçoso considerar que os comportamentos em análise não espelham uma relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a assistente, nem consubstanciam, pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente ou de a submeter a uma vivência de medo».
O recorrente sustenta que o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal só se mostra preenchido quando o comportamento do agressor representa “…uma conduta especialmente violenta ou uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma…” e quando se trate de um “comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório”, ou, então, quando sejam factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos, concluindo que “…face à matéria de facto dada como provada, é de considerar que a mesma não é suficiente para considerar como preenchidos os elementos objetivos do crime de violência doméstica cuja prática era imputada ao aqui recorrente”.
O acórdão recorrido, por sua vez, considerou inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações e ameaças) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado, afastando o entendimento de que a violência doméstica exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus-tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante e que pressuponha um estado de subjugação da vítima ao agressor.
Está provado que o arguido e a assistente mantiveram uma relação de namoro sem coabitação, a partir de finais de maio de 2015, tendo depois, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o início de 2016 e o início de 2017, estabelecido uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, tendo essa relação terminado a 15 de fevereiro de 2022.
Durante o relacionamento, em várias ocasiões, sobretudo no interior da residência comum, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”.
A expressão “várias ocasiões” traduz a ideia de repetição/reiteração, razão pela qual se determinou, no acórdão, a eliminação do facto dado como não provado na al. c) da sentença da 1.ª instância, do qual constava que “O arguido dirigia à assistente às expressões referidas em 3) de modo frequente e reiterado”, por estar em manifesta contradição com aquele facto provado n.º 3.
Deu-se como provado, outrossim, que no 15 de fevereiro de 2022, pelas 14h30, no interior da residência comum, a assistente comunicou ao arguido que iria abrir a porta da habitação para onde se iriam mudar, sita na Rua do ..., e pretendia ficar lá a tarde toda à espera dos técnicos para ligarem a luz. Nesse momento, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Vais para cima porque já tens um macho à tua espera!”.
A assistente deslocou-se para essa habitação, sendo seguida pelo arguido e, já no interior da mesma, desenrolou-se outra discussão, na sequência da qual o arguido dirigiu à assistente as expressões: “Não vales nada! Queres é estar aqui sozinha, vem aqui o macho!”
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
Sabia o arguido que, comportando-se nos moldes descritos, lesava a sua namorada e companheira na sua saúde mental e na sua autoestima, humilhando-a e diminuindo-a como mulher, sabendo igualmente que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima, afetando negativamente a pacífica convivência doméstica e familiar, o que quis.
Visto o acima exposto, conclui-se que as condutas provadas – factualidade definitivamente assente - integram o elemento objetivo do tipo de crime por que o arguido/ora recorrente foi condenado.
Realmente, as expressões proferidas pelo arguido – reiteradamente, “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”; e, ainda, “Vais para cima porque já tens um macho à tua espera!”; “Não vales nada! Queres é estar aqui sozinha, vem aqui o macho!” -, proferidas no contexto relacional existente, sabendo o arguido que lesava a ofendida na sua saúde mental e na sua autoestima, humilhando-a e diminuindo-a como mulher, sabendo, outrossim, “que perturbava o seu bem-estar no lar, como veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima, afetando negativamente a pacífica convivência doméstica e familiar, o que quis”, sustentam o preenchimento do crime imputado, traduzindo-se, na sua globalidade, numa forma de tratamento humilhante, vexatório e de amesquinhamento da sua então namorada e companheira, atentatório da sua integridade psíquica abrangida pelo bem “saúde”, entendido no seu sentido mais amplo (e, reflexamente, da confiança relacional).
Neste quadro, entendemos que o recorrente carece de razão quando defende que os factos dados como provados não configuram o crime de violência doméstica, razão por que o recurso não merece provimento, ficando prejudicado o que vem alegado a propósito da prescrição do invocado crime de injúria.
*
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).
Supremo Tribunal de Justiça, 23 de janeiro de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
João Rato (1.º Adjunto)
Celso Manata (2.º Adjunto)