DESCARATERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
VOLUNTARIEDADE NA VIOLAÇÃO
Sumário

I – Para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto na 2.ª parte do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da NLAT, descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (a) a existência de específicas condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (b) violação, por ação ou omissão, dessas condições, por parte do sinistrado; (c) que a atuação deste seja voluntária e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo causal entre essa violação e o acidente.
II - Não está em causa a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física.
III - Sendo um dos requisitos a voluntariedade na violação das regras de segurança, apenas estão abrangidos os comportamentos voluntários do sinistrado – prática do ato ou omissão, voluntária e conscientemente, o que o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendam com atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco.
IV – A descaraterização do acidente com fundamento na 2.ª parte da alínea a), do n.º 1, do artigo 14.º da NLAT exige um comportamento subjetivamente grave do sinistrado.

[elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho)]

Texto Integral

Apelação/Processo nº 3330/21.4T8VLG.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Valongo-Juiz 2



Relatora: Germana Ferreira Lopes
1.º Adjunto: Nelson Nunes Fernandes
2º Adjunto: António Luís Carvalhão







Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I - RELATÓRIO
Os autos respeitam a uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo especial, emergente de acidente de trabalho, em que é autor AA e ré A..., SA. (Seguradora), que se iniciou com base numa participação efetuada pelo sinistrado por acidente de trabalho ocorrido em 19-08-2021 (refª citius 30436173).

Teve lugar a tentativa de conciliação da fase conciliatória do processo, conforme auto de não conciliação refª citius 435353841 (com a respetiva subscrição dos intervenientes).

Desse auto consta o seguinte (transcrição[1]):

“Auto de não conciliação

(…)

PRESENTES Sinistrado: AA (…)

Entidade Responsável: A... - Companhia de Seguros, S.A. (…)

Entidade Patronal: B..., S.A. (…)

Iniciada a diligência resulta dos autos que:

O SINISTRADO: Que no dia 19/08/21 cerca das 06,00 horas, em ..., foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia funções de operário de armazém, sob as ordens, direcção e fiscalização de B... S.A com sede na Rua ... ... Lisboa, mediante a retribuição mensal de€ 685,00 x 14 meses+€ 5,40 x 242 dias + 137,20 x 12 (total anual de €12.543,20), cuja responsabilidade se encontra integralmente transferida para a Seguradora. -----

O acidente consistiu em ter ficado com o pé atracado entre um empilhador e um pilar, do qual resultou fractura do calcâneo esquerdo.

Submetido exame no Instituto Médico-Legal foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 15% e fixada a data da alta em 19/02/22 cujo resultado declara aceitar.

A seguradora pagou €989,71 a referente às indemnizações e demais despesas acessórias que lhe eram devidas até à data da alta.

Reclama o capital de remição da pensão anual de € 1.317,04 devida a partir de 20/02/22 calculada com base na retribuição anual x 70% x IPP de 15%, nos termos do disposto no art.º 48°, nº3 al. c) e nºl do art.º 75º da Lei 98/2009 de 04/09.

Reclama da Seguradora a quantia de € 2.875,66 referente a diferenças de indemnização por IT' s (apólice com condições especiais) e € 15,00 de deslocações ao INML do Porto e a este Tribunal.

O LEGAL REPRESENTANTE DA COMPANHIA DE SEGUROS:

A data de 19/08/21 a responsabilidade do empregador, emergente de acidente de trabalho estava validamente transferida para a sua representada por contrato seguro, titulado por apólice válida que abrange o sinistrado, mediante a retribuição de € 685,00 x 14 meses + € 5,40 x 242 dias+ 137,20 x 12 (total anual de€ 12.543,20)

Não aceita a caracterização do acidente como de trabalho, não aceita o nexo causal entre o acidente e as lesões nem a incapacidade; não assume a responsabilidade pelo acidente, uma vez que o acidente resultou de negligência grosseira por parte do sinistrado.

Assim sendo, o acidente resultou de conduta temerária em alto e relevante grau, o que, nos termos do disposto da alínea b) nº 1 do artº 14 da lei 98/2009 de 4 de Setembro, consubstancia a descaraterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, não podendo, por conseguinte esta Seguradora assumir a responsabilidade pela reparação.

Não aceita pagar a quantia de € 2.875,66 referente a diferenças de indemnizações por IT's;

Não aceita pagar a quantia reclamada a título de transportes.

A Representante da Empregadora.

Aceita existência e a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo causal entre as lesões e o acidente, a retribuição de€ 685,00 x 14 meses+€ 5,40 x 242 dias + 137,20 x 12 (total anual de € 12.543,20) e o grau da incapacidade atribuído pelo perito médico do INML do Porto.

Nada lhe cumpre pagar uma vez que a sua responsabilidade por acidentes de trabalho está integralmente transferida para a Seguradora.

PELO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO foi dito:

Face ao exposto, deu o Procurador da República as partes por não conciliadas, determinando-se que, a fim de instruir P A com vista à eventual propositura de acção emergente de acidente de trabalho, se extraia e me seja entregue certidão de folhas 2 a 6, 9, 13 a 30, 37, 38, 44 a 46, 48 e deste auto.”

AA (adiante Autor), então representado pela Exmª Procuradora da República, apresentou petição inicial refª citius 32204714, dando assim início à fase contenciosa do processo, demandando a Ré A...-Companhia de Seguros, SA (adiante Ré Seguradora), peticionando a condenação da Ré:

I - A reconhecer a caracterização do evento supra descrito como acidente de trabalho

II - A reconhecer o nexo causal entre o acidente de trabalho descrito e as lesões verificadas e,

III - Consequentemente, com base nos períodos de incapacidade temporária absoluta e incapacidade temporária parcial a 30% fixados, na IPP de 15% atribuída e na retribuição anual transferida de 12.543,20€ (685,00€ x 14m + 5,40€ x 242d + 137,20€ x 12m 12.543,20€, aludidos em 8°, 9°, 10° e 12°, a pagar ao A.:

a) O capital de remição da pensão anual de 1.317,04€, devida desde o dia 20/02/2022, dia seguinte ao da alta, nos termos do disposto nos arts 48°, nº 3, ai. c) e 75°, nº 1, da Lei nº 98/09, de 04/09;

b) A quantia de 2.875,66€, a título de diferenças na indemnização por Its;

c) A quantia de 15,00€, a título de despesas de deslocação para comparência obrigatória ao INML do Porto e a este Tribunal.

d) Os juros de mora que se contabilizarem, à taxa legal de 4%, nos termos do disposto no art. 135º do C.P.T.
Alegou ser trabalhador da sociedade B..., SA e ter sido vítima de um acidente no dia 19-08-2021, quando trabalhava sob as suas ordens, direção e fiscalização, do qual resultaram lesões que lhe demandaram períodos de incapacidade temporária (ITA e ITP) e uma incapacidade parcial permanente (IPP), sendo que suportou € 15,00 em despesas com deslocações. Mais invocou que a responsabilidade infortunística emergente do trabalho prestado pelo Autor à entidade empregadora se encontrava à data do acidente transferida para a Ré Seguradora, através de contrato de seguro que identifica, reportando-se à retribuição anual auferida e transferida de € 12.543,20 e às respetivas condições particulares.
Defendeu que a factualidade descrita configura a ocorrência de um acidente de trabalho indemnizável.

O Instituto da Segurança Social, IP, deduziu pedido de reembolso (refª citius 32429269) contra a Ré Seguradora, pedindo a respetiva condenação a pagar-lhe a quantia de € 1.446,86, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação do pedido até integral reembolso.
Alegou que, em consequência das lesões sofridas no acidente em causa nos presentes autos, pagou ao Autor o montante de € 1.446,86, a título de subsídio de doença. Sustentou que, verificada a concorrência pelo mesmo evento entre o direito ao subsídio de doença pago ao Autor e o dever de indemnizar a cargo da Ré Seguradora o Demandante fica sub-rogado no direito à indemnização devida àquela, até ao limite do valor do subsídio que lhe pagou.

Citada, a Ré Seguradora apresentou contestação refª citius 32468566, aceitando a existência do seguro invocado e a ocorrência do acidente, mas pugnando pela descaraterização do mesmo, por considerar que decorreu da violação pelo sinistrado das regras de segurança estabelecidas pela sua entidade empregadora e da negligência grosseira do sinistrado nos termos explicitados na contestação.
Requereu a realização de exame por junta médica.

A Ré Seguradora deduziu oposição ao pedido de reembolso (refª citius 32592508).

O Autor respondeu à defesa por exceção deduzida pela Ré Seguradora (refª citius 33303332).

Foi proferido despacho saneador (refª citius 441528963), no qual se afirmou inexistirem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumprisse conhecer.

Na identificada decisão foi enunciada a matéria assente nos termos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo do Trabalho, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova. Nessa mesma decisão foi ainda determinado o desdobramento do processo, com a organização do apenso para fixação da incapacidade.

Organizado o apenso de fixação de incapacidade (apenso A) e depois de realizada a junta médica, foi proferida decisão nos termos do artigo 140.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, na qual se decidiu fixar em 15% o coeficiente de desvalorização que afeta o Autor a título de incapacidade permanente parcial para o trabalho (IPP de 15% - 0,15) – refª citius 443940415 do apenso A.

Realizada a audiência de julgamento (refª citius 452021432), foi proferida sentença refª citus 452354736, concluída com a decisão (que se transcreve):
«Nestes termos e, pelo exposto, julgo a acção improcedente e, consequentemente absolvo a ré do pedido.

*
Custas da acção (cujo valor se fixa em 20.265,05€) e do pedido de reembolso (cujo valor se fixa em 1.446,86€) a cargo, respectivamente, do autor e da SS, sem prejuízo da isenção de que o autor beneficia.
Pese embora o sinistrado goze de isenção do pagamento da taxa de justiça, de acordo com o disposto no artigo 4º, nº 9 do RCP é responsável pelo pagamento dos encargos a que deu origem, uma vez que a sua pretensão foi integralmente improcedente. ».

Por requerimento refª citius 37253080 o Autor veio juntar procuração forense datada de 10-11-2023.

Não se conformando com a sentença proferida, o Autor, apresentou recurso de apelação (refª citius 37303649), tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem):
«I - A Sentença, deu como provados os factos constantes nos pontos 1 a 23 e como não provados os factos constantes das alíneas a) a d).
II - O recorrente entende que há factos que não devem ser dados como provados e outros que se deveriam considerar provados, requerendo a reapreciação da prova testemunhal produzida, bem como do depoimento de parte do autor
III – O tribunal não valorizou o depoimento do A. e da testemunha que corroborou a sua descrição do acidente, BB, por essa descrição não ser coincidente com a da participação de sinistro (fls. 28 e 29) e dar apenas credibilidade ao depoimento da testemunha CC.
IV - A participação do acidente e que consta de fls. 28 e 29 não foi efetuada pelo A, nem assinada por este, correspondendo apenas à versão apresentada pela Ré, sendo óbvio que não pode existir contradição na descrição do acidente por parte do A. em relação a uma participação que não foi elaborada por si e com a qual nunca concordou.
V - A única participação do acidente feita pelo A. é a que deu entrada nos autos em 08.11.2021, cujo teor em nada contradiz o depoimento e a descrição do acidente feita pelo A. no decurso do julgamento.
VI - Pelo que o Tribunal errou ao fundamentar a sua apreciação dos factos com base numa contradição que não existe.
VII - O Tribunal considerou que a testemunha CC depôs de forma absolutamente isenta, sem mostrar qualquer interesse no desfecho da causa, e limitou-se a descrever o que viu.
VIII - Não é verdade que esta testemunha não tenha qualquer interesse na causa, pois trata-se de trabalhadora da entidade empregadora sobre quem recai o pagamento do seguro e eventuais agravamentos do mesmo por força dos acidentes que ocorram com os seus subordinados.
IX - É incompreensível e inaceitável que o Tribunal dê mais credibilidade ao depoimento da testemunha CC, em detrimento do depoimento do A. e da testemunha BB, pese embora a testemunha CC não ter assistido ao acidente.
X - Esta testemunha não presenciou o acidente em causa, não estava sequer nas instalações do local do acidente na data da sua ocorrência, tendo o seu testemunho por base a alegação de que visualizou, posteriormente, imagens das câmaras de vigilância existentes no local.
XI - Para além do facto do seu testemunho ter por base a alegação de que visualizou imagens das câmaras de vigilância existentes no local, o certo é que tais imagens nunca foram juntas aos autos, com a justificação de que já não estariam disponíveis, atento o lapso de tempo decorrido.
XII - Ao valorizar, em absoluto, a versão dos factos apresentada por uma testemunha que não os presenciou, e cujo testemunho, indirecto, se baseia numa alegada visualização de imagens que nunca foram juntas aos autos e que se desconhece se existem e qual o seu real conteúdo, o Tribunal confere uma força probatória a este testemunho indirecto que não é admissível.
XIII - A atribuição de força probatória a depoimentos desta natureza abriria a porta a que num qualquer processo fosse valorizado o depoimento de testemunhas, bastando alegar que visualizou imagens, sem ser possível o Tribunal comprovar, através da sua junção aos autos, se os factos descritos correspondem ou não à verdade.
XIV - Não sendo possível comprovar a sua versão porque já não existem imagens e não sendo possível aquilatar de que forma a mesma verificou factos como os que relata e se o seu relato é fiel a tais imagens, o depoimento desta testemunha não pode nem deve ser valorado.
XV - O tribunal errou ao fundamentar a sua apreciação dos factos dados como provados e não provados com base na participação de sinistro (fls. 28 e 29) e dar apenas credibilidade ao depoimento da testemunha CC, devendo ser reapreciada tal fundamentação.
XVI - As PROVAS QUE IMPÕE DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA quanto aos factos provados e não provados são as seguintes:
Depoimento de parte do Autor – AA (sessão de audiência de julgamento de 27.09.2023 – gravação em sistema digital pelas 09:50:43 horas e o seu termo pelas 10:08:30 horas); Depoimento da testemunha – BB (sessão de audiência de julgamento de 27.09.2023 – gravação em sistema digital pelas 10:37:11 e o seu termo pelas 10:50:44 horas); Depoimento da testemunha – CC (sessão de audiência de julgamento de 27.09.2023 – gravação em sistema digital pelas 10:51:20 e o seu termo pelas 11:08:32 horas)
XVII – Atendendo à prova produzida não devem ser dados como provados os factos descritos como 12), 13), 14), 16) da Sentença.
XVIII - Atendendo à prova produzida deverão ser dados como provados os factos (dados como não provados na Sentença recorrida) a), b) e c).
XIX - Atendendo aos factos dados como provados, com as alterações indicadas, conclui-se que a conduta do sinistrado não foi injustificada, nem temerária nem fortemente imprudente. Antes sim resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional.
XX - Em face do exposto, ocorreu um acidente de trabalho.».

Termina dizendo o seguinte:

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, deve a sentença recorrida ser revogada:

1 - Modificando-se a Decisão Recorrida quanto aos factos dados como provados e não provados, conforme exposto;

2 – Determinando-se a procedência da Acção e a condenação da Ré nos Pedidos formulados pelo Autor.”.

A Ré Seguradora apresentou resposta (refª citius 37560596), sustentando, em síntese, que: o Recorrente não deu cabal cumprimento ao disposto no n.º 1, alínea b) e n.º 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, não especificando em relação a cada ponto de facto os concretos meios de prova e passagens dos depoimentos, o que impede uma apreciação criteriosa dos fundamentos de facto da impugnação, impondo a rejeição do recurso quanto à matéria de facto provada; sem prescindir, conhecendo o Tribunal da Relação do recurso da matéria de facto, deverá confirmar as decisões de julgamento dos concretos pontos de facto impugnados pelo Recorrente, dado não haver meios de prova que imponham decisões diversas, nos termos e para os efeitos do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; a sentença recorrida foi proferida em estrito cumprimento do normativo constante dos artigos 5.º, 410.º, 411.º, 413.º, 466.º, n.º 3, 607.º, n.ºs 4 e 5, do Código de Processo Civil e ainda dos artigos 8.º, 14.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4-09.

Termina dizendo que não deve ser concedido provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Foi proferido pelo Tribunal a quo despacho (refª citius 455837498) a admitir o recurso de apelação, nos termos aí exarados.


O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87º, nº 3, do CPT (refª citius 17699272), pronunciando-se no sentido de que deverá ser dado provimento ao recurso por considerar não estar afastada a responsabilidade na reparação do acidente.

As partes não responderam ao identificado parecer.

Por ofício refª citius 386318 foi comunicado o indeferimento do apoio judiciário requerido pelo Autor, sendo que o Autor procedeu ao pagamento da taxa de justiça atinente à interposição do recurso (refªs citius 386976 e 17951424).

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.


***

II – Questões a resolver

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho[3]].

Assim, são as seguintes as questões suscitadas e a apreciar:

(1) Impugnação da decisão da matéria de facto/juízo sobre (in)admissibilidade, sem prejuízo da intervenção oficiosa deste Tribunal da Relação em sede da matéria de facto nos termos previstos no artigo 662.º do CPC;

(2) Saber se o Tribunal a quo errou no julgamento quanto à aplicação do direito, ao ter descaraterizado o acidente dos autos e excluir a sua reparação.


***

III – FUNDAMENTAÇÃO

1) Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância

A decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância é a seguinte (transcrição):

“São os seguintes os factos provados:

1) O autor AA nasceu no dia ../../1970.

2) À data de 19/08/2021, o autor era trabalhador da sociedade B..., SA, com a categoria profissional de operário de armazém (operador de reposição), auferindo a retribuição anual ilíquida de 12.543,20€ (685€ x 14 meses + 5,40€ x 242 dias + 137,20€ x 12 meses).

3) À data de 19/08/2021, a sociedade B..., SA, tinha já celebrado e em vigor com a ré seguradora um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho de trabalhadores por conta de outrem, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice nº ...80, cujas condições particulares se mostram juntas a fls. 22 a 25 dos autos, e que aqui se dão como reproduzidas, mediante o qual e na indicada data tinha transferido para a ré seguradora a responsabilidade infortunística relativa a acidentes em que fosse interveniente o autor relativamente à referida retribuição anual de 12.543,20€ (685€ x 14 meses + 5,40€ x 242 dias + 137,20€ x 12 meses).

4) Nas condições particulares do contrato de seguro referido em C) consta expressamente a seguinte cláusula particular: “GARANTE SALÁRIO INTEGRAL DE 100% DO SALÁRIO LÍQUIDO NAS INCAPACIDADES TEMPORÁRIAS”.

5) No dia 19/08/2021, quando se encontrava no armazém da sociedade B..., SA, exercendo as suas funções, o autor ficou com o pé entalado entre um empilhador e uma estrutura, tendo sofrido fratura do calcâneo esquerdo.

6) Por causa disso, o autor foi assistido nos serviços de urgência do Hospital ... no Porto e, posteriormente, nos serviços clínicos da ré seguradora.

7) Os serviços clínicos da ré seguradora deram alta “administrativa” ao autor em 28/09/2021.

8) A ré seguradora comunicou ao autor que não assumia a responsabilidade pelo acidente em causa nos presentes autos, conforme comunicação escrita de fls. 4 dirigida pela ré ao autor.

9) No dia e hora referidos em 5) o autor desempenhava funções de operador de execução, que consistiam em recolher as embalagens do local onde estão colocadas ou armazenadas e colocá-las no empilhador, na parte traseira, para posterior transporte para outro local.

10) Para proceder a tais tarefas o autor tem de sair do empilhador, e com os braços, levantar a embalagem ou embalagens e colocá-las no empilhador.

11) O autor desempenhava tais funções de acordo com instruções que recebia, por via auricular, dadas por sistema operativo, que indicam a ou embalagens a levantar e os códigos da box ou compartimento no qual estão depositadas.

12) No dia e hora referidos em 5), após colocar paletes de carga no local destinado às mesmas a meio de um corredor com o nº 42, o autor colocou o empilhador em marcha-atrás recuando pelo corredor em sentido contrário ao destinado à sua circulação, animando-o de velocidade.

13) Quando se depara com um colega de trabalho que se aproximava no mesmo corredor a conduzir um veículo retráctil, guinou de forma repentina e descontrolada para evitar embater-lhe, acabando por colidir com a estrutura metálica (rack).

14) Dado seguir em marcha-atrás e de forma acelerada, ao guinar não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador, acabando por ficar com o pé esquerdo esmagado entre a estrutura do empilhador e o perfil do rack onde o empilhador embateu.

15) No local o tráfego dos empilhadores deve ser sempre efectuado num só sentido assinalado com verde na entrada, desde o início do corredor até ao termo, sendo proibido circular em sentido inverso, como o fazia o sinistrado.

16) Além de circular “contra a mão”, circulou por mais de 5 metros de extensão em “marcha-atrás” com as limitações de mobilidade e visibilidade sobre trajectória que o empilhador percorria, o que foi a única e a causa determinante da perda de controle do empilhador, da sua perda de equilíbrio com a saída da sua perna esquerda do habitáculo protegido do empilhador, que tiveram como consequência directa, adequada e exclusiva, as lesões corporais sofridas pelo autor.

17) O autor conhece os corredores e sentido de circulação, a obrigação de só colocar em movimento quando têm “a visibilidade total do trajecto e manobras”, de “manter o corpo e membros superiores e inferiores dentro” do habitáculo protegido e de “manter distância de segurança em relação a veículos, obstáculos e/ou pessoas” que escritas são dadas a conhecer aos operadores como foi o caso do autor.

18) O autor esteve em situação de incapacidade temporária absoluta de 20/08/2021 a 19/12/2021, ou seja, por um período de 122 dias e em situação de incapacidade temporária parcial (30%) de 20/12/2021 a 19/02/2021, fixável num período total de 62 dias.

19) O autor ficou a sofrer, a partir de 19/02/2021, data da alta definitiva, de IPP (Incapacidade Permanente Parcial) de 15%.

20) O autor recebeu da ré seguradora a quantia de 989,71€, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho, conforme nota discriminativa junta pela ré seguradora e constante a fls. 26 dos autos.

21) No dia 4/04/2022, realizou-se a tentativa de conciliação da fase conciliatória, que se frustrou, sendo que: - O autor declarou aceitar o resultado do exame médico do INML; - A ré seguradora declarou aceitar que à data de 19-08-2021 a responsabilidade do empregador emergente de acidente de trabalho estava validamente transferida para si, por contrato de seguro, titulado por apólice válida que abrange o sinistrado, mediante retribuição de 685€ x 14 meses + 5,40€ x 242 + 137,20€ x 12 (total anual de 12.543,20€) e, bem assim, aceitar a que o sinistrado sofreu o descrito acidente e como tal a sua existência e a sua caraterização como acidente de trabalho; Mais declarou não aceitar: a caraterização do acidente como de trabalho; o nexo causal entre o acidente e as lesões nem a incapacidade. Declarou ainda não assumir a responsabilidade pelo acidente, uma vez que o mesmo resultou de negligência grosseira por parte do sinistrado.

22) O autor é beneficiário da Segurança Social nº ...94.

23) O Instituto da Segurança Social pagou ao autor a título de subsídio de doença a quantia de 1.446,86€ (mil quatrocentos e quarenta e seis euros e oitenta e seis cêntimos), no período de 25/09/2021 a 19/12/2021.


*

Não resultaram provados os seguintes factos:

a) Quando o autor estava parado a recolher embalagem ou embalagens para as colocar no empilhador, no início desse corredor, apercebeu-se que um outro empilhador se preparava para entrar no corredor e temendo uma colisão entre os dois veículos, tentou deslocar o empilhador com que trabalhava noutro local.

b) O empilhador, parado, estava mal arrumado e ao aperceber-se da entrada eminente de outro veículo no corredor, o autor tentou deslocar tal empilhador para local seguro evitando dessa forma a colisão entre os dois veículos.

c) A rapidez com que foi obrigado a efetuar a manobra fez com que se desequilibrasse e para evitar males maiores colocou o pé esquerdo no chão, pé que ficou entalado entre o pilar do módulo de armazenagem e a máquina.

d) Em deslocações ao INML do Porto e a este Tribunal, para a realização, respetivamente, de exame médico e tentativa de conciliação, o autor despendeu a quantia de 15€.”


*

2) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto – recurso da matéria de facto

O Recorrente manifesta a respetiva discordância quanto à decisão da matéria de facto proferida, dizendo, em substância, que o Tribunal a quo errou ao fundamentar a sua apreciação dos factos dados como provados e não provados com base na participação do sinistro (fls. 28 e 29) e dar apenas credibilidade ao depoimento da testemunha CC, devendo ser reapreciada tal fundamentação.

A Recorrida Seguradora defende o julgado, referindo inexistirem meios de prova que imponham distinta decisão da matéria de facto. Mais defende que deverá ser rejeitado o recurso nesta matéria, por não ter sido dado pela Recorrente cabal cumprimento ao disposto no n.º 1 alínea b) e n.º 2 do artigo 640.º do CPC, não tendo especificado em relação a cada ponto de facto os concretos meios de prova e passagens dos depoimentos.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido, refere que embora se reconheça que o Recorrente poderia ter cumprido melhor o disposto no artigo 640.º do CPC, também é certo que faz a indicação dos factos impugnados e a transcrição dos depoimentos que em seu entender impunham decisão diversa, bem como a indicação dos factos provados que deviam ser julgados não provados e os não provados que deviam ser julgados provados, por forma que se entende o pretendido. Mais refere que, levando em conta o que refere a testemunha BB e o próprio Autor, deveria alterar-se a decisão da matéria de facto nos termos requeridos pelo Recorrente.

Preliminarmente, e considerando desde logo a questão suscitada pela Recorrida que contende com a (in)admissibilidade da impugnação da decisão da matéria de facto apresentada, importa fazer uma breve incursão sobre os termos em que tem lugar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mormente quanto aos ónus exigíveis ao recorrente quando impugne a matéria de facto e, bem assim, os critérios/parâmetros que devem presidir à reapreciação factual por parte do Tribunal da Relação.

Como refere António Santos Abrantes Geraldes[4], quanto às funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, “foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas e relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”.

Em conformidade, refere-se no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17-04-2023[5] que no caso «de impugnação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, é necessário que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal a quo quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal a quo, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou assinalando a insuficiência dos elementos considerados para as conclusões tiradas. É que, a reapreciação pelo Tribunal da Relação da decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância não corresponde a um segundo (novo) julgamento da matéria de facto, apenas reapreciando o Tribunal da Relação os pontos de facto enunciados pelo interessado (que circunscrevem o objeto do recurso).».
Sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, estabelece o n.º 1 do artigo 662.º do CPC que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa» (sublinhou-se).
Não se questionando a amplitude de conhecimento por parte do Tribunal da Relação, nos moldes que vem sendo reconhecida em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça[6] – de maneira a que fique plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição -, o certo é que o poder/dever previsto neste último normativo – de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – significa que para tal alteração, como se afirma no citado Acórdão de 17-04-2023, “não basta que os meios de prova admitam, permitam ou consintam uma decisão diversa da recorrida”.

Apelando mais uma vez ao citado Acórdão desta Secção Social de 17-04-2023[7], «a parte recorrente não pode simplesmente invocar um generalizado erro de julgamento tendente a uma reapreciação global dos meios de prova, não podendo a censura do recorrente quanto ao modo de formação da convicção do tribunal a quo assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, simplesmente em defender que a sua valoração da prova deve substituir a valoração feita pelo julgador; antes tal censura tem que assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção [21 – É que de outra forma, ocorreria uma inversão da posição dos intervenientes no processo, mediante a substituição da convicção de quem tem que julgar pela convicção de quem espera a decisão].».

Em consonância, pretendendo a parte impugnar a decisão da matéria de facto, deve observar determinados ónus de impugnação previstos no artigo 640.º do CPC.

O n.º 1 deste último normativo, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:

a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” (tem que haver indicação inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento);

b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada);

c) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

No que respeita ao ónus previsto na alínea b), determina o legislador no n.º 2 do mesmo artigo que se observe o seguinte:

a) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;

b) “independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.

Refira-se que se entende inexistir despacho de aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto[8]. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os recentes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (adiante STJ) de 6-02-2024[9] e de 23-01-2024[10]. Este entendimento vem também sendo seguido nesta Secção Social, de forma que se pensa unânime, e de que é exemplo o Acórdão de 5-06-2023[11].

Assim, e como também refere António Santos Abrantes Geraldes[12], a rejeição do recurso (total ou parcial) respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações (o elenco indicado tem por base o entendimento jurisprudencial que vem sendo sufragado nesta matéria, máxime pelo STJ):

a - Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC)];

b - Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC)];

c - Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);

d - Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e - Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação.

No que respeita à situação plasmada na alínea e), tenha-se presente que o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 12/2023[13], uniformizou jurisprudência nos seguintes moldes:

«Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.».

Como também sublinha António Abrantes Geraldes[14], as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconformismo. Contudo, importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Nesta decorrência, e a propósito do ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, como também é entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, existem casos em que, apesar da impugnação da matéria de facto se dirigir a blocos de factos, ainda assim deverá ser admitida, nomeadamente, quando o conjunto de factos impugnados respeitem à mesma realidade ou tratando-se de matéria conexa e os concretos meios de prova indicados sejam comuns a esses factos. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2021[15], 27-10-2021[16] e de 1-06-2022[17].

Haverá também que ter presente que o juiz, como regra, aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artigo 607.º, n.º 5, do CPC). Pode também dizer-se que é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, que a livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, impondo-se ao invés um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global. Este juízo deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferido segundo regras de experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso.

Claro está que o resultado desse processo deve ter suporte na prova produzida e tal deve emanar, em termos suficientemente claros e objetivos, da fundamentação da decisão da matéria de facto.

Como é evidente, tal resultado não pressupõe uma certeza absoluta, sendo sim necessário que a prova permita criar a convicção da realidade de um facto [nas palavras de Antunes Varela, J.Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[18], “grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva”].

E, como se enfatiza no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4-05-2022[19], «[e]ssa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá um dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.».

Do atrás exposto decorre com manifesta clareza que, para sustentar a impugnação sobre a decisão da matéria de facto, não bastará invocar um (ou mais) depoimento(s) em sentido contrário do decidido para pôr em crise a livre convicção formada e proceder a impugnação.

Do mesmo passo, se o recorrente entende que o Tribunal a quo valorou indevidamente meios de prova e, em contraste, atendeu indevidamente a outros que não mereciam credibilidade, errando assim na formação da sua livre convicção, não é suficiente partilhar e esgrimir aquela que é a sua própria convicção para procurar descredibilizar os meios de prova que foram valorados pelo julgador, antes lhe cumprindo evidenciar as razões que revelam o erro, seja por ter decidido ao arrepio das regras da experiência, ou por contrariar os princípios da racionalidade lógica, ou por ter desconsiderado quaisquer circunstâncias com influência relevante naquele processo de valoração da prova.

Feitas estas considerações, haverá agora que incidir a análise sobre o caso vertente.

No caso, verifica-se o cumprimento do ónus primário de delimitação do objeto do recurso, resultando das conclusões da apelação que o Recorrente impugna os pontos 12), 13), 14) e 16) dos factos provados e as alíneas a), b) e c) dos factos não provados e, bem assim, a decisão que no seu entender sobre tais pontos e alíneas deveria ter sido proferida – diz que perante a prova produzida os referidos pontos 12), 13), 14) e 16) não devem ser dados como provados e as referidas alíneas a), b) e c) devem ser dadas como provadas [conclusões XVII e XVIII da apelação].

Especifica ainda na motivação os elementos probatórios, cujo registo gravado consta do processo e considera devem conduzir à alteração daqueles pontos impugnados, indicando, na motivação, as passagens da gravação em que funda o seu recurso, transcrevendo esses excertos.

Sustenta a Recorrida, como vimos, que no recurso apresentado não são especificados, relativamente a cada ponto de facto, os concretos meios de prova e passagens dos depoimentos, o que impõe em seu entender a rejeição do recurso.

Neste particular, pese embora o Recorrente tenha agrupado a matéria em causa, considerando que se trata de matéria conexa (toda reportada à dinâmica do acidente) e que à mesma se reportam os mesmos meios de prova invocados, sendo certo que o Recorrente acaba por fazer a conexão dos excertos da prova com os pontos impugnados, conclui-se não se verificar obstáculo ao conhecimento da impugnação. Se atentarmos, aliás, na sentença recorrida, constata-se que a matéria em causa foi também agrupada em sede de fundamentação no que se refere à apreciação crítica dos elementos probatórios, sob a temática da “dinâmica do acidente”.

Em suma, no caso dos autos, considera-se que a impugnação apresentada cumpre o que se entende exigível, enunciando os factos impugnados e indicando as alterações pretendidas. O mesmo se diga quanto ao cumprimento dos demais ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, tendo em conta que foram indicados na motivação os meios de prova pessoal gravada em que sustenta a impugnação, os tempos de gravação dos extratos transcritos e, bem assim, aduzida argumentação para justificar as pretendidas alterações.

Isto posto, procederemos agora à indagação em concreto da impugnação, analisando também em conjunto a impugnação dos pontos em causa.

Relembre-se a redação dos pontos objeto de impugnação:

Pontos provados – visando a impugnação que sejam dados como não provados:
“12) No dia e hora referidos em 5), após colocar paletes de carga no local destinado às mesmas a meio de um corredor com o nº 42, o autor colocou o empilhador em marcha-atrás recuando pelo corredor em sentido contrário ao destinado à sua circulação, animando-o de velocidade.
13) Quando se depara com um colega de trabalho que se aproximava no mesmo corredor a conduzir um veículo retráctil, guinou de forma repentina e descontrolada para evitar embater-lhe, acabando por colidir com a estrutura metálica (rack).
14) Dado seguir em marcha-atrás e de forma acelerada, ao guinar não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador, acabando por ficar com o pé esquerdo esmagado entre a estrutura do empilhador e o perfil do rack onde o empilhador embateu.
(…)
16) Além de circular “contra a mão”, circulou por mais de 5 metros de extensão em “marcha-atrás” com as limitações de mobilidade e visibilidade sobre trajectória que o empilhador percorria, o que foi a única e a causa determinante da perda de controle do empilhador, da sua perda de equilíbrio com a saída da sua perna esquerda do habitáculo protegido do empilhador, que tiveram como consequência directa, adequada e exclusiva, as lesões corporais sofridas pelo autor.”

Pontos não provados – visando a impugnação que sejam dados como provados:
“a) Quando o autor estava parado a recolher embalagem ou embalagens para as colocar no empilhador, no início desse corredor, apercebeu-se que um outro empilhador se preparava para entrar no corredor e temendo uma colisão entre os dois veículos, tentou deslocar o empilhador com que trabalhava noutro local.
b) O empilhador, parado, estava mal arrumado e ao aperceber-se da entrada eminente de outro veículo no corredor, o autor tentou deslocar tal empilhador para local seguro evitando dessa forma a colisão entre os dois veículos.
c) A rapidez com que foi obrigado a efetuar a manobra fez com que se desequilibrasse e para evitar males maiores colocou o pé esquerdo no chão, pé que ficou entalado entre o pilar do módulo de armazenagem e a máquina.”

Para sustentar a sua posição refere o Recorrente que o Tribunal a quo não valorizou o depoimento do Autor e da testemunha que corroborou a sua descrição do acidente, BB (adiante BB), por essa descrição não ser coincidente com a da participação do sinistro (fls. 28 e 29) e dar apenas credibilidade ao depoimento da testemunha CC (adiante CC), contrapondo que tal participação não foi efetuada por si, sendo que não pode existir contradição na descrição do acidente por parte do Autor em relação a uma participação que não foi por si elaborada.

Sustenta ainda o Recorrente ser incompreensível e inaceitável que o Tribunal a quo dê mais credibilidade ao depoimento da testemunha CC, em detrimento do depoimento do Autor e da testemunha BB. Para alicerçar esta sua afirmação, refere que a testemunha CC não presenciou o acidente, tendo o seu testemunho por base a alegação de que visualizou, posteriormente, as imagens das câmaras de vigilância existentes no local, sendo que tais imagens nunca foram juntas aos autos com a justificação de que já não estariam disponíveis atento o lapso de tempo decorrido. Mais refere que, ao valorizar, em absoluto, a versão dos factos apresentada por uma testemunha que não os presenciou e cujo depoimento se baseia numa alegada visualização de imagens que nunca foram juntas aos autos e que se desconhece se existem e qual o seu real conteúdo, o Tribunal confere uma força probatória a um testemunha indireto que não é admissível. Defende que, não sendo possível comprovar a sua versão porque já não existem imagens e não sendo possível aquilatar de que forma a mesma verificou factos como os que relata e se o seu relato é fiel a tais imagens, o depoimento da testemunha em referência não pode nem deve ser valorado.

Conclui o Recorrente que o Tribunal a quo errou ao fundamentar a sua apreciação nos factos provados e não provados com base na participação de sinistro e dar apenas credibilidade ao depoimento da testemunha CC, pugnando pela reapreciação dessa fundamentação, citando e transcrevendo excertos das declarações de parte prestadas pelo Autor e dos depoimentos das testemunhas BB e CC (identificando as respetivas passagens da gravação), que refere traduzirem os elementos de prova que impõem a pretendida alteração ao nível dos factos provados e não provados.

A Recorrida defende o julgado, sustentando inexistirem meios de prova que imponham decisão diversa nos termos e para os efeitos do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, citando e transcrevendo excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e BB e das declarações de parte do Autor (identificando as respetivas passagens da gravação). Argumenta que o Autor deu nas suas declarações uma versão improvisada no sentido de referir que estava de pé, fora do empilhador quando surgiu o retrátil na entrada do corredor, sendo que nem o depoimento da testemunha BB é coincidente com essa versão improvisada do Autor nem este mereceu credibilidade por relatar algo que não aconteceu nos momentos antecedentes ao acidente – a circunstância de o Autor estar parado.

Consta na sentença recorrida em sede de motivação sobre esta matéria o seguinte:
« No que respeita à dinâmica do acidente, temos que o autor e a testemunha BB descreveram o acidente como tendo ocorrido nos moldes constantes nos pontos a) a c) dos factos não provados, mas a verdade é que o tribunal não ficou convencido de que assim aconteceu.
De facto, esta descrição não é minimamente coincidente com a da participação de sinistro (fls. 28 e 29), na qual consta expressamente que o acidente ocorreu quando o autor circulava de marcha atrás e não quando estava parado.
A testemunha CC, pese embora não tenha assistido ao acidente, viu as imagens das câmaras de vigilância existentes no local – que, no momento já não estão disponíveis atento o lapso de tempo decorrido - e explicou, de forma calma e de acordo com as regras da normalidade, o que viu, descrevendo o evento tal como está plasmado nos pontos 12), 13), 14) e 16) afastando qualquer hipótese de o mesmo ter acontecido como descrito pelo autor e pela testemunha BB.
Esta testemunha depôs de forma absolutamente isenta, sem mostrar qualquer interesse no desfecho da causa, e limitou-se a descrever o que viu o que fez, repete-se, em total consonância com as regras da experiência comum, mormente no que respeita à conclusão vertida em 16).
A testemunha DD, perito de seguros que realizou a peritagem do acidente em causa nos autos a pedido da ré, não tinha qualquer conhecimento directo dos factos, tendo o seu depoimento assentado no depoimento do autor e as testemunhas EE e CC.
Mas, para além de estarmos perante um depoimento indirecto, a verdade é que, como se disse o autor relatou o acidente de outra forma e a testemunha EE, na audiência de julgamento, não mostrou recordar-se da dinâmica do acidente.
Assim, tendo em consideração a credibilidade que a testemunha CC mereceu – como acima se explicou -, não ficou o tribunal com qualquer dúvida de que o acidente se deu como descrito em 12) a 14) e não como referido em a) a c).».

Deixa-se desde já consignado que nesta sede recursiva se procedeu à reanálise de toda a prova produzida na matéria em causa.

Assim, se procedeu, por forma a que estivesse garantida a devida contextualização dos elementos de prova convocados em sede de recurso e na fundamentação da sentença recorrida, uma vez que o Recorrente procurou, em substância, pôr em crise a correção do juízo de livre convicção formado pela julgadora ao valorizar a prova.

Apreciando, tendo em consideração a prova que foi indicada e produzida, constata-se que o Recorrente faz uma interpretação dos elementos probatórios diversa do Tribunal a quo e entende que deveria ser acolhida a sua apreciação, o que, sendo-lhe legítimo, não resultou em evidenciar a ocorrência de qualquer erro do julgador na formação da sua convicção.

Tenham-se presentes as noções gerais supra tecidas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova que impera no processo civil (artigo 607.º, n.º 5, do CPC) e, concretamente, que na apreciação da prova o julgador conjugará todos os elementos de prova produzidos sobre a matéria a provar, sendo que a prova dum facto há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica.

Ora, reapreciada crítica e conjugadamente a prova produzida, a convicção a que chegamos não é distinta daquela a que chegou o Tribunal a quo, sendo que os elementos de prova indicados não impõem decisão diversa da recorrida na matéria em apreciação, sem prejuízo da necessidade de intervenção oficiosa deste Tribunal ad quem no que respeita à redação de determinados pontos, conforme se explicitará infra.

Tendo em conta a linha argumentativa apresentada pelo Recorrente importa tecer algumas considerações adicionais, de molde a melhor espelhar a nossa posição.

Por um lado, no confronto dos depoimentos prestados, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, também a este Tribunal mereceu de facto credibilidade o depoimento prestado pela testemunha CC.

O seu depoimento apresentou-se como um depoimento isento, seguro, objetivo, consonante com a experiência comum e plausível em face dos princípios de racionalidade lógica. É certo que não estava presente no momento em que ocorreu o acidente dos autos. Mas, enquanto técnica de segurança e higiene no trabalho, viu as imagens das câmaras de vigilância existentes no local que gravaram a ocorrência do evento, tendo relatado e explicado, por forma merecedora de inteira credibilidade, o que viu. Refira-se que não é porque as imagens da gravação em causa já não estão disponíveis que o depoimento desta testemunha não pode ser valorado, como defende a Recorrente. O depoimento desta testemunha não se limitou a assentar no que lhe foi transmitido por terceiros (concretamente o Autor e o seu colega BB), não está em causa aquilo que é comummente designado como uma testemunha de ouvir-dizer. A testemunha descreveu o que viu nas imagens atinentes às câmaras de vigilância existentes no local e que gravaram o evento da vida real aí ocorrido, traduzindo o seu depoimento a descrição do que visualizou nessas imagens, não deixando, portanto, de se tratar de uma perceção sensorial, ainda que não imediata. Inexistindo qualquer norma que proíba a valoração de depoimentos desta natureza, a respetiva força probatória é apreciada livremente pelo tribunal, conforme resulta da norma do artigo 396.º do Código Civil. E, sublinhe-se, não ficaram quaisquer dúvidas a este Tribunal ad quem que a testemunha em causa visualizou as imagens em questão e nos termos em que as descreveu.

Não mereceram credibilidade as declarações de parte do Autor e o depoimento da testemunha BB quando, na descrição da dinâmica do acidente, colocam o Autor parado quando surge o retrátil na entrada do corredor, pondo nessa sequência o Autor o empilhador em movimento.

Não desconhece este Tribunal que a participação do acidente a que se alude na fundamentação da sentença recorrida [de fls. 28 e 29 – participação datada de 20-08-2021 efetuada pela Entidade Empregadora, aí se identificando como responsável pela participação “FF” e constando na descrição do acidente “o colaborador ao andar de marcha-atrás expos o calcanhar e ao desviar-se de outro equipamento embateu com o calcanhar no rack, ficado com o pé inchado”] não foi efetuada pelo Sinistrado. Mas, o certo é também que decorreu inequivocamente do depoimento da testemunha CC que a narrativa constante da identificada participação do acidente foi aquela que lhe foi presente pelo colega técnico de segurança FF (que foi quem substituiu a testemunha nas suas férias) e que, por sua vez, a técnica de segurança CC quando regressou de férias teve oportunidade de validar junto do Sinistrado e através da visualização das imagens junto da segurança da instalação, da vigilância. E, de facto, como observa a Recorrida, essa narrativa não é contrariada por nenhuma das comunicações efetuadas pelo Sinistrado na fase conciliatória do processo [na participação do sinistro feita pelo Sinistrado ao Tribunal, já depois de ter recebido a carta de recusa de responsabilidade na reparação do acidente por parte da Seguradora, com invocação de que o acidente resultou da violação de regras de segurança no trabalho por parte do Sinistrado, em termos de descrição do acidente apenas consta “pé preso entre o empilhador e a estrutura -Pilar da estrutura”; na tentativa de conciliação da fase conciliatória e na petição inicial o Sinistrado apenas referiu que o acidente consistiu em “ter ficado com o pé atracado entre um empilhador e um pilar, do qual resultou fractura do calcâneo esquerdo”], e na petição inicial da fase contenciosa [onde replicou a singela descrição apresentada na tentativa de conciliação].

Não passaram também despercebidas a este Tribunal ad quem incongruências assinaláveis entre as declarações do Autor e o depoimento da testemunha BB, que não encontram justificação numa eventual mera falha de memória, atento o tempo decorrido desde o evento – Estar o Autor fora do empilhador a pegar na caixa – sic declarações do Autor/ Estar o Autor “à espera do abaixamento”, “estava dentro” “eu acho que estava dentro do empilhador”, “estava debruçado sobre a máquina à espera do abaixamento”- sic depoimento da testemunha BB; ou ainda: segundo o Autor, “estava no fim do corredor” (certamente que o Autor queria dizer no início do corredor, tendo em conta que o próprio admitiu que fez marcha atrás para voltar ao início do corredor e terá parado aí) “esse senhor do tal empilhador maior que faz a colocação no fundo das paletes, estava a entrar nesse corredor, e o que é que eu disse? deixa estar que eu arrumo o tal empilhador para tu poderes entrar (…) – sic declarações do Autor; segundo a testemunha BB, “ao entrar no corredor encontro o Sr. AA no sítio exato onde eu ia buscar a palete, onde eu peço ao Sr. AA para se desviar para eu conseguir fazer o abaixamento”, “eu disse, oh AA dá aí um jeitinho para eu…”, “eu só lhe pedi para se desviar”, “acho que só estava lá eu e ele. Não estava lá mais ninguém. Eu cheguei, olhei para o sistema, vi que ele estava no sítio que eu ia fazer o abaixamento e pedi para ele sair.”.

Perante os sobreditos depoimentos, e independentemente das indicadas incongruências, a verdade é que nem sequer se poderia de alguma forma reconduzir as descrições efetuadas pelo Autor e a testemunha BB aos moldes constantes das alíneas a) a c) dos factos não provados, quando aí se diz: “temendo uma colisão entre os dois veículos, tentou deslocar o empilhador com que trabalhava noutro local”; “o autor tentou deslocar tal empilhador para local seguro evitando dessa forma a colisão entre os dois veículos”, “a rapidez com que foi obrigado a efetuar a manobra”.

Por outro lado, a versão que o Autor e a testemunha BB apresentaram não colhe o mínimo apoio nas regras da normalidade e da lógica, ao contrário do que sucede com a descrição do evento efetuada pela testemunha CC.

A testemunha BB revelou-se, aliás, comprometida, sendo que quando questionada sobre a manobra que o Autor tinha que fazer [entenda-se, “para se desviar”, como a testemunha referiu que lhe pediu], respondeu “isso já vai da consciência de cada um. Eu só lhe pedi para se desviar”, sendo certo que mais à frente acabou por referir que o Autor saiu da frente dele “recuando”.

Em suma, em termos de dinâmica do acidente, como se disse, a convicção a que chegamos não é distinta da formada pela julgadora em 1.ª instância, não impondo a prova produzida decisão diversa da proferida quanto aos pontos impugnados [ou seja, não se impõe que seja dada como não provada a matéria fáctica contida nos pontos provados 12) a 14) e 16), nem que seja dada como provada a materialidade vertida nas alíneas a) a c) dos factos não provados], improcedendo o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

Sem prejuízo do antedito, e como se adiantou, justifica-se, porém, a intervenção oficiosa deste Tribunal ad quem no que respeita à redação de alguns dos pontos provados impugnados, de forma a expurgar os mesmos de matéria conclusiva, mais precisamente no que respeita à redação dos pontos 14) e 16).

Conforme vem sendo entendimento pacífico desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em linha com posição seguida na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Daí que, quando o tribunal a quo se tenha pronunciado em sede de matéria de facto sobre afirmações conclusivas, essa pronúncia deve ter-se por não escrita[20].

No Acórdão desta Secção de 30-09-2024 identificado na nota de rodapé 20, evidencia-se «(…) que a matéria conclusiva e/ou vaga/genérica, bem como as afirmações com cariz jurídico, não pode integrar a factualidade a considerar para decidir o objeto da ação.

Podemos dizer que os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria questão ou de parte da questão, ou, visto de outra forma, se tais factos ficam como provados ou não provados resolvem a ação ou parte dela (em termos de procedência ou improcedência), porque determinam o desfecho sem necessidade de “trabalhar os factos”, de fazer o seu enquadramento jurídico».

Em consonância com o sobredito entendimento, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal “o conjunto das questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado, em nome dos princípios que inspiravam a norma do referido n.º 4 do artigo 646.º do anterior Código de Processo Civil”[21].

Assim, analisado o ponto 14) dos factos provados, encontramos uma expressão - “de forma acelerada” - que assume natureza conclusiva, encerrando um juízo valorativo que é passível de mais do que uma interpretação quando é certo que desconhecemos a velocidade a que seguia, pelo que se impõe a substituição de tal expressão [por contraponto, entende-se que a expressão “animando-o de velocidade” contida no ponto 12) dos factos provados já espelha apenas o facto de o empilhador ter sido colocado em movimento, nada se podendo retirar quanto à velocidade em que seguia”, pelo que essa expressão assume nesse contexto natureza neutra que não justifica a sua alteração].

Quanto ao ponto 14), impõe-se nesse aspeto em particular utilizar uma expressão neutra, que apenas espelhe aquilo que é consabido e inequívoco até perante a demais materialidade provada, pelo que não sendo de eliminar o ponto 14) dos factos provados, decide-se pela sua alteração de modo a que a sua redação passe a ser a seguinte:

“14) Dado seguir em marcha-atrás e em movimento, ao guinar não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador, acabando por ficar com o pé esquerdo esmagado entre a estrutura do empilhador e o perfil do rack onde o empilhador embateu”.

Pelas mesmas razões se impõe alterar a redação do ponto 16) dos factos provados, no sentido de retirar do mesmo as expressões de natureza meramente conclusiva e valorativa, pelo que não sendo o mesmo de eliminar, decide-se pela sua alteração, de modo a que a sua redação passe a ser a seguinte:

“16) Por circular nos termos referidos em 12), por mais de 5 metros de extensão em “marcha atrás” com as limitações de mobilidade e visibilidade sobre trajetória que o empilhador percorria e efetuar a manobra referida em 13), perdeu o controle do empilhador e o equilíbrio com a saída da sua perna esquerda do habitáculo protegido do empilhador, o que teve como consequência as lesões corporais sofridas pelo autor”.


*


Em resumo, pelas razões anteriormente expostas, o elenco factual a atender para o conhecimento do direito do caso é o elencado em 1) da fundamentação, com as alterações oficiosamente determinadas quanto à redação dos pontos 14) e 16) dos factos provados, ou seja:

- O ponto 14) dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
14) Dado seguir em marcha-atrás e em movimento, ao guinar não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador, acabando por ficar com o pé esquerdo esmagado entre a estrutura do empilhador e o perfil do rack onde o empilhador embateu”.

- O ponto 16) dos factos provados, passa a ter a seguinte redação:
“16) Por circular nos termos referidos em 12), por mais de 5 metros de extensão em “marcha atrás” com as limitações de mobilidade e visibilidade sobre trajetória que o empilhador percorria e efetuar a manobra referida em 13), perdeu o controle do empilhador e o equilíbrio com a saída da sua perna esquerda do habitáculo protegido do empilhador, o que teve como consequência as lesões corporais sofridas pelo autor”.


***

3) Aplicação de direito – saber se o Tribunal a quo errou no julgamento quanto à aplicação do direito, ao ter descaraterizado o acidente dos autos e excluir a sua reparação.

Nesta sede, face ao que resulta das conclusões de recurso, verifica-se que a posição do Recorrente está alicerçada nas alterações pretendidas quanto à matéria de facto, sustentando que dessas alterações se conclui que a conduta do Sinistrado não foi injustificada, nem temerária nem fortemente imprudente, antes sim resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional.

A Recorrida defende o julgado, argumentando que resultou provada a existência de condições de segurança estabelecidas pelo Empregador, o seu conhecimento por parte do Autor, a violação por ação dessas condições por parte do Sinistrado e a ocorrência de uma atuação voluntária sem causa justificativa, sendo que o acidente foi consequência dessa atuação.

Não se justificando, em face do disposto na lei, quaisquer considerações sobre o que deve entender-se por acidente de trabalho, como ainda sobre as razões que estarão subjacentes ao estabelecimento do seu regime, passaremos de imediato à apreciação da questão enunciada em sede de aplicação do direito, ou seja, a de saber se, em face da factualidade provada, por referência ao quadro legal aplicável, ocorre fundamento para revogar a decisão recorrida a respeito da descaraterização do acidente como de trabalho.

Neste âmbito, consta da sentença recorrida o seguinte (transcrição):
«Temos como assente, desde logo em face da posição assumida pelas partes na tentativa de conciliação, que o autor foi vítima de um acidente de trabalho, enquanto exercia as suas funções para a sua entidade patronal.
A questão que cumpre, antes de mais decidir, é a de saber se a ré não tem de reparar os danos emergentes desse acidente porque o mesmo teve como causa directa, necessária e exclusiva a violação pelo sinistrado, das regras de segurança que se impunham e, por outro lado, porque o acidente provém exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Estes factos descaracterizadores do acidente, mostram-se previstos no artigo 14.º, nº 1, a) e b) da LAT e, enquanto impeditivos do direito invocado pelo beneficiário das prestações por acidente de trabalho devem ser alegados e provados pela entidade responsável dos danos ocasionados pelo acidente – cfr., entre outros, o Acórdão do STJ de 12/05/1999, disponível em www.dgsi.pt.
Vejamos então.
De acordo com a citada disposição, a empregadora não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; ou
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Para efeitos do disposto naquela alínea a), considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la – n.º 2.
Como se decidiu no Acórdão da RG de 12/02/15 “A desoneração aqui estabelecida tem na sua origem situações de rebelião a ordens do empregador, podendo, na actualidade, também ocorrer por desobediência à lei. Assenta, contudo, em quatro pressupostos:
1- existência de específicas condições de segurança, sejam elas estabelecidas pelo empregador, ou pela lei;
2- violação de tais condições, por ato ou omissão;
3- inexistência de causa justificativa para a violação e
4- nexo causal entre a violação da regra e o acidente”.
Como refere Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 851-852) nestas situações “o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras”.
Para Júlio Gomes “os erros, as distrações, fazem parte da normalidade do trabalho humano, porque o trabalho, como as pessoas que o fazem, não é perfeito – é obra de seres humanos” (O Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e a sua descaraterização, Coimbra Editora, pág. 215).
Como se lê no Acórdão do STJ de 23/6/04 (“Acidentes de Trabalho, Jurisprudência 2000-2007”, Edições Coletânea de Jurisprudência, pág. 77/78) esta descaracterização exige que sejam voluntariamente violadas as regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.
Para efeitos da al. b) do artigo 14º entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão – cfr. n.º 3 do aludido artigo.
Para que se mostre comprovada a negligência grosseira, teremos de estar perante uma conduta do sinistrado altamente reprovável, indesculpável e injustificada face ao elementar senso comum que seja atentatória do mais elementar sentido de prudência. Assim o tem entendido a jurisprudência dominante, citando-se a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 11/02/15 e da RP de 4/01/10 e 24/01/11, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Também na doutrina é mais ou menos consensual a definição de negligência grosseira.
Assim, para Maria do Rosário Palma Ramalho (“Direito do Trabalho Parte II – Situações Laborais Individuais”, Almedina, pág. 740) “não é, pois, excludente da responsabilidade a mera negligência leve do trabalhador, mas apenas a sua falta grave e indesculpável”.
Carlos Alegre (“Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Almedina, 2.ª Edição, pág. 61 e seguintes) refere que “será necessário um comportamento temerário ostensivamente indesculpável, com desprezo gratuito pelas mais elementares regras de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, exigindo-se ainda que o mesmo seja causa exclusiva do acidente”.
Assim, continua, “o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias”.
A aferição do comportamento temerário do sinistrado, como tem vindo a ser repetidamente afirmado pelo STJ deve ser apreciado em concreto, em face das condições da própria vítima e não de um padrão, geral e abstracto, da conduta – cfr., por todos, o Acórdão de 22/09/11, em www.dgsi.pt.
Volvendo ao caso dos autos, afigura-se-me que a situação se subsume à prevista no artigo 14º, nº 1, a) da LAT.
De facto, a manobra levada a cabo pelo autor é claramente violadora das regras de segurança estabelecidas pelo empregador, é causal do acidente e não tem qualquer razão justificativa.
Vejamos.
O autor colocou o empilhador em marcha-atrás recuando pelo corredor em sentido contrário ao destinado à sua circulação, animando-o de velocidade e quando se depara com um colega de trabalho que se aproximava no mesmo corredor a conduzir um veículo retráctil, guinou de forma repentina e descontrolada para evitar embater-lhe, acabando por colidir com a estrutura metálica (rack).
Dado seguir em marcha-atrás e de forma acelerada, ao guinar não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador.
Naquele local o tráfego dos empilhadores deve ser sempre efectuado num só sentido assinalado com verde na entrada, desde o início do corredor até ao termo, sendo proibido circular em sentido inverso, como o fazia o sinistrado.
O autor conhece os corredores e sentido de circulação, a obrigação de só colocar em movimento quando têm “a visibilidade total do trajecto e manobras”, de “manter o corpo e membros superiores e inferiores dentro” do habitáculo protegido e de “manter distância de segurança em relação a veículos, obstáculos e/ou pessoas” que escritas são dadas a conhecer aos operadores como foi o caso do autor.
Ora, ao fazer a manobra como fez, o autor não só violou a norma que determina a proibição de circulação naquele sentido, como também, ao conduzir de marcha atrás, a norma que determina a circulação com “a visibilidade total do trajecto e manobras”.
Por outro lado, violou o autor a prescrição de “manter o corpo e membros superiores e inferiores dentro” do habitáculo protegido, já que, ao guinar, não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador.
Foi a violação das aludidas regras que causou o embate do empilhador com a estrutura metálica (rack), quando o autor guinou de forma repentina e descontrolada para evitar embater conduzir no veículo retráctil que seguia no sentido da circulação daquele corredor.
E, ao guinar de forma repentina e descontrolada para evitar embater naquele veículo, porque seguia de marcha-atrás e de forma acelerada, não conseguiu manter as pernas dentro do habitáculo do empilhador, acabando por ficar com o pé esquerdo esmagado entre a estrutura do empilhador e o perfil do rack onde o empilhador embateu.
À luz das regras da experiência comum e da razoabilidade não se antevê a concorrência de qualquer outra causa para a ocorrência do acidente, afigurando-se-me que o apontado comportamento do autor foi a única causa para o acidente ter ocorrido e para ter ocorrido nos moldes em que aconteceu.
Por último, não existe qualquer causa justificativa para a violação por banda do autor das ditas regras de segurança. O autor quis circular de marcha atrás e em sentido contrário ao da circulação, não resultando dos factos provados uma razão para tal comportamento.
Assim, em face do exposto, entendo dever considerar-se excluída a reparabilidade do sinistro, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.».

Perante a transcrita fundamentação, que no essencial temos como concludente, diremos desde já adiantando a conclusão, que não encontramos razões para divergir da solução seguida em 1.ª instância, no sentido de concluir pela descaraterização do acidente como de trabalho nos termos do disposto na alínea a), do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro[22].

Vejamos porquê.

Importa que nos debrucemos sobre a 2ª parte da alínea a) do nº 1 do artigo 14º da NLAT – do acidente que provier de ato ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

Como se dá nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-12-2017[23], já no âmbito da Lei n.º 100/97 de 13-09, a Secção Social daquele Tribunal vinha entendendo que para a descaraterização do acidente não bastava a mera inobservância pelo sinistrado das regras de segurança legalmente prescritas ou estabelecidas pela entidade patronal, sendo ainda necessário «“que o trabalhador desrespeite voluntariamente e sem causa justificativa tais regras e a sua conduta tivesse como consequência a produção do sinistro”([10]), mostrando-se “excluídas as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não, da habituação ao risco”([11]), “não abrangendo a inadvertência momentânea do sinistrado” ([12]).».

Ora, a atual formulação legal contida no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), reconduz-se no essencial – com pontuais e irrelevantes alterações – à prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97, de 13-09.

Como vem sendo afirmado pela nossa jurisprudência[24], posição que se sufraga, para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto na 2.ª parte do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da NLAT, descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

(a) a existência de específicas condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;

(b) violação, por ação ou omissão, dessas condições, por parte do sinistrado;

(c) que a atuação deste seja voluntária e sem causa justificativa;

(d) que exista um nexo causal entre essa violação e o acidente.

No que se refere aos dois primeiros pressupostos, como se evidencia no sumário do Acórdão desta Secção Social de 23-01-2023 (melhor identificado na nota de rodapé 24), «(…) não está em causa a violação de todas e quaisquer regras de segurança e sim apenas as que são específicas da empresa ou da lei que estejam ligadas à própria execução da atividade que o sinistrado desempenhava e que visem acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua saúde, vida ou integridade física».

Por outro lado, e sendo um dos requisitos a voluntariedade, na norma em análise apenas estão abrangidos os comportamentos voluntários do sinistrado – prática do ato ou omissão, voluntária e conscientemente, o que o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendam com atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco[25].

Por outro lado, ainda, reverenciando os objetivos de uma lei que se pretende seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho, aceita-se que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2 do artigo 14.º[26].

Por último, e na linha da sobredita jurisprudência, também se considera que a violação das regras de segurança, só por si, não é bastante para operar a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado[27].

Como se conclui no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-12-2017, depois enunciar a análise efetuada por Júlio Manuel Vieira Gomes ao artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da NLAT, “[é] necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador, que tenha consciência da violação, não relevando os casos (citando Carlos Alegre) de “culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco. A culpa do trabalhador tem que ser aferida em concreto e não em abstrato.”.

Saliente-se que mesmo a posição seguida por Pedro Romano Martinez[28] não se abstrai totalmente da culpa, pois, segundo o mesmo, não é qualquer situação menos cuidada do trabalhador que acarreta a exclusão de responsabilidade do empregador, sendo necessário que essa falta tenha alguma gravidade.

Revertendo ao caso dos autos, perante o circunstancialismo apurado (cfr. pontos 9) a 17) dos factos provados) e na consideração do regime que antes se explanou, não subsistem dúvidas que se mostram verificados os necessários requisitos para a afirmação do preenchimento da previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da NLAT, tal como se concluiu na sentença recorrida.

O comportamento do Sinistrado violou específicas regras de segurança estabelecidas pelo empregador e ligadas à própria execução da atividade que aquele desempenhava (estão conexionadas com o risco da atividade profissional exercida – condições de segurança com que o trabalho deva ser desempenhado), as quais têm inequivocamente o objetivo de acautelar ou prevenir a sua segurança, eliminando ou diminuindo os riscos para a sua vida ou integridade física, sendo certo que tais condições ou regras de segurança eram do conhecimento do Sinistrado.

Do mesmo passo, no contexto do caso, a atuação do Sinistrado violadora das condições de segurança não pode deixar de se considerar como voluntária, consciente e sem causa justificativa, sendo de afirmar o nexo causal entre essa violação e o acidente. Quanto a este último conspecto, a violação em causa surge como condição relevante e efetiva para a ocorrência do sinistro laboral e este apresenta-se como consequência normal, típica ou provável daquela violação.

Para além disso, não estamos perante uma situação de mera violação de regras de segurança, mas sim perante uma infração que ocorre por culpa grave do sinistrado e com consciência dessa violação. O comportamento do sinistrado não se resumiu a uma situação de simples distração ou imprevidência, sendo subjetivamente grave.

Em conclusão, face aos elementos dos autos e por aplicação dos pressupostos antes enunciados a esse respeito, consideramos que ocorre fundamento bastante para a descaraterização do acidente, improcedendo o recurso.


***

Quanto a custas, havendo improcedência do recurso, as custas ficam a cargo do Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil).

***


IV – DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, alterando-se oficiosamente a factualidade nos termos constantes no ponto III 2) do presente acórdão, em julgar o recurso improcedente, confirmando assim a sentença recorrida.

Custas do recurso pelo Recorrente.

Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Notifique e registe.


*


(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)

Porto, 13 de janeiro de 2025

Germana Ferreira Lopes [Relatora]
Nelson Nunes Fernandes [1º Adjunto]
António Luís Carvalhão [2º Adjunto]

________________________________
[1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[2] Adiante CPC.
[3] Adiante CPT.
[4] In “Recursos em Processo Civil – Recursos nos Processos Especiais, Recursos no Processo do Trabalho”, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, pág. 195.
[5] Processo n.º 1321/20.1.T8OAZ.P1, Relator Desembargador António Luís Carvalhão, aqui 2.º Adjunto – acessível in www.dgsi.pt, site onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra citados, desde que não seja feita menção expressa em sentido adverso.
[6] Cfr., entre outros, Acórdãos de 9-02-2017 (processo n.º 8228/03.5TVLSB.L1.S2, Relator Conselheiro Tomé Gomes), de 8-03-2022 (processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1, Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e de 24-10-2023 (processo n.º 4689/20.6T8CBR.C1.S1, Relator Conselheiro Nuno Pinto Oliveira).
[7] Inserindo-se no texto a nota de rodapé 21 do Acórdão em causa.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 199.
[9] Processo n.º 18321/21.7T8PRT.P1.S1, Relator Conselheiro Nelson Borges Carneiro.
[10] Processo n.º 2605/20.4L1.S1, Relator Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves.
[11] Processo n.º 125/22.1T8AVR.P1, relatado pelo aqui 1º Adjunto Desembargador Nelson Fernandes.
[12] In obra citada, págs. 200 e 201.
[13] Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[14] Obra citada, págs. 201 e 202.
[15] Processo nº 4925/17.6T8OAZ.P1.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco.
[16] Processo nº 1372/19.9T8VFR.P1.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco.
[17] Processo nº 1104/18.9T8LMG.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado.
[18] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Lda., pág. 436 e 437.
[19] Processo n.º 1166/20.9T8MTS.P1, Relator Desembargador Jerónimo Freitas.
[20] Veja-se, a título meramente exemplificativo: o Acórdão desta Secção Social de 30-09-2024, processo n.º 2189/23.1T8AVR.P1, relatado pelo Desembargador António Luís Carvalhão, aqui 2.º Adjunto; os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2009 (processo nº 272/09.5YFLSB, Relator Conselheiro Vasques Dinis), 12-03-2014 (processo n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado), 28-01-2016, (processo nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, Relator Conselheiro António Leones Dantas), de 28-10-2021 (processo nº 4150/14.8T8VNG-A.P1.S1, Relator Conselheiro João Cura Mariano).
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2016, Processo nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, Relator António Leones Dantas.
[22] Adiante NLAT.
[23] Processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1, Relator Conselheiro Ribeiro Cardoso.
[24] Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos: desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto – Acórdãos de 15-11-2021 (processo n.º 852/18.8T8OAZ.P1, relatado pelo Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção como Adjunto do aqui 1.º Adjunto Desembargador Nelson Fernandes) e de 23-01-2023 (processo n.º 2944/19.7T8PNF.P1, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes, aqui 1.º Adjunto); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-03-2022 (processo n.º 2094/18.3T8LRA.C1, Relator Desembargador Felizardo Paiva); Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-10-2019 (processo n.º 2239/15.5T8VFR.G1, Relator Desembargador Antero Veiga); Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3-05-2017 (processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1-4, Relatora Desembargadora Celina Nóbrega); Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-09-2021 (processo n.º 96/19.1T8PTG.E1, Relatora Desembargadora Emília Ramos Costa).
[25] Cfr. Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado – 2ª edição, Almedina, pág. 61; Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 5-02-2018 (processo n.º 52/14.6TTOAZ.P1, relatado pelo Desembargador Jerónimo Freitas, no qual interveio como Adjunto o aqui 1.º Adjunto Desembargador Nelson Fernandes).
[26] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os seguintes Acórdãos: do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2017 [processo n.º 1205/10.1TTLSB.L1.S1., Relator Conselheiro Chambel Mourisco]; desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 20-03-2023 [processo n.º 1746/21.5T8AGD.P1, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes (aqui 1.º Adjunto) e com intervenção como Adjunto do aqui 2.º Adjunto Desembargador António Luís Carvalhão] e o já citado Acórdão de 5-02-2018 [melhor identificado na nota de rodapé 25].
[27] Cfr. os já citados Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2017 e 12-12-2017 e desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 20-03-2023, 23-01-2023 e de 5-02-2018. Veja-se ainda no mesmo sentido os recentes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2024 [processo n.º 336/21-7T8SNT.L1.S1, Relator Conselheiro Ramalho Pinto] e de 1-02-2023 [processo n.º 9573/18.0T8PRT.P1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes].
[28] In Direito do Trabalho, 2017, 8ª edição, págs. 897/898.