LEGITIMIDADE PROCESSUAL
RELAÇÃO PROCESSUAL
ADEQUAÇÃO FORMAL
SANAÇÃO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário


I- A parte desfruta de legitimidade processual quando, admitindo-se, ab initio, na configuração dada pelo autor na petição, que existe a relação material controvertida, a parte for efetivamente o seu titular.
II- Há ilegitimidade quando se verifica uma disparidade entre os titulares dos interesses em conflito, ou das posições na relação jurídica e as partes ou sujeitos da relação jurídica processual.
III- As exceções dilatórias, obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (cfr. art. 576, nº. 2 do CPC).
IV- A perspetiva de sanação da falta de um pressuposto processual só pode colocar-se nos casos em que a falta seja objetivamente suprível.
V- O princípio da adequação formal, a que se reporta o art. 547º do CPC., atribui ao juiz o poder de gestão processual e de adequação formal, perante a concreta situação, providenciando pelo suprimento de falta de pressupostos suscetíveis de sanação, ou convidar as partes a suprir as falhas que dependam das mesmas.
VI- Tal princípio comporta limites, tais como, a impossibilidade de adequação formal perante os casos insanáveis.

Texto Integral


Processo nº 232/23.3YRPRT.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

6ª. Secção

1-Relatório:

AA, BB e Massa Insolvente de CC propuseram, ao abrigo do disposto no artigo 46º da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV) a presente ação de anulação de sentença arbitral contra o Banco Português de Fomento, SA, pedindo a final e na procedência da ação, que seja anulada a sentença arbitral, com os fundamentos previstos no artigo 46.º, n.º 3 alínea a) ponto vii), alínea b), ponto ii) e alínea a), ponto ii) da LAV.

Para tanto, invocaram a caducidade da arbitragem; a omissão de pronúncia; a consideração de factos não alegados e sem prévia pronúncia das partes; ofensa da ordem pública internacional do Estado Português e não desentranhamento de Parecer junto pelo Demandante.

A decisão do tribunal arbitral foi a seguinte:

- a) Julgar improcedentes por não provadas as exceções de direito material deduzidas pelo demandado DD;

- b) Julgar improcedentes por não provadas as exceções de direito material deduzidas pela demandada EE;

- c) Julgar procedente e provado o pedido de pagamento do montante total de 3.329.291,85€, somatório dos montantes discriminados nas três alíneas do primeiro pedido do demandante, condenando solidariamente os demandados a pagar o referido valor;

- d) Julgar procedente e provado o segundo pedido do demandante, condenando os demandados a pagar solidariamente ao mesmo Demandante a penalidade contratual de 250.000,00€;

- e) Condenar o demandante a pagar aos demandados: (i) AA e BB a quantia de honorários pagos aos Mandatários destes no montante de 5.000,00€; (ii) DD o montante de 5.000,00€ e (iii) EE o montante de 7.822,80€, verbas referentes a honorários pagos ou devidos aos Mandatários relativamente ao procedimento cautelar arbitral, da responsabilidade do demandante nos termos da Cláusula 31.5 do Acordo Parassocial;

- f) Condenar todos os demandados solidariamente a pagar ao demandante a quantia de 199.641,01€, a título de encargos com a arbitragem (honorários dos Árbitros e custos administrativos), honorários pagos aos Mandatários deste e despesas realizadas.

O réu contestou a presente ação, invocando, desde logo, a sua ilegitimidade, alegando que:

- A presente ação é intentada contra o Banco réu, titular do NIPC 503271055, mas foram partes no processo arbitral, como demandante, o Fundo Autónomo de Apoio à Consolidação e Concentração de Empresas (“FACCE”), e como demandados os autores e outros.

- O FACCE é um fundo de capitais públicos provenientes do Orçamento de Estado que foi criado pelo Decreto-Lei n.º 105/2009, de 12 de maio (“Decreto-Lei do FACCE”); era gerido pela (então) PME Investimentos – Sociedade de Investimento, S.A. (“PMEI”), mas o Decreto-Lei n.º 63/2020, de 7 de setembro (“DL 63/2020”) - que regula a atividade e o funcionamento do BPF e aprova os respetivos Estatutos – veio decretar a fusão por incorporação da PMEI e da IFD - Instituição Financeira de Desenvolvimento, S.A. (“IFD”), na SPGM - Sociedade de Investimento, S.A. (“SPGM”), que passa a adotar a firma de “Banco Português de Fomento, S.A.”.

- O FACCE é uma entidade com capacidade judiciária, com o número de identificação fiscal 720010926 e, pela sentença arbitral foram os demandados condenados a pagar ao demandante FACCE.

- Não obstante ser o FACCE o titular da relação material controvertida, nos termos, aliás, em que os autores configuram a ação, estes fazem seguir a presente ação contra o Banco Português de Fomento, SA, verificando-se, por isso, a ilegitimidade processual do réu, uma vez que não é parte, por si (ainda que aí tenha atuado em representação do FACCE), do processo arbitral no âmbito do qual foi proferida a sentença impugnada.

No mais, contestou o Banco os demais fundamentos invocados.

Por requerimento de 27.11.23, DD veio deduzir a sua Intervenção Principal Espontânea.

O réu opôs-se ao deferimento da intervenção espontânea, por “verificação da exceção perentória da caducidade do direito do interveniente” e o requerente respondeu.

Por despacho de 20.03.24 foi indeferida a intervenção provocada requerida pelos autores e admitida a intervenção espontânea de DD.

No mesmo despacho, concedeu-se prazo às partes para alegações.

O Tribunal da Relação fixou à causa o valor de € 3.579.291,85.

Foi então proferido acórdão, com o seguinte teor, no seu dispositivo:

«Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) em julgar procedente a exceção da ilegitimidade invocada pelo réu e, em conformidade, absolve-se o réu da instância».

Inconformados vieram os autores/recorrentes, interpor recurso de revista, concluindo as suas alegações:

1ª Com o presente recurso, os Autores/Recorrentes pretendem submeter à sindicância dos Colendos Juízes Conselheiros, a decisão do Tribunal da Relação do Porto que, julgando o réu parte ilegítima, absolveu-o da instância.

2.ª Da parte motivatória do acórdão recorrido resulta que o tribunal a quo entendeu que, quer da petição inicial, quer das alegações finais dos Autores, não resulta que o réu, Banco Português de Fomento S.A., é demandado na qualidade de sociedade gestora e representante do Fundo Autónomo de Apoio à Concentração e Consolidação de Empresas (“FACCE”).

3.ª Os Recorrentes não podem conformar-se e aceitar este entendimento, uma vez que, embora os Autores não tenham, por lapso manifesto, mencionado na identificação do réu a qualidade em que é demandado, resulta da forma como os Autores configuraram a presente ação, da sua causa de pedir, dos documentos que lhe servem de suporte e do invocado pelos mesmos em sede de alegações finais, que o BPF está em juízo, não em nome próprio, mas por ser a sociedade gestora do FACCE e o seu representante legal.

4.ª De resto, esta foi a forma como o réu, e a entidade que o antecedeu (PME

Investimentos S.A.) sempre se apresentaram, quer nos autos cautelares, quer nos arbitrais.

5.ª A Requerente da providência cautelar de arresto foi a PME Investimentos, a qual assumiu, também, a qualidade de Demandante da ação arbitral.

6.ª Bem, ou mal, a sociedade gestora do FACCE (inicialmente a PME Investimentos e, posteriormente, o Banco Português do Fomento) nunca colocou o fundo como sujeito processual. Reitera-se, sempre foi a PMEI ou o BPF, enquanto sociedade gestora a, formalmente, assumir essa posição processual, a qual encontra-se evidenciada nos seus requerimentos e nas decisões da providência cautelar (cfr. documento n.º 2 junto com a p.i.)

7.ª Não obstante invocar a exceção de ilegitimidade, o réu reconhece que tendo em conta a forma como os Autores configuraram a ação, este é demandado na qualidade de sociedade gestora do fundo, conforme se retira da seguinte passagem da sua contestação:

“Não obstante ser o FACCE o titular da relação material controvertida, nos termos, aliás, em que os autores configuram a ação, estes fazem seguir a presente ação contra o Banco Português de Fomento, S.A., verificando-se, por isso, a ilegitimidade processual do réu, uma vez que não é parte, por si (ainda que aí tenha atuado em representação do FACCE), do processo arbitral no âmbito do qual foi proferida a sentença impugnada”.

8.ª O réu evidenciou na sua contestação ter conhecimento pessoal e direto sobre todos os factos alegados na petição inicial, alcançando plenamente o seu teor e tomando, consequentemente, posição circunstanciada sobre os mesmos e tal só aconteceu porque ele sempre foi, na invocada qualidade, quem se assumiu como sujeito processual ativo dos autos cautelares e arbitrais.

9.ª Na presente ação, acontece o mesmo: o réu é demandado, não por si, mas por ser a sociedade gestora do FACCE, com funções de gestão do fundo e com poderes para o representar em juízo, que tem, atentas essas suas atribuições e competências, um interesse direto em contraditar a ação, em defesa dos interesses do seu representado.

10.ª Bastará percorrer a petição inicial, bem como os documentos 1 a 3 juntos com a mesma, para facilmente se perceber a relação material controvertida que liga os 5 irmãos FF e CC ao FACCE e a intervenção direta da sociedade gestora deste em toda a factualidade que constituiu o objeto do litígio dos processos cautelar e arbitral.

11.ª Conforme se salientou na resposta à exceção de ilegitimidade, integrada nas alegações dos Autores, não obstante o réu (e a entidade que o antecedeu) ter intentado a providência cautelar e a ação arbitral na qualidade de sociedade gestora, foi ela que se assumiu como sujeito processual ativo. Tal vem demonstrado, quer na exposição da causa de pedir da ação arbitral, quer na formulação do pedido, em que a PMEI Investimentos pede a condenação dos autores a pagarem à Demandante, ao invés de referirem ao Demandante ou ao FACCE - Cfr. acórdão arbitral, parte expositiva, pp. 10 e 11 a 19, junto aos presentes autos com a p.i.

12.ª Foi o próprio réu que entendeu por bem requerer, nos autos cautelares e arbitrais, a modificação subjetiva da instância mediante substituição processual da PMEI pelo BPF, uma vez que, por força da lei, se deu a fusão por incorporação da PME Investimentos S.A. na SPGM ‒ Sociedade de Investimento, S.A. (“SPGM”), que passou a adotar a firma de “Banco Português de Fomento, S.A. (cfr. documento n.º 2 junto com as alegações dos Autores).

13.ª Se o sujeito ativo daqueles autos fosse o FACCE, a mudança da sua sociedade gestora e representante não determinaria, s.m.o., uma modificação subjetiva da instância.

14.ª Constitui, por isso, um facto incontornável que, também nos autos arbitrais, a/o Demandante foi a PMEI/BPF, enquanto sociedade gestora do FACCE.

Importa salientar que,

15.ª Resulta do diploma legal que criou este fundo autónomo (DL n.º 105/2009, de 12 de maio), que a sociedade gestora integra a sua estrutura governativa, competindo-lhe “na qualidade de representante legal do Facce exercer, de acordo com os elevados níveis de diligência e aptidão profissional, todos os direitos relacionados com os seus bens e praticar todos os atos e operações necessários ou convenientes à sua boa administração.”

16.ª O FACCE não tem personalidade jurídica (artigo 4.º, n.º4 do DL 105/2009) e, nessa medida, não é suscetível de ser sujeito de direitos e obrigações jurídicas. Embora o diploma legal que o criou lhe atribua personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte), o mesmo não tem capacidade judiciária, pelo que só pode estar em juízo por intermédio do seu representante, in casu, a sua sociedade gestora.

17.ª Efetivamente, o BPF só foi demandado por ser o representante do fundo autónomo e a única entidade que pode suprir a sua incapacidade judiciária.

18.ª Não podemos esquecer que os presentes autos têm como objeto a apreciação dos invocados fundamentos de anulação da sentença arbitral, pelo que o réu desta ação corresponde ao Demandante daquela, na sobredita qualidade de representante do FACCE e, por isso, é na esfera deste fundo que se irão produzir os efeitos da eventual procedência da ação.

Posto isto,

19.ª Determina o artigo 6.º, n.º 2 do CPC que o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

20.ª O dever de o juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes; II ‒ A omissão de tal poder/dever, constitui uma nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC.” - Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2014 (proc. 3553/12.7TBBCL.G1, relator: Isabel Rocha):

21.ª O artigo 278.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC consolida a opção legislativa pelo princípio da prevalência da decisão de mérito ao dispor que “As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º (…)”.

22.ª A consagração legislativa do referido princípio é, também, acompanhada pela doutrina e jurisprudência dominante. A título meramente exemplificativo, vide António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, pp. 340 e 341):

“O normal e expectável é que o processo culmine numa decisão de mérito que ponha cobro à questão submetida à apreciação do tribunal. Nessa conformidade deverão ser adotadas medidas que, tanto quanto possível, valorizem aquele desiderato, em detrimento de aspetos de natureza puramente formal. (…)

Os tempos mudaram e mudaram para melhor, fruto, por um lado, de iniciativas legislativas que foram deixando bem clara a necessidade de modificação do paradigma e, por outro, é necessário dizê-lo, de uma modificação de mentalidades, que progressivamente se revela através do acionamento de mecanismos que tendem a privilegiar as soluções de mérito, no confronto com aspetos de ordem adjetiva, dentro da margem deixada pelo legislador de modo expresso ou implícito.”

23.ª Também na jurisprudência se tem feito apelo aos princípios de boa gestão processual, cooperação, economia processual e tutela efetiva, como meio de suprimir exceções dilatórias, mormente, a exceção de ilegitimidade passiva singular, e assim se permitir que o processo termine com a prolação da decisão de mérito. A título meramente ilustrativo, transcrevemos as seguintes passagens do acórdão do TRP, de 04.05.2023(proc. n.º 3178/20.3T8STS.P1):

“Com efeito, tem sido identificado no artigo 6.º, n.º 2, um princípio de tendencial sanação oficiosa de falta de pressupostos processuais, já que desta norma decorre que ao juiz se impõe que tome todas as medidas necessárias ao prosseguimento da ação (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2.ª edição Coimbra, Almedina 2018, pg.130 e ainda Miguel Teixeira de Sousa, sobre O Sentido e a função da Falta de Pressupostos Processuais, Algumas Reflexões Sobre o Dogma da Apreciação prévia dos Pressupostos Processuais na Ação Declarativa, Revista da Ordem dos Advogados Lisboa ano 49.º vol I, Pg. 106 e ss).

(…)

Este dever pro actione do juiz é, aliás, uma decorrência do princípio constitucional inserto no artigo 20.º da CRP, norma que garante uma tutela judiciária efetiva dos direitos.

(…)

O juiz deve estar atento às necessidades do caso concreto e deve pretender alcançar uma solução justa e adequada ao mesmo, inclusive quando tal implique o desrespeito por formalismos processuais previstos na lei.

Ora, a sanação da ilegitimidade singular apoia-se nos princípios basilares do processo civil (cooperação, economia processual, gestão material), e no direito fundamental a uma tutela efetiva.”

24.ª Atento o acima exposto, máxime o objeto da presente ação, a forma como os Autores configuram a ação e os documentos de suporte da mesma, o conhecimento direto e completo dos factos evidenciado na contestação do réu, não podem subsistir dúvidas de que o BPF foi demandado, apenas e só, na qualidade de sociedade gestora e representante do FACCE.

25.ª Na senda do defendido no acórdão do STJ de 05.12.2019 (processo n.º 2921717.2T8PTM-A.E1.S1, relatora: Catarina Serra), citado também no acórdão recorrido: “Não havendo dúvidas de que a sociedade gestora foi demandada na qualidade de representante do fundo de investimento imobiliário, pode e deve, à luz do dever geral de gestão processual (cfr. artigo 6.º do CPC) e do princípio da economia processual(cfr. artigo 130.º do CPC), dar-se como válida a sua citação na qualidade de representante do fundo.”

26.ª Os Recorrentes entendem, por isso, que ao invés de ter optado por uma visão positivista e formal, o tribunal recorrido poderia e deveria, à luz do dever geral de gestão processual, ter permitido a retificação do sujeito processual, seja por via direta através de uma simples interpretação corretiva que estabelecesse a correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte (artigo 146.º, n.º 2 CPC)2, seja mediante a formulação de um convite aos autores para que estes aperfeiçoassem a petição inicial, corrigindo/esclarecendo em que qualidade o réu foi demandado ou requeressem o que tivessem por conveniente, evitando que aquela preterição impedisse a decisão de mérito.

27.ª Não o tendo feito, o acórdão recorrido violou, nomeadamente, os artigos 6.º, n.º 2 e 278.º, n.º3 do CPC.

28.ª Esta violação traduz-se na omissão de um dever, constituindo nulidade processual nos termos previstos no artigo 195.º do CPC.

O interveniente DD declarou aderir ao requerimento de interposição de recurso apresentado.

Por seu turno, contra-alegou o réu, pugnando pela manutenção do decidido não elaborou conclusões).

O TRP proferiu acórdão em Conferência, decidindo pela inexistência da nulidade invocada.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

Da admissibilidade do recurso

A presente ação de anulação de decisão arbitral foi proposta ao abrigo dos fundamentos previstos no artigo 46.º, n.º 3 alínea a) ponto vii), alínea b), ponto ii) e alínea a), ponto ii) da LAV.

A sua competência está atribuída ao Tribunal da Relação, nos termos do n.º 1 do art. 59º da LAV, entrando na Relação na espécie 4ª do art. 214º do CPC., ou seja, nas causas que a Relação conhece em 1ª. instância.

Porém, é admissível a impugnação junto do STJ, funcionando como tribunal de 2.ª instância, mas como recurso de apelação, incluído na 4.ª espécie, nos termos do art. 215º do CPC., relativa às espécies no Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, admite-se o recurso, nos termos do art. 644º, 1, a), do CPC, conhecendo o STJ, em apelação, para o qual se convola (nos termos dos arts. 6º nº. 2 e 193º nº 3 todos do CPC), o recurso da decisão proferida pela Relação em 1ª. instância.

As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.

As questões a dirimir consistem em aquilatar:

- Sobre a ilegitimidade do réu.

- Da sanação do vício.

A factualidade pertinente para a decisão é a constante do presente relatório para o qual se remete.

Vejamos:

Insurgem-se os recorrentes relativamente ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, o qual julgou procedente a exceção da ilegitimidade do réu, absolvendo-o da instância.

Entendem os mesmos que, embora não tenham, por lapso manifesto, mencionado na identificação do réu, a qualidade em que é demandado, tal resulta da forma como os autores configuraram a ação.

Preconizam o suprimento oficioso da exceção ou o convite ao aperfeiçoamento da petição, entendendo que foi cometida uma nulidade processual.

Ora, dispõe o art. 30º do CPC. «Conceito de legitimidade»

1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

A legitimidade como pressuposto processual, exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste, a pretensão ou o pedido e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o (cfr. Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I).

A legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, ou seja, não será uma qualidade pessoal, mas antes uma qualidade posicional da parte face ao litígio.

Como alude Remédio Marques, Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª. ed. Coimbra Editora, pág. 367 «A parte desfruta de legitimidade processual quando, admitindo-se, ab initio, na configuração dada pelo autor na petição, que existe a relação material controvertida, a parte for efetivamente o seu titular».

A legitimidade processual é uma qualidade da parte determinada pela titularidade de um conteúdo referido a um certo pedido.

Há ilegitimidade quando se verifica uma disparidade entre os titulares dos interesses em conflito, ou das posições na relação jurídica e as partes ou sujeitos da relação jurídica processual.

Ora, na situação vertente, pretendem os recorrentes a anulação de sentença arbitral.

Compulsado o acórdão arbitral constatamos que ali foram delineadas as partes do seguinte modo:

«1. São partes na presente Arbitragem:

Na qualidade de Demandante ou Requerente:

- O Fundo Autónomo de Apoio à Consolidação e Concentração de Empresas – FACCE, entidade com personalidade judiciária, com o número de identificação fiscal 720010926 (abreviadamente designado como Demandante, Fundo ou FACCE), representado pela sociedade gestora PME Investimentos – Sociedade de Investimento, S.A. (abreviadamente, PMEI), sociedade comercial anónima, com o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva 502218835, com sede na Rua Pedro Homem de Melo, nº. 55, 3º Piso, S/309, Porto, (note-se que a Sociedade Gestora surge nos articulados como parte representante do Fundo, por este carecer de capacidade judiciária, o que motivou a suscitação da exceção de ilegitimidade ativa da PMEi por um dos Promotores).

Deve referir-se que esta Sociedade Gestora se fundiu por incorporação no Banco Português de Fomento, S.A., por força do art. 1º, nºs. 1 a 3, do Decreto-Lei nº. 63/2020, de 7 de setembro, razão por que este Banco passou a ser o legal representante do Fundo Demandante (nos termos do art. 2º, nº.4, deste diploma legal).

Na qualidade de Demandados ou requeridos:

(…) ».

Consta do acórdão recorrido o seguinte:

« - O Decreto-lei n.º 105/2009, de 12 de maio dispõe no seu articulado, além do mais e no que ora releva:

- Artigo 1.º (Objeto): O presente decreto-lei cria o Fundo Autónomo de Apoio à Concentração e Consolidação de Empresas (FACCE).

- Artigo 2.º (Objetivos): 1 - O FACCE visa criar e ou reforçar as condições e os instrumentos de financiamento para a realização de operações de reestruturação, concentração e consolidação de empresas, em especial das pequenas e médias empresas (PME), e de projetos de demonstrada valia económica de reestruturação empresarial, associações em participação ou outras formas de parcerias industriais e comerciais estáveis. 2 - O FACCE tem os seguintes objetivos: a) A promoção do crescimento económico, a criação, a manutenção e a qualificação de emprego; b) O reforço da competitividade das empresas e da economia portuguesa; c) O incentivo à reestruturação, à concentração e à consolidação empresarial; d) O estímulo ao empreendedorismo, à dinâmica de crescimento e à expansão empresarial.

- Artigo 4.º (Capital, subscrição, realização e autonomia do seu património): 1 - O capital inicial do FACCE é de (euro) 175 milhões, a realizar em numerário, sendo representado por 175 mil unidades de participação. 2 - A subscrição das 175 mil unidades de participação correspondentes ao capital inicial do FACCE é efetuada pelo IAPMEI - Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, I. P. (IAPMEI, I. P.) 3 - O capital do FACCE pode ser aumentado ou reduzido, por uma ou mais vezes, por deliberação do conselho geral, beneficiando os participantes de direito de preferência na subscrição das novas unidades de participação a emitir. 4 - O FACCE é um fundo autónomo, sem personalidade jurídica e com personalidade judiciária, que não responde pelas dívidas da sociedade gestora, de outros fundos por esta geridos, dos seus participantes, ou de quaisquer outras entidades.

- Artigo 7.º (Órgãos do Fundo): São órgãos do Fundo: a) O conselho geral; b) A sociedade gestora.

- Artigo 9.º (Sociedade gestora): 1 - É designada, como sociedade gestora do FACCE, a PME Investimentos - Sociedade de Investimento, S.A. 2 - A sociedade gestora, pelo exercício das suas funções, cobra uma comissão de gestão a fixar por despacho do membro do Governo responsável pela área da economia, publicado no Diário da República, sob proposta do conselho geral. 3 - Compete à sociedade gestora, na qualidade de representante legal do FACCE, exercer, de acordo com elevados níveis de diligência e aptidão profissional, todos os direitos relacionados com os seus bens e praticar todos os atos e operações necessários ou convenientes à sua boa administração, designadamente: (...)

- Por outro lado, dispõe o artigo 1.º do Decreto-lei n.º 63/2020, de 7 de setembro: “1 — O presente decreto-lei regula a atividade e o funcionamento do Banco Português de Fomento, S. A. (BPF) e aprova os respetivos Estatutos. 2 — Para os efeitos do número anterior, o presente decreto-lei define os termos e procede à fusão por incorporação da PME Investimentos — Sociedade de Investimento, S.A ., e da IFD — Instituição Financeira de Desenvolvimento, S. A. (IFD, S. A.), na SPGM — Sociedade de Investimento, S. A. (SPGM). 3 — A SPGM passa a adotar a firma de Banco Português de Fomento, S.A.”».

Resulta do explanado que o FACCE não tem personalidade jurídica, mas legalmente tem personalidade judiciária.

Nos termos do disposto no nº. 1 do art. 11º do CPC., a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte.

O FACCE pode ser parte num processo, mas não tem capacidade judiciária, não podendo estar, por si, em juízo sem ser através de representante legal.

Porém, o representante legal não é parte, não podendo ser demandado como réu.

Na presente ação, em parte alguma foi aflorado ser o Banco Português de Fomento, SA.,um representante legal.

Ao invés, a qualidade que lhe foi atribuída foi a de réu e como tal citado para a ação.

Contrariamente ao enunciado pelos recorrentes, tal como configuraram a ação, na mesma não consta a qualidade em que é acionado o BPF. S.A., ou seja, nada se diz sobre a sua titularidade.

A parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente seu titular (cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil).

No caso vertente, da relação material controvertida apresentada pelos autores, não resulta que os mesmos pretendam demandar o aqui réu nessa qualidade, nem que o mesmo tenha sido demandado por ser o representante do fundo autónomo, como entidade que pode suprir a sua incapacidade judiciária.

Aliás, os próprios recorrentes nas suas conclusões de recurso, alegam não se conformar, uma vez que, embora não tenham, por lapso manifesto, mencionado na identificação do réu a qualidade em que é demandado, tal resulta da forma como configuraram a lide.

Não se nos afigura a existência de tal acautelamento, não se podendo ficcionar o que não consta dos autos.

O réu foi citado na qualidadee de réu e só contra si foi formulado o pedido na ação de anulação,

Um representante legal não é parte, pois, a parte é o representado.

A legitimidade das partes deriva da sua posição como sujeitos da relação material controvertida, ou seja, como titulares do direito subjetivo.

Assim sendo, o réu Banco Português de Fomento S.A., é parte ilegítima na presente ação.

Mais entendem os recorrentes, ter sido cometida uma nulidade processual por violação dos arts. 6º, nº. 2 e 278, nº. 3, ambos do CPC., por violação do dever de gestão processual.

Ora, o princípio do dever de gestão processual encontra consagração no art. 6º nº. 1 do CPC., onde se alude que, sem prejuízo de impulso especialmente imposto pela lei às partes, cumpre ao juiz, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Dispondo o seu nº. 2 que, o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização doa atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

Ora, a ilegitimidade de alguma das partes constitui uma exceção dilatória, nos termos da al). e do art. 577º do CPC.

As exceções dilatórias, obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (cfr. art. 576, nº. 2 do CPC).

Nos termos do disposto no nº. 3 do art. 278º do CPC., as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do nº. 2 do art. 6º do mesmo normativo.

Porém, como dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 322 «Determinadas falhas processuais atingem tal gravidade que determinam inelutavelmente um resultado formal, que nem sequer pode ser evitado por intervenção do juiz. É o que decorre da verificação de determinadas exceções dilatórias que, além de se revelarem insupríveis, não permitem tão-pouco o efeito paliativo que emerge do nº. 3».

A ilegitimidade singular é insanável.

A perspetiva de sanação da falta de um pressuposto processual só pode colocar-se nos casos em que a falta seja objetivamente suprível.

Se o vício é insanável, nada haverá a fazer, tendo o juiz de assumir isso mesmo e fixar o respetivo efeito, expresso na abstenção de apreciar o mérito da causa. A ilegitimidade singular é, pela sua natureza, insanável (cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina).

A ilegitimidade plural é sanável, o mesmo não sucedendo com a ilegitimidade singular.

A legitimidade singular é hoje de verificação circunscrita aos casos de errada identificação do verdadeiro interessado em contradizer (cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 139).

Sendo insanável a ilegitimidade em causa nos autos, jamais poderia o tribunal usar do dever de gestão processual e daí, não ter cometido qualquer nulidade processual, nos termos do disposto no art. 195º do CPC.

O princípio da adequação formal, a que se reporta o art. 547º do CPC., atribui ao juiz o poder de gestão processual e de adequação formal, perante a concreta situação, providenciando pelo suprimento de falta de pressupostos suscetíveis de sanação, ou convidar as partes a suprir as falhas que dependam das mesmas.

Tal princípio comporta limites, tais como, a impossibilidade de adequação formal perante os casos insanáveis.

Ora, a ilegitimidade singular será uma dessas situações.

Como escreveu, Miguel Teixeira de Sousa, Sanação da ilegitimidade singular por acordo das partes, in Blogpot/com/2015/02 «O regime processual civil português determina que, perante a exceção dilatória de ilegitimidade singular, o réu deve ser absolvido da instância (cf. art. 577º, al. e), 576º, nº 2 e 278º, nº. 1, al. d), CPC), não se admitindo a sanação desta exceção dilatória.

(…) Pode afirmar-se que este regime (referindo-se a jurisprudência alemã sobre substituição de uma parte ilegítima por uma legítima), não é transponível para a ordem jurídica portuguesa, dado que, depois da citação do réu, o chamado princípio da estabilidade da instância apenas permite que aquela se modifique nos casos previstos na lei (art. 260º do CPC).

No direito português, há que considerar o princípio da estabilidade da instância, pelo que, depois da citação do réu, não pode haver nenhuma substituição de uma parte inicial sem o acordo do demandado.

(…) O poder de gestão processual (cf. art. 6º., nº. 1 CPC) e o correspondente instrumento – que é a faculdade de adequação formal (cf. art. 547º. CPC.) – podem ser utilizados para implementar no processo qualquer adaptação que seja imposta pela substituição da parte inicial. Não existe obstáculo intransponível à aceitação da sanação da ilegitimidade singular por acordo das partes no processo civil português».

Na situação em apreço, não existe qualquer acordo das partes, antes pelo contrário, uma expressa divergência.

Face ao supra explanado, não assiste razão aos recorrentes, nenhum reparo merecendo o acórdão proferido.

Sumário:

- A parte desfruta de legitimidade processual quando, admitindo-se, ab initio, na configuração dada pelo autor na petição, que existe a relação material controvertida, a parte for efetivamente o seu titular.

- Há ilegitimidade quando se verifica uma disparidade entre os titulares dos interesses em conflito, ou das posições na relação jurídica e as partes ou sujeitos da relação jurídica processual.

- As exceções dilatórias, obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (cfr. art. 576, nº. 2 do CPC).

- A perspetiva de sanação da falta de um pressuposto processual só pode colocar-se nos casos em que a falta seja objetivamente suprível.

- O princípio da adequação formal, a que se reporta o art. 547º do CPC., atribui ao juiz o poder de gestão processual e de adequação formal, perante a concreta situação, providenciando pelo suprimento de falta de pressupostos suscetíveis de sanação, ou convidar as partes a suprir as falhas que dependam das mesmas.

- Tal princípio comporta limites, tais como, a impossibilidade de adequação formal perante os casos insanáveis.

3- Decisão:

Nos termos expostos julga-se improcedente a apelação junto deste STJ.

Custas a cargo dos recorrentes.

Lisboa, 28 -1-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Teresa Albuquerque

Ricardo Costa