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CRIME DE FRAUDE FISCAL
REVERSÃO
SUSPENSÃO DO PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
Sumário
I – O princípio de suspensão do processo penal tributário previsto no Artº 47º do RGIT constitui um desvio à regra da suficiência do processo penal, consagrado no nº 1 do Artº 7º do C.P.Penal, por se considerar que o processo de impugnação judicial ou oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, constituem questão não penal que não pode ser convenientemente resolvida no processo penal, prejudicial ao conhecimento de um crime tributário. II – Como decorre das disposições conjugadas dos Artºs. 18º, nº 3, 20º, nº 1, 22º, nºs. 2 e 4, 23º, e 24º, da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, e do Artº 153º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Dec.-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, a “reversão” consubstancia uma figura processual privativa do processo executivo tributário, com objectivos e pressupostos próprios, quais sejam os de fazer responsabilizar os devedores fiscais pessoas singulares com responsabilidade subsidiária pelas dívidas fiscais de empresas ou pessoas jurídicas institucionais, com fundamento na fundada insuficiência patrimonial dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários ou dos seus sucessores, no exercício de funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados e na culpa no não pagamento da prestação tributária, bem como na insuficiência patrimonial. III – Tendo em consideração que a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária são realidades jurídicas distintas, que surgem, se mantêm e se extinguem de forma independente entre si, a “reversão” e a respectiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário.
Texto Integral
I. RELATÓRIO 1. No âmbito do Inquérito nº 68/14.2IDVCT, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 1ª Secção de ..., da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, em 30/11/2023 deduziu o Ministério Público a acusação pública cuja cópia se mostra junta a fls. 4 Vº / 10, e que a seguir se transcreve [1], na parte em que ora importa considerar:
“Em processo comum, perante Tribunal Singular, o Ministério Público acusa: AA, filho de BB e de CC, nascido a ../../1956, casado, Português, titular do ...23, contabilista, com residência no Caminho ... ... Porquanto está suficientemente indiciado nos autos que: 1- A sociedade EMP01... LDA. com a matrícula cancelada desde ../../2014, também doravante designada abreviadamente por "EMP01...", foi uma pessoa coletiva, sociedade por quotas, com o número de contribuinte ...48, cuja sede se situou na urbanização da Quinta ..., ..., loja ...1, ... ..., e cujo objeto social se reconduziu a "Serviços de contabilidade, verificação de contas— escrituração comercial, gestão, organização e informática". 2- Para efeitos tributários, a “EMP01...” encontrava-se enquadrada, em sede de IVA, no regime normal com periodicidade trimestral, e, em sede de IRC, no regime geral de tributação. 3- O arguido AA foi nomeado gerente da "EMP01..." na data da constituição desta, em 1989, sendo desde essa data seu contabilista certificado. 4- Desde a constituição da “EMP01...” até à sua extinção (ocorrida em ../../2014) foi o arguido AA quem dirigiu de facto a aludida empresa, nomeadamente diligenciando pela angariação de contratos com terceiros, por forma à sociedade poder desenvolver a sua actividade, bem como recebendo os pagamentos efetuados pelos trabalhos realizados para os clientes que angariava. 5- Porém, a partir de dado momento, que não foi possível precisar, mas no decurso do ano de 2010, o arguido AA, agindo também por conta e em representação da EMP01..., decidiu deixar de entregar nos cofres da Fazenda Pública (Estado), as quantias em dinheiro correspondentes ao IRC e IVA efetivamente devido pela referida sociedade pelo exercício da sua atividade. 6- Assim, em execução do plano por si traçado, a partir do ano de 2010 o arguido tratou de ocultar rendimentos efetivamente auferidos pelo exercício da atividade da “EMP01...”, por forma a fazer diminuir o resultado líquido do exercício e assim pagar menos imposto a título de IRC e IVA. 7- Destarte, em cumprimento da sua ideação:
a) Por referência ao ano de 2010, a sociedade “EMP01...” declarou, por intermédio da devida declaração de IRC modelo 22 apresentada pelo arguido, um resultado líquido de exercício de 2527,12 euros, apurando uma matéria coletável/lucro tributável de 3.026,50 euros, e, consequentemente, €499,37 de imposto (IRC) a pagar ao Estado (€453,97 a título de IRC +€45,40 a titulo de derrama). Acontece que, no ano de 2010, a sociedade “EMP01...”, conforme se apurou em sede de inspeção tributária, teve rendimentos líquidos de €166.801,68, sendo este o seu lucro tributável/matéria coletável, ficando assim por liquidar á Fazenda Nacional (Estado) a quantia global de IRC de 42.639,95 (€40.137,92 (a titulo de IRC) e €2.502,03 (a titulo de derrama)), conforme liquidação adicional de IRC efetuada pela AT e que foi confirmada pelo TAF de Braga no âmbito do processo de impugnação judicial nº1041/17...., que ali correu. b) Por referência ao ano de 2011, a sociedade “EMP01...” declarou, por intermédio da devida declaração de IRC modelo 22 apresentada pelo arguido, um resultado líquido de exercício de €1895,44 euros apurando uma matéria coletável/lucro tributável de €2.204,00, e, consequentemente, €308,56 de imposto (IRC) a pagar ao Estado (€275,50 a título de IRC +€33,06 a título de derrama). Acontece que, no ano de 2011, a sociedade “EMP01...”, conforme se apurou em sede de inspeção tributária, teve rendimentos líquidos de €191.587,64, sendo este o seu lucro tributável/matéria coletável, ficando assim por liquidar á Fazenda Nacional (Estado) a quantia global de IRC de €49.208,22 (€46.334,41 (a titulo de IRC) e €2.873,81 (a titulo de derrama)), conforme liquidação adicional de IRC efetuada pela AT e que foi confirmada pelo TAF de Braga no âmbito do processo de impugnação judicial nº1041/17...., que ali correu. c) Por referência ao ano de 2012, a sociedade “EMP01...” declarou, por intermédio da devida declaração de IRC modelo 22 apresentada pelo arguido, um resultado líquido de exercício de €1565,53 euros apurando uma matéria coletável/lucro tributável de €2.129,98, e, consequentemente, €564,44 de imposto (IRC) a pagar ao Estado (€532,49 a titulo de IRC +€31,095 a titulo de derrama). Acontece que, no ano de 2012, a sociedade “EMP01...”, conforme se apurou em sede de inspeção tributária, teve rendimentos líquidos de €143.405,98, sendo este o seu lucro tributável/matéria coletável, ficando assim por liquidar á Fazenda Nacional (Estado) a quantia global de IRC de €38.002,58 (€35.851,49 (a titulo de IRC) e €2.151,09 (a titulo de derrama)), conforme liquidação adicional de IRC efetuada pela AT e que foi confirmada pelo TAF de Braga no âmbito do processo de impugnação judicial nº1041/17...., que ali correu. d) Por referência ao ano de 2013, a sociedade “EMP01...” declarou, por intermédio da devida declaração de IRC modelo 22 apresentada pelo arguido, um resultado líquido de exercício de €894,92 euros apurando uma matéria coletável/lucro tributável de €1.193,23, e, consequentemente, €298,30 de imposto (IRC) a pagar ao Estado.
Acontece que, no ano de 2013, a sociedade “EMP01...”, conforme se apurou em sede de inspeção tributária, teve: di) rendimentos líquidos anuais de €174.764,83, sendo este o seu lucro tributável/matéria coletável, ficando assim por liquidar á Fazenda Nacional (Estado) a quantia global de IRC de €43.691,20, conforme liquidação adicional de IRC efetuada pela AT e que foi confirmada pelo TAF de Braga no âmbito do processo de impugnação judicial nº1041/17...., que ali correu. dii) no terceiro trimestre, um rendimento bruto total de €89.063,77, que incluía o valor de €16.654,20 referente a IVA, que a “EMP01...” não comunicou nem entregou á Fazenda Nacional. 8- Ao actuar da forma descrita, isto é, ao ocultar os valores auferidos e supra referidos, o arguido agiu com o propósito de obter a referida vantagem patrimonial, bem sabendo e querendo causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou, pois não entregou à Administração Fiscal os valores supra referidos, a título de IRC e IVA, no montante global de €190.196,15, entrega esta a que a sociedade EMP01... estava obrigada. 9- A sociedade EMP01..., por intermédio do arguido AA, lesou o erário público da Fazenda Nacional naquele montante ofendendo, desse modo, o regular funcionamento do sistema fiscal e, consequentemente, os interesses de ordem pública que o mesmo deve satisfazer, impedindo assim a realização da justiça fiscal. 10- Para além disso, o arguido, ao ocultar à Administração Tributária os rendimentos líquidos efetivamente auferidos pela sociedade EMP01..., declarando menos rendimentos dos efetivamente auferidos por esta, 11- Ofendeu e colocou em crise a verdade e a transparência fiscal e, consequentemente, impediu o Estado Português de concretizar a sua pretensão de lhe ver revelados todos os factos fiscalmente relevantes. 12- O arguido agiu voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Constituiu-se, assim, o arguido o arguido AA na autoria material de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103.º, nº1 e 3, do RGIT.
*
Prova.
(…)”.
*
2. Não tendo sido requerida abertura de instrução, na sequência da ulterior pertinente tramitação processual foram os autos distribuídos ao Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, para julgamento.
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3. Por despacho de 25/03/2024, foi designado, para julgamento, o dia 07/05/2024, pelas 14H00 e, em caso de adiamento, nos termos dos Artºs. 312º, nº 2, e 333º, nºs. 1 e 3, do C.P.Penal, o dia 14/05/2024, pelas 14H00 (cfr. fls. 12).
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4. No dia 02/05/2024 o arguido dirigiu aos autos o requerimento cuja cópia consta de fls. 13/15, com o seguinte teor (transcrição):
“(…) AA, arguido nos autos de processo à margem referenciados, vem expor e requerer a Vª Exª o seguinte: 1 - Encontra-se designado para os próximos dias 7 e 14 de Maio de 2024, duas sessões de audiência de julgamento. 2 - O arguido encontra-se acusado pela prática de um crime de fraude fiscal p.p. pelo art. 103º, nº 1 e 3, do RGIT - cfr. Douta Acusação com a referência ...08, de 06/...24. 3 - Os factos descritos na acusação reportam-se a IVA, IRC de 2010, 2011, 2012 e 2013, num total global de €190.196,15 - cfr. Acusação. Sucede que, 4 - o arguido apresentou, oportunamente, impugnação Judicial e oposição àquelas liquidações no TAF de Braga, as quais se encontram a aguardar sentença e trânsito em julgado, sem prejuízo das que lhes foram favoráveis e já transitadas em julgado. Na verdade, 5 - o arguido apresentou, alem do mais, no dia 23 de Maio de 2018, no SF de ..., oposição à execução fiscal ...90 e aps. (Reversão), relativo a IVA dos anos de 2011 a 2014, no valor de €88.075,59, cujo processo corre seus termos no TAF de Braga com o nº 1754/18...., Unidade Orgânica 3, ainda não transitada em julgado - cfr. docs. nºs 1 e 2 ora juntos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos . 6 - O arguido apresentou, no dia 11 de Abril de 2017, no SF de ..., oposição às execuções fiscais ...95, ...21 e ...30 (Reversão), relativo aos anos de 2012, 2013 e 2014, no valor de €232.200,61, cujo processo corre seus termos no TAF de Braga com o nº 910/17...., Unidade Orgânica 2, ainda não transitada em julgado - cfr. docs. nºs 3 e 4 ora juntos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. Ora, 7 - «O facto em que se verifica o tipo de ilícito e o tipo de culpa é em princípio também um facto digno de pena; mas pode acontecer que excepcionalmente o não seja se, por falta de uma condição de punibilidade, se revela que o facto como um todo, na sua unidade, na sua imagem global, não abrange os limiares mínimos da exigência preventiva de punição, em suma, da sua dignidade penal. Nesta acepção pode dizer-se que a categoria da punibilidade (a condição objectiva de punibilidade) deve ser tomada, no sentido de um funcionalismo normativo, como o elemento de ligações por excelência entre a dogmática do facto e a política criminal» - Cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal, Parte Geral» 2004, pág. 622. 8 - Constata-se que os tributos em causa, objecto dos processos socais, são os mesmos a que se reporta a acusação, sendo certo que, 9 - a efectiva pretensão tributária, ainda que em termos de mera susceptibilidade, é parte integrante do elemento objectivo do tipo criminal, ou seja apurando-se, definitivamente, que a responsabilidade pelo pagamento dos impostos em causa não são da responsabilidade do arguido, fica demonstrada, sem mais, a inexistência de qualquer comportamento penalmente censurável a eventual persistência de um dos pressupostos da responsabilidade penal. Sucede que, 10 - o legislador indica uma causa própria de suspensão, pura e simples e directa, o processo penal por crime fiscal - incluindo o procedimento criminal -, isto é, sem a fazer depender de qualquer condição - art. 47º do RGIT - não estipulando, assim, a necessidade de um despacho judicial a determinar, no contexto indicado, a suspensão do processo por crime fiscal. 11 - A suspensão do processo penal por crime fiscal decorre automática e exclusivamente da pendência do processo de impugnação e/ou oposição tributário, cuja suspensão do processo penal determina ex vis legis suspensão do procedimento criminal. Deste modo, 12 - deve o presente procedimento criminal ser suspenso até o trânsito em julgado das sentenças/acórdãos que vierem a ser proferidas naqueles processo tributários, sem prejuízo daqueles que foram favoráveis ao impugnante e rela*vos aos tributos aqui em causa que terão incidência numa eventual medida da pena.
TERMOS EM QUE Deve determinar-se a suspensão dos presentes autos por causa prejudicial do processo fiscal.
(…)”.
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5. Na data aprazada [07/05/2024], o Mmº Juiz a quo declarou aberta a audiência de discussão e julgamento e, tendo dado a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público pela mesma foi dito:
“Requeiro que se solicite ao TAF de Braga – unidade orgânica 3 cópia certificada com nota de transito em julgado da sentença, no âmbito do processo de impugnação nº 1041/17..... Após a junção da referida certidão, pronunciar-me-ei sobre o requerimento de refª ...32 de 02-05-2024.
Mais promovo que se dê sem efeito a presente audiência de discussão e julgamento, bem como a 2ªdata agendada.-“.
Tendo de imediato o Mmº Juiz proferido o seguinte despacho, que se contra exarado na respectiva acta, assinada no mesmo dia, cuja cópia consta de fls. 87/89 (transcrição):
“O arguido AA, através do requerimento de 02-05-2024 sob a refª ...32, veio requerer a suspensão dos presentes autos com fundamento na existência de uma causa prejudicial.-
Alegou, para tanto e em síntese, que os factos descritos na acusação se reportam ao IVA e IRC dos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013, no total de 190.196,15€, sendo que apresentou impugnação judicial e oposição àquelas liquidações no TAF de Braga, as quais se encontram a aguardar sentença e trânsito em julgado.-
Decidindo.
Sobre a epigrafe “Suspensão do processo penal tributário”, dispõe o art.º 47º do RGIT que “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.”-
Por força do disposto no art.º 21º, nº4 do mesmo diploma legal, o prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no processo penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no nº2 do art.º 42º e 47º.
O art.º 7º do C.P.P. consagra como regra o princípio da suficiência admitindo, no entanto, a possibilidade de suspensão do processo a título meramente excecional e submetida a requisitos e prazos apertados, sendo que, como tem sido sustentado pela jurisprudência e doutrina, a suspensão do processo penal tributário, previsto no art.º 47º do RGIT, constituiu um desvio ao referido princípio da suficiência da ação penal.
Mas não basta existência de um qualquer processo tributário para dar lugar à suspensão do processo penal tributário, sendo ainda necessário que a questão nele suscitado seja de facto prejudicial em relação ao objeto do processo penal.
Por outro lado, a suspensão do processo penal tributário, em consequência da impugnação judicial só é obrigatória se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada, ou seja, do crime fiscal em apreciação, de modo a que se apresente como um antecedente logico-jurídico, com caracter autónomo e condicionante da questão principal.
Compulsado o requerimento junto aos autos pelo arguido praticamente na véspera de audiência de julgamento, verificamos desde logo que os documentos que se encontram anexos ao mesmo não documentam, a nosso ver, qualquer questão prejudicial à matéria penal em discussão nos presentes autos. Com efeito, as oposições deduzidas pelo arguido, cuja cópia juntou ao requerimento, têm por fundamento a sua alegada ilegitimidade por entender não ser responsável pelo pagamento da dívida, porquanto considera não estarem reunidos os pressupostos da reversão do dívida da devedora principal, ou seja, sociedade da qual era sócio-gerente, a qual presentemente se mostra extinta, a saber, a sociedade EMP01..., Ldª.
Por outro lado, verifica-se que pelo menos numa das oposições deduzidas estará em causa, como ali se refere, 692,29€ relativamente ao IRC de 2014, 51.693,20 relativamente ao IRS de 2012 e 67.447,51 relativamente ao IRS de 2013, aparentemente estranhos ao objeto do presente processo.
Sucede que nos presentes autos a responsabilidade criminal imputada na acusação ao arguido não resulta de qualquer processo de reversão da dívida contra si, mas antes da circunstancia de alegadamente ter atuado por forma fraudulenta conforme melhor resulta do douto despacho de acusação.
Assim sendo, não só nos processos de oposição em causa o arguido não colocou em crise o imposto apurado pela autoridade tributária, mas apenas a reversão da divida contra si, como também a sua responsabilidade penal não se funda na referida reversão, o que equivale dizer que o arguido com requerimento apresentado não comprova a existência de qualquer causa prejudicial determinante da suspensão do processo nos termos do aludido art.º 47º RGIT.
Sem prejuízo, verifica-se que se encontra junto aos autos a fls.488 e seguintes, cópia de uma decisão proferida pelo TAF de Braga – Unidade orgânica 3, no âmbito do processo de impugnação nº 1041/17...., referente à impugnação judicial interposta pela sociedade EMP01..., Ldª, relativa às liquidações adicionais do IRC e IVA e correspondentes juros compensatórios, referentes aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013.
Sucede, como bem dá nota o Ministério Público, que apesar da informação constante de fls.533v, desconhece este Tribunal se tal decisão transitou em julgado, uma vez que do documento junto aos autos consta que à data que a informação foi prestada a referida decisão não havia transitado em julgado.
Assim sendo e porque o conhecimento desta matéria poderá, em abstrato, determinar ou não a suspensão do processo nos termos do art.º 47º do RGIT, consoante o que se vier a apurar, antes de mais, oficie ao referido processo que se digne remeter aos presentes autos cópia certificada com menção do transito em julgado da decisão, tudo conforme melhor consta da douta promoção que antecede.
Por fim, não sendo legitimo a prática de atos inúteis no processo e porquanto se encontra pendente uma questão prévia relacionada com a suspensão ou não do processo, dá-se sem efeito as datas designadas para a realização da audiência, não se designando por ora novas datas.
Devem os autos ir com vista ao Ministério Público para, querendo, tomar posição relativamente à matéria logo que se mostre junta aos autos a certidão da decisão cuja junção ora foi determinada.”.
*
6. No dia 08/05/2024 o arguido dirigiu aos autos o requerimento cuja cópia consta de fls. 90 / 91 Vº, com o seguinte teor (transcrição):
“(…) AA, arguido nos autos de processo à margem referenciados, vem expôr e requerer a Vª Exª o seguinte: 1 - Estava designado para o dia de ontem, 07/05/2024, a primeira sessão de audiência de julgamento, a qual, face às razões invocadas pelo arguido e pelo Ministério Público, determinaram a suspensão dos presentes autos. 2 - Esta suspensão foi determinada pelo douto despacho que melhor consta da acta e da gravação da diligência, concretamente e em particular, daquele despacho. 3 - Compulsados os autos constatamos que a acta redigida não se encontra, ainda, junta/inserida no sistema Citius, face até, à sua extensão e o tempo decorrido ser inferior a 24horas. 4 - Verificamos, contudo, que se encontra disponibilizada no sistema Citius a gravação daquela diligência, concretamente e alem do mais, o douto despacho que recaiu sobre o ali requerido e determinou a suspensão do processo. 5 - Porém, a gravação do douto despacho em causa é deficiente, inaudível, imperceptível e de nula compreensão, impedindo, claramente, a sua análise e estudo. 6 - Sendo certo que, o arguido, apesar da suspensão determinada, tem interesse e manifesta intenção em exercer o contraditório sobre aquele despacho, desconhecendo o conteúdo do mesmo, impedindo, eventualmente e se for caso disso, o Tribunal superior da reapreciação daquele despacho por falta ou falha daquele registo. 7 - A gravação deficiente que a torne inaudível, imperceptível ou de difícil compreensão, como in casu, determina a sua nulidade - art. 120º, nº 1 - cuja declaração se requer. 8 - Sem prescindir e pretendendo o arguido exercer o contraditório sobre o douto despacho proferido e/ou recorrer do mesmo, considerando o prazo para o efeito que é curto, requer-se a suspensão da notificação daquele despacho até nova gravação ou da notificação da acta redigida em conformidade.
(…)”.
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7. Em 13/05/2024 foi junta aos autos certidão extraída do processo de impugnação nº 1041/17...., do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – Unidade Orgânica 3 [cfr. fls. 92/129] e, aberta vista ao Ministério Público, em 17/05/2024 a Digna Procuradora da República pronunciou-se nos termos que constam da promoção de fls. 130, que ora se transcreve:
“Tomei conhecimento da douta sentença que antecede proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
***
Requerimento refª ...50
Nada a promover uma vez que a acta ficou disponibilidade no próprio dia (07.05.2024), pelo que não se entende o requerido.
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Requerimento refª ...62
Subscrevemos na integra a posição assumida pelo Mmº Juiz no douto despacho constante da Acta de Audiência de Julgamento datada de 07.05.2024.
Consequentemente, promovemos se designe novas datas para a realização da audiência de julgamento.
(...)”.
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8. Nessa sequência, em 27/05/2024 o Mmº Juiz a quo preferiu o seguinte despacho, cuja cópia consta de fls. 131 /131 Vº (transcrição):
“Tomei conhecimento da douta sentença que antecede proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Nada impede o prosseguimento dos autos.
***
Requerimento refª ...50
O arguido veio requerer “a suspensão da notificação” do despacho por nós proferido em audiência de julgamento “até nova gravação ou da notificação da acta redigida em conformidade”.
Salvo o decido respeito, a pretensão apresenta-se ininteligível e dilatória, pelo menos a nosso ver, posto que o arguido e seu Il. Mandatário estiveram presentes na referida sessão da audiência de julgamento e nela foram devidamente notificados do teor do despacho, este proferido na presença de ambos, sem que tivessem manifestado qualquer dúvida.
Por outro lado, não há lugar à “nova gravação”, sequer “notificação da acta”, a qual, de resto, visa documentar os trabalhos e se mostra disponível no processo em suporte físico e electrónico, e se encontra acessível ao Il. Mandatário desde a data da audiência de julgamento, estando em conformidade com a gravação que se nos afigura suficientemente perceptível e não impede o seu efectivo conhecimento.
Concluindo como fez o Ministério Público, cuja posição se secunda, não se entende o requerido e muito menos se percebe que o arguido faça referência a uma alegada “suspensão determinada”, quando é do conhecimento do próprio que, de forma linear, a sua pretensão com vista a uma suspensão da acção penal foi indeferida (aliás, nem se compreenderia como pretenderia agora reagir contra uma decisão se ela tivesse acolhido a sua pretensão).
Assim sendo, nada mais a determinar sobre a matéria, indeferindo-se o que se mostra requerido a tal respeito.
***
Requerimento refª ...62
Inexistindo motivo para a suspensão da acção penal, procede-se ao reagendamento da audiência.
Da marcação da audiência de julgamento
Para julgamento, neste tribunal, designo o dia 10/09/2024, pelas 09h15m e não antes por força da interposição das férias judiciais).
Caso falte(m) o(a)(s) arguido(a)(s), e como nova data, nos termos dos arts. 312.º, n.º 2 e 333.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal, desde já se designa o dia 17/09/2024, pelas 09h15m.
Programação da audiência
Em face do elevado número de testemunhas arroladas e desconhecendo-se qual a posição que o arguido assumirá perante os factos que lhe são imputados, por agora convoque:
- Para a primeira data: o arguido e as primeiras dez testemunhas;
- Para a segunda data: as dez testemunhas que seguem no rol.
Oportunamente, caso se justifique, será designada data para a inquirição das restantes testemunhas arroladas, em observância do disposto no artigo 151.º, do C.P.Civil
(…)”.
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9. Inconformado com a decisão que “indeferiu a declaração de questão prejudicial”, dela veio o arguido interpor o presente recurso, que se mostra junto a fls. 132/138, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1 - No dia ../../2024 o arguido apresentou o requerimento com a referência ...50, invocando a nulidade por imperceptibilidade da gravação da diligência, cuja matéria se dá aqui por integralmente reproduzida por economia de espaço. 2 - De facto, a gravação do douto despacho em causa é deficiente, inaudível, imperceptível e de nula compreensão, impedindo, claramente, a sua análise e estudo, o que determina a sua nulidade - art. 120º, nº 1 - cuja declaração se requer - impedindo o Tribunal superior da reapreciação daquele despacho por falta ou falha daquele registo. 3 - A necessidade de devolução aos tribunais tributários prevista no nº2, do art. 7º do CPP, justifica-se por razões emergentes, desde logo, da distinta natureza dos tribunais tributários, e como forma de evitar a usurpação de jurisdição de tribunais de ordem diversa da dos tribunais judiciais, desde que não haja no processo-crime os elementos disponíveis que permitam uma eficaz clarificação da situação tributária de cuja definição dependa a qualificação jurídico-penal dos factos. 4 - Sendo certo que, a suspensão do processo penal fiscal, em consequência de uma impugnação judicial ou oposição, só reveste carácter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com carácter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal. 5 - A suspensão do processo penal fiscal e a devolução de questões prejudiciais tributárias à esfera de jurisdição competente é, muitas vezes, fundamental, pois que a matéria discutida na oposição à execução fiscal é decisiva, desde logo, quer para a definição da própria existência ou qualificação dos crimes de burla tributária ou de fraude fiscal (artigos 87º e 103º do RGIT), quer para a determinação da medida da pena (artº 13º do RGIT), quer para o preenchimento das definições de "valor elevado" e "valor consideravelmente elevado" (artº 11º al. d) do RGIT), quer ainda para condicionar a suspensão da execução da pena de prisão (artº 14º nº 1 do RGIT). 6 - Da analise o art. 47º do RGIT, resulta, por um lado, que é necessário que esteja a decorrer processo de impugnação judicial ou tenha lugar oposição à execução e que nesta se discuta situação tributária cuja definição depende da qualificação criminal dos factos aqui imputados, sendo inequívoco que as decisões que vierem a ser proferidas nas oposições judiciais repercutem -se na esfera jurídica do opoente. 7 - Opondo-se o aqui arguido à liquidação adicional de IVA e IRC, por via das quais se peticiona a exclusão dos aludidos valores constantes do relatório da inspecção e cujos montantes alegadamente serviram para diminuir o lucro tributável a entregar ao Estado, o sócio gerente, manifestamente, colocou em causa a substantiva relação jurídica tributária, havendo toda a probabilidade de, a ter êxito essa sua pretensão, tal poder vir a refletir-se na apreciação do crime de fraude fiscal imputado. 8 - Com efeito, a dedução das aludidas oposições colocou em causa, pelo menos provisoriamente, a substantiva relação jurídica tributária, com manifesta incidência negativa na possibilidade de afirmação do crime de fraude fiscal imputado ao arguido, podendo a decisão definitiva que ali venha a ser proferida vir a afetar efetivamente o objeto do processo penal, pois que o apuramento da situação tributária e a concretização da vantagem indevidamente obtida são necessários para a qualificação dos factos como crime. 9 - No limite, caso as oposições venham a ser julgada procedentes, necessário será concluir que o arguido nada deve ao erário público, não é responsável pelo pagamento ou que não é devido o que a Administração Tributária pretendera, ficando demonstrada, respectivamente a inexistência de qualquer comportamento penalmente censurável ou a eventual persistência dos pressupostos da responsabilidade penal em moldes diversos dos afirmados nas liquidações impugnadas/títulos executivos. 10 - Ou seja, o trânsito em julgado das decisões finais a proferir nos referidos processos tributários pendentes, ainda em fase de julgamento/recurso, mostra-se decisivo para a definição da existência de fraude fiscal e sua qualificação, por ser necessário apreciar a legalidade da liquidação dos impostos em causa (IVA e IRC), razão por que é essencial a obrigatoriedade da suspensão do processo penal fiscal. 11 - Sem prejuízo, várias questões que abstractamente contendem com a legalidade da obrigação tributária e até mesmo com a sua exequibilidade, representam factos da obrigação tributária e simultaneamente factos do tipo de crime imputado ao recorrente. 12 - E sendo factos a conhecer pela jurisdição tributária, impunha-se que o Mm.º Juiz a quo tivesse deferido e declarado a suspensão do processo penal tributário até que transitasse em julgado as sentenças a proferir nas oposições deduzidas e comunicadas aos autos, nos termos e para os efeitos do art.º 47.º, n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias. 13 - Violou o douto despacho em censura os arts. 120º, nº 1 do CPP, 11º, al. d), 13º, 14º, nº 1, 47º, 87º e 103º do RGIT e 7º do CPP.
TERMOS EM QUE deve ser declarada a nulidade do despacho em censura e a) dado provimento ao presente recurso deve o douto despacho que indeferiu a questão prejudicial suscitada ser revogado e substituído por outro que declare a questão prejudicial.
(…)”.
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10. Na 1ª instância o Ministério Público respondeu ao recurso, nos termos da peça processual cuja cópia se mostra junta a fls. 140/142, pugnando pela sua improcedência, e pela manutenção da decisão recorrida.
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11. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o douto parecer junto a fls. 146/147, pronunciando-se, também, pela improcedência do recurso, adiantando pertinentes considerações jurídicas acerca das questões suscitadas.
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12. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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13. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal [2].
Ora, na situação em apreço, compulsando o recurso do arguido, constata-se que o mesmo expressamente delimita o respectivo objecto “à decisão que indeferiu a questão prejudicial suscitada por este”.
Não obstante isso, verifica-se que o recorrente, incongruentemente, também aborda a questão da alegada “deficiência” da gravação da diligência ocorrida no dia 07/05/2024, em cujo âmbito foi proferido o despacho recorrido, gravação essa que, em seu entender, é deficiente, inaudível, imperceptível e de nula compreensão, o que impede a sua análise e estudo, determinando a sua nulidade, nos termos do Artº 120º, nº 1, do C.P.Penal.
Sucede que essa questão foi expressamente apreciada pelo Mmº Juiz a quo através do despacho de 27/05/2024, supra aludido em I.8., o qual foi devidamente notificado ao arguido, não constando dos autos que o mesmo tenha merecido qualquer reacção da sua parte, designadamente com a interposição do competente recurso.
Consequentemente, torna-se para nós manifesto e evidente que tal decisão, devidamente transitada em julgado, teve a virtualidade de conduzir à formação de caso julgado formal sobre essa questão, não podendo mais ser posta em causa, designadamente através da presente via recursória, como pretende o arguido e recorrente AA.
Pelo que, estando precludida qualquer (re)apreciação acerca dessa matéria, a única questão que importa decidir é a de saber se foi ou não correctamente indeferida a pretensão do arguido, visando a suspensão do processo [dos autos principais], nos termos do disposto no Artº 47º, do RGIT, com fundamento na verificação de causa prejudicial.
Vejamos, pois.
Sob a epígrafe “Suspensão do processo penal tributário”, prescreve o citado Artº 47º, do RGIT:
“1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
(...)”.
Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, 2ª Edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 163, o princípio de suspensão do processo penal tributário previsto no aludido Artº 47º do RGIT constitui um desvio à regra da suficiência do processo penal, consagrado no nº 1 do Artº 7º do C.P.Penal, por se considerar que o processo de impugnação judicial ou oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, constituem questão não penal que não pode ser convenientemente resolvida no processo penal, prejudicial ao conhecimento de um crime tributário [3].
Porém, como advertem os Drs. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2008, 3ª edição, Áreas Editora, págs. 403/404, “a referência exclusiva a processos de impugnação judicial e de oposição à execução fiscal e não também a quaisquer outros processos judiciais tributários indicia que se terão em vista neste art. 47º apenas os casos em que, para apreciar a existência de um crime tributário, pode ser necessário apreciar a legalidade da liquidação de um tributo (como pode suceder, por exemplo, no caso dos crimes de frustração de créditos, de fraude e de abuso de confiança, previstos nos arts. 88º, 103º e 105º do RGIT).
Infere-se do regime previsto neste artigo que existe uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional da competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada (art. 212º, nº 3, da CRP) e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais.
Assim, em sintonia com essa opção legislativa, deve entender-se que não se justificará a suspensão de processos tributários de impugnação judicial (ou de oposição à execução fiscal) para aguardar decisões que sejam proferidas em processos criminais sobre factos que relevem para a decisão daqueles processos.
Por outro lado, quando estiver em causa a averiguação de factos que relevem para a fixação da matéria tributável, a formulação de um juízo pelo tribunal tributário não depende da decisão que for proferida em processo criminal sobre a mesma matéria, pois, enquanto no processo penal criminal as dúvidas sobre a matéria de facto são valoradas a favor do arguido, no processo de impugnação judicial, havendo indícios de irregularidade de escrita, o ónus da prova da veracidade desta cabe ao contribuinte (art. 100º, n.º 2, do CPPT).
Para além disso, apesar da maior exigência probatória do processo criminal para dar como provados factos integradores da infracção que é corolário do princípio in dubio pro reo, não existe qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de impugnação judicial às decisões proferidas em processo criminal. Com efeito, o art. 84º do CPP apenas atribui relevância extraprocessual ao caso julgado no caso de decisões penais que apreciam pedidos cíveis e os arts. 674º-A e 674º-B do CPC apenas atribuem a decisões penais feitos em processos de natureza cível e não de natureza tributária.
Sendo assim, independentemente de o tribunal tributário poder e dever aproveitar provas produzidas em processo criminal, não se pode justificar que se aguarde que nesse processo seja proferida decisão com trânsito em julgado, pois nenhuma relevância é legalmente atribuída a este trânsito no processo de impugnação judicial”.
No caso vertente, como se viu, vem imputado ao arguido, em sede da acusação pública oportunamente deduzida pelo Ministério Público, a prática, pelo mesmo, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo Artº 103º, nºs. 1 e 3, do RGIT.
Sustentando-se em tal peça processual, em síntese: que o arguido, como gerente da sociedade “EMP01..., Lda.”, agindo por conta e em representação desta, no decurso do ano de 2010, decidiu deixar de entregar nos cofres da Fazenda Pública (Estado), as quantias em dinheiro correspondentes ao IRC e IVA efetivamente devido pela referida sociedade pelo exercício da sua atividade; que, em execução do plano por si traçado, e por referência aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013, agindo com o propósito de obter a respectiva vantagem patrimonial, bem sabendo e querendo causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou, o arguido não entregou à Administração Fiscal o montante global de € 190.196,15 a título de IRC e IVA a que a sociedade “EMP01...” estava obrigada; que a sociedade “EMP01...”, por intermédio do arguido AA, lesou o erário público da Fazenda Nacional naquele montante ofendendo, desse modo, o regular funcionamento do sistema fiscal e, consequentemente, os interesses de ordem pública que o mesmo deve satisfazer, impedindo assim a realização da justiça fiscal; que, para além disso, o arguido, ao ocultar à Administração Tributária os rendimentos líquidos efetivamente auferidos pela sociedade “EMP01...”, declarando menos rendimentos dos efetivamente auferidos por esta, ofendeu e colocou em crise a verdade e a transparência fiscal e, consequentemente, impediu o Estado Português de concretizar a sua pretensão de lhe ver revelados todos os factos fiscalmente relevantes; e que o arguido agiu voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
De acordo com o disposto no citado Artº 103º, do RGIT:
“1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”.
Em termos sintéticos há que referir que a fraude fiscal visa causar diminuição das receitas tributárias, mediante operação enganosa de ocultação ou alteração de factos a fim de induzir a administração fiscal em erro, sendo o bem jurídico tutelado a verdade e transparência nas relações tributárias.
A conduta que caracteriza a fraude fiscal não é, pois, senão a mesma que caracteriza a burla, sendo os mesmos os elementos essenciais de um e outro crime: comportamento enganoso sobre factos, visando induzir a administração fiscal em erro e causar-lhe prejuízo patrimonial. Trata-se, pois, de um crime de perigo concreto que exige que a conduta do agente seja susceptível de causar diminuição das receitas tributárias - cfr., neste sentido, a Dra. Isabel Marques da Silva, in “Responsabilidade Fiscal Penal Cumulativa”, 2000: Lisboa, pág. 59.
Do ponto de vista objectivo, este ilícito manifesta-se na adopção de condutas que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, tendo o legislador consubstanciado legalmente esses comportamentos nas alíneas a) a c), do Artº 103.º, do R.G.I.T (tipo base ou fundamental deste ilícito penal).
Ocorrendo a fraude fiscal através da ocultação ou alteração de factos ou valores declarados ou que devam ser declarados para efeitos de tributação [alínea a)]; através da ocultação de factos ou valores não declarados em violação da lei fiscal [alínea b)]; por via de um negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas [alínea c)].
A fraude fiscal constitui um crime de resultado.
E consuma-se quando a ocultação ou alteração de factos ou valores tributários saem do domínio do agente e entram na esfera de domínio das autoridades fiscais (porquanto só então se revelam aptos a diminuir as receitas tributárias).
Dá-se, por exemplo, quando o agente entrega a declaração de impostos alterada ou sem os factos ou valores que dela deviam constar, e cria um engano na administração fiscal que permitirá diminuir a sua prestação tributária ou obter benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais passíveis de diminuir as receitas tributárias.
Em termos subjectivos, o crime em causa é essencialmente doloso, podendo consumar-se sob qualquer uma das formas de dolo: directo, necessário ou eventual.
Ora, voltando ao caso sub-judice, resulta do requerimento que o arguido dirigiu aos autos [principais] no dia 02/05/2024, supra aludido em I.4., visando a suspensão do processo criminal, nos termos do disposto no Artº 47º do RGIT, que o mesmo alegou: que, no dia 23 de Maio de 2018 apresentou no Serviço de Finanças ... oposição à execução fiscal ...90 e aps. (Reversão), relativo a IVA dos anos de 2011 a 2014, no valor de € 88.075,59, cujo processo corre seus termos no TAF de Braga com o nº 1754/18...., Unidade Orgânica 3, ainda não transitada em julgado; e que no dia 11 de Abril de 2017 apresentou no mesmo Serviço de Finanças ... oposição às execuções fiscais ...95, ...21 e ...30 (Reversão), relativo aos anos de 2012, 2013 e 2014, no valor de € 232.200,61, cujo processo corre seus termos no TAF de Braga com o nº 910/17...., Unidade Orgânica 2, ainda não transitada em julgado.
Oposições essas que, em síntese, estriba na circunstância de, em seu entender, não ser responsável pelo pagamento das dívidas, dado não estarem reunidos os pressupostos da reversão das dívidas da devedora principal, ou seja, da sociedade “EMP01..., Lda.”, da qual era sócio-gerente, e que presentemente se mostra extinta.
Ora, como decorre das disposições conjugadas dos Artºs. 18º, nº 3, 20º, nº 1, 22º, nºs. 2 e 4, 23º, e 24º, da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, e do Artº 153º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Dec.-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, a “reversão” traduz-se num acto administrativo que acarreta uma modificação subjetiva da instância executiva, ampliando-a, através da intervenção de um terceiro, igualmente sujeito passivo da relação tributária, enquanto responsável, porque vinculado ao cumprimento da prestação tributária.
Tratando-se de uma figura processual privativa do processo executivo tributário, com objectivos e pressupostos próprios, quais sejam os de fazer responsabilizar os devedores fiscais pessoas singulares com responsabilidade subsidiária pelas dívidas fiscais de empresas ou pessoas jurídicas institucionais, com fundamento na fundada insuficiência patrimonial dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários ou dos seus sucessores, no exercício de funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados e na culpa no não pagamento da prestação tributária, bem como na insuficiência patrimonial.
Em suma, por força da reversão, a execução fiscal reverte contra pessoa distinta da que figura no título executivo como devedor, verificando-se quanto a ela, não os pressupostos do facto tributário, mas os da responsabilidade subsidiária, estendendo-se a obrigação de cumprimento da prestação tributária a pessoa diversa do contribuinte direto.
Porém, diferentemente se passam as coisas no processo penal, em que a fonte da responsabilização criminal e civil do(s) arguido(s) e demandado(s) não emerge de uma responsabilidade tributária, mas antes da prática de um facto criminoso, gerador de responsabilidade criminal e civil nos termos gerais, com elementos típicos próprios, que transcendem o incumprimento da obrigação tributária, ainda que o pressuponham.
A responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária são, assim, realidades jurídicas distintas, que surgem, se mantêm e se extinguem de forma independente entre si.
Como claramente sucede na situação em apreço.
Na verdade, dúvidas não há que nos presentes autos [principais] não está em causa nem se averigua a responsabilidade tributária do arguido, mas tão somente a sua responsabilidade criminal, ou seja, a sua conduta para efeitos criminais, enquanto representante legal da sociedade comercial “EMP01...” [cfr. Artº 6º do RGIT], para cujo exercício não se torna necessária qualquer reversão, típica do processo tributário, como se disse.
Neste conspecto, concordamos inteiramente com o Mmº Juiz a quo quando no despacho recorrido refere:
“(...) nos presentes autos a responsabilidade criminal imputada na acusação ao arguido não resulta de qualquer processo de reversão da dívida contra si, mas antes da circunstância de alegadamente ter atuado por forma fraudulenta conforme melhor resulta do douto despacho de acusação.
Assim sendo, não só nos processos de oposição em causa o arguido não colocou em crise o imposto apurado pela autoridade tributária, mas apenas a reversão da divida contra si, como também a sua responsabilidade penal não se funda na referida reversão, o que equivale dizer que o arguido com requerimento apresentado não comprova a existência de qualquer causa prejudicial determinante da suspensão do processo nos termos do aludido art.º 47º RGIT.”.
Assim sendo, não configurando as reversões e as respectivas impugnações deduzidas nas execuções fiscais trazidas à liça pelo arguido e recorrente qualquer questão prejudicial, ou das quais dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objecto do processo que se encontra sob julgamento, sem necessidade de outras considerações, por totalmente despiciendas, concluímos não merecer reparo o despacho recorrido, que se confirma.
Pelo que, não se vislumbrando que tenha sido violada nenhuma das normas legais invocadas pelo recorrente, nem qualquer outra, improcede, in totum, o presente recurso.
III. DISPOSITIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 14 de Janeiro de 2025
Os Juízes Desembargadores:
António Teixeira (Relator)
Pedro Freitas Pinto (1º Adjunto)
Paula Albuquerque (2ª Adjunta)
[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator. [2] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª Edição, pág. 347, e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação obrigatória que ainda hoje mantém actualidade. [3] Dispõe o Artº 7º, nº 1, do C.P.Penal, que “o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.
Neste preceito legal consagra-se o princípio da suficiência da acção penal, “através do qual se visa arredar obstáculos ao exercício do “jus puniendi”, que directa ou indirectamente possam entravar ou paralisar a acção penal; são as exigências, compreensivas e relevantes, da concentração processual ou de continuidade do processo penal - cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/1991, proferido no âmbito do Proc. nº 042001, inwww.dgsi.pt.