TRIBUNAL COMPETENTE
UNIÃO DE FACTO
TRIBUNAL DE FAMÍLIA
Sumário

A competência para preparar e julgar as ações de reconhecimento da união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa cabe aos Juízos de Família a Menores.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Autores: (…) e (…)

Os AA intentaram a presente ação declarativa contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pretendendo obter o reconhecimento judicial da situação de união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa pelo Autor, ao abrigo do disposto no artigo 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.
Os AA foram auscultados relativamente à exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria para tramitação dos presentes autos, adiantando-se que a competência para conhecimento deste processo especial poderá pertencer aos juízos locais cíveis.
Os AA apresentaram-se a sustentar ser competente o Juízo de Família e Menores, assinalando que já tinham instaurado a ação no Juízo Local Cível, que declinou a competência, conforme decisão proferida no âmbito do processo n.º 3082/23.3T8STB.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida decisão julgando procedente a exceção de incompetência em razão da matéria, declarando o Juízo de Família e Menores incompetente em razão da matéria para conhecer da ação, indeferindo liminarmente a petição inicial.
Inconformados, os AA apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue o Juízo de Família e Menores competente para apreciar o litígio. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I) Com o presente recurso visam, os recorrentes, questionar, a aplicação do Art.º 3º, nº 3, da Lei da Nacionalidade pelo douto Juízo a quo para a definição da competência material, sendo a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – Lei de Organização do Sistema Judiciário, LOSJ, a que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário.
II) Nesta conformidade, e salvo o devido respeito, a utilização da Lei da Nacionalidade como fundamento do douto Tribunal para julgar-se materialmente incompetente foi incorreta, visto que o Art.º 122º, nº 1, alínea g), da lei 62/2013 de 26 de Agosto é que determina o Tribunal competente para a presente ação, neste caso o Tribunal a quo, o que é ratificado pelo Art.º 40º da LOSJ e pelos Art.ºs 64º e 65º do CPC.
III) Ora, salvo o devido respeito, não agiu bem a I. Juiz ao declarar o Juízo de Família incompetente concluindo como materialmente competente o Tribunal Cível, o qual (Local Cível de Setúbal - Juiz 1) já se declarou incompetente para conhecer da presente ação.
IV) O entendimento do Tribunal “a quo” limita-se a uma interpretação literal do preceito (cuja redação terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos), desvalorizando as alterações legislativas posteriores ao nível da organização dos tribunais judiciais.
V) A união de facto ou comunhão de vida análoga à dos cônjuges constitui, pois, uma relação jurídica semelhante à das pessoas casadas, regulada na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, e à qual tem sido atribuída natureza família
VI) A ação foi intentada para reconhecimento judicial da situação de união de facto, conforme exigência da Lei da Nacionalidade – Lei n.º 37/81, de 03 de outubro (atualizada por último pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 05 de julho) –, concretamente do artigo 3.º, n.º 3.
VII) Estabelece o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, que os juízos de família e menores são competentes para preparar e julgar “ações relativas ao estado civil das pessoas e família.’’
VIII) Existindo juízos cuja competência especializada é, precisamente, matéria de Direito da Família e dos Menores – sendo isso aquilo que está em causa – , não parece que o legislador tenha excluído, da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º, a união de facto.
IX) Assim, entendem os recorrentes que não só os juízos de família e menores são abstratamente competentes para o conhecimento e apreciação deste tipo de ações – reconhecimento judicial da união de facto –, como, no caso sub judice, havia, e há, um juízo de família e menores concretamente competente: o Juízo de Família e Menores de Setúbal, sito no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
X) Por todo exposto, é entendimento dos ora recorrentes que a união de facto se inclui no âmbito objetivo do conceito de “estado civil das pessoas e da família’’, do artigo 122.º, n.º 1, alínea g, da LOSJ não sendo, assim, uma matéria da competência do juízo cível.
XI) Acrescenta-se que um acórdão muito recente do Supremo Tribunal de Justiça vai neste exato sentido. Trata-se do acórdão de 16 de Novembro passado, onde, designadamente, se pode detetar um outro argumento considerável “o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.” (vide Acórdão STJ, processo n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em dgsi.pt.
XII) Ora, prevendo a LOSJ que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual (artigo 130º, nº1) e cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando a causa (por via da referida alínea g) do nº 1 do artigo 122º) legalmente atribuída a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, surge este Juízo especializado em matéria cível como competente para a julgar.
XIII) A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
XIV) A douta decisão recorrida foi julgada com má interpretação às normas aplicáveis ao caso em concreto, devendo ser revogada, e, em consequência, ser declarado o Juízo de Família e Menores competente, em razão da matéria, para conhecer, apreciar e decidir a presente ação de reconhecimento judicial da união de facto.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se o Juízo de Família e Menores é competente, em razão da matéria, para conhecer da ação.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os acima relatados

B – A questão do Recurso
A competência dos tribunais judiciais, onde se integram as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cfr. arts. 64.º o CPC e 40.º/1 a LOSJ[1]), é determinada segundo as leis de organização judiciária, que especificam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada (cfr. arts. 65.º do CPC e 40.º/2 da LOSJ).
Nos termos do disposto no art. 130.º/1 da LOSJ, os juízos locais cíveis (…) possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada. São dotados da competência residual, portanto.
Relativamente à competência dos Juízos de Família e Menores, o art. 122.º da LOSJ estabelece o seguinte:
1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.
Por se tratar de uma ação destinada a obter o reconhecimento judicial da união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa, importa compaginar tal regime com o disposto no art. 3.º da Lei da Nacionalidade[2], que determina o seguinte:
O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.
Em 1.ª Instância, fazendo apelo à jurisprudência inserta nos Acs. do STJ de 17/06/2021 e de 16/11/2023 (proc. n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 e 546/22.0T8VLG.P1.S1, respetivamente), do TRL de 29/09/2022 (proc. n.º 1832/21.1T8CSC.L1-6), a qual sufraga que o citado art. 3.º consubstancia norma especial que não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário, exarou-se que, perante a redação desse preceito, “não há dúvidas de que o legislador optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis, pelo que dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis não é possível aplicar a regra geral do artigo 122.º, n.º 1, g), da Lei da Organização do Sistema Judiciário.”
Este Tribunal, porém, vem seguindo a orientação contrária, no sentido de que “os juízos de família e menores são materialmente competentes para preparar e julgar as ações em que seja pedido o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa” – Ac. TRE de 09/09/2021, proc. 2394/20, do qual consta, designadamente, o seguinte segmento argumentativo:
“O artigo 3.º, n.º 3, da LN, estabelece, efetivamente, que o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível. Todavia, a LN não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” como sendo o competente para preparar e decidir as ações de reconhecimento da união de facto nos termos por ela exigidos, o citado artigo 3.º, n.º 3, não pretende regular aquela matéria. A sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material dos juízos dos tribunais judiciais é a LOSJ e, na realidade, é aí que aquele o faz, nomeadamente através do disposto no artigo 122.º, que delimita a competência material dos juízos de família e menores. Acresce que não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar ações de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ.”
Cfr. ainda despacho da Presidência do TRE de 12/02/2024, pronunciando-se sobre conflito de competência, proc. n.º 933/23.6T8PTM, onde vem sumariado o seguinte:
I – Perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
II – O artigo 3.º, n.º 3, da LN, não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral (LOFTJ) então vigente, que não atribuía aos já existentes Tribunais de Família e Menores as competências que a LOSJ lhes veio atribuir, mas apenas afastar a competência dos TAF para o processamento e tramitação daquela ação.
III – Alterada a LOSJ (a norma geral de atribuição de competência) e não sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º norma especial, atenta a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, os Juízos de Família e Menores são atualmente os juízos materialmente competentes para preparar e julgar as ações de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa.
Tal entendimento, acolhido, entre muitos outros, nos Acs. TRL de 06/12/2022 (proc. n.º 1163/22.0T8FNC.L1), de 11/12/2018 (proc. n.º 590/18.1T8CSC.L1), de 30/06/2020 (proc. n.º 23445/19.8T8LSB.L1), de 15/12/2020 (proc. n.º 379/20.8T8MFR.L1), de 11/10/2022 (proc. n.º 18030/21.7T8LSB.L1), Acs. TRC de 08/10/2019 (proc. n.º 2998/19.6T8CBR.C1), 23/06/2020 (proc. n.º 610/20.0T8CBR-B.C1), Ac. TRP de 26/04/2021 (proc. n.º 12397/20.1T8PRT.P1), alicerça-se nos argumentos alinhados no Ac. STJ de 16/11/2023 (proc. n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1), que nos dispensamos de reproduzir, implicando na seguinte conclusão sumariada:
I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.
Termos em que se conclui pela competência dos Juízos de Família e Menores, atento o regime inserto no art. 122.º/1 al. g) da LOSJ, resultando no acolhimento das conclusões da alegação do recurso.

Sem custas, por não serem devidas.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, declarando-se os Juízos de Família e Menores competentes para preparar e julgar a presente ação, devendo esta prosseguir os seus regulares termos, se outro fundamento a isso não obstar.
Sem custas.
*
Évora, 30 de janeiro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Ana Margarida Pinheiro Leite
Cristina Dá Mesquita

__________________________________________________
[1] Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
[2] Lei n.º 37/81, de 3 de outubro.