REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
VENDA DE BENS FUTUROS
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Sumário

I - A deficiência da gravação, quando não conduza à nulidade do ato, e não estando em causa qualquer vício de conhecimento oficioso, impede a reapreciação da prova, sendo processualmente irrelevante que o impugnante haja cumprido o ónus previsto no artigo 640 do CPC. Com efeito, o Tribunal da Relação tem de poder (re)apreciar a prova com os mesmos elementos com que a primeira instância a apreciou e isso deixa de ser possível quando a gravação da prova não permita a compreensibilidade de todos os depoimentos prestados.
II - Se o recorrente contratou com a recorrida a venda de azulejos, escolhidos pela segunda do catálogo da primeira (mas ainda, então, inexistentes), fabricados pela vendedora por encomenda da compradora, o contrato de compra e venda é uma venda de bens futuros (prevista no artigo 880 do CC).
III - Uma venda de bens futuros, e não um contrato de empreitada, na medida em que a compradora em nada determinou a fabricação do bem, pois a sua vontade negocial não interferiu no processo criativo.
IV - A transformação da mora em incumprimento definitivo impõe uma interpelação admonitória, com fixação de um prazo suplementar (razoável) perentório, a menos que haja perda do interesse do credor na prestação.
V - No entanto, a perda do interesse na prestação, também em consequência da mora (e que já não depende daquela interpelação admonitória), gerará o incumprimento definitivo, mas apenas se e quando objetivamente verificada/valorada.

Texto Integral

Processo n.º 59425/23.5YIPRT.P1

Relator: José Eusébio Almeida
Adjuntos: Miguel Baldaia de Morais e Eugénia Marinho da Cunha

Acordam, na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto, os Juízes subscritores:

I - Relatório
A..., Lda., deduziu contra B..., Unipessoal, Lda., a 2.06.2023, a presente ação especial para cumprimento de obrigação emergente de transação comercial, pedindo a condenação desta a pagar-lhe o montante de 5.523,35€, acrescido de juros de mora à taxa legal[1], desde o vencimento das faturas ... e ..., de 30.05.23, referentes ao fornecimento de bens, por ter sido mercadoria encomendada e produzida, a aguardar a respetiva entrega.

Para tanto, apresentou o seguinte requerimento de Injunção:
“1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras coisas, a atividades de comercialização de produtos cerâmicos.
2. A Requerida, por seu lado, dedica-se à importação e exportação por grosso ou a retalho de mobiliário e artigos de decoração e iluminação, representações industriais e comerciais, design de interiores e exteriores, indústria e comércio de mobiliário, artigos de decoração e iluminação, organização de feiras e eventos.
3. No âmbito da sua atividade, a Requerente acordou vender à Requerida, a pedido desta, produtos do seu comércio, nomeadamente 168 azulejos com o preço unitário de € 1,22 + IVA, sendo 150 de cor amarela e 18 de cor azul, bem como 700 azulejos com o preço unitário de € 6,22 + IVA, de cor azul, e 88 placas de relevo com o preço unitário de € 15,40 + IVA, também de cor azul, a que acresciam as necessárias despesas de transporte (€ 60,00 + IVA).
4. As encomendas dos bens acima descritos foram efetuadas em nome da gerência da Requerida, com a primeira parte (168 azulejos) a ocorrer em 30.03.2022 e a restante parte em 03.05.2022.
5. Logo no momento de confirmação das encomendas, questionada sobre a data de entrega da mercadoria, a Requerente informou a Requerida de que estava impossibilitada de dar uma data de entrega concreta, ficando de confirmar, logo que possível, a sua melhor previsão para o efeito.
6. Nunca a Requerida transmitiu, nesta fase, a essencialidade de ter a mercadoria na sua posse em determinada data, mais não tendo referido a existência de quaisquer prazos específicos a cumprir por si ou por terceiros no âmbito da eventual empreitada a que o material se destinaria.
7. Ao invés, a Requerida confirmou as encomendas, tendo adjudicado os fornecimentos e procedido à liquidação parcial do valor em dívida, no montante de € 2.099,63, a título de adiantamento.
8. Em 15.06.2022, a Requerente informou imediatamente a Requerida sobre a previsão de entrega que havia obtido, apontando a mesma para o dia 30.07.2022.
9. No final do prazo previsto para entrega, contudo, verificou-se um atraso na mesma, devido à paragem verificada numa das linhas da extrusora, que motivou o atraso na extrusão de lastras para a produção de parte do material encomendado.
10. Prontamente, a Requerente diligenciou no sentido de informar a Requerida sobre o atraso verificado, descrevendo a respetiva causa e tentando minimizar qualquer eventual impacto para esta última.
11. Apenas nesse momento veio a Requerida invocar alegados prejuízos – que, todavia, nunca comprovou –, bem como a possível aplicação de penalidades pelo atraso na entrega.
12. Isto sem prejuízo de a Requerente desconhecer, sem obrigação de saber, quaisquer prazos definidos para a execução dos trabalhos no âmbito de uma qualquer empreitada, nomeadamente aqueles que aparentemente dependeriam dos materiais encomendados, pois em momento algum foi especificado que a encomenda teria de ser entregue em determinado prazo limite, tendo apenas existido a preocupação de saber o seu prazo estimado de entrega.
13. Em 15.09.2022, salientando os constrangimentos ocorridos no tratamento das encomendas, a Requerente voltaria a informar a Requerida das novas datas previstas para entrega dos materiais, solicitando a confirmação dos novos termos expostos.
14. Sendo que a Requerida apenas viria a responder a essa solicitação 12 dias mais tarde, em 27.09.2022, o que causou nova demora nas datas previstas para entrega dos materiais.
15. Não obstante, nessa sua comunicação, a Requerida confirmou o seu interesse em manter a encomenda, justificando a demora na resposta com a dificuldade de comunicação com o seu cliente para essa confirmação, solicitando uma atualização das datas previstas para entrega para poder efetuar o seu planeamento final.
16. Ou seja, a Requerida nunca comunicou à Requerente o cancelamento da encomenda (nem mesmo por parte do cliente final), antes tendo confirmado que pretendia manter a mesma e receber os materiais em questão.
17. Nesse sentido, após a produção do material em questão, a Requerente comunicou o facto à Requerida em 03.11.2022, remetendo a respetiva fatura e solicitando a indicação de morada para entrega da mercadoria.
18. Comunicação à qual a Requerida nunca viria a responder, esquivando-se de todo e qualquer contacto posterior da Requerente.
19. Era do perfeito conhecimento da Requerida que a encomenda já se encontrava em fase de conclusão, nos termos previamente confirmados.
20. A Requerente voltaria a tentar contactar a Requerida dando conta do sucedido, mais informando que a entrega da mercadoria aguardaria o prévio pagamento do valor em dívida, atento o súbito desaparecimento da Requerida.
21. A Requerida, contudo, ignorou todas as tentativas de contacto da Requerente desde então, sendo que a mercadoria ainda se encontra a aguardar pela respetiva entrega na presente data.
22. As encomendas em questão deram origem às faturas no ..., no valor de € 252,10, vencida a 30.05.2022, e FT ..., no valor de € 7.096,12, vencida a 31.10.2022.
23. Apresentadas a pagamento, as mesmas não foram liquidadas (na sua totalidade) nem na data do seu vencimento, nem em momento posterior, tendo a Requerida entrado em incumprimento.
24. Tendo em conta o incumprimento do pagamento pela Requerida, a Requerente procedeu a diversas tentativas de interpelação (escritas e telefónicas) da mesma para pagamento do capital em dívida e entrega da mercadoria, tendo os contactos passado a desenvolver-se através de mandatários constituídos para o efeito, a partir de dezembro de 2022.
25. Contudo, volvidos mais de 6 meses desde a data de conclusão da encomenda, a Requerida permanece sem liquidar os montantes em dívida e sem fornecer qualquer justificação válida para o efeito, quando sabe perfeitamente que confirmou a encomenda e aceitou os atrasos lamentavelmente registados.
26. Neste caso, a Requerente tomou as diligências ao seu alcance para minorar os riscos de eventual atraso na entrega da mercadoria, precisamente por antever a problemática oportunamente transmitida.
27. Contudo, e como é do conhecimento público, os efeitos da crise pandémica e da atual conjuntura inflacionista vieram causar constrangimentos severos nos mercados industriais, aos quais a indústria cerâmica não é alheia, com reflexos no aumento dos respetivos custos e, sobretudo, com inúmeros atrasos na produção e entrega de mercadorias.
28. E, por isso, a Requerente não aceita a imputação de quaisquer responsabilidades no que toca ao atraso da encomenda, uma vez que, nos diversos contactos mantidos com a Requerida, sempre foi alertando para esta possibilidade, além de a Requerida ter confirmado o seu interesse em manter a encomenda mesmo após os atrasos registados.
29. Nunca tinham sido oportunamente indicados pela Requerida quaisquer compromissos assumidos com terceiros, no sentido de que o eventual incumprimento de um qualquer prazo de entrega poderia acarretar prejuízos ou, inclusivamente, o cancelamento da encomenda, pelo que a Requerente não estava ciente dessa circunstância.
30. Razão pela qual a Requerente vem peticionar o pagamento do capital em dívida, no montante de € 5.248,59 (cinco mil duzentos e quarenta e oito euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento”.

A requerida deduziu Oposição. Sustentou que que o contrato “celebrado entre a Requerente e a Requerida, impunha condicionalismos rígidos com vista na obtenção de um resultado (execução de contrato de empreitada entre a Requerida e consumidor final), o qual não se verificou, por culpa única e exclusiva da Requerente”. A requerente
não cumpriu o contrato, o que determinou o seu “incumprimento definitivo”, pelo que nada é devido. A requerida solicita que o tribunal declare “a resolução do contrato, nos termos do artigo 801.º n.º 2 e 802.º n.º 1 do Código Civil”, mas, sem prescindir, sustenta que o contrato tinha por objeto a venda de azulejos para colocação em estabelecimento comercial de restauração em Ibiza; que “comunicou objetiva e expressamente a urgência da receção da encomenda”, aceitando pagar 30% do preço. A requerente indicou um prazo de 6/8 semanas para a execução dos trabalhos e o dia 30 de julho para a entrega, data que protelou, não entregando o trabalho a 30 de setembro ou 7 de outubro e, por isso, a oponente resolveu o contrato e não aceitou as faturas.

Foi designada a audiência final e fixado o valor da causa [5.523,35€]. Uma vez produzida a prova, foi proferida a sentença recorrida, que julgou totalmente improcedente o pedido.

II – Do Recurso
Inconformada, a autora veio apelar. Pretende a revogação “da decisão recorrida, substituindo-se os identificados trechos da matéria dada como provada e não provada em conformidade com o exposto, mas sempre se concluindo pela condenação da Ré/Recorrida no pedido formulado”. Para tanto, Conclui:
(…)

A ré, sustentando a improcedência da apelação, respondeu e concluiu:
(…)

O recurso foi recebido nos termos legais e, na mesma ocasião, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade processual que lhe foi arguida [Sem prejuízo do exposto, como questão prévia, tendo sido notificada da disponibilização das gravações da audiência de julgamento em 17.06.2024 e após audição das mesmas, vem a Recorrente invocar a deficiência da gravação ao abrigo do disposto no artigo 155.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, particularmente no que toca à gravação dos depoimentos das testemunhas ouvidas por videoconferência, que se revela manifestamente inaudível e quase impossibilitou a interposição de recurso. A omissão ou deficiência da gravação configura uma nulidade processual, porquanto está em causa a omissão de uma formalidade prescrita por lei (cfr. artigo 195.º do CPC), pelo que se requer a declaração da mesma para todos os efeitos legais] tendo decidido: “(...) Nos presentes autos, a produção de prova ocorreu em 16 de janeiro de 2024, 14 de março de 2024 e 18 de abril de 2024, conforme decorre das atas constantes do processo. Além disso, conforme decorre do termo que antecede, o autor apenas em 11 de junho de 2024 requereu a disponibilização das gravações, tendo as mesmas sido disponibilizadas ao autor em 12 de junho de 2024, tendo o autor arguido a nulidade da gravação em 24 de junho. O artigo 155.º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte: (...) “3 - A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato. 4 - A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada. (...)”. Verifica-se assim que a secretaria não disponibilizou às partes as gravações nos dois dias a contar de cada um dos atos de produção de prova. E, nesse caso, a parte tinha o ónus de colocar a questão ao juiz, contando-se então o prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação seja posta ao dispor das partes pela secretaria. No caso, as gravações tiveram lugar, como vimos, nos dias,16 de Janeiro de 2024, 14 de Março de 2024 e 18 de Abril de 2024, pelo que o prazo para o Autor suscitar a nulidade da deficiência da gravação iniciou-se, respetivamente, em 18 de janeiro de 2024, 16 de março de 2024 e 20 de abril de 2024, e tiveram o seu termo em 28 de janeiro de 2024, 26 de março de 2024 e 28 de abril de 2024. O autor não requereu nos autos, oportunamente, a dilação de tal prazo por efeito do incumprimento do prazo de dois dias para a secretaria disponibilizar a gravação às partes. A arguição da nulidade das gravações, em 24 de junho de 2024, aquando da apresentação das alegações, afigura-se-nos como intempestiva, pelo que se indefere a nulidade”.

Os autos correram Vistos e nada obsta à apreciação do objeto do recurso, o qual se traduz, atentas as conclusões da apelante, em saber se deve ser reapreciada a prova e alterada a decisão relativa à matéria de facto e se, por força dessa alteração ou independentemente dela, a sentença deve ser revogada, por não haver incumprimento definitivo por parte da recorrente, e ser devido o pagamento do preço, por esta reclamado à recorrida.

III – Fundamentação
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Veio a apelante pretender a alteração da decisão relativa à matéria de facto, relativamente aos pontos que considera indevidamente apreciados.

A impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe, além da sua concretizada definição em sede de objeto do recurso, ou seja, em sede de conclusões, o cumprimento do ónus previsto no artigo 640 do Código de Processo Civil, desde logo, a especificação, na motivação, dos meios de prova que implicam decisão diversa; a indicação precisa, na motivação, das passagens das gravações, quando esteja em causa prova gravada e a decisão que “deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos” [António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição Atualizada, Almedina, 2024, págs. 228/229].

No caso presente, não podemos concluir pelo incumprimento do referido ónus por parte da impugnante/apelante; no entanto, é outra a questão que inviabiliza a possibilidade de reapreciação da prova em sede de recurso. Vejamos.

Como decorre dos autos, e se deixou relatado, a apelante invocou, perante o tribunal recorrido – como deve ser - a nulidade decorre da deficiente gravação da prova, chegando a sustentar que a prova produzida por videoconferência se mostra inaudível e quase inviabilizava o recurso. O tribunal recorrido – pelas acertadas razões que já transcrevemos, atinentes à intempestividade da arguição da nulidade – não deferiu essa arguição, não se vendo, porém, que a apelante tenha impugnado esta decisão[2].
Certo é que no recurso, concretamente nas suas conclusões, a recorrente – certamente por entender que, ainda assim, ou seja, não obstante a deficiência que invocara, poderia/conseguiria impugnar validamente a decisão relativa à matéria de facto – além do mais, remete para diversos depoimentos e deixa de referir a deficiência que, antes, considerou existente.

Ora, se a deficiência das gravações permitiu a elaboração do recurso e, nele, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, já não permite a reapreciação da prova neste tribunal de recurso.

Verificámos, efetivamente, que a testemunha AA [Ficheiro n.º 20240418112230] tem partes do seu depoimento quer se mostram impercetíveis, desde logo aos minutos 3,00; 8,30; 17,00 e 20,30. Já o depoimento da testemunha BB [Ficheiro n.º 20240314120427] bem como o depoimento de CC [Ficheiro n.º 20240314112330] são indubitável e genericamente impercetíveis: ouvem-se as perguntas e as afirmações do tribunal e dos mandatários, mas não se percebem as respostas ou afirmações da testemunha e do depoente.

No acórdão desta mesma Secção de 5.06.2023 [Processo n.º 634/17.4T8FLG-C.P1, Relatora, Desembargadora Fátima Andrade, dgsi] deixou-se sumariado, além do mais: “I - A arguição de nulidade da gravação (artigo 155º nº 4 do CPC) deve ser feita perante o tribunal a quo e no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes daquela. (...) IV - Sendo imprescindível à reapreciação da decisão de facto em sede de recurso a audibilidade da gravação da prova produzida em audiência, a exigência imposta sobre as partes de controlar a sua qualidade no prazo previsto no artigo 155º nº 4 do CPC – e nada mais é exigido nesta altura, nos termos acima assinalados - nada tem de excessivo ou desproporcional, sequer prejudica o direito das partes ao recurso, sobre o qual legitimamente decidirão após o conhecimento da decisão”. No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.11.2023 [Processo n.º 313/19.8T8PVL.G1, Relatora, Desembargadora Alexandra Rolim Mendes, dgsi], por sua vez, ficou sumariado: “(...) recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade. Não o fazendo, violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício. Pedida pelos recorrentes a reapreciação da matéria da prova gravada e sendo impercetível ou inaudível um ou mais dos depoimentos prestados em julgamento, tal reapreciação não poderá ocorrer, uma vez que a mesma tem de ser feita com recurso a toda prova disponível e, nomeadamente, a todos os depoimentos em que foram abordados factos abrangidos na matéria impugnada e não apenas aos depoimentos indicados pelo recorrente”. Por último, acrescentamos que no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.10.2019 [Processo n.º 2243/18.1T8STR.E1, Relatora, Desembargadora Ana Margarida Leite, dgsi] se sumariou: “(...) Tendo a Relação constatado que a gravação do depoimento prestado por determinada testemunha enferma de deficiências que o tornam impercetível e tratando-se de elemento probatório essencial para a apreciação da impugnação da decisão de facto, não dispõe a Relação de todos os elementos probatórios de que dispôs a 1.ª instância, pelo que se encontra impossibilitada de proceder à reapreciação da prova produzida, o que impede o conhecimento da impugnação da decisão de facto”.

Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 12.10.2022 [Processo n.º 171/21.2T8PNF .P1.S1, Relator, Conselheiro Ramalho Pinto, dgsi] deixou claro que “As deficiências na gravação da prova que inviabilizem o cumprimento da sua razão de existir – o duplo grau de jurisdição em matéria de facto - devem ser arguidas, em 1.ª instância, no prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo, não constituindo as alegações de recurso o meio processualmente idóneo para esse efeito”.

É certo que no acórdão de 31.03.2022, também do Supremo Tribunal de Justiça [Processo n.º 2450/18.7T8VRL.G1.S1, Relator, Conselheiro Oliveira Abreu, dgsi] foi admitido o conhecimento oficioso da nulidade decorrente da deficiente gravação [II. Não obstante a gravação deficiente não seja, em regra, um vício de conhecimento oficioso, impõe-se que quando haja necessidade de recorrer à prova gravada para sanação de um vício de conhecimento oficioso, necessariamente tal vício será também de conhecimento oficioso], mas apenas quando estivesse em causa um vício da matéria de facto, também de conhecimento oficioso, o que não é o caso presente.

Em suma, e tal como decorre das transcrições que antecedem, a deficiência da gravação, não conduzindo à nulidade do ato e não estando em causa vício de conhecimento oficioso, impede a reapreciação da prova, sendo processualmente irrelevante que o impugnante haja cumprido o ónus previsto no artigo 640 do CPC: o Tribunal da Relação tem de poder (re)apreciar o que a primeira instância apreciou e isso deixa de ser material e intelectualmente possível quando a gravação da prova não permita a compreensibilidade de todos os depoimentos prestados.

Em conclusão, mantemos a matéria de facto fixada em primeira instância, por impossibilidade de reapreciação da prova na sua globalidade.

Não obstante a conclusão anterior, a matéria de facto, quando (apenas) remete para documentos, que dá por reproduzidos, carece de preenchimento. Com efeito, os documentos não são factos/prova, mas meios de prova (artigos 341 e 362 do Código Civil – CC) e, por outro lado, a sentença deve valer (e ser inteligível) por si mesma, sem necessidade de consulta de outros elementos existentes nos autos. Diga-se, ainda, que nenhuma norma permite que se substituam, na decisão da matéria de facto, factos por meios de prova, mesmo que se acrescente – o que vem sendo frequente – “para todos os efeitos legais”.

Assim, em substituição da primeira instância, faremos referência ao conteúdo dos documentos para os quais se remeteu na decisão relativa à matéria de facto.

III.I - Fundamentos de Facto
Factos Provados
1 - A requerente é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras coisas, à atividade de comercialização de produtos cerâmicos.
2 - A requerida dedica-se à importação e exportação por grosso ou a retalho de mobiliário e artigos de decoração e iluminação, representações industriais e comerciais, design de interiores e exteriores, indústria e comércio de mobiliário, artigos de decoração e iluminação, organização de feiras e eventos.
3 - No âmbito da sua atividade, a requerente acordou vender à requerida, a pedido desta, produtos do seu comércio para colocação em estabelecimento comercial de restauração em Ibiza – Espanha, cliente da requerida: - 168 azulejos com o preço unitário de 1,22€ + IVA, dos quais, 150 de cor amarela e 18 de cor azul - ..., no valor de 252,10€, vencida a 30.05.2022; e - 700 azulejos com o preço unitário de 6,22€ + IVA, de cor azul, e 88 placas de relevo com o preço unitário de 15,40€ + IVA, também de cor azul, a que acresciam as necessárias despesas de transporte (60,00€ + IVA) - ..., no valor de 7.096,12€, vencida a 31.10.2022.
4 - As encomendas dos bens descritos em 3. foram efetuadas em nome da requerida, com a primeira parte (168 azulejos) a ocorrer em 30.03.2022 e a restante parte em 03.05.2022.
5 - A requerida confirmou as encomendas, tendo adjudicado os fornecimentos e procedido à liquidação parcial do valor em dívida, no montante de 2.099,63€, correspondente a 30% do valor total da adjudicação.
6 - Na data da adjudicação, a requerida comunicou objetiva e expressamente a urgência da receção da encomenda, conforme e-mail enviado em 28 de março de 2022 junto e cujo seu conteúdo se dá por integralmente reproduzido [O email de 28 de março é do seguinte teor: “Assunto – Pedido orçamento Projeto DD. Após escolha do DD dos azulejos para mais um seu projeto, venho por este meio pedir que me envie o orçamento para fornecimento de: - Azulejo Azul com uma pena no meio (foi assim que o DD se referiu) – 20m2; - Azulejo Amarelo de 14 x 14 cms – 38/m2. Temos urgência na sua receção, por isso pedia p.f. que fizesse o maior esforço possível de os recebermos o quanto antes. Indique p.f. no orçamento o vosso melhor prazo de entrega. Fico a aguardar a sua resposta e em caso de dúvida não hesite em me contactar”].
7 - A 22 de abril de 2022, a requerente indicou o prazo de 6/8 semanas para a produção e entrega da encomenda, conforme e-mail enviado e junto e cujo seu conteúdo se dá por integralmente reproduzido [O email em causa é de 26 de abril de 2022 e refere: “Envio em anexo foto dos azulejos que temos em stock, os azulejos da foto 1 e 2 são parecidos, mas não perfazem 1000un, o da foto 3 a cor é diferente. Se avançarmos com uma produção para as 1900un o prazo será de 6/8semanas”. A requerida responde por email de 27 de abril do mesmo ano, onde refere “que se avance com a produção em série das 1900 unidades”. E, a 3 de maio seguinte, em novo e-mail da requerente (depois de, no mesmo dia, a requerida, por e-mail, referir “confirmo a encomenda”) refere-se: “Em resposta ao seu e-mail, junto se envia a nossa fatura proforma nº ... (...) Previsão de entrega: A confirmar. Transporte: Não incluído”. A 4 de maio a requerida, por e-mail pede: “Indique-me assim que possível o melhor prazo de entrega” e a 6 de maio, por e-mail, a autora responde: “Penso que durante a próxima semana consigo lhe dar o prazo”].
8 - E, a 15 de junho de 2022, via e-mail, a requerente indicou o dia 30 de julho de 2022 [Na sequência do e-mail da ré, de 14 de junho, onde se escreveu: “necessito p.f. de saber com urgência a data de entrega para as restantes referências de azulejos que ainda nos falta receber”]. para previsão da entrega do material, conforme e-mail junto sob doc. 2 e 27 dos autos cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
9 - No final do prazo previsto para entrega indicado em 8)., contudo, verificou-se um atraso na mesma, devido à paragem verificada numa das linhas da extrusora, que motivou o atraso na extrusão de lastras para a produção de parte do material encomendado.
10 - Em 2 de agosto de 2022, por e-mail, a requerente informou a requerida sobre o atraso verificado, descrevendo a respetiva causa e tentando minimizar qualquer eventual impacto, indicou como nova data de entrega 23 de agosto de 2022 [Refere-se nesse e-mail de 2 de agosto: “estamos a fazer o possível para recuperar o atraso ocorrido. Data estimada de entrega em armazém 23/08”].
11 - Em 15.09.2022, salientando os constrangimentos ocorridos no tratamento das encomendas, a requerente voltaria a informar a requerida das novas datas previstas para entrega dos materiais, 30 de setembro e 7 de outubro, de acordo com as características dos azulejos, solicitando a confirmação dos novos termos expostos.
12 - A requerida respondeu ao indicado em 11., em 27.09.2022, nos termos que aqui se dão por integralmente por reproduzidos [Email de 27 de setembro: “Na sequência do vosso e-mail anterior, queria confirmar que mantemos a encomenda como inicialmente tinha sido pedida, de acordo com a proforma anexada. A demora na resposta ao e-mail prende-se com dificuldades que temos tido em contactar o nosso cliente e, por isso, gostaria de pedir que atualizassem as datas de entrega o mais brevemente possível, de maneira a avançar com o planeamento da entrega final”. O e-mail (da autora) referido como anterior – facto provado 11 –, datado de 15 de setembro de 2022, era do seguinte teor: “(...) Assim, e como combinado, informo melhores datas de entrega: Azulejos ...: 30/09. Se optarem por fazer toda a encomenda com azulejos ... (alto e baixo relevo) ESQUERDOS: 30/09 ou se optarem por manter a encomenda de azulejos ... (alto e baixo relevo) ESQUERDOS E DIREITOS: 07/10. Ficamos na expectativa da V. decisão. E apresentamos mais uma vez as nossas desculpas pelos atrasos”].
13 - Não obstante, nessa sua comunicação, a requerida confirmou o seu interesse em manter a encomenda, justificando a demora na resposta com a dificuldade de comunicação com o seu cliente para essa confirmação, solicitando uma atualização das datas previstas para entrega para poder efetuar o seu planeamento final.
14 - A encomenda não foi entregue, assim como não foi nas datas indicadas pela requerente a 30 de setembro de 2022 e 07 de outubro de 2022.
15 - A requerente comunicou ter a produção concluída para entregar à requerida em 03.11.2022, remetendo a respetiva fatura solicitando a indicação de morada para entrega da mercadoria.
16 - A requerida não aceitou as faturas ... no valor de 7.096,12€ e FN22N/337 no valor de 252,10€, respondendo para o efeito via postal, conforme doc. 3 que aqui se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Mais resultou provado que:
17 - Por email, no dia 3 de agosto de 2022, a requerida em resposta ao email referido em 10., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, referindo, em síntese que a previsão de entrega para 30 de julho determinou que tivesse sido marcado o transporte e a montagem com a equipa e cliente para 5 de agosto, com a indicação dos custos suportados [E-mail onde igualmente refere: “Ainda, a nova data de entrega que nos deram, coincide com o nosso período para férias, empurrando a instalação do artigo ainda mais para a frente e, em consequência, contribuindo para a insatisfação do nosso cliente”].
18 - No email de 8 de agosto, a requerida comunica à requerente a cobrança de uma penalização, por parte do cliente.
19 - A 5 de setembro, a requerida insiste na indicação de uma data de entrega e no carácter urgente da entrega, pedindo prioridade [E-mail de 5 de setembro: “Solicitamos encarecidamente uma data de entrega da encomenda. Para além da penalização, sofremos agora com a ameaça jurídica e a impossibilidade de entrar em obra. Por favor, deem prioridade a este caso, é URGENTE”].

Factos Não Provados:
Designadamente:
- requerimento injuntivo: 5, 6, 11, 12, 16, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29[3].
- oposição: 21 [“Tal facto determinou graves prejuízos e lucros cessantes para a Requerida pelo que esta nada deve à Requerente”].

III.II - Fundamentação de Direito:
A sentença recorrida, em síntese, julgou improcedente a ação com a seguinte fundamentação: “Os factos são integráveis no âmbito do contrato tipificado de compra e venda não obstante as especificidades das peças a produzir de modo artesanal pela requerente uma vez que as mesmas estavam destinadas a um único projeto e faziam parte de uma única e pontual encomenda. (...) Este contrato nominado encontra-se regulado no artigo 874 e seguintes do Código Civil, embora, assuma uma qualificação comercial, nomeadamente, nos artigos 463 e seguintes do Código Comercial. (...) tendo em conta que o ónus da prova recai sobre o vendedor da coisa que tem que fazer prova da existência de um acordo entre as partes, o vendedor que pretende vender uma determinada coisa mediante um preço e um comprador que pretende adquirir aquela coisa e a efetiva entrega da coisa objeto daquele contrato que, no caso concreto, nunca logrou ficar demonstrada atentas as contingências e vicissitudes que determinaram sucessivas alterações dos prazos previstos indicados e, por se estar no âmbito da responsabilidade contratual e, tendo em conta a presunção legal prevista no artigo 799, n.º 1 do CCivil, em termos objetivos somos de concluir que o incumprimento da obrigação – no caso de produtos prontos para a sua entrega – ocorreu por culpa da requerente que não foi diligente pela pontualidade no cumprimento da sua obrigação na indicação dos prazos de entrega acordados visto que não logrou produzir a necessária e suficiente prova que permitisse a este Tribunal que a mesma foi diligente e que as causas primeiramente dos atrasos e, posteriormente, do incumprimento definitivo não lhe são imputáveis. Aliás, sempre podemos concluir que apesar da mora em que incorreu (artigo 804, n.º 2 CCivil), verificada entre 30 de Julho e 7 de Outubro, tendo em conta que a requerente sabia da essencialidade do cumprimento do prazo para a execução do projeto de decoração, mesmo durante todo esse período temporal a requerida demonstrou e manteve interesse na entrega dos azulejos apesar de ter reiterado sempre a sua urgência no recebimento da mercadoria. A impossibilidade definitiva de cumprimento gerada após essa data é exclusivamente por culpa da requerente uma vez que o processo de produção (fabrico) artesanal dos azulejos ainda não estava concluído logo temos que concluir que a requerente não cumpriu com a obrigação a que estava contratualmente vinculada, nos termos do disposto nos artigos 405, 406, 762, 763, 777, 790, 795, n.º 1 e 801, 804, 805, n.º 1 e 2, al. a), 807, e 808 todos do CCivil. Logo, não tendo a requerida cumprido com o prazo previsto de entrega do material faturado e, nessa sequência, mostrando-se verificado que o incumprimento lhe é imputável, não pode exigir que a requerida fique com a mercadoria e pague as faturas, por perda de interesse objetivo na efetivação da mesma”.

Apreciemos.

Entende a sentença, se bem vemos, que o contrato celebrado entre as partes é um contrato de compra e venda e, especificamente, um contrato de compra e venda comercial.

No entanto, olhando aos factos – e tal como decorre, desde logo, da troca de emails entre os contraentes – não nos parece que assim seja, desde logo porque o objeto material da compra e venda não foi (previamente) comprado pela autora para revenda, mas, mais relevante, não foi comprado pela ré para revenda: pode afirmar-se, com adquirida certeza, que os azulejos foram comprados para colocação pela ré numa obra, ou seja, como, aliás, a mesma afirma logo na sua Oposição, para execução de uma empreitada.

Por isso, não estamos perante um contrato de compra e venda comercial ainda que estejamos, de acordo com o disposto nos artigos 230 e 2.º, 2.ª parte, do Código Comercial, perante “atos e contratos de comércio” [Filipe Cassiano dos Santos, Direito Comercial Português, Volume I, Coimbra Editora, 2007, pág. 369].

Sempre se diga que a qualificação comercial ou civil do contrato de compra e venda não acarretaria qualquer divergência na apreciação jurídica da causa[4], atendendo aos termos em que a mesma vem formulada.

Mas vejamos mais atentamente. A recorrente contratou com a ré a venda de azulejos, escolhidos pela segunda do catálogo da primeira. Azulejos de “qualidade superior”, fabricados pela autora por encomenda do compradora. Azulejos, acrescente-se (ainda) inexistentes ao tempo da encomenda, ou seja, (ainda) a fabricar.

Perante esta realidade, o contrato de compra e venda aqui em causa é uma venda de bens futuros, prevista no artigo 880 do CC. Segundo este normativo, “1. Na venda de bens futuros, de frutos pendentes ou de partes componentes ou integrantes de uma coisa, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato. 2. Se as partes atribuírem ao contrato carácter aleatório, é devido o preço, ainda que a transmissão dos bens não chegue a verificar-se”.

Efetivamente, e como se referiu, “aqueles” azulejos (ainda) não existiam, aquando da celebração do contrato, ou seja, eram “coisas futuras (...) que não estão no poder do disponente ao tempo da declaração negocial” [Fernando Baptista de Oliveira – com a colaboração de Alexandre Norinho de Oliveira – Contratos Privados, Das Noções à Prática Judicial, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2015, pág. 745]. Como bem exemplifica Pedro Romano Martinez [Direito das Obrigações (Parte Especial), 2.ª Edição, 4.ª Reimpressão, Almedina, 2010, pág. 61], a propósito dos bens absolutamente futuros[5], ou seja dos que “não têm ainda existência material”, tal ocorre, “mormente, em relação a bens que ainda não se criaram ou que vão ser construídos. Imagine-se que alguém vende uma mesa que vai fazer ou um quadro que vai pintar; a coisa ainda não tem existência (in rerum natura), mas a compra e venda pode ser ajustada”.

Uma venda de bens futuros, dizíamos, e não uma (contrato de) empreitada, muito embora os dois tipos negociais se confundam, amiúde.

A este propósito, Pedro Romano Martinez [“Compra e venda e empreitada”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume III, Coimbra Editora, 2007, págs. 235/263, a pág. 238] diz-nos que “há a ter em conta que, na compra e venda – em especial de coisa futura -, a iniciativa e o plano do objeto a executar cabem ao que constrói ou fabrica a coisa, enquanto o empreiteiro realiza uma obra que lhe é encomendada, devendo executá-la segundo as diretrizes e fiscalização daquele que lha encarregou”. Por sua vez, e em sentido semelhante, João Cura Mariano [Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 7.ª edição Revista e Aumentada, Almedina, 2020, págs. 38/39 e nota 69, a págs. 39/40] dando nota de diversas decisões jurisprudenciais que qualificam o contrato como contrato de empreitada ou como contrato de compra e venda, escreve: “Assim, o contrato pelo qual se acorda na realização de uma obra, fornecendo o realizador desta os materiais necessários para a sua efetivação, é um contrato de empreitada (...). Mas é evidente que já estaremos perante a venda de bens futuros e não perante um contrato de empreitada, nos casos em que quem encomenda a coisa ainda por fabricar não determina em nada a sua composição, não interferindo minimamente a sua vontade negocial no seu processo criativo, como sucede quando se encomendam bens fabricados em série ou com base em amostra ou catálogo”.

Concluímos, pois, que as partes celebraram um contrato de compra e venda, mais especificamente uma venda de bens futuros.

O contrato de compra e venda subsume-se à previsão do artigo 874 do CC, que nos fornece a sua noção, e salienta os seus elementos essenciais: - a transmissão da propriedade de uma coisa, ou outro direito e – a existência de um preço. Já o artigo 879 do mesmo diploma legal esclarece os efeitos jurídicos deste tipo negocial: - transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; a obrigação de entrega da coisa e – a obrigação de pagar o preço.

Como se sabe o contrato de compra e venda – e dizemo-lo, agora, em sentido genérico - produz diversos efeitos essenciais, o primeiro dos quais é o efeito real de transferência da titularidade do direito de propriedade da coisa ou do direito vendido. Trata-se, pois, de um contrato de eficácia real, em que a transferência da propriedade da coisa vendida resulta diretamente do próprio contrato, na medida em que a referida transmissão não depende de qualquer ato translativo posterior ao contrato[6].

A eficácia real do contrato de compra e venda decorre dos citados artigos 879, alínea a) e 874 do CC e não é contrariada pela previsão de exceções na parte final do n.º 1 do artigo 408 do mesmo Código, segundo o qual, “salvas as exceções previstas na lei”, “A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato”.

Não sendo de admitir, segundo o que nos parece ser o entendimento maioritário, “situações de compra e venda com simples eficácia obrigacional” [Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Volume I – 3.ª Edição, Almedina, 2024, pág. 105], a compra e venda tem sempre eficácia real.

Tem sempre eficácia real, mesmo quando se trata de venda de coisas futuras. Como nos esclarece o autor acabado de citar[7], “Na venda de coisa ou bem futuro a transmissão da propriedade ou titularidade ocorre apenas quando a coisa for adquirida pelo alienante (artigo 408.º/2[8] do Código Civil). O vendedor fica, tão-só, obrigado a desenvolver as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos (artigo 880.º/1 do Código Civil). Ele não necessita de praticar nenhum ato translativo da propriedade. Uma vez adquiridos os bens a respetiva transferência ocorre por simples efeito do contrato” e logo acrescenta: “Bem andou, destarte, o STJ 09-10-2003 (LUCAS COELHO): a especificidade da compra e venda de coisas futuras reside na circunstância de a transferência, operando ainda por efeito do contrato, ser diferida para o momento da aquisição da coisa para o alienante” (sublinhado nosso). Mário Júlio de Almeida Costa [Direito das Obrigações, 12.ª Edição, 7.ª Reimpressão, Almedina, 2019, pág. 289] expressa a mesma opinião: “os contratos que impliquem a constituição ou transmissão de direitos reais sobre coisas certas e determinadas produzem, em regra, por si mesmos, essa consequência – quer dizer, como exclusivo resultado do consenso das partes validamente manifestado e no próprio instante da celebração-, sem necessidade de qualquer ato posterior. Todavia, sempre que se trate de coisa futura ou indeterminada, a constituição ou transferência do direito, embora se opere, ainda, por efeito do contrato, não se verifica no exato momento deste, mas, apenas, quando a coisa futura seja adquirida pelo alienante ou a coisa indeterminada se torne determinada com o conhecimento de ambas as partes”[9] (sublinhado nosso).

Assente-se, pois, que o contrato aqui em causa, contrato de compra e venda de coisa futura (azulejos a fabricar), mas esperada (e não aleatória – 880, n.º 2 do CC[10][11]) é um contrato com eficácia real em que a transmissão do bem vendido não é imediata. A sua natureza tem obtido respostas doutrinais diversas: “- a teoria da venda de objeto aleatório; - a teoria da venda condicionada; a teoria da prestação de serviço; a teoria da venda incompleta” [António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XI, Contratos em Especial (1.ª Parte), Almedina, 2018, págs. 122/123], mas parece-nos, acompanhando Nuno Manuel Pinto Oliveira [Contrato de Compra e Venda, Vol. II, GestLegal, 2023, pág. 138/141] que “Esclarecido que o conceito de negócio jurídico e, dentro do conceito de negócio jurídico, o conceito de elementos essenciais do negócio não opõe nenhum obstáculo à construção da venda de bens futuros como venda sob condição suspensiva (...) ainda que só parcialmente suspensiva, [que] é compatível com a construção como venda com eficácia (meramente) obrigacional, dominante na doutrina e na jurisprudência italianas, e com a construção como venda com eficácia real diferida, dominante na doutrina e na jurisprudência portuguesas”, devendo “dar-se preferência à construção da venda de coisas esperadas como venda com eficácia real, ainda que com eficácia real diferida[12].

Independentemente da construção dogmática mais pertinente, entendemos que se está – e sem nos querermos repetir em demasia – perante um compra e venda de bens futuros, de eficácia diferida, pois a transmissão do bem só ocorre em momento posterior ao contrato, uma vez adquirido (fabricado) pelo alienante, o qual, por força disso, se obriga, em execução do contrato, a desenvolver as diligências necessárias à aquisição do bem pelo comprador.

A natureza do tipo negocial e a imediata obrigação (de diligência) do vendedor indicam-nos, num juízo de normalidade, que o contrato não terá um prazo[13] certo fixado[14] (afinal, a coisa, ainda inexistente, pode nunca vir a existir ou a, pelo menos, revelar-se materialmente difícil a sua existência), tal como sucedeu no caso em apreço, e não pode deixar de ser considerado na apreciação do pleito.

Vejamos, agora, topicamente, os factos relevantes à apreciação da causa.

- A 28.03.22, a recorrida pediu orçamento à recorrente, dando nota que pretendia o recebimento dos azulejos “o quanto antes” e ficando a aguardar resposta;
- A 26.04.22, a recorrente indicou 6/8 semanas para a produção e a recorrida, a 27.04.22, formalizou a encomenda, que confirmou a 3.05.22;
- Em resposta, a recorrente remeteu fatura e a 4.05.22, a recorrida pede a indicação “do melhor prazo” de entrega, tendo a recorrente, a 6.05.22, referido que, na semana seguinte conseguia “lhe dar o prazo”;
- A 15.06.22, a recorrente indica o dia 30.07.22 como previsão de entrega;
- A encomenda não foi entregue a 30.07.22, por atraso devido à paragem de uma das linhas da extrusora, conforme a recorrente comunicou à recorrida a 2.08.22, indicando como nova data de entrega 23.08.22;
- A 3.08.22 e a 8.08.22, respetivamente, a recorrida comunicou à autora que a incumprida entrega de 30.07.22 lhe causou prejuízos e que o cliente a iria penalizar;
- A 5.09.22, a recorrida insistiu na indicação de uma data de entrega e no caráter urgente desta;
- A 15.09.22, a recorrente, “salientando os constrangimentos ocorridos no tratamento de encomendas informou as novas datas previstas para a entrega: 30.09.22 e 7.10.22, de acordo com as caraterísticas (pretendidas) dos azulejos;
- A 27.09.22, a recorrida respondeu, mantendo a encomenda.
- A encomenda foi concluída para entrega a 3.11.22, tendo a recorrente remetido a fatura e solicitando a indicação do local de entrega;
- A recorrida não aceitou as faturas.

A recorrida não aceitou as faturas e veio, na Oposição, invocar o “incumprimento definitivo”, por parte da recorrente, solicitando ao tribunal que declare “a resolução do contrato”, e acrescentando que havia comunicado a urgência na receção da encomenda, mas a recorrente não cumpriu os prazos a que se comprometeu.

A recorrente, por seu turno, salienta que a obrigação não tinha prazo certo, que não houve interpelação admonitória e que a resolução do contrato não foi convencionalmente prevista para a hipótese de (simples) mora. E conclui que o preço faturado é devido.

Invocou a recorrida o incumprimento definitivo do contrato celebrado com a apelante e, em razão deste incumprimento, pretendeu a declaração de resolução. O tribunal de primeira instância, sem cuidar dessa pretensão (nem, atento o decidido, tendo de o fazer) veio a absolver a recorrida, na medida em que considerou ter existido, por parte da apelante, além de mora, um incumprimento (definitivo, acrescentamos), uma “impossibilidade definitiva de cumprimento”, pois “a requerente não cumpriu com a obrigação a que estava contratualmente vinculada”.

Diga-se, desde já, a propósito da resolução do contrato[15], “que configura um ato de caráter vinculado, que reclama a existência de uma justificação ou de um fundamento material legítimo, previsto na lei ou no contrato” [Ana Filipa Morais Antunes, A Resolução do Contrato – Efeitos entre as Partes, Almedina, 2024, pág. 21] invocada na ação pela apelada, que, não havendo – como no caso não há - convenção que a preveja (cláusula resolutiva expressa[16]), sempre estaríamos perante o necessário preenchimento dos requisitos da resolução fundada na lei (artigo 432, n.º 1, primeira parte) que exige o incumprimento definitivo[17], aí se incluindo a justa causa[18], sendo o primeiro desses fundamentos (no sentido do incumprimento) o invocado pela apelada, concretamente, por violação do prazo contratual, não apresenta autonomia em relação à questão relevante (incumprimento) que nos deve ocupar.

Acresce, no caso, que, não tendo a apelada feito uso (extrajudicial) do seu (hipotético) direito potestativo à resolução, e mesmo admitindo que o pudesse fazer (apenas) em juízo, também válida e processualmente o não fez, na medida em que, não tendo reconvindo, acaba por formular uma pretensão autónoma, que se revela processualmente inadmissível.

O que queremos dizer, em suma, é que se mostra liminarmente afastada a questão (conhecimento) da hipotética resolução do contrato e, por isso e relevantemente, o objeto, da ação e do recurso, redunda em saber se a apelante incumpriu o contrato e se, sendo definitivo esse incumprimento, permitia à apelada o não cumprimento da sua contraprestação, ou seja, o não pagamento do (restante) preço.

O não cumprimento das obrigações vem tratado no Código Civil em moldes que, numa visão global, abrange a impossibilidade de cumprimento e a mora não imputáveis ao devedor e a mesma impossibilidade e mora, mas quando imputáveis ao devedor.

Esclarece João de Matos Antunes Varela: “O primeiro elemento que interessa à fixação das consequências do não cumprimento da obrigação é a causa da falta de cumprimento. Umas vezes o não cumprimento procede de facto imputável ao devedor (...). Outras vezes, o não cumprimento procede de facto de terceiro (que destruiu a coisa devida), de circunstância fortuita ou de força maior (...) ou até do credor (que recusou a cooperação indispensável á realização da prestação). (...) Se, deixando de lado a causa, considerarmos o efeito do não cumprimento sobre a relação creditória, outra classificação interessa à definição do seu regime. Há casos em que a prestação, não tendo sido efetuada, já não é realizável no contexto da obrigação, porque se tornou impossível ou o credor perdeu o direito à sua realização, ou porque, sendo ainda materialmente possível, perdeu o seu interesse para o credor, se tornou praticamente inútil para ele. (...) Ao lado destes casos, há situações de mero retardamento, dilação ou demora da prestação. A prestação não é executada no momento próprio, mas ainda é possível, por continuar a corresponder ao interesse do credor”.[19]

Na presente apreciação interessará a análise “dos casos em que o devedor falta culposamente ao cumprimento (...) Deste modo, o conceito de não cumprimento designa, aqui, os casos em que, por causa imputável ao devedor, se verifica a não realização da prestação devida ou a sua realização em termos que não correspondam à adequada satisfação do interesse do credor. Estão, assim, abrangidas as hipóteses de o devedor faltar culposamente ao cumprimento da obrigação (artigo 798.º), assim como a de ser responsável pelo seu cumprimento defeituoso (artigo 799.º, n.º 1) ou de ter dado causa à impossibilidade culposa da prestação (artigo 801.º) ou de a não ter realizado no tempo devido (artigos 804.º e seguintes)” [Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Direito das Obrigações, Volume II, GestLegal, 2024, pág. 87].

No parágrafo anterior sublinhámos “ou de não a ter realizado no tempo devido”, porquanto é exatamente essa a situação que os autos relevam e - se bem vemos – o fundamento da apelada para legitimar o não pagamento da fatura.

Revendo os factos, podemos constatar, efetivamente, que a recorrente, depois das negociações iniciais (e da indicação de um prazo de produção previsível de 6/8 semanas) previu, a 16.06.22, a entrega (dos azulejos) em 30.07.22. Mas a encomenda não foi entregue nesta data e a 2.08.22, a recorrente, justificando o atraso da produção, indicou nova data para entrega: 23.08.22. A recorrida, que já tinha dado conta da urgência na entrega (mas nunca desistindo da encomenda ou indicando qualquer prazo perentório para a sua aceitação) a 5.09.22 insiste na indicação de uma data de entrega, pois, como é óbvio, a encomenda não tinha sido entregue (também) a 23.08.22. Então, a 15.09.22, a recorrente informação de novas datas, previstas para a entrega: 30.09.22 e – escolhendo a ré a mais morosa – 7.10.22. A recorrida, a 27.09.22 responde à apelante, aceitando a última proposta, ou seja, mantendo a encomenda, com a previsão das novas datas.

Não obstante a natureza da obrigação da recorrente – saliente-se: o dever de diligência à mesma inerente – e a invocação de dificuldades na “aquisição do bem” – leia-se: na produção dos azulegos prometidos entregar – (que, no caso, poderia equacionar-se como impossibilidade temporária – artigo 792 do CC – o que, de todo o modo, em nada alteraria o sentido da decisão da causa), há que concluir, numa primeira análise (e sem embargo do que se dirá adiante) que, após 30 de julho e, renovadamente, após 7 de outubro, a vendedora estaria (incorreria em) mora.

Isso mesmo reconhece o tribunal recorrido na sua sentença, embora, e salvo o devido respeito, não retire daí – em especial: da manutenção do interesse da recorrida – as consequências jurídicas pertinentes. Citamos: “Aliás, sempre podemos concluir que apesar da mora em que incorreu (artigo 804, n.º 2 CCivil), verificada entre 30 de Julho e 7 de Outubro, tendo em conta que a requerente sabia da essencialidade do cumprimento do prazo para a execução do projeto de decoração, mesmo durante todo esse período temporal a requerida demonstrou e manteve interesse na entrega dos azulejos apesar de ter reiterado sempre a sua urgência no recebimento da mercadoria” (sublinhados nossos).

Importa, no entanto, fazer duas correções, que os factos evidenciam: tendo a recorrida, expressamente, aceitado manter a encomenda a 27.09.22, a mora anterior, concretamente a ocorrida em (ou desde) 30 de julho é, agora, irrelevante: foi estabelecido entre as partes – e de comum acordo – um novo prazo. Por outro lado, a mora não ocorre a 7 de outubro, mas posterior: tendo a recorrida demorado 12 dias a aceitar (renovar) a encomenda – e sendo claro que os azulejos não existiam, mas iam ser fabricados, o início da mora ocorre (apenas) a 19 de outubro de 2022 (7 + 12).

Diga-se, ainda, que a obrigação da recorrente – a disponibilização do bem encomendado – foi (efetivamente) cumprida, ainda que, apenas a 3.11.22, quinze dias após aquela data (de 19 de outubro).

O artigo 808 do CC [1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente], na primeira parte do seu n.º 1 considera que a obrigação se considera definitivamente incumprida, quando, em razão do (culposo) atraso no seu cumprimento, o credor haja – objetivamente: 808, n.º 2 do CC – perdido o interesse na prestação.[20]

Mas se a mora do devedor nem sempre revela (objetivamente) a perda de interesse do credor, já não será de admitir que o credor fique indeterminadamente vinculado ao negócio e, consequentemente, obrigado a aceitar a prestação por tempo infindo. Neste caso, valerá, então, o disposto na 2.º parte do n.º 1 do mesmo preceito legal: o credor deverá, em tal circunstância, fixar ao devedor um prazo suplementar (razoável, mas perentório) de cumprimento, o que se apelida de interpelação admonitória (ou cominatória), prazo suplementar este que, desrespeitado, conduz ao incumprimento definitivo.

Como, com clareza, se sumaria no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.05.2007 [Relator, Conselheiro Sebastião Póvoas, dgsi], “1) A translação da mora em incumprimento no negócio fixo não absoluto impõe uma interpelação admonitória, com fixação de um prazo suplementar cominatório (perentório) para a outorga do contrato prometido. 2) O novo prazo deve ser razoável, permitindo ao promitente faltoso algum tempo suplementar e deve ser avaliado de acordo com os princípios da boa-fé, da cooperação e do não exercício abusivo do direito. 3) A interpelação admonitória só produz o efeito do nº1 do artigo 808º do Código Civil se intimar à outorga do contrato prometido dentro do prazo fixado, sob pena de se verificar o incumprimento definitivo e a consequente resolução, mas não se basta com a mera intimação para cumprir uma obrigação secundária, acessória ou complementar. 4) A perda do interesse na prestação, sendo também consequência da mora, independe de interpelação cominatória, gerando-se – verificada objetivamente, com base em elementos suscetíveis de valoração “a se” e percetíveis por qualquer pessoa – o incumprimento definitivo”.

Citando Luís Manuel Teles de Menezes Leitão [Direito das Obrigações, Volume II, 10.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 235], só se verifica “o incumprimento definitivo da obrigação quando o devedor não a realiza no tempo devido por facto que lhe é imputável, mas já não lhe é permitida a sua realização posterior, em virtude de o credor ter perdido o interesse na prestação ou ter fixado, após a mora, um prazo suplementar de cumprimento que o devedor desrespeitou (art. 808.º)”.

No caso presente, e olhando aos factos provados, que anteriormente se vincaram, não pode falar-se de incumprimento definitivo decorrente de uma conduta do devedor que impossibilita o cumprimento; de uma conduta (omissiva) “em que o devedor falta ao cumprimento com a consequente perda de interesse do credor ou sem aproveitar uma última oportunidade através do mecanismo da chamada interpelação cominatória” [José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 3.ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora Porto, 2019, pág. 332].

Tenhamos presente que a recorrida confirmou a encomenda em finais de setembro de 2022 e que, depois dessa confirmação, a encomenda ficou disponível, não no prazo previsto de 22 dias (15/09-7/10), mas em 36 dias (27/09 – 3/11). Acrescente-se que, inicialmente, o prazo de fabrico dos azulejos foi previsto entre 42/56 dias (6/8 semanas) e, a 16 de junho, foi indicado o prazo de 45 dias (16/06-31/07).

Objetivamente, atenta a natureza da obrigação, é manifesto não poder concluir-se que tenha havido perda de interesse do credor. Por outro lado, a recorrida não intimou a recorrente para que cumprisse num prazo perentório, ou seja, não a interpelou admonitoriamente. Note-se, aliás, que na renovação/confirmação da encomenda, a recorrida, sem embargo de assinalar a urgência da sua pretensão, não indicou qualquer prazo que, desatendido, pudesse valer como incumprimento definitivo.

Concluindo, não ocorreu incumprimento definitivo. Os azulejos foram disponibilizados à recorrida; aliás, são sua propriedade. Nenhum fundamento tem a apelada para incumprir a sua prestação, que se traduz no pagamento do preço em falta.

Os juros são devidos à taxa comercial (liquidada pela recorrente no seu Requerimento de Injunção, na percentagem então, e sucessivamente, vigente).

Em conformidade, a sentença deve ser revogada. A pretensão da autora/apelante é procedente.

Atento o decaimento, as custas da ação e do recurso são devidas pela recorrida – 527, n.º 1 e 2 do CPC.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogando a sentença, em substituição desta condena-se a recorrida no pagamento à recorrente do montante de 5.248,59€ (cinco mil, duzentos e quarenta e oito euros e cinquenta e nove cêntimos) correspondente ao capital das faturas ... e ..., acrescida de juros à taxa comercial (Avisos 1397/2022, 1672/2023, 14922/2023, 1850/2024 e 14751/2024) devidos desde o vencimento das faturas e até integral pagamento.

Custas (da ação e do recurso) pela recorrida.

Porto, 27.01.2025
José Eusébio Almeida
Miguel Baldaia de Morais
Eugénia Cunha
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[1] Ainda que se siga, em parte, o relatório da sentença recorrida, importa esclarecer, desde já, que a requerente/autora (e ora recorrente) peticionou no Requerimento de Injunção o pagamento de juros comerciais, tendo liquidado o montante de 274,76€ em acréscimo ao capital inicial (5.248,59€) corresponde às faturas.
[2] O que objetivamente se assinala, embora se entenda – o que não é consensual (Ac. da Relação de Évora de 30.04.15, dgsi) que “a decisão que aprecie a reclamação correspondente não é recorrível, dado que aquela nulidade não interfere com os princípios estruturantes da igualdade ou do contraditório nem se refere à aquisição processual de factos ou à admissibilidade de meios de prova [artº 630, n.º 2 do nCPC] – Henrique Antunes, “Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto”, in Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina, 2018, págs. 59/109, a pág. 70.
[3] Factos já transcritos no Relatório (Requerimento de Injunção).
[4] Efetivamente, o regime da compra e venda comercial surgiu em contraposição ao regime da compra e venda civil, então previsto no Código de Seabra e, hodiernamente, “essa contraposição, perdeu, porém, grande parte do seu sentido originário, uma vez que o Código Civil de 1996 veio regular genericamente questões anteriormente tratadas apenas no plano da venda comercial, tornando assim em bom rigor dispensáveis algumas das disposições que a ela se referem” – Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, 13.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 92.
[5] A classificação das coisas vem prevista no artigo 203 do CC e o artigo 211 deste diploma define as coisas futuras. Numa leitura doutrinária deste normativo, há que distinguir “as coisa futuras em objetiva, absoluta ou naturalmente futuras – as que ainda não existem física ou juridicamente ao tempo da conclusão do negócio – e em subjetiva, relativa ou convencionalmente futuras – aquelas de que o disponente não é titular, na medida em que sejam tidas pelas partes nessa qualidade – Marta Sá Rebelo, Comentário ao Código Civil - Parte Geral, 2.ª edição, UCP Editora, 2023, pág. 568, anotação 5.
[6] “Isto é, numa compra e venda comum a titularidade de uma coisa ou de um direito sobre uma coisa não está dependente da entrega da coisa, sendo a aquisição da propriedade da coisa ou da titularidade do direito uma mera decorrência da celebração do respetivo negócio” – Rui Soares Pereira, “A eficácia (real) da compra e venda de ações”, in, CIDP/Almedina, 2019, págs. 777/809, a pág. 792 Código Civil – Livro do Cinquentenário, Volume II, Coordenação António Menezes Cordeiro.
[7] Ob. cit., pág. 108.
[8] “2. Se a transferência respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou separação”.
[9] Tenha-se presente que “os casos previstos no artigo 408.º, n.º 2, em que é diferida a transmissão do direito para momento posterior à celebração do contrato, não constituem exceções aos sistema do título, já que o efeito transmissivo, apesar de não se produzir no momento da transmissão, continua a ser consequência direta do contrato e não de um outro ato ulterior a praticar pelo alienante, que o nosso sistema dispensa totalmente” – Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Direito das Obrigações, Volume I, GestLegal, 2022, pág. 152.
[10] Emptio rei speratae e emptio spei, respetivamente, esta prevista no citado n.º 2 do artigo 880 do CC, “admitindo que as partes atribuam ao contrato caráter aleatório (emptio spei) – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 175, anotação 4.
[11] Na emptio spei – diversamente do que sucede na emptio rei speratae (aqui em causa) – “uma vez que o objeto do negócio é a própria esperança, o comprador está obrigado a pagar o preço, ainda que a transferência dos bens não chegue a verificar-se” – Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Ob. cit., pág. 49.
[12] O autor citado opta pela preferência aludida, depois de dar nota das referências feitas por Menezes Cordeiro: “Menezes Cordeiro chama impressivamente à construção da venda das coisas esperadas como venda com eficácia (meramente) obrigacional teoria da prestação de serviço e à construção da venda de coisas esperadas como venda com eficácia real diferida teoria da venda, ainda que de uma venda de objeto aleatório”.
[13] “Diz-se prazo de prestação o momento em que esta deve ser cumprida; quando esse momento chega, ocorre o vencimento da obrigação. O vencimento da obrigação torna esta imediatamente exigível” – António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, Almedina, 2010, pág. 35.
[14] É importante saber-se “qual o alcance que as partes pretendem dar à fixação do prazo. Se a fixação do prazo significa que a prestação tem de ser efetuada dentro dele, sob pena de o negócio caducar, por a prestação já não ter interesse para o credor, há o que os autores chamam um negócio fixo absoluto, um prazo absolutamente fixo, ou, como lhe chama BAPTISTA MACHADO, uma prestação temporizada. Se a fixação do prazo não envolve a necessária caducidade do negócio, mas apenas a faculdade de o credor, vencido o prazo sem que a obrigação seja cumprida, resolver o negócio ou exigir indemnização pelo dano moratório, há um negócio relativo ou simples. Há casos em que a essencialidade do prazo resulta logo do fim a que a obrigação se encontra adstrita, ficando o prazo como que incrustado no conteúdo da prestação. (...) Aos casos deste tipo chamam alguns autores negócios de prazo (termo) essencial objetivo. Aos casos em que o prazo é essencial, não pela natureza ou finalidade da obrigação, mas pela mera determinação das partes, dar-se-á em contrapartida o nome de negócios de termo (prazo) essencial subjetivo – João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Edição, 14.ª Reimpressão, Almedina, 2022, págs. 45/46.
[15] “A resolução do contrato é um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral e encontra-se condicionada por um motivo previsto na lei ou depende de convenção das partes” – Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª Edição, Almedina, 2015, pág. 68.
[16] “O art. 432.º, n.º 1, do CC prevê a resolução fundada na lei (resolução legal) e a resolução fundada em convenção (resolução convencional). A convenção/estipulação contratual através da qual as partes, de acordo com o princípio da autonomia privada, concedem a si próprias a faculdade de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v. g., o não cumprimento duma concreta obrigação) dá-se o nome de cláusula resolutiva expressa” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.03.23 [Proc. n.º 211/21.5T8GMR.G1.S1, Relatora, Conselheira Maria Clara Sottomayor, dgsi].
[17] “Naturalmente que, para a resolução poder ter lugar, é necessário que o incumprimento seja definitivo. A definitividade do incumprimento pode resultar, desde logo, de perda de interesse, do decurso de prazo perentório fixado no contrato ou do decurso do prazo admonitório. E pode igualmente ter a sua origem em “justa causa”” – Ana Perestrelo de Oliveira, Desvinculação Programada do Contrato, Almedina, 2022 (Reimpressão), pág. 112.
[18] “A justa causa pode corresponder a qualquer violação do programa contratual desde que atinja no patamar de relevância definido. (...) O incumprimento que gravemente atinja esse programa, desequilibrando o negócio, permite a resolução pelo contraente fiel” – Ana Perestrelo de Oliveira, Ob. Cit., pág. 115.
[19] Ob. cit., págs. 62/64.
[20] A perda de interesse pode resultar de várias circunstâncias, “como, por exemplo, da “superveniente inutilidade da prestação ou do prejuízo que a sua realização fora de tempo lhe traria” (Ac. STJ 28.06.2011). É usualmente referida por parte da doutrina (...) a hipótese de estar em causa um obrigação fixa absoluta ou sujeita a termo essencial absoluto, cuja ultrapassagem determina, desde logo, a perda de interesse do credor, e, consequentemente, a conversão da mora em não cumprimento definitivo (...)” – Maria da Graça Trigo/Mariana Nunes Martins, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade católica Portuguesa Editora, 2018, pág. 1143.