I – A caracterização dos jogos como de fortuna ou azar assentava no facto desses jogos apresentarem resultados dependentes exclusivamente da sorte e em que o evoluir do jogo em nada é influenciado pela destreza, perícia ou habilidade do jogador e decorrem de modo automático, aleatório e incontrolável.
II – Todavia, no seio da jurisprudência é entendimento que a diferença entre os conceitos de jogo de fortuna ou azar ou de modalidades afins deixou de assentar na relevância da sorte ou do azar para o resultado, na medida em ambas as situações a contingência do resultado podia derivar apenas da sorte.
III – Outro meio aflorado pela jurisprudência para distinguir o campo de aplicação das incriminações dos jogos de fortuna ou azar das condutas que integram os ilícitos de mera ordenação social situa-se na natureza dos prémios atribuídos, já que quando estes consistissem em dinheiro estar-se-ia perante um crime, conquanto a atribuição de prémios de outra natureza caracterizaria o ilícito como de mera ordenação social.
IV – Existe também jurisprudência que entende que deverão ser considerados jogos de fortuna ou azar apenas aqueles cuja exploração é autorizada nos casinos.
V – Parece consensual ao nível da jurisprudência que, na senda do que se pugnou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2010, a diferença entre os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins desses mesmos jogos funda-se para além da temática do jogo, na natureza dos prémios que o jogador pode ganhar: tratando-se de prémios pagos em dinheiro ou fichas convertíveis diretamente em dinheiro são jogos de fortuna ou azar, tratando-se de prémios pagos em espécie são modalidades afins desses mesmos jogos de fortuna ou azar.
VI – Comete um crime de exploração ilícita de jogo, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, o gerente de uma sociedade que, no café daquela, explora máquinas de jogos tipo slot machine, tipo poker e tipo roleta, as quais realizavam jogos cujos resultados assentam exclusivamente na sorte, uma vez que o jogador não tem qualquer influência no seu funcionamento, não sendo a perícia do jogador determinante para o resultado final e a sua exploração apenas é permitida em casinos, além de que em qualquer um dos referidos jogos, os resultados obtidos pelo jogador são convertidos em prémios monetários.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1
Acordam, em Conferência, na Segunda Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
No processo comum singular n.º 100/21.3EALSB, em 19-06-2023, foi deduzido ACUSAÇÃO PÚBLICA com o seguinte teor:
(…)
O Ministério Público acusa, em Processo Comum e perante o Tribunal Singular, nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 16.º do Código de Processo Penal,
AA, solteiro, nascido a ../../1973, natural da freguesia ..., concelho ..., filho de BB e de CC, com residência na Rua ..., Maia,
porquanto:
1.º
O arguido é, desde a sua constituição, gerente da sociedade “A..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., lojas ..., em ..., Maia, que se dedica à “importação, exportação, representação, comercialização e serviços, exploração de todo o tipo de máquinas e jogos de diversão e todos os acessórios relacionados com jogos e diversão, todos os serviços publicitários, brindes, serigrafas, gravação a laser, personalização e estampagem. Exploração de cafés e salão de jogos de diversão.”
2.º
O arguido, através da sociedade “A..., Lda.”, explora o café e salão de jogos “B...”, sito na Rua ..., em ..., Maia.
3.º
No dia 21 de julho de 2021, pelas 11h15, o arguido detinha nesse estabelecimento comercial, ligadas à corrente elétrica, acessíveis e disponíveis para serem utilizados pelos seus clientes, mediante a introdução de palavra passe (password), duas máquinas de videojogos, do tipo “Kiosk Internet”, de funcionamento automático, uma com monitor de marca LG, CPU de marca HP e n.º de série ... e, a outra, com monitor de marca Acer, o CPU de marca Lenovo, com o n.º de série ....
4.º
Ambas as máquinas se encontravam protegidas por biombo e com os respetivos monitores virados para a parede e eram propriedade da sociedade “A..., Lda.”, tendo o valor unitário de 3500,00€, assim totalizando o valor de 7000,00€.
5.º
Tais máquinas, de grande dimensão, são constituídas por uma estrutura em madeira de cor preta e cinzenta, com mecanismo de introdução de notas e de moedas incorporado e um computador no seu interior, o qual:
- possui instalada a aplicação “Svhost.exe”, que tem como objetivo preparar a máquina com os recursos necessários para o desenvolvimento de jogos de fortuna e azar;
- quando a aplicação “Svhost.exe” está ligada à internet, acede a um servidor (definido na aplicação) e efetua o download dos recursos, que por sua vez inicia a aplicação “moedeiro.exe”, a qual é responsável pela gestão de acesso à internet e gestão do desenvolvimento de jogos, que se liga a determinado servidor e efetua o download de uma pasta “Adobe.tmp”, que contém no seu interior os recursos necessários ao desenvolvimento de jogos de fortuna e azar, nomeadamente o ficheiro responsável pela execução dos jogos, “Adobe.exe”.
6.º
Analisado o ficheiro “Adobe.exe” armazenado nos referidos computadores, nele foi possível identificar quatro jogos do tipo “slot machine”/rolos, um de vídeo-poker e um de roleta eletrónica e recursos utilizados no desenvolvimento desses jogos, assim como diversas strings demonstrativas da execução dos jogos na máquina, nomeadamente os jogos “Halloween, Pantanal, Super Dogm Tropical, Mário Roleta e um de videopoker sem designação.
7.º
Quanto aos jogos do tipo slotmachine/rolos, designados Halloween, Pantanal, Diamantes e Super Dog, o que os distingue é a apresentação gráfica ao nível dos símbolos utilizados no desenvolvimento do jogo, símbolos associados ou relacionados com a designação do jogo.
O desenvolvimento dos jogos é igual em ambos, isto é, o objetivo do jogo é obter uma combinação de símbolos premiada. Após a introdução de créditos, o jogador decide o número de créditos a apostar por jogada através do teclado, e dá início ao jogo. De imediato começam a girar no sentido vertical as cinco colunas sendo que cada uma tem três símbolos e a jogada só acaba quando o movimento giratório termina, sendo logo assinalado pela máquina a existência ou não de uma das combinações premiadas, à semelhança do que acontece nas máquinas em exploração nas salas de jogo autorizadas – casinos.
8.º
Quanto ao jogo de vídeo-poker, o objetivo do jogo é o de conseguir combinações premiadas tais como: Sequência real, Sequência numérica, Sequência de cor, Fullen, Trios, Pares, tudo dependendo da sorte, independentemente da perícia do jogador.
O jogo inicia-se com a marcação de créditos que se pretende apostar na jogada variando o valor das combinações em função do valor apostado, sendo mais elevado quanto maior o valor da aposta.
Após o registo da aposta o jogador dá início ao jogo, e surge em simultâneo, de forma aleatória e dispostas em Intha na base do ecrã, cinco cartas de face voltada. Cada uma destas cartas pertence a um baralho, podendo, portanto, aparecer qualquer uma das 52 cartas e 5 Jokers.
O jogador pode, nesta fase do jogo e se assim o pretender, fixar alguma das cartas de modo a tentar obter uma sequência premiada. De seguida dá-se prosseguimento à jogada, aparecendo novas cartas em detrimento daquelas que não foram fixadas.
O utilizador, tal como no jogo de poker, pode apostar em diversas sequências, designadamente na sequência de 5 figuras da mesma cor (Cor), como na escolha de 3 (Trio) ou 4 (Poker) figuras com o mesmo número, mas de cores diferentes, ou em qualquer outra combinação admitida neste tipo de jogo. Quando tem uma combinação premiada, o jogador pode optar por fazer a coleta dos pontos – creditar ou dobrar os pontos obtidos. 9.º
O jogo Mário é similar ao jogo das máquinas tipo roleta, com a diferença de que nessas máquinas existe uma placa com o círculo luminoso e no computador é simulado com uma imagem igual no próprio ecrã, verificando-se que, após a introdução de créditos, começam, de imediato, a ser iluminados os pontos luminosos que aparecem no ecrã até que, e sem qualquer intervenção por parte do jogador, a luz se fixa num dos pontos luminosos, ficando determinado qual a pontuação obtida pelo jogador.
10.º
Em qualquer um dos descritos jogos, os resultados obtidos pelo jogador são convertidos em prémios monetários e não são dependentes da sua destreza ou perícia, mas única e exclusivamente da sorte.
11.º
O arguido não detinha autorização para a exploração dos referidos jogos, dos quais conhecia o modo de funcionamento, designadamente que o seu resultado dependia essencial ou fundamentalmente da sorte, jogos esses que se mantinham ocultos até à introdução, no sistema informático, de códigos de acesso, cujo conhecimento era restrito nos utilizadores e na validade, para impedir que, em sede de fiscalização, fosse identificada tal funcionalidade.
12.º
O arguido sabia que a exploração de tais jogos estava sujeita a prévia autorização das competentes autoridades administrativas, autorização essa que não possuía.
13.º
Não obstante, quis explorar os referidos jogos, com o intuito de obter lucro.
14.º
Agiu também o arguido com o mesmo propósito lucrativo ao expor tais máquinas de jogo, na qualidade de representante da sociedade “A..., Lda.”, atuando em seu nome e interesse, mas também com interesse pessoal.
15.º
O arguido detinha a capacidade e liberdade necessárias para avaliar o desvalor da sua conduta e atuar de acordo com essa avaliação, e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ao atuar da forma descrita, o arguido incorreu na prática, como autor material, de:
- um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível nos termos do artigo 108.º, n.º1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, al. f) e g), do Decreto-Lei nº 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos art.º 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº 422/89 de 02-12.
Testemunhal:
1) DD, inspetor da ASAE id. a fls. .31 e 198;
2) EE, Inspetora da ASAE id. a fls. 33 e 200;
3) FF, Inspetora de Jogos, do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos do Turismo de Portugal, IP, identificada a fls. 204.
Pericial:
- relatórios de perícia de fls. 72 a 97,117-129, 130-136;
Documental:
1) Auto de notícia de fls. 31-34;
2) Auto de apreensão e aditamento de fls.35-39;
3) Reportagem fotográfica de fls. 40-44;
4) Fatura simplificada de fls. 45;
5) Documento de fls. 46-49;
6) Certidão permanente de fls. 50-54;
Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 192.º, 193.º e 196.º, promove-se que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado, por ser esta medida de coação adequada, necessária e proporcional às exigências cautelares que se fazem sentir no caso em apreço, à gravidade do crime praticado e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada.
*
Dispõe o art. 311.º do Código de Processo Penal que:
“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2- Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3- Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
b) Quando não contenha a narração dos factos;
(…)”
Analisando os factos constantes da acusação pública, para a qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzida, verifica-se insuficiência dos elementos típicos do crime imputado ao arguido.
Seguimos, neste conspecto, o entendimento sufragado pelo recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.01.2023, proferido no proc. n.º 1386/19.9GAMAI e que correu termos neste Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1, cuja fundamentação de seguida se transcreve. Com efeito, “Os jogos de fortuna e azar são atualmente definidos no art. 1.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 21.12, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95 de 19 de janeiro, como «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.»
Dispondo o art. 3.º, n.º 1 que «A exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excecionados nos artigos 6.º a 8.º».
No art. 4.º sob a epígrafe “Tipos de jogos de fortuna ou azar” especificam-se os jogos de fortuna ou azar cuja exploração é autorizada em casinos, utilizando o adverbio nomeadamente, o qual confere um cariz exemplificativo a tal enumeração.
Não obstante esse cariz exemplificativo, entende-se que os jogos de fortuna e azar, autorizados nos casinos, “são os que se encontram especificados no referido art. 4.º, embora outros possam vir a ser legalmente autorizados por apresentarem características análogas”.
E no que concerne a jogos em máquinas, como é caso dos jogos em causa nos autos, especificam as alíneas f) e g) o seguinte:
“f) Jogos em máquinas pagando diretamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.”
Já no capítulo das modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo, o art. 159.º, n.º 1 do mesmo Decreto 422/89 de 2 de dezembro define as modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar “como as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
Sendo que no n.º 2 do mesmo preceito se estabelece que “- São abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.”
Importa ainda ter presente o preceituado no art. 161.º que sob a epígrafe proibições no seu n.º3 dispõe que «As modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras forma de jogos referidas no art. 159.º não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos.» Por fim há que atender à Jurisprudência Fixada nesta matéria pelo acórdão de fixação de Jurisprudência n.º 4/2010 de 4 de fevereiro de 2010, o qual fixou a seguinte Jurisprudência:
“Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos do art. 159.º n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei nº422/89 de 2 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.”
Na sequência do aludido, inexiste na acusação pública explicitação do tipo ou do valor dos créditos que se podem acionar (meros pontos ou de valor económico) e, quanto ao prémio atribuído/obtido, igualmente não se indica qual o respetivo valor ou variação de valores, designadamente se superiores, ou não aos créditos introduzidos.
Na ausência desses factos, não se mostra possível concluir pela verificação da “sorte” ou “azar” do jogador, designadamente por perder o valor da aposta.
Por conseguinte, não se mostra possível determinar que se está perante jogo de fortuna ou azar nos termos previstos nos arts. 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02.12 ou modalidade afim prevista no art. 159.º do mesmo diploma legal.
A acusação é, pois, manifestamente infundada, por ausência de narração de factos, o que implica a sua rejeição nos termos do referido art. 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, e nos termos dos citados normativos legais, decido rejeitar a acusação pública deduzida nestes autos contra o arguido AA.
Sem custas.
Notifique.
Dê baixa estatística.
Após trânsito em julgado, conclua os autos com indicação dos objetos apreendidos.
*
*
*
(…)
1- Por despacho, proferido em 10 de outubro de 2023 foi rejeitada a acusação do Ministério Público proferida por uma Colega, na qual imputou ao arguido AA a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos dos arts. 108.º, n.ºs 1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos arts. 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02.12, tendo sido igualmente nesse despacho judicial determinado o arquivamento dos autos.
2- O Ministério Público não concorda com a rejeição da acusação efetuada pela Sra. Juíza, nem com a determinação do arquivamento dos autos, pelo que vem interpor recurso do despacho judicial em causa, entendendo ter sido violado pelo Tribunal a quo o disposto nos arts. 283º, n.º 3, al. b) e 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal, pelo que se impunha que tivesse sido proferido despacho de admissão da acusação deduzida contra este arguido, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo.
3- Ora, tal despacho judicial não pode, a nosso ver, colher o menor aplauso – e daí a interposição do presente recurso, pois temos por líquido que o teor da acusação deduzida pela Colega impunha que se proferisse despacho de admissão da acusação deduzida contra este arguido.
4- No despacho judicial de que se recorre é defendido que inexiste na acusação pública a explicitação do tipo ou do valor dos créditos que se podem acionar (meros pontos ou de valor económico) e, quanto ao prémio atribuído/obtido, igualmente não se indica qual o respetivo valor ou variação de valores, designadamente se superiores, ou não aos créditos introduzidos, sendo que na ausência desses factos, não se mostra possível concluir pela verificação da “sorte” ou “azar” do jogador, designadamente por perder o valor da aposta, e por isso não se mostra possível determinar que se está perante jogo de fortuna ou azar nos termos previstos nos arts. 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02.12 ou modalidade afim prevista no art. 159.º do mesmo diploma legal, concluindo que a acusação pública é, por isso, manifestamente infundada nos termos do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, tudo implicando a sua rejeição.
5- Atentando no teor do Acórdão de Uniformização de jurisprudência n.º 4/2010, de 4 de fevereiro de 2010, que também é referido no despacho judicial de que se recorre, pode extrair-se que a diferença entre os jogos de fortuna e azar e as modalidades afins desses mesmos jogos, para além da temática do jogo, está na natureza dos prémios que o jogador pode ganhar, ou seja, se os prémios forem pagos em dinheiro ou fichas convertíveis diretamente em dinheiro são jogos de fortuna e azar, mas se os prémios forem pagos em espécie são modalidades afins dos jogos de fortuna e azar.
6- No referido Acórdão Uniformizador também é referido que o jogo não é de fortuna ou azar se o jogador com a sua destreza e perícia influenciar o respetivo resultado, o que não acontece quando o resultado está dependente apenas da sorte.
7- Seguindo o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.06.2021, proferido no processo n.º 27/18.6EASTR.E1, pesquisável in www.dsi.pt/jtre.nsf, pode ler-se que: “Não é elemento do tipo legal do crime de exploração ilícita de jogo de fortuna e azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza económica; basta que façam depender os resultados obtidos pelo jogador exclusivamente, de sorte, sem que o mesmo tenha possibilidade de os influenciar”.
8- Também relacionado com a questão em apreço, temos o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 08.10.2014, no processo n.º 1301/12.0PBMTS.P1, pesquisável in www.dgsi.pt/jtrp.nsf, que sustenta que: “Não constitui critério distintivo entre jogo de fortuna e azar que constitui o crime de jogo ilícito, e a modalidade de jogo afim que constitui contraordenação (art. 159º da Lei do Jogo), o facto de os prémios estarem balizados entre um mínimo e um máximo previamente definidos”.
9- Na mesma senda está o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.06.2020, proferido no processo n.º 193/13.9EAEVR.E1, pesquisável em www.gde.mj.pt/jtre, no qual é referido que: “A distinção entre os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins, no âmbito da aplicação do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, deverá fazer-se tendo por base o conceito de jogo de fortuna ou azar estabelecido no artigo 1º, conjugado com os exemplos de “tipos de jogos que de fortuna ou azar” previstos no artigo 4º, por um lado, e o conceito de modalidades afins, estabelecido no n.º 1 do artigo 159º, conjugado com os exemplos padrão do n.º 2 do mesmo artigo, por outro lado. Para o preenchimento do crime de exploração ilícita dejogo previsto no artigo 108º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, não se exige que o prémio retribuível seja pecuniário ou que a pontuação/créditos obtida(os) nas máquinas possa(m) ser convertida(os) em dinheiro (ainda que, como é sabido, neste tipo de jogos, normalmente, sejam atribuídos prémios pecuniários), pelo que, a circunstância invocada pela recorrente de não estar demonstrada a natureza pecuniária dos prémios atribuídos, é irrelevante em termos de poder afastar o preenchimento do crime”.
10- Atentando no que consta da acusação, sendo que a mesma remete, para além do mais, para os meios de prova periciais que são os relatórios de perícia constantes de fls. 72 a 97, 117 a 129 (cópia do de fls. 72 a 97) e 130 a 136, verifica-se que in casu, os relatórios periciais das duas máquinas foram efetuados pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), e foi efetuada uma análise forense em cada um dos casos, através da leitura dos respetivos discos rígidos, sendo que resulta da análise dos relatórios constantes dos autos que os elementos visualizados em sede de exame, nomeadamente a existência de recursos (aplicações, ficheiros e expressões) associados exclusivamente aos jogos descritos nesse relatório, permitem concluir que tais máquinas estiveram aptas a desenvolver quatro jogos de slot machine/rolos, um de vídeo-poker e um de roleta.
11- Ambas as máquinas arrancam com o código fornecido pelo explorador e, uma vez acionada a própria máquina, é selecionado um jogo, que no seu desenvolvimento depende exclusivamente da sorte, sendo que em qualquer dos jogos descritos em tais máquinas a perícia do jogador não é determinante para a obtenção do resultado final, e apresentam como resultado pontuações dependentes da sorte e o evoluir do jogo em nada é influenciado pela destreza, perícia ou habilidade do jogador e decorrem de modo automático, aleatório e incontrolável.
12- Tais máquinas desenvolvem jogos de fortuna e azar.
13- Efetivamente nos jogos de fortuna ou azar do artigo 4.º da referida Lei do jogo, o jogador, poderá envolver-se emocionalmente no jogo, tornando-se cada jogada mais viciante, que poderá causar um total descontrolo do próprio jogador, ao contrário do que acontece nos jogos afins (n.º 2 do artigo 159.º), onde o risco assume uma dimensão pouco significante, sendo a expectativa limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação.
14- Entendendo-se que não é elemento do tipo legal do crime de exploração ilícita de jogo de fortuna e azar que o jogador tenha um ganho ou uma perda de natureza económica, bastando que façam depender os resultados obtidos pelo jogador exclusivamente, de sorte, sem que o mesmo tenha possibilidade de os influenciar, não vislumbramos que o Tribunal a quo tenha razão ao ter rejeitado a acusação pública deduzida nestes autos contra o arguido AA nos termos do referido art. 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do Código de Processo Penal, por considerar tal acusação manifestamente infundada, por ausência de narração de factos.
15- Deste modo, entendemos que o Tribunal a quo extrapolou os seus poderes ao rejeitar a acusação pública que consta dos autos, já que perfilhando o entendimento do atual preceito contido no art.º 311.º, n.º 3 al. b) do Código de Processo Penal, entendemos que daquela constam todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
16- Deste modo e quanto a este aspeto enfatizado no despacho recorrido, pelos argumentos aduzidos, consideramos não existir fundamento de rejeição do despacho de acusação.
17- Nesse sentido, pelo facto de o Tribunal a quo ter efetuado uma incorreta aplicação do disposto nos arts. 283º, n.º 3, al. b) e 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal, entendemos que o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que admita a acusação contra o arguido pela prática, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos dos arts. 108.º, n.ºs 1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos arts. 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02.12.
Termos em que, deverá ser dado provimento ao presente recurso,
e em conformidade, ser proferido douto acórdão que revogue o douto
despacho judicial recorrido que rejeitou a acusação pública, e determine
a substituição de tal despacho por outro que receba a acusação constante
do processo e, oportunamente, designe dia para julgamento, mas
V. Exas, porém, como sempre,
farão
JUSTIÇA!
O arguido não respondeu ao recurso.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta acompanhando a motivação de recurso do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser provido.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP foi, pelo arguido, apresentada resposta onde defende a manifesta improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a Conferência.
*
QUESTÃO A DECIDIR:
- Se a acusação pública contém a descrição de factos integradores dos elementos do crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível nos termos do artigo 108.º, n.º1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, al. f) e g), do Decreto-Lei nº 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos art.º 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº 422/89 de 02-12.
*
*
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Os jogos de fortuna e azar são definidos no artº 1º do DL 422/89 de 21 de Dezembro, como «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.»
Dispondo o artº 3º nº 1 que «A exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excecionados nos artigos 6º a 8º».
No artº 4º sob a epígrafe “Tipos de jogos de fortuna ou azar” especificam-se os jogos de fortuna ou azar cuja exploração é autorizada em casinos, utilizando o adverbio nomeadamente, o qual confere um cariz exemplificativo a tal enumeração.
Não obstante esse cariz exemplificativo, entende-se que os jogos de fortuna e azar, autorizados nos casinos, “são os que se encontram especificados no referido artº 4º, embora outros possam vir a ser legalmente autorizados por apresentarem características análogas”.[1]
E no que concerne a jogos em máquinas, como é caso dos jogos em causa nos autos, especificam as alíneas f) e g) o seguinte:
“.f) Jogos em máquinas pagando diretamente prémios em fichas ou moedas;
.g) Jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.”
Já no capítulo das modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo, o artº 159 º n º1 do mesmo decreto 422/89 de 2 de Dezembro define as modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar “ como as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
Sendo que no nº2 do mesmo preceito se estabelece que “- São abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.”
Importa ainda ter presente o preceituado no artº 161º que sob a epígrafe proibições no seu nº3 dispõe que «As modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras forma de jogos referidas no artº 159º não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos.»
Por fim há que atender à Jurisprudência Fixada nesta matéria pelo acórdão de fixação de Jurisprudência nº 4/2010 de 4 de Fevereiro de 2010, o qual fixou a seguinte Jurisprudência:
“ Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos do artº 159º nº1,161º,162º e 163º do Decreto-Lei nº422/89 de 2 de Dezembro, na redação do Decreto –Lei nº10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.”
Os jogos desenvolvidos pelas máquinas em questão, referidas na acusação aqui em análise, não se apresentam similares àquele que esteve sob apreciação no mencionado AFJ.
Vejamos melhor.
Lida a factualidade descrita na acusação, temos que:
3.º
No dia 21 de julho de 2021, pelas 11h15, o arguido detinha nesse estabelecimento comercial, ligadas à corrente elétrica, acessíveis e disponíveis para serem utilizados pelos seus clientes, mediante a introdução de palavra passe (password), duas máquinas de videojogos, do tipo “Kiosk Internet”, de funcionamento automático, uma com monitor de marca LG, CPU de marca HP e n.º de série ... e, a outra, com monitor de marca Acer, o CPU de marca Lenovo, com o n.º de série ....
4.º
Ambas as máquinas se encontravam protegidas por biombo e com os respetivos monitores virados para a parede e eram propriedade da sociedade “A..., Lda.”, tendo o valor unitário de 3500,00€, assim totalizando o valor de 7000,00€.
5.º
Tais máquinas, de grande dimensão, são constituídas por uma estrutura em madeira de cor preta e cinzenta, com mecanismo de introdução de notas e de moedas incorporado e um computador no seu interior, o qual:
- possui instalada a aplicação “Svhost.exe”, que tem como objetivo preparar a máquina com os recursos necessários para o desenvolvimento de jogos de fortuna e azar;
- quando a aplicação “Svhost.exe” está ligada à internet, acede a um servidor (definido na aplicação) e efetua o download dos recursos, que por sua vez inicia a aplicação “moedeiro.exe”, a qual é responsável pela gestão de acesso à internet e gestão do desenvolvimento de jogos, que se liga a determinado servidor e efetua o download de uma pasta “Adobe.tmp”, que contém no seu interior os recursos necessários ao desenvolvimento de jogos de fortuna e azar, nomeadamente o ficheiro responsável pela execução dos jogos, “Adobe.exe”.
6.º
Analisado o ficheiro “Adobe.exe” armazenado nos referidos computadores, nele foi possível identificar quatro jogos do tipo “slot machine”/rolos, um de vídeo-poker e um de roleta eletrónica e recursos utilizados no desenvolvimento desses jogos, assim como diversas strings demonstrativas da execução dos jogos na máquina, nomeadamente os jogos “Halloween, Pantanal, Super Dogm Tropical, Mário Roleta e um de videopoker sem designação.
7.º
Quanto aos jogos do tipo slotmachine/rolos, designados Halloween, Pantanal, Diamantes e Super Dog, o que os distingue é a apresentação gráfica ao nível dos símbolos utilizados no desenvolvimento do jogo, símbolos associados ou relacionados com a designação do jogo.
O desenvolvimento dos jogos é igual em ambos, isto é, o objetivo do jogo é obter uma combinação de símbolos premiada. Após a introdução de créditos, o jogador decide o número de créditos a apostar por jogada através do teclado, e dá início ao jogo. De imediato começam a girar no sentido vertical as cinco colunas sendo que cada uma tem três símbolos e a jogada só acaba quando o movimento giratório termina, sendo logo assinalado pela máquina a existência ou não de uma das combinações premiadas, à semelhança do que acontece nas máquinas em exploração nas salas de jogo autorizadas - casinos.
8.º
Quanto ao jogo de vídeo-poker, o objetivo do jogo é o de conseguir combinações premiadas tais como: Sequência real, Sequência numérica, Sequência de cor, Fullen, Trios, Pares, tudo dependendo da sorte, independentemente da perícia do jogador.
O jogo inicia-se com a marcação de créditos que se pretende apostar na jogada variando o valor das combinações em função do valor apostado, sendo mais elevado quanto maior o valor da aposta.
Após o registo da aposta o jogador dá início ao jogo, e surge em simultâneo, de forma aleatória e dispostas em Intha na base do ecrã, cinco cartas de face voltada. Cada uma destas cartas pertence a um baralho, podendo, portanto, aparecer qualquer uma das 52 cartas e 5 Jokers.
O jogador pode, nesta fase do jogo e se assim o pretender, fixar alguma das cartas de modo a tentar obter uma sequência premiada. De seguida dá-se prosseguimento à jogada, aparecendo novas cartas em detrimento daquelas que não foram fixadas.
O utilizador, tal como no jogo de poker, pode apostar em diversas sequências, designadamente na sequência de 5 figuras da mesma cor (Cor), como na escolha de 3 (Trio) ou 4 (Poker) figuras com o mesmo número, mas de cores diferentes, ou em qualquer outra combinação admitida neste tipo de jogo. Quando tem uma combinação premiada, o jogador pode optar por fazer a coleta dos pontos – creditar ou dobrar os pontos obtidos.
9.º
O jogo Mário é similar ao jogo das máquinas tipo roleta, com a diferença de que nessas máquinas existe uma placa com o círculo luminoso e no computador é simulado com uma imagem igual no próprio ecrã, verificando-se que, após a introdução de créditos, começam, de imediato, a ser iluminados os pontos luminosos que aparecem no ecrã até que, e sem qualquer intervenção por parte do jogador, a luz se fixa num dos pontos luminosos, ficando determinado qual a pontuação obtida pelo jogador.
10.º
Em qualquer um dos descritos jogos, os resultados obtidos pelo jogador são convertidos em prémios monetários e não são dependentes da sua destreza ou perícia, mas única e exclusivamente da sorte.
11.º
O arguido não detinha autorização para a exploração dos referidos jogos, dos quais conhecia o modo de funcionamento, designadamente que o seu resultado dependia essencial ou fundamentalmente da sorte, jogos esses que se mantinham ocultos até à introdução, no sistema informático, de códigos de acesso, cujo conhecimento era restrito nos utilizadores e na validade, para impedir que, em sede de fiscalização, fosse identificada tal funcionalidade.
12.º
O arguido sabia que a exploração de tais jogos estava sujeita a prévia autorização das competentes autoridades administrativas, autorização essa que não possuía.
13.º
Não obstante, quis explorar os referidos jogos, com o intuito de obter lucro.
14.º
Agiu também o arguido com o mesmo propósito lucrativo ao expor tais máquinas de jogo, na qualidade de representante da sociedade “A..., Lda.”, atuando em seu nome e interesse, mas também com interesse pessoal.
15.º
O arguido detinha a capacidade e liberdade necessárias para avaliar o desvalor da sua conduta e atuar de acordo com essa avaliação, e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Resulta da análise dos relatórios periciais constantes dos autos que os elementos visualizados em sede de exame, nomeadamente a existência de recursos (aplicações, ficheiros e expressões) associados exclusivamente aos jogos descritos nesses relatórios, permitem concluir que tais máquinas estivam aptas a desenvolver quatro jogos de slot machine/rolos, um de vídeo-poker e um de roleta.
Em qualquer dos jogos descritos a perícia do jogador não é determinante para a obtenção do resultado final, e apresentam como resultado pontuações dependentes exclusivamente da sorte.
São jogos de fortuna e azar, uma vez que qualquer um desses jogos, apresentam resultados dependentes exclusivamente da sorte, e em que o evoluir do jogo em nada é influenciado pela destreza, perícia ou habilidade do jogador e decorrem de modo automático, aleatório e incontrolável.
Note-se que ambas as máquinas arrancam com o código fornecido pelo explorador e, uma vez acionada a própria máquina, é selecionado um jogo, que no seu desenvolvimento depende exclusivamente da sorte.
Todavia, no seio da Jurisprudência, é entendimento que a diferença entre os conceitos de jogo de fortuna ou azar ou de modalidades afins deixou de assentar na relevância da sorte ou do azar para o resultado, na medida em ambas as situações a contingência do resultado podia derivar apenas da sorte.
Mas outro meio aflorado pela Jurisprudência para distinguir o campo de aplicação das incriminações previstas nos artigos 108.º a 111.º e 115.º das condutas que integram os ilícitos de mera ordenação social (artigos 160.º a 163.º), situa-se na natureza dos prémios atribuídos, já que quando estes consistissem em dinheiro estar-se-ia perante um crime, conquanto a atribuição de prémios de outra natureza caracterizaria o ilícito como de mera ordenação social.
Segundo a posição assumida pelos Acórdãos da Relação de Évora e da Relação de Lisboa, de 11 de Julho de 2006 e 26 de Outubro de 2005, deverão ser considerados “jogos de fortuna ou azar apenas aqueles cuja exploração, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 4.º da atual redação do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, é autorizada nos casinos.
A este particular, cita-se, ainda, a título meramente exemplificativo a seguinte jurisprudência:
“Ac. TRP de 8-02-2012: A conduta típica do crime de exploração ilícita de jogo consiste em, por qualquer meio, fazer a exploração de «jogos de fortuna ou azar» previstos no artigo 4º do DL 422/89, fora dos locais legalmente autorizados, dizer: dos casinos ou de outros locais onde tal exploração é autorizada pelo Estado.
Ac. TRP de 19-10-2011:
I. À luz da doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010, não são consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar as máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, porque nelas a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação.
II. Já o serão, porém - na justa medida em que induzem comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos, que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater -, as máquinas que possibilitam uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente, em que os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à cumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos.
Ac. TRP de 25-05-2011: É de fortuna ou azar o jogo desenvolvido por uma máquina em que: - o resultado ou pontuação final assenta exclusivamente no fator sorte; - o prémio é pago unicamente em dinheiro; - o modo de obtenção da pontuação é igual ou análogo ao funcionamento do jogo da roleta, com a característica de, nesta máquina, se tratar de uma «roleta eletrónica».
Ac. TRP de 7-05-2014: À luz da doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010, não são consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar as máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, porque nelas a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação; mas já o serão máquinas que possibilitam uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre os riscos de se envolver emocionalmente, em que os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à acumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos; pois estas induzem comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos, que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater.
Ac. TRP de 8-10-2014:
I. Constitui jogo de fortuna ou azar o jogo desenvolvido por máquina cujo funcionamento é igual ou análogo ao do jogo da «roleta eletrónica» ou «slot machine» usada nos casinos, em que o resultado de cada jogada assenta exclusivamente no fator sorte e ao qual é absolutamente indiferente a vontade ou perícia do jogador.
II. Constituindo o crime de jogo ilícito p.p. pelo artº 108º DL 422/89 e DL 10/95 (Lei do Jogo) a exploração de tal máquina;”
Ac. TRE de 8-6-2021:
- Na senda do que se pugnou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2010, a diferença entre os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins desses mesmos jogos funda-se para além da temática do jogo, na natureza dos prémios que o jogador pode ganhar: tratando-se de prémios pagos em dinheiro ou fichas convertíveis diretamente em dinheiro são jogos de fortuna ou azar, tratando-se de prémios pagos em espécie são modalidades afins desses mesmos jogos de fortuna ou azar. E isto porque o jogo não será de fortuna ou azar se o jogador puder, com a sua destreza e perícia, influenciar o respetivo resultado, o que não acontece quando o resultado está dependente apenas da sorte.
- Não é elemento do tipo legal do crime de exploração de jogo de fortuna e azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza económica; basta que façam depender os resultados obtidos pelo jogador exclusivamente, de sorte, sem que o mesmo tenha possibilidade de, como se referiu, os influenciar.
Ac. TRG de 2-11-2015:
O jogo de uma máquina que, não pagando diretamente prémios em fichas ou dinheiro, desenvolve temas próprios de jogos de fortuna ou azar (em tudo semelhante ao modo de operação de um jogo de roleta) e apresenta como resultado pontuações (suscetíveis de serem convertidas em dinheiro) dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (sem qualquer intervenção da perícia do jogador), deve ser classificado como um jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 1º e 4º, nº1, al. g, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.
Na situação vertente, e com relevo para a decisão, temos que a acusação descreve que o arguido tinha no estabelecimento que explora máquinas que, pelas suas características e tal como vêm classificadas pelas perícias realizadas, realizavam jogos cujos resultados assentam exclusivamente na sorte, uma vez que o jogador não tem qualquer influência no seu funcionamento, não sendo a perícia do jogador determinante para o resultado final e a sua exploração apenas é permitida em casinos.
Mais se descreve na acusação pública que em qualquer um dos descritos jogos, os resultados obtidos pelo jogador são convertidos em prémios monetários.
Que o arguido não detinha autorização para a exploração dos referidos jogos, dos quais conhecia o modo de funcionamento, designadamente que o seu resultado dependia essencial ou fundamentalmente da sorte, jogos esses que se mantinham ocultos até à introdução, no sistema informático, de códigos de acesso, cujo conhecimento era restrito nos utilizadores e na validade, para impedir que, em sede de fiscalização, fosse identificada tal funcionalidade.
O arguido sabia que a exploração de tais jogos estava sujeita a prévia autorização das competentes autoridades administrativas, autorização essa que não possuía.
E, não obstante, quis explorar os referidos jogos, com o intuito de obter lucro.
Claramente não estamos perante máquinas de mera diversão, sem qualquer ganho (ou perda).
Nem se pode defender que existe qualquer omissão na descrição do modo de funcionamento dos jogos[2]; são jogos tipo slot machine, tipo poker e tipo roleta; só autorizados em casino; e o seu desenrolar está perfeitamente descrito na acusação pública.
Mais ali se aduz que os resultados obtidos pelo jogador são convertidos em prémios monetários.
E ainda se descreve que o arguido tinha o intuito de explorar o lucro obtido.
Sem necessidade de maiores desenvolvimentos impõe-se concluir que efetivamente o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita a acusação contra o arguido pela prática, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos dos arts. 108.º, n.ºs 1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos arts. 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02.12.
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em, no provimento do recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que admita a acusação contra o arguido AA pela prática, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos dos arts. 108.º, n.ºs 1 e 2, 3.º e 4.º, n.º1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02-12, com as respetivas alterações, conjugado com título III, Capítulo único, da Portaria n.º 817/2005, de 13.09, em concurso aparente com um crime de transporte, transação, exposição e divulgação de material de jogo, punido pelos arts. 115.º e 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 02.12.
Notifique.
D.N
Porto, 5 de Fevereiro de 2025.
Paula Pires
Raul Cordeiro
Maria Dolores da Silva e Sousa
____________________
[1] Neste sentido cf. a fundamentação do acórdão de Fixação de Jurisprudência nº4/2010 de 4 de Fevereiro de 2010.
[2] Em sede de Resposta ao Parecer da Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta o arguido defende que apenas existe na acusação a conclusão de que se trata de jogo de fortuna ou azar; o que não corresponde à verdade pois que o desenvolvimento de cada um dos jogos está descrito de modo densificado na mesma acusação.