HOMICÍDIO QUALIFICADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO PARCIAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
Sumário


I. Estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
II. Julgado pela Relação o recurso interposto da decisão proferida em 1ª instância, o recorrente inconformado com a decisão da 2ª instância, já só pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância.
III. Não é admissível que o Recorrente submeta inovatoriamente à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça a questão da qualificação jurídica do crime que optou por não submeter à apreciação do tribunal da relação (art. 410º nº 1 do Código de Processo Penal), sem embargo da possibilidade de alteração oficiosa dessa qualificação pelo Supremo.
IV. O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada  reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar.
V. Nas circunstâncias dos autos é justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados no art. 71º do Código Penal, não merecendo censura, a pena fixada em 19 anos de prisão, ligeiramente acima do ponto médio da moldura penal, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.s 14º nº 1, 131º e 132º nºs 1 e 2 al.s e) e h) do Código Penal

Texto Integral

Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

Por acórdão de 14.3.2024, o tribunal coletivo condenou o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de ..., nacionalidade portuguesa, nascido a ........1955, divorciado, residente na rua ... ..., actualmente detido no Estabelecimento Prisional de ..., pela autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 131º e 132º nºs 1 e 2 al.s e) e h) ambos do Código Penal na pena de dezassete anos de prisão; na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de um ano e seis meses, nos termos do disposto no art. 69º nº 1 al b) e nº 2 do Código Penal.

Inconformados, o Ministério Público e o arguido recorreram para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, por acórdão de 24.9.2024, decidiu:

1) Alterar o ponto 7 da matéria de facto provada nos moldes supra referidos em 2.2.;

2) Julgar improcedente o recurso do arguido AA;

3) Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência:

a. Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 14.º n.º 1, 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão e condenar o arguido, pela prática do referido crime de homicídio qualificado, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão.

b. Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do C.P e condenar o arguido na referida pena acessória pelo período de 2 (dois) anos.

4) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

Em discordância com o acórdão da Relação vem agora interposto recurso pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

Nulidade do acórdão

A- Apesar de conter factualidade importante e decisiva para imputação subjectiva do ilícito ao arguido, nenhuma motivação é apresentada no acórdão relativamente aos factos vertidos sob os arts. 24º a 28º da factualidade dada como provada, sendo que tal omissão, injustificada, constitui causa de nulidade da sentença, na conformidade do disposto no nº 2 do art. 374º C.Pr.Penal.

B- E o acórdão da Relação, embora reconhecendo essa omissão, sustenta que a nulidade inexiste porquanto se compreende com suficiente clareza o raciocínio que o tribunal a quo seguiu para concluir que o arguido atropelou dolosamente o ofendido.

C- Mas o certo é que nenhuma prova foi produzida sobre esses pontos da matéria de facto dada como assente, nem factualidade alguma permite inferir a realidade que aí vertida foi e, por outro lado, não há qualquer lógica em o arguido se pretender vingar por causa de uma acção contra ele instaurada pela vítima 27 anos antes, nem as regras da experiência a isso nos conduzem.

D- Pelo que violados se mostram os princípios legais ínsitos nos arts. 374º nº 2 C.Pr.Penal e 205º, nº 1 Constituição República por inobservância dos requisitos da fundamentação da decisão, e para que seja dado a conhecer ao arguido as razões da decisão e assumir com conhecimento total os seus direitos de defesa.

E- Tal omissão, injustificada, constitui, pois, causa de nulidade do acórdão, na conformidade do disposto no nº 2 do art. 374º C.Pr.Penal, sendo que essa factualidade é essencial para imputação subjectiva do ilícito ao arguido.

Para além disso,

F- Na procedência integral da acusação foi o arguido AA condenado, como autor material, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. e) e h), ambos C.Penal, na pena de 17 anos de prisão, condenação que se estribou no facto do arguido ter atropelado voluntária e intencionalmente, com a sua viatura automóvel, a vítima DD.

G- O acórdão recorrido confirma e agrava a pena aplicada ao arguido, essencialmente, com base na seguinte factualidade:

• o arguido, conduzindo o seu veículo automóvel, cruzou-se com o veículo conduzido pela vítima (mas sem estar provado que ele sabia que esse veículo era dela e era por ela conduzido);

• imediatamente tomou a iniciativa de ir no seu encalço com o propósito de o atropelar e molestar fisicamente

(mas sem estar demonstrado que o arguido sabia que a vítima ia parar alguns metros mais adiante);

• e formou este desiderato para se vingar de uma acção e execução contra si instaurados 27 anos antes deste atropelamento;

• atropelando-o voluntariamente a cerca de 5 m de distância de uma oficina mecânica, que estava em plena laboração, durante o dia, onde arguido e vítima eram conhecidos e sabedores que essa oficina tinha câmaras de vigilância exteriores;

• após o atropelamento o arguido acelerou o veículo, pondo-se em fuga

(mas sem estar assente que ele se apercebeu ou teve consciência de ter atropelado alguém).

H- É certo que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, mas sem prejuízo do que disposto fica na al. c) do nº 2 e nº 3 do art. 410.º, tal como estatuído no art. 434º C.Pr.Penal.

I- E segundo os aludidos normativos vertidos no art. 410º, os recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal coletivo podem ter como fundamento os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, desde que resultem do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, bem como a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

J- Se é pacífico que as instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo, também o é que o Supremo poderá sindicar tal actividade a fim de averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.

K- A prova por presunção consiste na ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigos 349.º e 351.º do Código Civil), ou seja, em julgar provado um facto sem que sobre ele exista um meio direto de prova, chegando-se ao facto a provar a partir de outros factos, estes já provados, que com ele estão intimamente ligados, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

L- Mas a presunção tem de fundar-se num facto de partida que está indubitavelmente provado, que os factos dela integradores sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar, não podendo fundar-se a inferência num facto desconhecido, ou seja, a presunção centra-se num juízo de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz de raciocínios lógicos, naturais ou extraídos das regras da experiência.

M- Como decidido no acórdão da R.Lx, in processo nº 1245/22.8PBLSB.L1-5 A prova indirecta assenta na passagem de um facto conhecido para a prova de um facto desconhecido, em cujo processo intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem afirmar, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, que determinado facto, que não está diretamente provado, é a consequência natural, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, de um facto conhecido.

N- Mas porque os factos suporte da presunção judicial, como todos os factos, são susceptíveis de uma certa valoração e elaboração, em que podem intervir elementos de racionalidade lógica, regras técnicas e conhecimentos radicados na experiência comum, que podem por indução revelar outros aspectos de facto desconhecidos, exige-se, exige a lei, imperativamente, que a base da presunção esteja provada, que os factos que a integram sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar.

O- Por outro lado, A máxima da experiência, nas expressivas palavras vertidas no ac. STJ, in proc. nº 936/08.0JAPRT.S1, é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos. Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como uma possibilidade mais ou menos ampla.

A máxima da experiência é uma regra e, assim, não pertence ao mundo dos factos.

Consequentemente, origina um juízo de probabilidade e não de certeza.

P- Atendo-nos ao caso vertente, afigura-se, e com o devido respeito, que as ilações extraídas não se apresentam plausíveis, afrontando mesmo as regras da lógica e da experiência comum. Efectivamente, que factos podem suportar a dedução de que o arguido, conduzindo o seu veículo automóvel, cruzou-se com o veículo conduzido pela vítima (mas sem estar provado que ele sabia que esse veículo era dela e era por ela conduzido) e imediatamente tomou a iniciativa de ir no seu encalço com o propósito de o atropelar e molestar fisicamente (mas sem estar demonstrado que o arguido sabia que a vítima ia parar alguns metros mais adiante)?

Q- Afronta as mais elementares regras da racionalidade lógica e do conhecimento radicado na experiência comum que, passados 27 anos, o arguido, numa manhã de nevoeiro (pouco intenso, mas estava nevoeiro), tenha tomado a iniciativa naquele preciso momento de atentar contra a vida da vítima, ao inferir-se e dar-se, por essa via, precisamente como assente que o arguido agiu, propôs-se intencionalmente atropelar o arguido com o intuito de se vingar do ofendido DD por o ofendido ter instaurado uma acção declarativa de condenação e posteriormente ter instaurado uma execução para pagamento da quantia de 700.000$00, o que ocorreu no ano de 1997, sendo certo que nem alegado vem que essa circunstância os tenha pessoalmente incompatibilizado.

R- A não ser o dado objectivo de ter sido instaurada pela vítima uma acção e posterior execução contra o arguido, acções essas instauradas havia 27 anos, nenhum outro facto provado existe com virtualidade para permitir inferir aquela factualidade.

S- Igualmente escapa às regras mais básicas da racionalidade e da experiência comum que o arguido tenha escolhido um lugar a 5 m de distância de uma oficina, que estava em plena laboração, onde arguido e vítima eram conhecidos e sabedores de que até estava equipada com sistema de videovigilância para intencionalmente atropelar a vítima.

T- Sendo a intencionalidade, o elemento subjectivo, do atropelamento inferida apenas do facto da vítima ter sido entalada entre os dois veículos e de, após o atropelamento, o veículo conduzido pelo arguido ter acelerado, pondo-se em fuga, está-se a fazer uso de um método dubitativo e não racional de dedução.

U- Mas a ponderação destes simples factos não permite, com base num juízo de normalidade, alicerçado em regras da experiência comum e de logicidade, retirar a ilação de que o arguido atropelou intencionalmente a vítima e fugiu daquele local, quando até nem está demonstrado que ele teve consciência ou até a simples percepção de que tenha embatido contra uma pessoa.

V- Porque afronta aqueles princípios básicos da experiência comum e da lógica do comportamento humano e, por outro lado, não se estriba em factos dados como assentes, a ilação da intencionalidade do atropelamento a que chegaram as instâncias não tem suporte que a fundamente e, como tal, deve ter-se por infundada e não admissível e, consequentemente, ter-se como não provados os factos que assim o concluíram.

X- Aqui chegados, pensamos ser possível concluir, já que nenhum dos factos provados permite deduzir que o atropelamento foi intencionalmente provocado, que a dinâmica desta ocorrência é perfeitamente compatível com um mero acidente rodoviário.

Z- Ao inferir-se que o atropelamento da vítima foi intencionalmente provocado pelo arguido, com o intuito de se vingar daquela por causa de uma acção contra ele instaurada, e nas condições e lugar onde o mesmo ocorreu, além dos factos dados como assentes não suportarem essa ilação, ofende ainda as mais elementares regras da experiência comum e da lógica do comportamento humano, violando frontalmente os princípios ínsitos nas disposições legais que emanam dos arts. 349º e 351º C.Civil e 127º C.Pr.Penal.

Medida da pena

AA- Sem prejuízo do que exposto fica, e sem conceder, afigura-se, e com o devido respeito, que sempre a pena ora aplicada, à imagem da que já fora imposta na 1ª instância, se configura como exagerada, não se coadunando com os princípios que devem nortear a fixação da medida concreta da pena, não estando em consonância com os princípios que devem nortear a sua medida, indo além da culpa e das necessidades de prevenção geral e não se coaduna com as necessidades especiais de socialização do arguido.

BB- Na verdade, a determinação da medida concreta da apena deve ser encontrada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, em conformidade com o que decorre do disposto nos arts. 71º, nº 1 e 40º C.Penal, ou seja, haverá que ponderar as necessidades de tutela do bem jurídico violado, bem como as exigências sociais que emanam dessa lesão, assim como a necessidade de preservação da dignidade do infractor, tendo em vista a sua recuperação e reintegração social.

CC- Sendo certo que não podem, na determinação da medida concreta da pena, relevar aqueles elementos que já foram considerados pelo legislador para quantificação da moldura abstracta da pena, tendo ainda e sempre presente que a pena não deve ultrapassar o limite imposto pela culpa –nº 2 do art. 40º C.Penal.

DD- Decorre do disposto no nº 1 do art. 132º C.Penal, que o homicídio só será qualificado se e quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, elencando seguidamente o nº 2 as circunstâncias que poderão dar lugar a essa agravação, mas não sendo estas circunstâncias agravantes modificativas de funcionamento automático.

EE-Pelo que nem sempre a prova de factos integradores de alguma das circunstâncias expressamente previstas no nº 2 do artigo 132º desencadeará de per si a agravação e, mesmo na hipótese de alguma das circunstâncias aí enumeradas ocorrer, mas sem a especial censurabilidade ou perversidade, não haverá agravação.

FF- Como se afirma no ac. STJ, in proc. nº 884/22.1JAPDL.S1, transcrevendo o descrito no Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, 37, mostra-se “indispensável determinar, com particular exigência e severidade” a verificação da «qualificação», sob pena de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro políticocriminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso”.

GG- De acordo com a orientação seguida nesse douto acórdão, aquelas circunstâncias são, pois, além de meramente exemplificativas e de funcionamento não automático, elementos constitutivos do tipo de culpa, enquanto a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, já a especial perversidade tem por objecto as componentes da culpa referentes ao agente.

HH- Apenas aquelas condutas demonstrativas de um comportamento e vivência antissociais, avessos a uma sã e pacifica integração comunitária, e de uma personalidade intrinsecamente mal- -formada é que serão reveladores de uma especial perversidade, enquanto a atitude do agente, a forma de cometimento do facto ilícito que seja sofisticado e cruel é que serão susceptíveis de revelar a tal especial censurabilidade.

II- Como a conduta imputada ao arguido e o modo como foi praticada não assumem essas características, então não se poderá afirmar que as circunstâncias que rodearam a morte da vítima são reveladoras daquela especial censurabilidade e perversidade com virtualidade para qualificar o homicídio, pelo que se estaria perante um crime da previsão do art. 131º C.Penal.

JJ- Mas mesmo aceitando a factualidade que fundamentou a condenação do arguido afigurase que ela não é de molde a qualificar o crime de homicídio ou, pelo menos, a integrar a qualificativa da al. e) do nº 2 do aludido art. 132º, desde logo porque até é apontado um móbil para o crime e este não seria, nessa óptica, gratuito ou leviano e, por isso, um motivo fútil, e, por outro, porque a lei exige que a qualificativa do meio utilizado seja particularmente perigoso, ou seja, que esse meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, o que não será o caso da situação vertente.

KK- Na conjugação do que exposto se deixa, por um lado, e considerando, por outro, que o arguido é primário, o que na sua idade - 69 anos- é bastante relevante, é pessoa pacata e não conflituosa e dotado de hábitos de trabalho -factos vertidos nos pontos nºs 40º e 41º dos factos assentes-, e perante todo o circunstancialismo operante para doseamento da pena e a pena abstractamente aplicável, afigura-se que a pena em concreto deverá situar-se no seu mínimo legal ou próximo desse mínimo, sendo desadequada a pena em concreto aplicada, e muito menos a aplicada no acórdão recorrido, sendo de todo desproporcionada a aí aplicada.

LL- Tendo o acórdão recorrido, quer por inadequada interpretação quer por omissão, violado os princípios ínsitos nos arts. 40º, nºs 1 e 2, 71º, nºs 1 e 2 e 132º, todos C.Penal.

Termos em que, na procedência do recurso:

a- deve ser declarada a nulidade do acórdão por omissão de motivação relativamente aos factos vertidos sob os arts. 24º a 28º da factualidade dada como provada;

para além disso,

b- porque a dedução que levou a serem dados como provados os factos concretamente vertidos nos arts.:

• 4º.. e foi no encalço do veículo…

• 7. … fez com que o veículo conduzido por si embatesse no ofendido DD …

• 9. Após o embate, o arguido acelerou o veículo que conduzia, pondo-se em fuga, …

• 24. O arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de tirar a vida ao ofendido DD …

• 27. Agiu o arguido com o intuito de se vingar do ofendido DD por o ofendido ter instaurado a citada acção declarativa de condenação …e de ter instaurado a mencionada execução sumária afronta os princípios básicos da experiência comum e da lógica do comportamento humano e, por outro lado, não se estriba em factos dados como assentes, deve ter-se por infundada e não admissível e, consequentemente, ter-se como não provados tais factos assim deduzidos.

sem conceder e a assim se não entender,

c- dever-se-á alterar a qualificação do crime imputado ao arguido, e decidir-se que a sua conduta integra apenas um crime de homicídio simples da previsão do art. 131º C.Penal;

d- e sempre deverá ser alterada a pena aplicada, devendo-se situar no seu mínimo legal ou próximo desse mínimo, por desadequada a pena em concreto aplicada.

Como é de inteira JUSTIÇA

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, concluindo pela improcedência do recurso:

1. O acórdão recorrido, e ao contrário do asseverado pelo recorrente, satisfaz as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 374.º, n.º 2, do CPPenal, não se verificando, em consequência, a nulidade prevista no artigo 379, n.º 1, al. a), do CPPenal, pois que aquela revela a lógica do raciocínio seguido e as razões da concretizada convicção sobre os factos provados, descobrindo-se nela as provas que foram utilizadas e os motivos da credibilidade dos depoimentos prestados, mormente porque deu como assente a intenção de o arguido em tirar a vida ao ofendido.

2. A impugnação da matéria de facto concretizada pelo arguido e revelada na alegada verificação de um erro notório na apreciação da prova - art.º 410, n.º 2, al. c) do CPPenal, não pode ser conhecida pelo STJ, não pode por este ser admitida, por a tal obstar o previsto nos artigos 432º, n.º1 , alíneas a) e c) e 434º do CPPenal, já que, em recurso, este tribunal decide exclusivamente de direito, podendo estender o seu conhecimento aos erros-vícios previstos no referido normativo, todavia ex officio; mal-grado esta realidade, do texto do acórdão recorrido não se retira a verificação do identificado vício sendo plena a sua lógica factual e a sua harmonia argumentativa.

3. O acórdão recorrido coloca-se fora de qualquer censura quando qualificou os factos provados como constituindo o crime p. e p. pelo art.º 132, n.º 2, alíneas e) e h) do CPenal, pois que aqueles factos são reveladores de uma especial censurabilidade na morte da vítima pelo arguido, são indicadores da verificação naquela de uma fútil motivação e da utilização pelo arguido de um meio particularmente perigoso, inexistindo fundamento para uma desqualificação do crime referido.

4. Estando provada uma culpa agravada do arguido, não poderá haver lugar a uma redução do quantum da pena aplicada no quadro de uma autoria do citado crime de homicídio qualificado, tendo em vista a acertada ponderação das circunstâncias a que alude o art.º 71 do CPenal e o que assenta o art.º 40, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código, circunstâncias que foram ponderadamente examinadas no achamento da pena agora contestada.

5. A decisão em apreço deverá, por isso, ser totalmente confirmada.

Esta é a nossa resposta ao recurso.

V. Ex.ªs, com ponderação e saber, farão JUSTIÇA.

Respondeu a assistente EE, concluindo:

A. É intempestivo o recurso quando ao erro de julgamento referidos nos n.º2 e 3 do art. 410º do CPP, uma vez que a decisão sobre os factos 4º, 7º, 9º, 24º e 27º foi notificada ao arguido a 14 de março de 2024.

B. Por verificação da dupla conforme é irrecorrível a decisão sobre a alegada nulidade por falta de fundamentação da decisão relativa aos factos provados de 24º a 28º em primeira instância.

C. Atendendo ao elevadíssimo grau de ilicitude e culpa manifestada na conduta do arguido e às necessidades de prevenção geral e especial é de manter pena aplicada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Razões pelas quais deve improceder o recurso apresentado pelo arguido.

Assim se fazendo a costuma JUSTIÇA.


*


Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 417º nº 1 do Código de Processo Penal.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer que termina com a seguinte síntese e conclusão:

Em síntese:

Deve ser rejeitado o recurso quanto à questão do erro-vício invocado (erro notório na apreciação da prova), por inadmissibilidade legal;

Não padece o Acórdão recorrido da nulidade de “falta de fundamentação”, pois que a motivação da formação da livre convicção relativamente aos factos-provados 24.-28., além de que a leitura dessa parte da decisão impugnada permite a um observador atento a objectivação e a apreensão do seu sentido lógico-jurídico e dos pressupostos dialécticos da justa convicção formada;

Não padece a decisão condenatória de erro notório na apreciação da prova, pois o Colectivo formou a sua convicção sobre a actuação do arguido assente em pressupostos lógico-dialécticos atestados pela experiência comum, no que foi sindicado pelo Tribunal da Relação, que a assumiu também como a certeza prático-jurídica, no respeito pelas regras prudenciais da sindicabilidade da questão-de-facto em sede de recurso da sua impugnação alargada e de forma objectivável, o que o recorrente não logra pôr em crise com a linha de argumentação traçada;

Age por motivo torpe ou fútil o homicida é motivado por um sentimento de vingança por actuação legítima da vítima (ganho e execução de acção cível proposta contra si) há mais de 25 anos;

O veículo automóvel utilizado, ligeiro de mercadorias – pela sua densidade, dureza, peso e volume, pela sua natural aptidão contundente, pela violência do seu uso (abalroamento da vítima, a, pelo menos, 50km/h, e aperto contra a sua viatura, que se preparar para fechar), pelo visar indiscriminado de todo o corpo da vítima, pelo inerente risco de, na dinâmica do facto (vítima, veículo em movimento e agente), resultarem lesionados com gravidade bens pessoais de terceiros – preenche, pela sua letalidade, o conceito “meio particularmente perigoso”;

A pena de 19 anos de prisão, pela prática do crime de “homicídio qualificado”, não se mostra, adentro da sua moldura abstracta, excessiva, tendo em vista a satisfação das exigências da prevenção geral e especial, integrada aquela pela ideia da culpa (necessidade, adequação e proporcionalidade).

IV Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

-Deverá o presente recurso ser rejeitado quanto ao invocado erro-vício (erro notório na apreciação da prova);

-No restante, deverá o recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.

Em resposta ao parecer o Recorrente “concluiu, como nas alegações de recurso, pela procedência do recurso, nos precisos termos aí defendidos”.


*


Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 418º e 419º, nº 3 al. c) a contrario, 421º e 435º do Código de Processo Penal).

Realizou-se audiência nos termos requeridos pelo Recorrente.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

O recurso, que é circunscrito a matéria de direito (art. 434º do Código de Processo Penal), tem, pois, por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso, que confirmou a decisão de aplicação de uma pena única superior a 8 anos de prisão, recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 399º, 400º nº 1 al. f) e 432º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal).

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (art.s 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal (acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, no DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379º nº 2 do Código de Processo Penal, na redação da Lei 20/2013, de 21.2).

Tendo em conta as conclusões da motivação, as questões a decidir são:

1. Admissibilidade do recurso sobre a nulidade por falta de fundamentação e violação do princípio da livre apreciação da prova (irracionalidade das presunções);

2. Admissibilidade do recurso sobre a qualificação jurídica;

3. Medida da pena.


***


Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada (com a alteração a que o Tribunal da Relação procedeu):

«1. No dia ... de ... de 2023, no período compreendido entre as 9:16 e as 9:18 horas, na rua ..., ..., o arguido conduzia um veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca Volkswagen, modelo Golf 3, de cor branco, com a matrícula ..-..-DO, no sentido V...-C... e o ofendido DD conduzia um veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca Mitsubishi, modelo L200, com a matrícula ..-..-MP, no sentido contrário, nomeadamente C...-V.....

2. No mencionado período de tempo, na citada rua ..., o arguido conduzindo o mencionado veículo, com a matrícula ..-..-DO, cruzou-se com o veículo conduzido pelo ofendido DD com a matrícula ..-..-MP.

3. No referido período de tempo, na mencionada rua ..., o arguido, após ter-se cruzado com o veículo conduzido pelo ofendido DD, estacionou o veículo que conduzia na berma da mencionada rua, em frente à oficina “Auto M...” e aí permaneceu cerca de 30 segundos.

4. De seguida, o arguido iniciou marcha, entrou na via e efectuou manobra de inversão de marcha passando a circular no sentido C...-V.... e foi no encalço do veículo conduzido pelo ofendido DD.

5. Pelas 9:19 horas, na rua ..., ..., o ofendido DD estacionou o veículo que conduzia com a matrícula ..-..-MP na berma direita da via (atento o sentido de marcha em que circulava), nas proximidades da oficina “M...”, nomeadamente a cerca de 5 metros da entrada da oficina, ficando tal veículo completamente estacionado na berma a cerca de 70 cm da via.

6. Após, o ofendido DD saiu do veículo.

7. Pelas 9:20 horas do referido dia ... de ... de 2023, o arguido conduzindo o veículo com a matrícula ..-..-DO a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 50 km/hora, ao avistar o ofendido DD junto à porta do condutor do mencionado veículo de marca Mitsubishi, modelo L200, com a matrícula ..-..-MP, fez com que o veículo conduzido por si embatesse no ofendido DD no momento em que este se preparava para fechar a porta do condutor do veículo com a matrícula ..-..-MP.

8. Apesar do embate, o arguido prosseguiu a sua marcha, entalando o ofendido DD entre a parte lateral direita do veículo que conduzia e a parte lateral esquerda do veículo de marca Mitsubishi, modelo L200 e projectando o ofendido DD a cerca de 3 metros.

9. Após o embate, o arguido acelerou o veículo que conduzia, pondo-se em fuga, circulou em frente à oficina “Auto A...” sita na mencionada rua ..., circulando no sentido da sua habitação sita na citada rua ... e que dista cerca de 600 metros do local do embate.

10. O local do embate configura uma recta com cerca de 850 metros, composta por uma faixa de rodagem com uma largura de 7,30 metros, com duas vias de circulação para cada sentido, separadas por linha longitudinal descontínua inscrita no pavimento e no momento do embate as condições meteorológicas eram de bom tempo - nomeadamente tempo seco, nevoeiro pouco denso e boas condições de visibilidade - o pavimento da faixa de rodagem encontrava-se asfaltado e em bom estado de conservação e não circulava nas proximidades - quer no mesmo sentido em que circulava o arguido, quer em sentido contrário - qualquer veículo automóvel, nem existia nas proximidades qualquer peão ou animal.

11. Após os factos acima mencionados, FF conduzindo um veículo pesado de mercadorias circulou na citada rua ..., no sentido V...-C..., visualizou o ofendido DD prostrado no solo e accionou os meios de socorro, tendo ligado para o 112.

12. O ofendido DD foi transportado para o serviço de urgência do Hospital 1 e, posteriormente para o serviço de urgência do Hospital 2, tendo falecido no dia ... de ... de 2023, pelas 14:11 horas.

13. Em consequência directa e necessária do embate, o ofendido DD sofreu:

No hábito externo:

A nível da Cabeça:

a. Penso em torno do crânio, sob o qual se observa escoriação de fundo avermelhada na região frontal esquerda, com 10 por 6 cm de maiores eixos, encontrando-se na referida área 4 soluções de continuidade suturadas com fio de sutura preto;

b. Escoriação de fundo avermelhado, envolvendo a hemiface esquerda, com 12 por 9 cm de maiores eixos;

c. Escoriação de fundo avermelhado, ténue, na extremidade distal da pirâmide nasal, com 2,00 por 1,5 cm de maiores eixos;

A nível do abdómen:

a. Escoriação de fundo alaranjado, no flanco esquerdo, com 4 por 1 cm de maiores eixos;

b. Penso na transição da fossa ilíaca direita para a bacia, sob o qual se observa solução de continuidade suturada com fio de sutura preto, com 5 cm de comprimento;

c. Penso no hipogastro, sob o qual se observa solução de continuidade com agrafos, vertical, com 7 cm de comprimento;

d. Penso na transição da fossa ilíaca esquerda para a bacia, sob o qual se observa solução de continuidade suturada com fio de sutura preto, com 5 cm de comprimento;

A nível da área ano-genital:

a. Escoriação de fundo avermelhado na região nadegueira direita, com 12 por 7 cm de maiores eixos;

A nível do membro superior direito:

a. Escoriação de fundo avermelhado na face dorsal da articulação interfalângica do 1º dedo, com 1,5 por 1,0 cm de maiores eixos;

b. Múltiplas equimoses de coloração arroxeada na face anterior do terço distal do antebraço, numa área de 5 por 5 cm de maiores eixos;

A nível do membro superior esquerdo:

a. Escoriação de fundo avermelhado na face posterior do cotovelo, com 2,0 por 1,5 cm de maiores eixos;

b. Escoriação de fundo avermelhado no dorso do 5º dedo, com 1,5 por 1,3 cm de maiores eixos;

A nível do membro inferior direito:

a. Mobilidade anormal do terço proximal da perna;

b. Múltiplas escoriações de fundo alaranjado na face lateral do terço proximal da perna, numa área de 10 por 7 cm de maiores eixos;

c. Múltiplas escoriações de fundo alaranjado na face anterior do terço proximal da perna, numa área de 5 por 4 cm de maiores eixos;

d. Múltiplas escoriações de fundo alaranjado na face lateral do terço distal da perna, numa área de 4,5 por 1,5 cm de maiores eixos;

A nível do membro inferior esquerdo:

a. Mobilidade anormal do terço proximal da perna;

b. Múltiplas escoriações de fundo alaranjado na face lateral do terço proximal da coxa, numa área de 13 por 6 cm de maiores eixos;

c. Escoriação de fundo avermelhado na face antero-medial do terço distal da coxa, com 7 por 2 cm de maiores eixos;

d. Escoriação de fundo avermelhado na face lateral do joelho, com 5 por 4 cm de maiores eixos;

e. Penso envolvendo a perna, sob o qual se observa na face anterior solução de continuidade suturada com fio de sutura preto, com 9 cm de comprimento e escoriação de fundo avermelhado circundante, com 13 por 11 cm de maiores eixos;

f. Escoriação de fundo avermelhado na face lateral do terço distal da perna, com 3,5 por 2,00 cm de maiores eixos;

No hábito interno

A nível da cabeça:

a. Partes moles: infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo, na região frontal esquerda, ao nível da escoriação e soluções de continuidade descritas no hábito externo;

b. Encéfalo: presença de sulcos rasos e circunvoluções aplanadas, aspetos compatíveis com edema cerebral;

A nível do pescoço:

a. Tecido celular subcutâneo: infiltração sanguínea nos tecidos moles do pescoço, em topografia subjacente às soluções de continuidade descritas no hábito externo;

A nível do tórax:

a. Clavícula, cartilagens e costelas direitas: presença de fratura da 6ª costela ao nível do arco anterior, com infiltração sanguínea dos bordos, e tecidos adjacentes;

b. Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: Presença de fratura da 3ª à 6ª costelas ao nível do arco anterior, com infiltração sanguínea dos bordos, e tecidos adjacentes. Presença de fratura da 4ª, 5ª e 6ª costelas ao nível do arco médio, com infiltração sanguínea dos bordos, e tecidos adjacentes;

c. Pleura parietal e cavidade pleural direita: Contendo 500 cc de líquido de coloração laranja citrina, aspetos compatíveis com derrame pleural;

d. Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Contendo 200 cc de líquido de coloração laranja citrina, aspetos compatíveis com derrame pleural;

e. Pulmão direito e pleura visceral: Superfície pulmonar de coloração predominantemente avermelhada nos segmentos anteriores e de coloração vermelha mais escura nas porções posteriores, em relação com fenómenos de hipostase. Presença de pigmento antracótico disperso. Parênquima hipocrepitante. Revela edema marcado na superfície das secções de corte;

f. Pulmão esquerdo e pleura visceral: Superfície pulmonar de coloração predominantemente avermelhada nos segmentos anteriores e de coloração vermelha mais escura nas porções posteriores, em relação com fenómenos de hipostase. Presença de pigmento antracótico disperso. Parênquima hipocrepitante. Revela edema marcado na superfície das secções de corte;

A nível do abdómen:

a. Peritoneu e cavidade peritoneal: Infiltração sanguínea marcada do peritoneu parietal da região pélvica e terço distal do abdómen. Contendo 700 cc de líquido avermelhado, aparentemente sero-hemático;

b. Intestinos: Apêndice ileocecal. Ansas de coloração rosada, com infiltração sanguínea peri-reto e sigmóide. Presença de fezes moldadas na ampola rectal;

c. Rim direito: Descapsulação fácil, com infiltração sanguínea peri-cápsula marcada. Superfície com múltiplas telangiectasias e cicatrizes à superfície. Superfície de corte com boa diferenciação cortico-medular e infiltração adiposa da árvore pielocalicial;

d. Rim esquerdo: Descapsulação fácil, com infiltração sanguínea peri-cápsula marcada. Superfície com múltiplas telangiectasias e cicatrizes à superfície. Superfície de corte com boa diferenciação cortico-medular e infiltração adiposa da árvore pielocalicial;

e. Bexiga: Vazia. Múltiplas áreas de infiltração sanguíneas dispersas pela mucosa;

f. Bacia: Múltiplas fraturas cominutivas da bacia, nomeadamente ao nível da face anterior e articulações sacro-ilíacas, com infiltração sanguínea marcada dos tecidos moles adjacentes e topos ósseos. Observam-se um total de 6 compressas embebidas em sangue na região pélvica;

A nível da coluna vertebral e medula:

a. Vértebras e estruturas articulares: Fratura com infiltração sanguínea dos bordos e tecidos moles adjacentes, das apófises transversas das vértebras lombares bilateralmente.

14. As referidas lesões pélvicas foram causa directa e adequada da morte do ofendido DD.

15. A capa do espelho retrovisor direito, de cor preto, do citado veículo automóvel com a matrícula ..-..-DO em resultado do citado embate caiu e ficou a cerca de 4,5 metros da roda anterior esquerda do veículo com a matrícula ..-..-MP.

16. Desde data não concretamente apurada, o ofendido DD, pelo menos cerca de duas vezes por mês, deslocava-se à oficina “M...” conduzindo o veículo de marca Mitsubishi, modelo L200, com a matrícula ..-..-MP, estacionava o veículo nas proximidades da oficina, saia do veículo, entrava na oficina e deixava motosserras de que era proprietário para reparação.

17. No dia ... de ... de 2023 o ofendido DD estacionou o mencionado veículo com a matrícula ..-..-MP nas proximidades da oficina “M...”, nomeadamente a cerca de cinco metros da entrada da oficina, com o objectivo de deixar para reparação em tal oficina duas motosserras que trazia nos bancos traseiros do veículo.

18. Desde data não concretamente apurada e até ao dia ... de janeiro de 2023, o arguido, pelo menos cerca de quatro vezes por semana, deslocava-se à oficina “M...”, conduzindo o veículo com a matrícula ..-..-DO, e aí falava com o proprietário da oficina, GG, e com clientes da oficina, sendo que no período compreendido entre o dia ... de janeiro de 2023 e o dia ... de janeiro de 2023 o arguido esteve em tal oficina e conversou com GG, tendo-se deslocado à mesma conduzindo o referido veículo com a matrícula ..-..-DO.

19. Em ...-...-1996, o ofendido DD instaurou uma acção judicial contra o arguido requerendo que o arguido lhe pagasse a quantia de 700.000$,00 (setecentos mil escudos) acrescida de juros legais desde o dia 1-9-1992 até efectivo e integral pagamento em virtude de ter vendido ao arguido uma máquina agrícola (enfardadeira) pelo preço de 1200.000$00 (um milhão e duzentos mil escudos) e de o arguido apenas ter efectuado o pagamento da quantia de €500.000$,00 (quinhentos mil escudos) que deu origem à acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A do 2º Juízo do Tribunal de ... (cfr. certidão constante do Apenso IV).

20. Em 17-10-1996 o arguido apresentou contestação, no âmbito da citada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A, na qual referiu que:

• O que comprou ao ofendido DD foi um monte de ferro e lata que nunca funcionou nem funciona;

• O preço de compra foi € 500.000$,00 (quinhentos mil escudos) e que já havia pago ao ofendido DD tal quantia; e

• O ofendido DD estava a tentar extorquir-lhe dinheiro, e pediu a condenação do ofendido DD em multa e indemnização não inferior a 100.000$00 (cem mil escudos) por litigar manifestamente contra a verdade dos factos que, por serem pessoais, não poderia ignorar (cfr. certidão constante do Apenso IV).

21. Por sentença datada de 11-7-1997 proferida no âmbito da citada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A o Tribunal condenou o arguido a pagar ao ofendido DD a quantia de 700.000$00 (setecentos mil escudos), acrescida de juros de mora à taxa de 15% ao ano, desde 1-9-1992 até 30-9-1995 e de 10% desde então até efectivo e integral pagamento (cfr. certidão constante do Apenso IV).

22. O arguido não pagou voluntariamente tal quantia e em 2-10-1997 o ofendido DD instaurou execução sumária para pagamento da citada quantia de 700.000$00 (setecentos mil escudos) – que correu por apenso à mencionada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A - e no decurso da execução, nomeadamente em 20-11-1997, foram apreendidos ao arguido dois tractores agrícolas com as matrículas ..-..-HH e PD-..-.. pertencentes ao arguido e respetivos documentos dos tractores (cfr. certidão constante do Apenso IV).

23. Em 10-12-1997 o arguido efectuou o pagamento da citada quantia de 700.000$00 (setecentos mil escudos) e em tal dia por despacho proferido na citada execução sumária - que correu por apenso à mencionada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A - foi determinado o levantamento da apreensão dos citados tractores e a sua entrega ao arguido, tendo, em tal dia, os documentos dos tractores sido entregues ao arguido (cfr. certidão constante do Apenso IV).

24. O arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de tirar a vida ao ofendido DD, utilizando um veículo automóvel para melhor assegurar o êxito do seu propósito.

25. O arguido conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar a morte, se utilizado contra a vida ou integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos.

26. O arguido agiu com total insensibilidade pelo valor da vida humana, que sabia dever respeitar.

27. Agiu o arguido com o intuito de se vingar do ofendido DD por o ofendido ter instaurado a citada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A do 2º Juízo do Tribunal de ... e de ter instaurado a mencionada execução sumária para pagamento da citada quantia de 700.000$00 (setecentos mil escudos) na qual foram apreendidos os citados tractores pertencentes ao arguido.

28. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Do pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar

29. Na sequência dos factos descritos em 12, o Centro Hospitalar 3, E.P.E. prestou ao ofendido DD cuidados médicos no valor de € 9.157,09.

30. À data dos factos descritos em 7 e ss. o arguido, enquanto proprietário e condutor da viatura automóvel de marca Volkswagen, modelo Golf 3, de cor branco, com a matrícula ..-..-DO havia transferido a responsabilidade civil emergente da circulação de tal veículo para a Seguradora Caravela, Companhia de Seguros S.A por contrato de seguro titulado pela apólice nº ........87, válido e eficaz naquela data.

Mais se provou que:

31. AA nasceu em .../.../1955.

32. É oriundo de núcleo familiar com recursos económicos reduzidos (os progenitores eram agricultores, ambos falecidos), constituindo-se o quinto da fratria de onze elementos, pese embora dois dos irmãos terem falecido ainda crianças.

33. O arguido descreveu a sua socialização primária, como funcional, pautada por relações intrafamiliares gratificantes.

34. Concluiu a escolaridade obrigatória da época, 4º ano de escolaridade, não deixando de estar, de algum modo, associado ao início precoce de colaboração com os progenitores nas actividades ligadas à agricultura e pastorícia.

35. Aos 17 anos, o arguido emigrou para ... ingressando no mercado de trabalho enquanto operário da construção civil, junto dos irmãos mais velhos, instalados nesse país, onde permaneceu 45 anos, embora intercalando a sua residência entre ... e Portugal, de seis em seis meses.

36. AA reportou apenas uma relação conjugal, encetada aos 20 anos de idade, da qual possui 2 filhos, de 45 e 47 anos de idade, ambos autónomos e residentes em ..., com quem mantém ligações afectivas gratificantes.

37. À data dos factos, o arguido constituía agregado familiar com a esposa, em casa própria, com entendidas condições de habitabilidade.

38. Relativamente à relação conjugal, o arguido mencionou aos técnicos da DGRSP que embora a mesma se mantenha formalmente no que diz respeito à administração dos bens em comum, existe um acordo tácito de separação entre ambos os elementos relativamente a outros assuntos, opinião confirmada pelo cônjuge feminino, pese embora aquela mantenha o apoio ao arguido, em meio prisional.

39. No presente, tanto o arguido como o cônjuge beneficiam de reformas decorrentes do desenvolvimento de actividade laboral em ..., que rondam cerca de € 1.500,00/mês, ao qual acresce a exploração de alguma agricultura de subsistência, considerando os rendimentos disponíveis, suficientes para fazer face às necessidades materiais do agregado.

40. Não obstante o parco relacionamento interpessoal com os demais habitantes, o arguido é conotado na comunidade com adequados hábitos de trabalho.

41. Pelos familiares e amigos é considerado uma pessoa pacata e não conflituosa.

42. Todavia, segundo os técnicos da DGRSP e as informações por si colhidas na Comunidade, é-lhe atribuído um temperamento algo conflituoso, quando contrariado.

43. O arguido mantém comportamento adequado no Estabelecimento Prisional de ....

44. AA dispõe de retaguarda familiar, consubstanciada no apoio da mulher e filhos.

45. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Quanto a factos não provados consta do acórdão recorrido:

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que:

a) As deslocações do ofendido á oficina “M...” referidas em 16 ocorressem desde pelo menos 2013 e numa frequência bianual, sendo que nesses momentos, o ofendido estacionava a sua viatura a menos de dez metros da entrada da oficina e na berma da estrada.

b) As deslocações do arguido á oficina “M...” referidas em 18 ocorressem desde pelo menos o mês de ... de 2022.

Sobre a nulidade por falta de fundamentação e violação do princípio da livre apreciação da prova (irracionalidade das presunções) o acórdão recorrido sustentou (excertos mais relevantes):

(…)

Posto isto, dir-se-á que a fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido deixa claramente explicitado o iter da decisão e as razões da valoração efectuada, estruturada nos elementos de prova pericial, documental e pessoal que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, assim como nas regras da experiência, indicando de forma clara a formação da convicção do tribunal a quo.

Quanto aos pontos 24 a 28 dos factos provados compreende-se com suficiente clareza o raciocínio que o tribunal a quo seguiu para concluir que o arguido atropelou dolosamente o ofendido, com a intenção de lhe tirar a vida, o qual se baseia na análise e conjugação de toda a prova produzida, apreciada à luz das regras da experiência comum e da lógica, sabido como é que o dolo - ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico - pertence, por natureza, ao mundo interior do agente.

Por tal razão, ou é revelado pelo próprio, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos - isto é, inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo.

Como decorre da fundamentação da decisão recorrida o tribunal a quo extraiu a conclusão que o embate foi deliberadamente provocado pelo arguido e afastou a tese da negligência de todo o circunstancialismo e comportamento do arguido nos momentos anteriores e posteriores ao embate, o qual se encontra descrito nos pontos 1 a 9 dos factos provados.

Questão diferente é saber se as razões que levaram o tribunal a quo a decidir o que decidiu quanto à intencionalidade do embate devem prevalecer, o que constitui já matéria de impugnação da decisão da matéria de facto, sendo certo que o recorrente manifestou discordância acerca da decisão proferida sobre a matéria de facto através da impugnação ampla da matéria de facto regulada, essencialmente, no artigo 412.º do Código de Processo Penal, a qual analisaremos de seguida.

Improcede, portanto, a invocada nulidade.

(…)

Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição que o acórdão recorrido faz do conteúdo das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas, assim como a análise que faz da prova pericial e documental, não corresponde ao que, na realidade, disseram o arguido e as testemunhas, nem ao que consta daquela prova pericial e documental.

O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.

Esquecendo a valoração que o tribunal colectivo fez de toda a prova produzida, designadamente, no que ora releva, as imagens de videovigilância da oficina “M...”, da oficina “Auto A...”, da empresa “F...” e da habitação sita no n.º 114 da Rua ..., ..., constantes do CD junto aos autos a fls. 756, conjugadas com o depoimento prestado pela testemunha HH, agente da PSP, com formação na área de investigação de acidentes de viação, que procedeu à investigação do acidente e elaborou o relatório técnico e fotográfico de fls. 279 a 301, o recorrente procedeu à transcrição parcial das suas declarações prestadas em audiência de julgamento, assim como transcreveu excertos dos depoimentos das testemunhas II e JJ e das escutas telefónicas para, a partir de tais elementos, conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à convicção do tribunal a quo, concluindo ter sido o autor do atropelamento mas não de forma intencional, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal deu a estes meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto.

(…)

Em relação aos factos impugnados começa o recorrente por invocar as suas declarações prestadas na audiência de julgamento (sessão do dia 31/01/2024), ao referir que nunca se cruzou com o veículo da vítima e que nem sabia qual era o seu veículo, justificando a inversão de marcha com o facto de não ser portador do cartão de aquisição de gasóleo agrícola, do que se apercebeu nesse momento, não podendo por isso adquirir tal combustível, para alegar que a factualidade vertida no ponto 4 dos factos provados terá de ser expurgada da afirmação de que o arguido foi no encalço do veículo conduzido pelo ofendido.

Alega depois que a dinâmica do atropelamento do ofendido não se coaduna, estando mesmo em contradição, com os factos dados como assentes porque estando assente que a porta do veículo do ofendido estava aberta, a qual neste tipo de veículos tem cerca de 1 metro de largura, e que o ofendido se preparava para a fechar a fim de se dirigir para a oficina em frente à qual parara a sua viatura, a qual esta estava estacionada a cerca de 70 cm da via, por um lado, e que o veículo do ofendido não tinha qualquer dano quer na porta quer ao longo do seu lado esquerdo, não apresentando sinais de tinta ou qualquer amolgadela ou qualquer outro sinal de ter sido embatido, tudo como resulta do exame pericial de fls. 705, o atropelamento só poderia ter ocorrido já em plena faixa de rodagem, acrescentando que, caso tivesse sido colhido na berma, o ofendido seria forçosamente projectado e arrastado de encontro à porta da sua viatura, que estava aberta, e esta teria de ser também embatida, e o ofendido não teria sido projectado para o local para onde foi, à frente da sua viatura.

(…)

Como resulta da leitura da decisão recorrida o tribunal a quo formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, analisada criticamente e segundo as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, salientando que as declarações do arguido não mereceram credibilidade, desde logo, porque são contrárias às regras da experiência comum e da normalidade dos acontecimentos e bem assim à demais prova produzida nos autos.

A este respeito importa salientar que as declarações prestadas pelo arguido não têm a força probatória que o recorrente lhe empresta, pois não existe dispositivo legal que atribua força probatória plena às declarações do arguido, muito menos quando se trata de “confissão” de factos que lhe são favoráveis e não têm apoio em qualquer outro meio probatório, estando as suas declarações sujeitas ao critério geral da apreciação livre e motivada.

Não existe norma ou princípio que imponha a aceitação das declarações do arguido em bloco ou em todas as afirmações que profira, mormente na parte em que constituem puro subjectivismo e são infirmadas por outros meios de prova.

Ao invés, como resulta do critério da apreciação livre e motivada, deverá ser-lhe atribuída credibilidade quando o mereçam, o mesmo é dizer quando corroboradas por outros meios de prova, pelas regras da experiência comum e da lógica.

O juiz não é um mero depositário de declarações ou depoimentos que se limita a aceitar ou a recusar na sua globalidade, antes lhes cabe uma tarefa mais árdua que é a precisamente a de conseguir descobrir, em cada um deles, a parte que lhes merece crédito, ponderando de forma conjugada e crítica toda a prova produzida em audiência de julgamento com recurso às regras da experiência da vida e das coisas aferidas por critérios de razoabilidade.

No que respeita ao ponto 4 dos factos provados, como sublinha a decisão recorrida, a versão apresentada pelo recorrente, ao alegar que nunca se cruzou com o veículo da vítima e que nem sabia qual era o seu veículo, justificando a inversão de marcha com o facto de não ser portador do cartão de aquisição de gasóleo agrícola, não se afigura credível, pois, como resulta da prova produzida, designadamente das imagens de videovigilância da empresa “F...”, referentes a 06/01/2023, momentos antes do embate, o arguido cruza-se com a viatura do ofendido que seguia em sentido oposto ao seu e logo de seguida estaciona, permanece parado uns 30 segundos e depois inverte a marcha e segue com a sua viatura no mesmo sentido em que seguia o ofendido, sendo evidente que o arguido viu o ofendido e ali começou a formular a sua vontade de o abordar, se não mesmo de o atropelar, tanto mais que era habitual o ofendido dirigir-se à oficina “M...” para ali deixar motoserras e outros objectos para reparação, assim como era habitual o arguido também se dirigir a tal oficina para falar com o proprietário e com os clientes da mesma.

Salienta ainda a decisão recorrida que não colheu minimamente a versão do arguido de que não viu passar o ofendido e apenas parou a sua viatura junto à oficina Auto M... para verificar se tinha ou não consigo o cartão do gasóleo agrícola, pois não faz sentido, em termos de lógica e de plausibilidade, que o arguido saia de casa para ir buscar gasóleo agrícola sem se munir do referido cartão e muito menos que, depois de verificar que não o tem, regresse a casa e só em casa é que se lembra que afinal o emprestou a um amigo, acabando por não ir buscar o dito gasóleo.

Em suma, não só a decisão de facto quanto ao ponto 4 dos factos provados mostra-se conforme a prova produzida valorada à luz do artigo 127.º do Código de Processo Penal, como o meio de prova especificado pelo recorrente, como impondo a correcção deste ponto da matéria de facto, é insusceptível de atingir este objectivo.

Quanto aos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados, a partir do pressuposto de que a porta do veículo do ofendido se encontrava aberta, o que foi dado como assente no ponto 7 dos factos provados, alega o arguido que o atropelamento só poderia ter ocorrido já em plena faixa de rodagem porque, caso tivesse sido colhido na berma, o ofendido seria forçosamente projectado e arrastado de encontro à porta da sua viatura, que estava aberta, e esta teria de ser também embatida e o ofendido não teria sido projectado para o local para onde foi, à frente da sua viatura.

A este respeito o que resulta da prova produzida, designadamente do depoimento prestado pela testemunha HH, agente da PSP, com formação na área de investigação de acidentes de viação, que procedeu à investigação do acidente e elaborou o relatório técnico e fotográfico de fls. 279 a 301 – cuja credibilidade não foi posta em causa pelo recorrente – é que não existiam vestígios de tinta da viatura do arguido na viatura do ofendido, o que leva a concluir que o embate não foi na viatura mas sim directamente no corpo da vítima (o que resulta também do relatório de exame pericial do veículo de marca Mitsubishi, modelo L 200, com a matrícula ..-..-MP - fls. 118 a 129).

Em face das diligências efectuadas no local, tendo em conta o posicionamento da viatura da vítima e a própria vítima, assim como os danos causados na viatura desta última, a referida testemunha disse que é possível concluir com segurança que o ofendido foi colhido quando estava a sair da sua viatura e após fechar a porta, ficando então entalado e pressionado entre os dois carros e tendo sido depois projectado, o que decorre necessariamente da velocidade com que circulava a viatura do arguido ainda que esta não fosse muito elevada.

Acrescentou a aludida testemunha que a berma da estrada onde o ofendido estacionou a sua viatura era bastante larga (fls. 290 a 292) não tendo necessidade de a viatura Mitsubishi estar a ocupar parcialmente a faixa de rodagem, sendo que existiam marcas de pneumáticos no pavimento em terra existente junto à viatura da vítima (fls. 299 e 300), o que evidencia que a viatura do arguido saiu da faixa de rodagem para embater no ofendido, resultando ainda das imagens da videovigilância da oficina “M...” que, após o embate, o veículo do arguido retoma a sua esquerda para voltar a entrar na via, inculcando claramente a ideia de que o embate foi fora da faixa de rodagem.

Portanto, ao contrário do que pretende o recorrente, o que resulta de toda a prova produzida é que o atropelamento ocorreu fora da faixa de rodagem quando o ofendido saiu do veículo e após ter fechado a porta do condutor do veículo com a matrícula ..-..-MP.

Assim, impõe-se eliminar a referência a que a porta do veículo do ofendido se encontrava aberta feita no ponto 7 dos factos provados, o qual passará a ter a seguinte redacção:

7. Pelas 9:20 horas do referido dia ... de ... de 2023, o arguido conduzindo o veículo com a matrícula ..-..-DO a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 50 km/hora, ao avistar o ofendido DD junto à porta do condutor do mencionado veículo de marca Mitsubishi, modelo L200, com a matrícula ..-..-MP, fez com que o veículo conduzido por si embatesse no ofendido DD, após este ter fechado a porta do condutor do veículo com a matrícula ..-..-MP.

Os pontos 8 e 9 dos factos provados, porque directamente relacionados com o ponto 7 dos factos provados, têm, necessariamente, que seguir o mesmo destino deste o que significa que, não devendo este, pelas razões expostas, ser alterado no sentido pretendido pelo recorrente, também aqueles o não devem ser.

No que concerne aos pontos 24 a 28 dos factos provados entende o recorrente que não foi carreada prova suficiente para os autos, nem há qualquer regra extraída de casos semelhantes que permita concluir, sem uma margem de dúvida razoável, que ele agiu com o propósito de atropelar intencionalmente o ofendido pelo que devem os factos levados a estes pontos da matéria de facto assente ser dados totalmente como não provados.

(…)

Como resulta da leitura da fundamentação da matéria de facto, os factos em questão relativos ao dolo de homicídio foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

Conforme refere Cavaleiro Ferreira existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa( )1.

No mesmo sentido, Malatesta defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”)( )2.

O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, é um facto subjectivo, um facto da vida interior do agente, não sendo, por tal razão, directamente apreensível ou percepcionável por terceiro, o que significa que a sua evidenciação probatória não pode ser feita através de prova por declarações, ressalvada, obviamente, a existência de confissão.

A prova do dolo é feita, em regra, por inferência, resultando da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

O embate de um veículo automóvel, a uma velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 50 km/hora, no corpo da vítima, sabido que este alberga órgãos e funções vitais para a vida humana, após esta ter fechado a porta do condutor do respectivo veículo, e o prosseguimento, apesar do embate, da marcha daquele veículo automóvel, entalando a vítima entre a parte lateral direita daquele veículo e a parte lateral esquerda do veículo da vítima, desta forma projectando a vítima a cerca de 3 metros, aponta logicamente, na perspectiva interior do agente, para a vontade deste em causar a morte da vítima.

Assim, os factos objectivos enunciados permitem lógica e razoavelmente inferir que o arguido, ao embater da forma descrita no ofendido DD com o veículo automóvel de matrícula ..-..-DO, cujo tipo e características conhecia, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar a morte, se utilizado contra a vida de uma pessoa, a qual perante aquele não possui qualquer possibilidade de defesa, agiu com o propósito de tirar a vida ao ofendido DD, o que conseguiu.

No que respeita à motivação do arguido referida no ponto 27 dos factos provados, não obstante o tempo decorrido sobre a decisão judicial que o condenou a pagar ao ofendido DD a totalidade do preço da venda de uma máquina agrícola (enfardadeira), certo é que o arguido, nascido em .../.../1955, pessoa de temperamento algo conflituoso quando contrariado, esteve emigrado em ... desde 1972 até 2017, embora intercalando a sua residência entre ... e Portugal, de seis em seis meses (cfr. pontos 31, 35 e 42 dos factos provados) e não se conformou com o facto de o ofendido DD, em ...-...-1996, ter instaurado contra ele a acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A do 2º Juízo do Tribunal de ..., pedindo que o arguido lhe pagasse a quantia de 700.000$00, acrescida de juros legais desde o dia 1-9-1992 até efectivo e integral pagamento, em virtude de lhe ter vendido uma máquina agrícola (enfardadeira) pelo preço de 1.200.000$00 e de o arguido apenas ter efectuado o pagamento da quantia de 500.000$00, no âmbito da qual o arguido foi condenado a pagar ao ofendido a quantia de 700.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa de 15% ao ano, desde 1-9-1992 até 30-9-1995 e de 10% desde então até efectivo e integral pagamento, tanto assim que o arguido não pagou voluntariamente tal quantia e em 2-10-1997 o ofendido DD instaurou execução sumária para pagamento da quantia de 700.000$00 no decurso da qual foram apreendidos ao arguido dois tractores agrícolas com as matrículas ..-..-HH e PD-..-.. e respectivos documentos, o que acabou por compelir o arguido a efectuar o pagamento da quantia de 700.000$00 de modo a que fosse determinado o levantamento da apreensão dos tractores e a sua entrega ao arguido (cfr. pontos 19 a 23 dos factos provados).

Em conclusão, os meios de prova indicados pelo recorrente, como impondo decisão diferente tendo por objecto os sindicados pontos dos factos provados, são insusceptíveis de impor a pretendida modificação da matéria de facto – com ressalva da alteração do ponto 7 dos factos provados –, a qual se encontra plenamente suportada pela prova produzida na audiência de julgamento, valorada à luz do disposto no artigo 127.º do Código Penal.

Improcede, pois, nestes termos, a impugnação ampla da matéria de facto.

(…)

Sobre a qualificação jurídica do crime como de homicídio qualificado regista-se que o Recorrente não impugnou essa qualificação no recurso perante o Tribunal da Relação, pelo que este não se pronunciou sobre tal questão.

O acórdão de 1ª instância fundamentou a qualificação do crime de homicídio da seguinte forma:

O tipo subjectivo de ilícito do homicídio previsto no art.131º CP, exige o dolo, em qualquer das suas formas contempladas no artigo 14º CP, directo, necessário ou eventual.

A este respeito diz-nos o art.º 14.º do C. Penal que age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo legal de crime, actua com a intenção de o realizar (dolo directo), agindo ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário), ou quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime foi representada como consequência possível da sua conduta, havendo dolo, em tal caso, se o agente actuar conformando-se com aquela realização (dolo eventual).

Importa, todavia, sublinhar que, para se verificar dolo eventual relativamente a condutas objectivamente e mesmo extremamente perigosas, não basta que o agente preveja o perigo de resultado e se conforme com ele, tornando-se antes sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado.

Os homicídios dolosos são tipos de ilicitude e culpa, ou seja: eles não contêm só, nem determinadamente, aspectos da figura-de-delito que respeitem à danosidade do comportamento contêm aspectos que retratam a atitude do autor, mais ou menos censurável.

No caso em apreço, como já vimos, vem imputado ao arguido o crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal.

Preceitua então o artigo 132º do CP:

“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

(…)

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

(…)”.

Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência e citando o recente Acórdão do STJ de 02/02/2022, Proc. nº 74/21.0GBRMZ.S1, disponível em www.dgsi.pt o qual relembra também os acórdãos daquele mesmo Colendo Tribunal de 27.05.2020, no Proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1. e de 27.11.2019, no Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1, o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração, não taxativa dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projectada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.

A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se nos acórdãos daquele STJ de 27.11.2019 e de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, relembrando o acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. (...) No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. (…) Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. (...) A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmos acórdãos de 27.05.2020, de 27.11.2019 e de 12.07.2018): “O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da ação, quer numa motivação especialmente desprezível. (...) A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua atuação, sendo um tipo de culpa. (...) O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...) Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração ao nível da atitude do agente de formas de realização do ato especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação”.

No caso em apreço, importa analisar as alíneas e) e h).

Passando para a alínea e), subsume-se à mesma a conduta do agente que é determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil. No caso, está em causa a definição do que se possa considerar motivo torpe ou fútil.

Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”. Actuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana” (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Código Penal, Comentário Conimbricense, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 62).

Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a actuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente (assim, entre outros, os acórdãos do STJ de 26.11.2008 Proc. 08P3706 (Fernando Fróis), de 10-12-2008, Proc. 08P3703 (Pires da Graça), de 06.01.2010 , Proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1 (Oliveira Mendes), de 17-04-2013, Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1 (Raul Borges), em www.dgsi.pt). O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral (Simas SANTOS /Leal Henriques, Código Penal Anotado, Vol. III, Rei dos Livros, 2016, p. 71, citando também Nelson Hungria). A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto.

No caso dos autos provou-se que o arguido actuou movido por um desejo de vingança do ofendido DD por este instaurado contra si a citada acção declarativa de condenação com processo sumário nº 251/96 – A do ... Juízo do Tribunal de ... e de ter instaurado a mencionada execução sumária para pagamento da citada quantia de 700.000$00 (setecentos mil escudos) na qual foram apreendidos os citados tractores pertencentes ao arguido. Note-se que se tratou de um conflito menor relacionado com a compra de uma máquina agrícola (enfardadeira) e o pagamento do seu preço e que a referida acção conheceu o seu desfecho em 1997, tendo o arguido matado o ofendido em 2023, ou seja, 26 anos depois. Ainda que fosse mesmo depois da instauração ou do desfecho da acção o motivo seria claramente desproporcionado e irrazoável, mas tendo decorrido este tempo tal evidencia ainda mais a culpa do arguido. Tal actuação do arguido não era de todo expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos; são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que a culpa do arguido é acentuada por um alto grau de censurabilidade que o leva a atirar a vida do ofendido por razões fúteis. Está subjacente uma clara ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima (instaurar a dita acção na qual aliás obteve ganho de causa) e a atitude do arguido que tantos anos depois, ao ver de novo a vítima, toma a decisão de a matar por vingança. A sua atitude choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade.

Não temos dúvidas que se preenche o motivo fútil previsto na alínea e) do nº 1 do artigo 132º do CP.

De acordo com o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, além do mais, «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum»”.

De facto, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6.02.2017, Proc. 1802/14.6TAGMR, “a utilização de um meio ou instrumento - veículo automóvel - que, pelas suas características, além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, revela uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios ou instrumentos mais comuns de agressão, com aptidão para provocar danos físicos e já de si perigosos ou muito perigosos (cfr. neste sentido o ac. do STJ de 23-02-2012, Proc. 123/11.0JAAVR.S1- Rodrigues Costa, referenciando também os acs. do STJ de 02-03-2006, Proc. n.º 472/06-5.ª, e de 05-09-2007, Proc. n.º 2430/07-3.ª).

Do mesmo modo decidiu o Tribunal da Relação de Évora de 20.10.2015, Proc. 89/11.7TARMR.E1 em www.dgsi.pt onde se concluiu - embora nesse caso estivesse em causa a utilização de um veículo pesado porta-camiões - que a utilização desse veículo constitui uma “particular perigosidade… e a consequente maior dificuldade de defesa em que se encontra a vítima. Independentemente da velocidade no arranque que se consiga imprimir ao veículo, trata-se sempre da utilização de um meio com uma perigosidade muito superior à da normalidade dos meios utilizados para agredir…”

E refere-se também no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/05/2018, Proc. nº 318/12.0GEBNV.E1, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “ (…) A reforçar este entendimento poderá argumentar-se que, enquanto relativamente à utilização de outros instrumentos de agressão o agente poderá normalmente controlar o seu uso e respetivas consequências - o resultado querido - quanto está em causa a utilização de um veículo em aceleração as consequências, por mais destreza que possa ter o condutor, são sempre imprevisíveis, pois que muitos factores podem influir no seu controlo”.

Consequentemente, a conduta do arguido ao imprimir velocidade ao seu veículo e projectar o mesmo para berma de modo a colher o ofendido, que já estava no exterior da sua viatura, embatendo com o seu veículo directamente no corpo do ofendido, entalando-o entre a parte lateral direita do veículo que conduzia e a parte lateral esquerda do veículo da vitíma, projectando-a a cerca de 3 metros, integra a referida qualificativa prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP.

Não oferece quaisquer dúvidas de que o condicionalismo em que o arguido praticou os actos não pode deixar de reclamar um especial juízo de censura, encontrando-se adequadamente preenchidas as circunstâncias previstas nas alíneas e) e h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. O arguido manifestou em todo o processo executivo do crime uma vontade firme dirigida ao facto e à concretização do resultado final, uma intensidade, energia e vigor que impressionam negativamente revelando total desprezo pela vida da vítima. O arguido actuou com um grau de culpa acentuado, que concretiza de forma inequívoca os conceitos de especial perversidade e censurabilidade.

Incorreu, por isso, o arguido na prática do referido crime de homicídio qualificado, pelo qual vem acusado.

Sobre a medida da pena o acórdão recorrido considerou:

O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal na pena de 17 anos de prisão.

O arguido dissente da pena de 17 anos de prisão que lhe foi aplicada pela 1ª instância alegando que vai além da culpa e das necessidades de prevenção geral e não se coaduna com as necessidades especiais de socialização do arguido, pretendendo a sua redução para o mínimo legal ou próximo desse mínimo, enquanto o Ministério Público pretende que a pena aplicada ao arguido seja agravada para 20 anos de prisão por ser apenas esta a medida concreta da pena que responde às elevadíssimas exigências de prevenção geral e especial, não ultrapassando a medida da culpa que é intensa e igualmente muitíssimo elevada.

A determinação definitiva da pena é alcançada através de três fases distintas: na primeira, o juiz investiga e determina a moldura penal aplicável ao caso; na segunda, o juiz investiga e determina, dentro daquela moldura legal, a medida concreta da pena a aplicar; na terceira, o juiz escolhe a espécie de pena que efectivamente deve ser cumprida (note-se que esta fase não tem necessariamente que ser a última)3.

A moldura legal aplicável resulta imediatamente do tipo legal de crime no qual se enquadra a conduta do agente.

Assim, sabido que o arguido se constituiu autor material de um crime de homicídio qualificado, o que decorre do factualismo apurado em sede de audiência de julgamento, importa apreciar se a pena que lhe foi concretamente aplicada se mostra, ou não, ajustada quanto à sua medida.

No que respeita à determinação da medida concreta da pena importa ter em consideração o preceituado nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, os quais estabelecem critérios gerais, mais ou menos seguros e normativamente estabilizados, para efeito de medida da reacção criminal, sendo que o disposto no n.º 2 do artigo 40.º constitui inegavelmente um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, constituindo a medida da culpa uma condicionante da medida da pena de forma a que esta não deve ultrapassar aquela.

A pena serve finalidades de prevenção geral e especial, sendo delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa.

Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção).

Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.

É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente4.

Ao crime de homicídio qualificado corresponde a pena de prisão de 12 a 25 anos – artigo 132.º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h) do Código Penal.

Dentro da moldura legal abstracta, há que atender à culpa do arguido e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele – n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

O tribunal colectivo fundamentou a pena aplicada da seguinte forma:

«(…) Cumpre então proceder à determinação da concreta medida da pena de prisão cuja aplicação se determina, e pela qual se regem os critérios contidos nos artigos 47º e 71º, ambos do Código Penal.

Nos termos do artigo 71º, n.º1, do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”

Na determinação da medida concreta da pena, é preciso atender às finalidades próprias das penas, previstas no artigo 40º do Código Penal.

Assim, o julgador deve atender às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), mas deve também orientar-se por finalidades de prevenção especial, já que a pena visa também a reintegração ou ressocialização do agente do crime, de forma a que ele adopte, no futuro, condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito.

A prevenção geral positiva pressupõe a protecção dos bens jurídicos, sendo que a prevenção especial positiva supõe a reintegração do agente na sociedade. De facto, a prevenção geral positiva pressupõe a pena como um factor de reforço da confiança da população no funcionamento do sistema penal repressivo e em última instância como instrumento de política social ao serviço da população. Visa-se com a pena, como refere Gunther Jakobs, a “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”. De acordo com a prevenção especial positiva a pena tem um objectivo de reinserção social ou ressocialização do condenado, o qual aliás decorre do art. 43º nº 1 do CP.

O n.º 2 do artigo 40º do Código Penal dispõe ainda que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.” O nosso sistema penal assenta no princípio unilateral da culpa, nos termos do qual, não pode haver pena sem culpa, ainda que possa haver culpa sem pena. Além disso, a culpa enquanto juízo de censura inevitavelmente decorrente da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) funciona, não como pressuposto mas como fundamento e limite inultrapassável da medida da pena.

Nestes termos, na esteira da douta formulação do Prof. FIGUEIREDO DIAS5 que perfilhamos, na determinação da pena concreta deve seguir-se o modelo que comete à culpa a função de determinar o limite máximo da pena, cabendo à prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último, à prevenção especial encontrar o quantum exacto da pena dentro da referida moldura da prevenção, que melhor sirva as exigências de ressocialização do agente.

Assim, a culpa funciona como moldura de topo da pena, funcionando dentro dela as sub - molduras da prevenção, prevalecendo a geral sobre a especial. Para tanto, atender-se-á, nos termos do artigo 71º, n.º 2, do Código Penal, a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

A prevenção geral atinge as suas exigências mais prementes ou mais elevadas, o seu expoente máximo de maior intensidade dissuasora na punição do crime de homicídio, em que a reposição contrafáctica da norma violada pressupõe o restabelecimento da confiança da comunidade na norma violada, pois que ninguém se sentirá seguro, nem haverá sociedade que subsista se a punição das actuações homicidas ficar aquém da necessidade, forem inadequadas ou desproporcionais ao âmbito de protecção da norma na defesa e salvaguarda da vida humana.

Por sua vez as exigências de prevenção especial são medianas, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, nunca tendo sido antes condenado pela prática de qualquer crime. Por outro lado, mostra-se plenamente inserido na Sociedade, no mundo do trabalho e conta com o apoio da família e dos amigos. Contudo, o arguido demonstrou ter uma personalidade que não respeita os valores humanos, age emotivamente, com pouca capacidade de controlo o que acaba por elevar tais exigências.

Quanto ao grau de culpa, é inquestionável o dolo directo e intenso, traduzindo pelo desvalor da acção que quis empreender e do desvalor do resultado que procurou e conseguiu atingir. A vítima não esboçou qualquer resistência e foi apanhada desprevenida. As circunstâncias anteriores, contemporâneas e posteriores ao crime, constantes da matéria de facto provada não diminuem a ilicitude do facto nem a culpa do arguido para que a pena mereça ser atenuada.

O grau de ilicitude é o mais elevado, pois que a violação do direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela jurídica.

A gravidade das consequências: atinentes à quantidade, natureza e características das lesões que directa e necessariamente produziram a morte do ofendido.

Quanto às condições pessoais e à situação económica do arguido, provou-se que o arguido tem actualmente 68 anos de idade. Ingressou no mercado de trabalho com 17 anos de idade e registou sempre um percurso laboral activo, tendo permanecido 45 anos em ..., onde trabalhou. Mantém um relacionamento conjugal com a companheira iniciada aos 20 anos de idade da qual possui 2 filhos, de 45 e 47 anos de idade, ambos autónomos e residentes em ..., com quem mantém ligações afectivas gratificantes. Apesar de tal relação conjugal apenas se manter por razões de administração dos bens em comum, tendo ambos um acordo tácito de separação, o arguido continua a beneficiar do apoio da companheira e da restante família. Possui uma situação económica estável, sendo que tanto o arguido como o cônjuge beneficiam de reformas decorrentes do desenvolvimento de actividade laboral em ..., que rondam cerca de € 1.500,00/mês, ao qual acresce a exploração de alguma agricultura de subsistência.

Provou-se que o arguido está socialmente inserido, sendo conotado na comunidade com adequados hábitos de trabalho e bem assim considerado pelos familiares e amigos como uma pessoa pacata e não conflituosa.

Em meio prisional o arguido tem mantido comportamento adequado e bem assim beneficiado de retaguarda familiar, consubstanciada no apoio da companheira e filhos.

Não regista antecedentes criminais.

Tem idade relativamente avançada, nomeadamente 68 anos.

Em nada abonou a atitude assumida pelo arguido em sede de audiência de julgamento, o qual não confessou os factos. Optou por assumir ter atropelado o ofendido mas fê-lo, cremos nós, apenas por força da evidência da prova documental, pericial e testemunhal constante dos autos. Não manifestou arrependimento sincero pela sua conduta.

Tudo ponderado, entende-se justa e adequada a pena de 17 (dezassete) anos de prisão, pois é a que melhor corresponde à necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto, às exigências de prevenção especial e às expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.»

Aqui chegados, dir-se-á que no acórdão recorrido julgaram-se provadas e verificadas duas circunstâncias qualificativas: concretamente as previstas nas alíneas e) e h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Assim, concorrendo duas circunstâncias qualificativas, uma deve qualificar o crime de homicídio e a outra funcionar como agravante, emprestando maior gravidade à conduta do agente e, consequentemente, relevando na determinação da medida da pena6, o que o tribunal colectivo não considerou, pelo menos especificadamente.

O grau de ilicitude dos factos é efectivamente elevado não propriamente pelo bem jurídico posto em causa [que já se mostra reflectido na moldura penal abstracta fixada pelo legislador], mas pela circunstância evidenciada pela matéria de facto provada de a vítima ter sido apanhada desprevenida, sem capacidade, por via do inesperado da situação, de esboçar qualquer reacção de defesa.

De referir ainda a elevada intensidade do dolo, na forma de dolo directo, evidenciando os factos provados que a intensidade da energia criminosa colocada pelo recorrente na execução do facto atinge um nível ou uma densidade assaz elevada, revelando uma pertinácia ou obstinação do recorrente na obtenção do resultado pretendido e, por isso mesmo, um maior grau de indiferença perante os valores que, ao assim actuar, irremediavelmente atingiu.

No que respeita à prevenção são prementes as exigências de prevenção geral, dada a frequência com que vêm sendo praticados crimes de homicídio e a necessidade de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação das normas por se tratar de crime causador de elevadíssimo alarme social.

Quanto às exigências de prevenção especial fazem-se sentir, não tanto em face dos antecedentes criminais do arguido que inexistem, mas sobretudo pela sua personalidade demonstrada nos factos, pois o arguido manifesta uma completa insensibilidade perante os factos e evidencia a ausência de qualquer sinal revelador da interiorização do desvalor da sua conduta, apontando para uma personalidade pouco sensível à conformação com os valores tutelados pelas normas penais violadas.

Em meio prisional o arguido tem mantido comportamento adequado às normas da instituição, que é o que se espera de quem se encontra sujeito a prisão preventiva, beneficia de rectaguarda familiar consubstanciada no apoio da companheira e filhos e encontra-se inserido social e profissional.

Tudo conjugado, sobrepondo-se claramente as circunstâncias agravantes às atenuantes, consideramos que as prementes necessidades de prevenção geral e as significativas necessidades de prevenção especial exigem um agravamento da pena aplicada ao arguido.

Assim, considera-se adequada e perfeitamente suportada pela medida da culpa do arguido, a pena de 19 (dezanove) anos de prisão.

1. Admissibilidade do recurso sobre a nulidade por falta de fundamentação e violação do princípio da livre apreciação da prova (irracionalidade das presunções)

Nas conclusões A a Z e pontos a. e b. do petitório a final, o Recorrente coloca novamente em causa a decisão de 1ª instância, invocando a falta de fundamentação dos factos provados 24 a 28 e, ainda, o procedimento adoptado para concluir sobre a existência de dolo, com base em presunções irrazoáveis, indevidamente usadas.

Sobre todas essas questões já se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, como resulta das transcrições efectudas.

Nos termos do art. 400º nº 1, al.s e) e f), do Código de Processo Penal, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância (e); nem de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos (f).

O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.

Por sua vez, dispõe o artigo 432º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».

Finalmente, o art. 434º, sob a epígrafe “poderes de cognição”, preceitua que «o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redação dada pela Lei n.º 94/2021.

Do exposto resulta que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:

• penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;

• penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.

Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico7.

No caso em apreço, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1ª instância, mas antes recurso de decisão confirmatória da Relação relativa a pena superior a 8 anos de prisão – salvo no que respeita à pena que passou dos 17 para os 19 anos, por provimento parcial do recurso do Ministério Público - pelo que tal decisão é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 400º nº1 al. f) a contrario e 432º nº1 al. b) do Código de Processo Penal.

De acordo com o referido art. 434º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, porquanto o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428º do Código de Processo Penal).

Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso (art. 432º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal), não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º”, isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do art. 11º da Lei 94/2021 de 21.12), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correcta decisão de direito8.

É jurisprudência constante e estabilizada deste Supremo Tribunal que, estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal e que, julgado pela Relação o recurso interposto da decisão proferida em 1ª instância, o recorrente inconformado com a decisão da 2ª instância, já só pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância9.

Não se verifica razão para uma sanação oficiosa, porquanto estão proficuamente explicadas no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, as razões de inexistência nulidade por falta de fundamentação e de inexistência de qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, pelo que, consequentemente, por inadmissibilidade legal, o recurso tem de ser rejeitado nesta parte, nos termos do disposto nos art.s 414º nºs 2 e 3 e 420º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal.

2. Admissibilidade do recurso sobre a qualificação jurídica

Nas conclusões DD a JJ, LL e ponto c. do petitório a final, o Recorrente suscita ex novo a questão da qualificação jurídica.

Efectivamente, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Guimarães, o Recorrente conformou-se com a qualificação jurídica - crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 131º e 132º nºs 1 e 2 al.s e) e h) ambos do Código Penal – constante da decisão de 1ª instância e não recorreu da mesma, o que se constata pela análise do acórdão recorrido e da motivação e conclusões do recurso então apresentado.

Não á admissível que o Recorrente venha agora inovatoriamente submeter à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça uma questão que não submeteu à apreciação do tribunal da relação, porquanto “o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (art. 410º nº 1 do Código de Processo Penal) e não outros que, por opção do Recorrente foram excluídos do conhecimento na decisão recorrida. No recurso não se decide uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é constante nesse sentido:

«No nosso sistema, o objeto do recurso ordinário é a sindicância da decisão impugnada, constituindo um remédio processual que permite a reapreciação, por um tribunal superior das questões que a decisão recorrida apreciou ou deveria ter conhecido e decidido.

No julgamento do recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham sido objeto de decisão anterior pelo tribunal recorrido.

A suscitação, em recurso, de uma questão nova, que foi não foi apresentada ao tribunal recorrido, afronta o princípio da lealdade processual que deve ser observado por todos os sujeitos processuais.

Porque o arguido apenas no recurso para o STJ, questionou a medida da pena em que foi condenado, sem que o tivesse feito perante a Relação, não pode conhecer-se aqui, por se tratar de questão nova, que excede o objeto permitido do recurso»10.

Não obstante, em relação à qualificação jurídica-penal dos factos, se dever admitir a possibilidade da sua alteração oficiosa pelo Supremo Tribunal de Justiça11, analisados os factos e a fundamentação do acórdão de 1ª instância supra transcrita, não se encontram motivos para divergir da qualificação jurídica definida. Na realidade, não temos dúvidas de que age por motivo torpe ou fútil o homicida motivado por um sentimento de vingança por actuação legítima da vítima (no caso, o ganho e execução de acção cível proposta contra si há mais de 25 anos), nem que o veículo automóvel utilizado, ligeiro de mercadorias – pela sua densidade, dureza, peso e volume, pela sua natural aptidão contundente, pela violência do seu uso (abalroamento da vítima, a, pelo menos, 50km/h, e aperto contra a sua viatura, que se preparar para fechar), pelo visar indiscriminado de todo o corpo da vítima, pelo inerente risco de, na dinâmica do facto (vítima, veículo em movimento e agente), resultarem lesionados com gravidade bens pessoais de terceiros – preenche, pela sua letalidade, o conceito “meio particularmente perigoso”, bem como da especial censurabilidade da conduta plasmada nos factos.

Neste sentido acompanhamos na íntegra a decisão de 1ª instância e a jurisprudência aí citada.

Consequentemente, quanto a esta questão, também por inadmissibilidade legal, o recurso tem de ser rejeitado nesta parte, nos termos do disposto nos art.s 414º nºs 2 e 3 e 420º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal.

3. Medida da pena

Nas conclusões AA a CC, KK e ponto d. do petitório a final, o Recorrente suscita a questão da medida da pena que considera dever ser fixada no mínimo legal – de doze anos de prisão para o crime de homicídio qualificado.

É certo, como afirma o Recorrente, a determinação da medida concreta da pena deve ser encontrada em função da culpa (a pena não deve ultrapassar o limite imposto pela culpa, nos termos do nº 2 do art. 40º do Código Penal) e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, em conformidade com o que decorre do disposto nos art.s 71º nº 1 e 40º do Código Penal, ou seja, ponderando as necessidades de tutela do bem jurídico violado, bem como as exigências sociais que emanam dessa lesão, assim como a necessidade de preservação da dignidade do infractor, tendo em vista a sua recuperação e reintegração social. Bem assim, não podem, na determinação da medida concreta da pena, relevar aqueles elementos que já foram considerados pelo legislador para quantificação da moldura abstracta da pena12.

O que importa verificar é se, como afirma o Recorrente, a pena é exagerada, desadequada e desproporcional, não se coadunando com os princípios que devem nortear a fixação da medida concreta da pena, indo além da culpa e das necessidades de prevenção geral e não se coadunando com as necessidades especiais de socialização do arguido e se, considerando que o arguido é primário – o que na sua idade (69 anos) é bastante relevante – que é pessoa pacata e não conflituosa e dotado de hábitos de trabalho – factos vertidos nos pontos 40 e 41 dos factos assentes – e perante todo o circunstancialismo operante para doseamento da pena, se a pena em concreto se deverá situar no mínimo legal ou próximo desse mínimo.

Nos termos supra transcritos, o acórdão recorrido considera a ilicitude do facto efectivamente elevada pela circunstância evidenciada pela matéria de facto provada de a vítima ter sido apanhada desprevenida, sem capacidade, por via do inesperado da situação, de esboçar qualquer reacção de defesa, qualifica o dolo como elevadamente intenso pela obstinação na obtenção do resultado pretendido; assinala justificadamente as prementes necessidades de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial, porquanto apesar da ausência de antecedentes criminais, a sua personalidade demonstrada nos factos revela uma completa insensibilidade perante os factos e a ausência de sinais reveladores da interiorização do desvalor da sua conduta, apontando para uma personalidade pouco sensível à conformação com os valores tutelados pelas normas penais violadas; pondera também o comportamento adequado em meio prisional, o apoio familiar e a inserção social e profissional; a idade relativamente avançada já havia sido sinalizada e ponderada no acórdão de 1ª instância.

Vejamos então,

O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias13 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”14 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar15.

Como se alcança da fundamentação do acórdão recorrido o tribunal observou os ditames dos art.s 40º e 71º do Código Penal na determinação da medida da pena:

Em função da culpa do agente nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal – que constitui limite máximo inultrapassável (art. 40º nº 2 do Código Penal) - tendo ainda em conta as necessidades de prevenção geral, necessárias para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar da norma violada em reacção aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem – determinativas do limite mínimo, acabando a pena concreta por ser encontrada, dentro destes limites, de acordo com as exigências de prevenção especial de ressocialização manifestadas pelo agente, que vão determinar, assim, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de futuros crimes16.

Considerou devidamente a premência das necessidades de prevenção geral e na dosimetria da pena, os factores do caso concreto que não integrem o tipo legal (factores relativos à execução do facto, factores relativos à personalidade do agente e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto17, nos termos do artigo 71º nº 2 do Código Penal, nos termos supra expostos.

Conclui-se, assim, pelo respeito dos princípios gerais que presidem à determinação da medida da pena e pelas operações de determinação impostas por lei, com a indicação e consideração dos factores de medida da pena, tendo sido sopesadas todas as circunstâncias atendíveis.

Resta, então apreciar se a pena definida pelo tribunal a quo é excessiva, como sustenta o Recorrente, ou se, ao invés, se mostra justa, adequada e proporcional, sendo certo que não sendo caso de manifesta desproporcionalidade18, não se justifica qualquer compressão.

A pena foi fixada em 19 anos de prisão, ligeiramente acima do ponto médio da moldura penal, pelo que, atendendo às circunstâncias anteriormente referidas, em função da moldura da pena abstractamente aplicável, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente relevantes para determinação da pena, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, não se surpreendem elementos que, na definição do substrato de facto, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada por violação do critério de proporcionalidade que se impõe em vista da realização das finalidades que presidem à sua aplicação. Assim, a condenação na pena fixada, está plenamente fundamentada, mostrando-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados no art. 71º do Código Penal, não merecendo censura.

Improcede o recurso nesta parte.

III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em:

1. Rejeitar o recurso, no que respeita à nulidade, violação do princípio da livre apreciação da prova e qualificação jurídica, em conformidade com o disposto no art. 434º e nas disposições conjugadas dos arts. 403º nº 2 al. al. d), 412º nº nº 1, 414º e 420º nº 1 al. b), todos do Código de Processo Penal.

2. Na parte restante, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UC.

Lisboa, 05-02-2025

Jorge Raposo (relator)

Carlos Campos Lobo

António Augusto Manso

________


1. Curso de Processo Penal, Vol. II, 1981, pág. 292.

2. A Lógica das Provas em Matéria Criminal, págs. 172 e 173

3. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 256, pág. 198.

4. Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, página 147 e seguintes.

5. DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO, “Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal”, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Editora, 2001, pp. 65 e ss.

6. Cfr. Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, pág. 79 e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipos de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, pág. 102;

  Acórdãos do STJ de 3.11.2021, proc. 3613/19.3JAPRT.P1.S1, de 9.10.2019, proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, de 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, de 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1, de 12.09.2012, proc. 1221/11.6JAPRT.S1 e de 18.01.2012, proc. 306/10.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

7. Entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11. 3.2021, no proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; de 2.12.2021, no proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; de 12.1.2022, no proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; de 20.10.2022, no proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; de 30.11.2022, no proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1.

8. Entre outros, os acórdãos de 1.3.2023, no proc. 589/15.0JABRG.G2.S1, e de 8.11.2023, no proc. 808/21.3PCOER.L1.S1.

9. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2024, no proc. 127/16.7GCPTM.E3.S1, que seguimos de perto.

10. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.9.2022, no proc. 797/14.0TAPTM.E2.S1, jurisprudência e doutrina aí citados; no mesmo sentido, ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.5.2004, no proc. 1086/04 – 3ª, in sumários do STJ (Boletim).

11. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.5.2004, no proc. 1086/04 citado na nota anterior; cfr. ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2024 no proc. 263/22.0PQLSB.L1.S1 e, no mesmo sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2021, no proc. 148/12.9TAACN.E1.S1 e de 10.7.2008, no proc. 08P103 (cfr. ainda Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pg.s 86 e 87).

12. Porém, como sustenta o acórdão recorrido, com referência a doutrina e jurisprudência que cita (nota 6 supra), que merece a nossa concordância, “concorrendo duas circunstâncias qualificativas, uma deve qualificar o crime de homicídio e a outra funcionar como agravante, emprestando maior gravidade à conduta do agente e, consequentemente, relevando na determinação da medida da pena , o que o tribunal colectivo não considerou, pelo menos especificadamente”.

13. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197.

14. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1.

15. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639.

16. Anabela Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra, 1995, pg.s 545-570.

17. Figueiredo Dias, ob. cit., pg.s. 245-255.

18. “A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.12.2020, proc. 565/19.3PBTMR.E1.S1)