No regime actualmente vigente, a reclamação à relação de bens tem que ser deduzida dentro do prazo estabelecido no art.º 1104.º do CPC com a consequente preclusão do direito de apresentar tal reclamação e dos meios de defesa que não tenham sido invocados nesse momento ou fase processual; decorrido esse momento e sem prejuízo da possibilidade de requerer partilha adicional nos termos previstos no art.º 1129.º, a reclamação contra a relação de bens apenas é admissível com invocação, nos termos gerais (art.º 588.º do CPC), da superveniência (objectiva ou subjectiva) dos respectivos fundamentos.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
No âmbito de processo de inventário instaurado para partilha dos bens do dissolvido casal composto por AA e BB, melhor identificados nos autos, veio o cabeça de casal (BB) apresentar a relação de bens, onde, entre outros, relacionou como BENFEITORIA e sob a verba n.º 13 (que, posteriormente, veio a corresponder à verba n.º 15), o seguinte:
Prédio Urbano, composto de casa de cave com 1 divisão, cozinha e casa de banho, r/c, com 5 divisões, cozinha, 2 casa de banho e corredor para habitação e logradouro, com 157 m2 de superfície coberta e 200 m2 de logradouro com anexos, sito em Rua das Regueiras, ... ..., ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo nº ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...68, com o valor atribuído de 50.630,00 €;
Em reclamação apresentada contra a relação de bens (em 10/09/2021), veio a interessada AA dizer, em relação à citada verba, que o cabeça de casal não juntou quer a certidão matricial, quer a certidão predial referente à mesma, requerendo a sua notificação para o efeito e dizendo que, por ora e por falta desses elementos, não pode pronunciar-se acerca da verba em questão o que fará em momento posterior.
Em resposta à reclamação, o cabeça de casal mantém a verba em questão, dizendo que a mesma se encontra devidamente descrita na relação de bens.
Mediante requerimento apresentado em 05/11/2021, a interessada AA veio dizer que o cabeça de casal continua a não juntar as certidões matricial e predial, mais dizendo que a descrição da verba em questão não está correcta (sendo composta, além da casa de habitação, de anexos compostos de um barracão para indústria, dividido em duas salas amplas, com cerca de 200 m2 de construção, com 1 casa de banho e 2 salas mais pequenas para arrumos, numa destas estão máquinas de apoio à fabricação (Compressor, e outras), e uma outra sala onde tem uma pequena cozinha, com lareira e bancada, além de que existe também um Pombal, um Canil para cães e uma garagem para três carros, tudo anexo à casa e bem comum do casal, ainda que estes anexos estejam omissos na matriz), requerendo a realização de avaliação que proceda ao levantamento de todas as construções edificadas no local com subsequente avaliação das mesmas afim de apurar a situação jurídica concreta das benfeitorias a relacionar e o seu real valor.
Mediante requerimento de 24/11/2021, o cabeça de casal veio juntar a certidão matricial e registral referente à benfeitoria, resultando dessas certidões o seguinte:
Está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...75 um prédio misto, inscrito na matriz sob os n.ºs ...74 (U) e ...11 (R) com a seguinte composição: “Casa de habitação de cave, r/c, logradouro e terra de cultura - L. 200m2; T.A. 3.643m2 -Norte, Rua das Regueiras; Sul, CC; Nascente, herdeiros de DD; Poente, EE, ali se encontrando inscrita a aquisição, por usucapião, a favor de ambos os interessados;
O prédio inscrito na matriz sob o art.º ...74 (U) consta aí com a seguinte descrição: “uma casa de cave com 1 divisão, cozinha e casa de banho, r/chão com 5 divisões, cozinha, 2 casas de banho e corredor, para habitação e logradouro”
Entretanto – em 09/01/2024 (já depois de ter sido designada para a produção de prova) – a interessada AA veio juntar aos autos uma escritura em que ela e o cabeça de casal haviam sido Justificantes, com referência ao artigo matricial rústico nº ...11 da freguesia ... – onde alega ter sido implantada a casa de habitação relacionada na verba n.º 15 – na qual declararam ter adquirido, por usucapião, o referido prédio.
O cabeça de casal veio opor-se à junção do referido documento por não ter sido junto oportunamente (com a reclamação), mais alegando, para o caso de se admitir o documento, que aquilo que foi relacionado na verba 13 (agora verba 15) foi uma benfeitoria, não tendo a interessada colocado em causa essa situação e que foi o cabeça de casal, no ano de 1987 e ainda no estado de solteiro, quem iniciou, no artigo rústico ...32, a construção da casa de habitação ali relacionada. Impugna ainda a referida escritura, concluindo que deve manter-se nos seus precisos a benfeitoria relacionada.
Tendo sido determinada a notificação da interessada AA para esclarecer o que pretendia provar com a junção do documento e para justificar a sua junção nesta fase do processo e incidente, veio a mesma dizer – em 29/01/2024 – que deve ser admitida a junção do documento e que a casa de habitação em questão foi construída, na constância do casamento, no prédio rústico com o artigo matricial ...11 que pertencia a ambos os interessados, pelo que, quer o referido prédio rústico, quer o urbano nele construído são bens comuns do casal.
Mediante requerimento de 31/01/2024 (após a 1.ª sessão de produção de prova), a referida interessada veio reafirmar esses factos, dizendo que a casa em questão não corresponde a qualquer benfeitoria, mas sim a prédio em propriedade plena que é bem comum do casal, pedindo, que a citada verba seja alterada para que nele fique a constar o seguinte:
O cabeça de casal respondeu, reafirmando o que havia alegado no requerimento anterior.
Por despacho proferido em 04/03/2024, admitiu-se a junção aos autos da escritura justificação que havia sido junta em 09/01/2024, por se ter entendido que era relevante para a decisão.
Na sequência desses actos e trâmites processuais e após produção de prova, foi proferida decisão – em 05/09/2024 – onde se decidiu, além do mais que aqui não releva, julgar procedente a reclamação no que toca à dita verba n.º 15 (benfeitoria), determinando-se que a descrição da dita verba do activo passe a incluir a descriminação dos anexos tal como se deram como provados.
Inconformada com essa decisão, a interessada FF veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
O cabeça de casal respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Nulidade da sentença (por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia);
· Saber se a descrição da verba n.º 15 deve ser alterada nos termos pretendidos pela Apelante.
III.
Na 1.ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:
1. AA e BB contraíram casamento um com o outro a 20.8.1988, sem convenção antenupcial.
2. Tal casamento veio a ser dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado por sentença a 8.1.2021, nos autos principais, e transitada em julgado, a qual homologou os acordos celebrados para tal pelas partes e juntos aos autos a 4.1.2021.
3. Neles nada se requereu ou consignou quanto à data em que ocorreu a separação do casal e foi acordado atribuir ao requerente marido, até à partilha, o uso da casa de morada da família, sem referência a qualquer contrapartida.
4. A referida acção deu entrada em tribunal a 15.5.2020.
5. A verba 1 da relação tem o valor nominal de 2.000€ e o valor de mercado de 2.500€.
6. Em 22.1.2017 foi registada em nome da interessada AA a aquisição por compra do veículo de marca Wolkswagen com a matrícula ..-NV-...
7. Em 16.4.2015 foi registada em nome da mesma interessada a aquisição por compra do veículo ligeiro de Mercadorias de marca BMW, de matrícula SB-..-...
8. Tais registos permaneciam em vigor em 22.4.2021.
9. O veículo dito em 7. é conduzido regularmente pelo filho do extinto casal e o mencionado em 6. Pela interessada AA.
10. Inscrito na matriz da freguesia ..., concelho ... sob o artigo nº ...74 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...68, com aquisição a favor do dissolvido casal encontra-se o Prédio Urbano, composto de casa de cave com 1 divisão, cozinha e casa de banho, r/c, com 5 divisões, cozinha, 2 casa de banho e corredor para habitação e logradouro, com 157 m2 de superfície coberta e 200 m2 de logradouro com anexos, sito em Rua das Regueiras, ... ..., ..., ..., freguesia ..., concelho ....
11. Tais construções foram levadas a cabo pelo dissolvido casal na pendência do casamento.
12. Com vista à concretização das mesmas contraíram o empréstimo habitação MLS nº ...93, junto do Banco 1..., SA., cujo montante em dívida, ascendia em 1.7.2021 à quantia de € 24.156,27.
13. Os anexos da casa dita em 10 são constituídos por anexos compostos de um barracão para indústria, dividido em duas salas amplas, com cerca de 200 m2 de construção, com 1 casa de banho e 2 salas mais pequenas para arrumos, numa destas estão máquinas de apoio à fabricação (Compressor, e outras), e uma outra sala onde tem uma pequena cozinha, com lareira e bancada, além de que existe também um Pombal, um Canil para cães e uma garagem.
Que a separação de facto do casal haja ocorrido em qualquer exacto apurado, designadamente no mencionado pela reclamante nos vários requeridos nessa parte juntos aos autos;
Que as construções levadas a cabo pelo casal sejam outras ou tenham outra extensão que não a que se deixa dada como provada;
Que os bens relacionados tenham sido comprados ou construídos noutro contacto por outra pessoa ou noutras condições para além do que se deixa dado como provado;
Que a reclamante tenha pago os valores que refere na sua reclamação ou quaisquer outros;
Que o c.c. se tenha comprometido ou lhe tenha sido determinado pagar sozinho as prestações do empréstimo à habitação e não o haja feito, forçando a reclamante a pagá-los;
Que existam outras dívidas do património comum para além daquelas que se encontram relacionadas.
IV.
Nulidade da sentença
Invoca a Apelante a nulidade da sentença por falta de fundamentação e por alegada omissão de apreciação de algumas questões.
Segundo o disposto no art.º 615.º, n.º 1, do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b) e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (alínea d).
A sentença recorrida não padece, no entanto, de nenhuma dessas nulidades.
Em relação à nulidade por falta de fundamentação, será seguro afirmar – como, aliás, vem sendo entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[1] – que ela apenas se pode ter como verificada quando falte, em absoluto, qualquer fundamentação (seja ela de facto ou de direito) ou quando exista uma deficiência de fundamentação de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”. Conforme dizia Alberto dos Reis[2], «O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade».
O que constitui causa de nulidade da sentença não é, portanto, a fundamentação insuficiente e/ou errada, mas sim a total omissão de fundamentação; a sentença nula por falta de fundamentação é aquela que não dá a perceber os concretos fundamentos (de facto ou de direito) da decisão e que, nessa medida, não fornece os elementos básicos para compreender as razões que conduziram o julgador à decisão proferida.
Ora, lendo a decisão recorrida, facilmente se constata que ela não se enquadra na situação descrita, uma vez que, além de enunciar os factos em que se baseou, também indica as razões pelas quais decidiu nos termos que dela constam. Em suma, e no que toca à verba n.º 15 (única que está em causa neste recurso), decidiu-se – com fundamento nos factos que se julgaram provados sob os n.ºs 10 a 13 – julgar procedente a reclamação que havia sido apresentada pela interessada AA (que – como ali se disse – se resumia à omissão na dita verba da extensão dos anexos que constam dos citados pontos de facto) e determinar a correcção da verba referida no sentido de incluir a discriminação de tais anexos.
A decisão recorrida não padece, portanto, de qualquer nulidade por falta de fundamentação.
Em relação à nulidade por omissão de pronúncia, resulta da disposição acima citada (al. d) do n.º 1 do art.º 615.º) que ela estará configurada quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar e essas questões – que o juiz tem o dever de apreciar e resolver sob pena de nulidade – são as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art.º 608.º, n.º 2, do CPC).
Para que a sentença fique afectada da referida nulidade não basta, portanto, que seja omitida apreciação de questões que tivessem sido suscitadas; para que tal nulidade se configure será ainda necessário que não tenham sido indicadas razões (de natureza formal ou material) que justifiquem essa omissão, seja porque se entendeu que, em face da solução dada a outras, era desnecessária ou ficava prejudicada a apreciação daquelas, ou seja porque se entendeu que existiam outras razões (designadamente, de natureza formal) que obstavam à sua apreciação. Poderá existir, neste caso, erro de julgamento (caso tenha sido incorrecto ou errado o juízo feito acerca da desnecessidade ou inviabilidade de apreciação de determinadas questões) mas, resultando da decisão uma qualquer justificação (certa ou errada) para a não apreciação dessas questões, não existe qualquer nulidade; o vício que, eventualmente, possa existir será um erro de julgamento.
Ora, pensamos ser essa a situação que se configura nos autos.
As questões cuja apreciação a Apelante alega ter sido omitida corresponderão – conforme parece resultar das alegações – às questões que veio suscitar nos autos após a junção (em 09/01/2024) de uma escritura de justificação referente ao artigo matricial rústico nº ...11 da freguesia ... onde, alegadamente, teria sido implantada a casa de habitação relacionada na verba n.º 15 e com base na qual sustentava que a casa constante da citada verba não correspondia a qualquer benfeitoria, mas sim a prédio em propriedade plena integrado no património comum do casal, pedindo que se relacionasse – como imóvel e não como benfeitoria – um prédio misto composto, não só pela referida casa (prédio urbano ...74), mas também pelo prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...11.
Ora, apesar de ser certo que a decisão recorrida não apreciou essas questões, não é menos certo que tal aconteceu por se ter entendido que essa matéria estava excluída da reclamação contra a relação de bens que estava a ser objecto de apreciação e decisão e que, como ali se referiu expressamente, se resumia à omissão na dita verba da extensão dos anexos que constam dos citados pontos de facto. É isso que resulta – claramente – dos seguintes excertos da decisão:
“Quanto à verba 15 da relação corrigida importa consignar que embora a maioria da produção de prova se tenha centrado na origem do terreno, em que fez a construção e se isso ocorrer ou não após o casamento (no que a prova resultou quase unânime), na realidade a reclamação deduzida, em momento algum relacionou que a dita verba tivesse que ser relacionada doutra forma, antes tendo resultado pacífico que se trata de um direito de crédito do casal, sobre o c.c. (supostamente por ser ele o dono do terreno, embora isso não haja sido dito expressamente em qualquer momento).
O que foi questionado na reclamação foi a exiguidade da descrição dos anexos, pretendendo a reclamante que os mesmos fosse objecto de descriminação pelo que tendo-se considerado isso esmo, com o fundamento suprarreferido, nada mais se consignou nessa matéria por não ter sido reclamado ou sequer alegado factualmente por qualquer dos interessados.
(...)
Quanto à verba 15, ou seja, a benfeitoria, reitera-se o já antes mencionado, ou seja, a reclamação resumiu-se à omissão na dita verba da extensão dos anexos, embora omissos à matriz...” (sublinhados nossos).
A decisão identifica, portanto – com clareza – as razões pelas quais não podiam ser – e não foram – apreciadas as questões a que alude a Apelante (não foram apreciadas porque não haviam sido suscitadas na reclamação) e, portanto, a falta de apreciação dessas questões não produz nulidade da sentença. Poderá existir – como se disse – erro de julgamento, caso se entenda que esse juízo (feito na decisão) está incorrecto, mas não existe qualquer nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Não se verifica, portanto, a apontada nulidade.
Descrição da verba n.º 15
Conforme se referiu, a decisão recorrida julgou procedente a reclamação que havia sido deduzida pela interessada AA (a Apelante) no que toca à dita verba n.º 15 (benfeitoria), determinando-se que a descrição da dita verba do activo passe a incluir a descriminação dos anexos tal como se deram como provados (cfr. pontos 10 a 13 da matéria de facto).
Pretende, no entanto, a Apelante que essa verba seja alterada no sentido de ficar a constar, não como benfeitoria, mas sim como um prédio misto (integrado no património comum do casal) composto pelo referido prédio urbano e pelo prédio rústico onde aquele prédio urbano foi implantado (o artigo matricial rústico nº ...11 da freguesia ...), uma vez que este prédio rústico também era propriedade comum do casal.
Conforme já se disse, esta pretensão e estas questões apenas foram suscitadas pela Apelante após a junção (em 09/01/2024) de uma escritura de justificação referente ao artigo matricial rústico nº ...11 da freguesia ..., ou seja, mais de dois anos depois de ter apresentado reclamação contra a relação de bens onde, no que toca à referida verba n.º 15, apenas sustentava dever ser alterada a sua descrição de modo a incluir os anexos que alegava terem sido contruídos e onde não fazia qualquer alusão ao prédio inscrito na matriz rústica n.º ...11 nem pedia a sua relacionação como prédio integrado no património comum do casal.
Ora, o que resulta do disposto no art.º 1104.º do CPC é que a apresentação de reclamação à relação de bens pode ser apresentada no prazo de 30 dias após a citação, não prevendo a lei – ao contrário do que sucedia em regimes anteriormente vigentes – a possibilidade de reclamar da relação de bens fora do referido prazo de trinta dias. A apresentação de reclamação contra a relação de bens fora do prazo (normal) para o efeito estabelecido era admitida pelo art.º 1348.º, n.º 6, do anterior CPC (onde se dispunha que as reclamações contra a relação de bens podem ainda ser apresentadas posteriormente, mas o reclamante será condenado a multa, excepto se demonstrar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável) e era também admitida pelo art.º 32.º, n.º 5, da Lei 23/2013 de 05/03 (onde se dispunha que as reclamações contra a relação de bens podem ainda ser apresentadas até ao início da audiência preparatória, sendo o reclamante condenado em multa, exceto se demonstrar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável), sendo certo, no entanto, que essa possibilidade não “passou” para a redacção do CPC actualmente vigente (onde foi reintroduzido, por força da Lei n.º 117/2019, de 13/09, o regime jurídico do processo de inventário), não tendo sido aqui admitida.
A circunstância de o legislador não ter transposto para o regime actual a aludida possibilidade – que estava prevista no regime anterior – não poderá deixar de evidenciar o seu propósito de pretender concentrar os meios de defesa dos interessados na oposição, impugnação ou reclamação a deduzir no prazo de 30 dias a contar da citação (conforme previsto no citado art.º 1104.º) com a consequente preclusão dos meios de defesa que não sejam invocados nesse momento, sem prejuízo, naturalmente e nos mesmos termos em que tal é admitido no âmbito dos processos comuns (cfr. art.º 588.º do CPC), de tal ser feito em momento posterior, em caso de superveniência (objectiva ou subjectiva) de fundamentos de oposição, impugnação ou reclamação à relação de bens.
Significa isso, portanto – como dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres[3] – que no actual sistema “...o momento das reclamações é necessariamente o previsto no n.º 1 (do citado art.º 1104.º), sob pena de preclusão do direito de reclamar, ainda que, naturalmente, sem prejuízo da invocação de uma situação de superveniência (cf. art. 588.º, n.º 2)”, de modo que “a não dedução da oposição quanto às matérias referidas no n.º 1 leva à estabilização no processo dos elementos adquiridos na fase dos articulados, em consequência nomeadamente do alegado pelo cabeça d casal no que respeita à definição dos interessados (art. 1097.º, n.º 2, al. c)) e à composição do acervo patrimonial a partilhar (art. 1097.º, n.º 3, al.c))”.
Concluimos, portanto, em face do exposto, que, no regime actualmente vigente, a reclamação à relação de bens tem que ser, necessariamente, deduzida, sob pena de preclusão desse direito, no prazo de 30 dias a contar da citação, sem prejuízo dos casos em que tal reclamação assente em fundamentos supervenientes.
Assim se considerou também no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/01/2023[4] – relatado pela aqui 2.ª Adjunta – em cujo sumário se lê o seguinte:
“I – Com a reforma da Lei 117/2019, prevendo o artigo 1104º um prazo único de 30 dias para a dedução de contestação ao requerimento inicial do inventário e para o articulado apresentado pelo cabeça de casal nos termos do art. 1102º, e eliminada a norma que permitia que as reclamações contra a relação de bens fossem apresentadas posteriormente, decorrido aquele prazo de 30 dias, precludida fica a faculdade de apresentar reclamação contra a relação de bens.
II – Ressalvada a possibilidade de partilha adicional a que se reporta o artigo 1129º CPC, e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior encontrar-se-á sujeita às regras gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o artigo 588º do CPC, ou seja, em caso de superveniência subjetiva ou objetiva”.
No mesmo sentido, encontramos ainda, entre outros, o Acórdão da Relação de Évora de 11/05/2023 e o Acórdão da Relação do Porto de 23/11/2023[5].
É certo, no entanto, que essa preclusão não é total, uma vez que, ainda que não acusada no momento definido no art.º 1104.º no âmbito de reclamação à relação de bens, a falta de inclusão de qualquer bem pode vir a dar origem a partilha adicional nos termos do art.º 1129º, independentemente da prova de qualquer requisito e, designadamente, independentemente da existência de qualquer superveniência.
E esta possibilidade – que, de qualquer modo, é limitada à existência de outros bens e que não abrange a discussão de quaisquer outras questões que pudessem ter sido invocadas em reclamação à relação de bens (ficando estas efectivamente precludidas se não forem invocadas no momento processual adequado) – pode suscitar algumas dificuldades de compreensão do regime. Se o legislador admite, sem dependência de qualquer outro requisito (designadamente superveniência), a partilha adicional de bens cuja falta não foi oportunamente acusada em reclamação à relação de bens, por que razão não se deve permitir que essa falta seja acusada no decurso do inventário (antes da partilha) uma vez ultrapassada a fase processual legalmente estabelecida para o efeito? A razão – pensamos nós – pode e deve ser encontrada na circunstância de o legislador ter pretendido evitar perturbações na marcha do processo de inventário e obstar à criação de entraves à efectiva realização da partilha dos restantes bens. Na verdade, caso fosse permitida a apresentação de reclamação – designadamente para acusar a falta de determinados bens – a qualquer momento, o processo de inventário poderia tornar-se caótico com sucessivas reclamações que, podendo até determinar a necessidade de regressar a fases processuais anteriores que já estavam ultrapassadas, impediriam ou dificultariam o progresso dos trâmites processuais e a efectiva realização da partilha. Nessas circunstâncias, o legislador terá preferido evitar todos esses obstáculos e entraves de forma a obter a partilha dos bens já identificados nos autos de forma mais célere, deixando para momento posterior – no âmbito de partilha adicional – a partilha limitada a outros bens cuja existência não tenha sido invocada no processo no momento oportuno.
Aquilo que para nós é claro – perante o regime fixado na lei – é que a reclamação à relação de bens tem que ser, necessariamente, deduzida, sob pena de preclusão desse direito, no prazo previsto no art.º 1104º do CPC, sem prejuízo dos casos em que tal reclamação assente em fundamentos supervenientes.
Regressando ao caso dos autos e fazendo a sua apreciação à luz das considerações efectuadas, o que se constata é que a Apelante suscitou as questões que agora pretende ver apreciadas quando há muito (há mais de dois anos) estava ultrapassado o momento processual em que poderia reclamar contra a relação de bens.
Mediante requerimento apresentado em 10/09/2021 que veio a ser completado em 05/11/2021 (em momento que ainda se considerou oportuno sem que isso esteja em discussão no presente recurso), a Apelante reclamou da reclamação de bens e, no que toca à verba n.º 15 (única que está em causa no recurso), fê-lo com um único fundamento: além de dizer que o cabeça de casal não havia juntado as certidões matricial e predial, alegava que a descrição da verba em questão não estava correcta porque, além da casa de habitação que nela se mencionava, dela também faziam partes as construções e anexos que discriminava (reclamação que – esclareça-se – foi julgada procedente na decisão recorrida onde se determinou a correcção da verba nos termos requeridos).
Só em 29/01/2024 e 31/01/2024 (mais de dois anos depois), a Apelante se apresentou a suscitar as questões que agora pretende ver apreciadas, reclamando a relacionação (como imóvel e não como benfeitoria) de um prédio misto que, além do prédio urbano já referido na verba 15, englobava o prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...11 que alegava ter sido adquirido por casal por usucapião (conforme escritura de justificação que juntou aos autos) e no qual teria sido construído o referido prédio urbano.
Ora, como é evidente, essa alegação e esta pretensão nada tinha a ver com a reclamação à relação de bens que havia apresentado em momento oportuno. O que nela se suscitava e reclamava eram questões e pretensões totalmente novas que, na prática, configuravam uma nova e autónoma reclamação contra a relação de bens (ainda que não lhe tivesse dado essa designação) que, sem invocação de qualquer superveniência objectiva ou subjectiva (que não foi efectivamente invocada), não podia ser considerada por estar, há muito, ultrapassado o momento processual em que o poderia fazer.
Nessas circunstâncias e sem prejuízo de partilha adicional a que possa haver lugar, aquelas questões e pretensões não estavam – e não estão – em condições de ser apreciadas (como, de facto, não foram), sendo certo que não se relacionavam com os fundamentos da reclamação que havia sido apresentada oportunamente e que estava em apreciação. A reclamação oportunamente deduzida pela Apelante foi julgada – como se disse supra – totalmente procedente determinando-se a alteração da descrição da verba nos termos que havia peticionado e nada mais se impõe apreciar, uma vez que tudo o mais que veio alegar em momento posterior, excede o âmbito dessa reclamação e, como se disse, não está em condições de ser apreciado.
Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Paulo Correia)
(Maria João Areias)
[1] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140.
[3] O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, págs. 81 e 83.
[4] Proferido no processo n.º 1001/21.0T8PBL.C1 e disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Proferidos nos processos n.ºs 115/21.1T8STR-A.E1 e 10278/22.3T8PRT-A.P1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.