I – O despacho de pronúncia ora sindicado cumpriu cabalmente o dever de fundamentação dos atos jurisdicionais decisórios, permitindo aos seus destinatários e às instâncias de recurso apreender e compreender o iter racional da formação da convicção do juiz e o seu escrutínio, como, aliás, evidenciam a motivação e conclusões dos recursos que dela foram interpostos pelo Ministério Público e pela arguida, rebatendo precisamente, além do mais, esse convencimento e os respetivos fundamentos, sendo certo que a falta de fundamentação não se confunde com a discordância ou com a eventual insuficiência indiciária dos elementos típicos do crime imputado.
II - No caso em apreço, tendo a arguida adquirido esta qualidade, nos termos do artigo 57º, n.º 1, do CPP, por contra si ter sido requerida a abertura de instrução, esse estatuto processual não tinha de ser atribuído no inquérito, em cumprimento das disposições conjugadas dos seus artigos 58º, n.º 1, 59º e 272º, n.º 1, nem daí decorre a nulidade sanável e dependente de arguição, nos termos previstos nos artigos 120º, n.ºs 1, 2, al. d), e 3, al. c), e 121º do mesmo código.
III - Ao contrário do que, em regra, sucede no inquérito, o interrogatório do arguido não constituiu um ato de realização obrigatória na instrução, sem prejuízo do direito potestativo do arguido a solicitá-lo, conforme decorre do artigo 292, n.º 2, do CPP, hipótese que aqui não se coloca, considerando que a arguida não o solicitou e até renunciou ao direito de estar presente no debate instrutório, aí sendo representada pela sua defensora.
IV- Tendo a decisão de pronúncia dado como suficientemente indiciados os factos constantes do RAI, para o qual remeteu, do qual não é possível extrair as circunstâncias concretas que desembocaram na peça recursiva na qual foi inserta a referida e censurada expressão e a matéria de facto esclarecedora da concreta tramitação processual que culminou nessa peça recursiva e inserção de tal expressão, cuja verdadeira natureza fica por compreender na sua totalidade na correspondente dinâmica processual, nomeadamente quanto a tratar-se da imputação de factos ou de juízos sobre a ofendida, enquanto juíza titular do processo, ou de mero juízo da arguida, enquanto procuradora da República no processo, sobre a tramitação deste, que considerou anómala e impeditiva do exercício do seu múnus, podia até concluir-se pela atipicidade e não punibilidade dessa conduta.
V - Por outro lado, nada se tendo apurado quanto ao verdadeiro sentido da expressão “chicana processual”, de entre os vários que a sua polissemia comporta e cuja identificação só aquele concreto iter processual permitiria, sendo certo que ela pode e é entendida no próprio meio judiciário, não necessariamente com o sentido ofensivo da honra da pessoa a quem é imputada, mas como uma atuação processual obstrutiva da fluidez processual, uma vezes em exercício abusivo de prerrogativas legais, outras como expressão de desadequada, mesmo errada direção e gestão processual, por inabilidade, distração ou incorreta interpretação aplicativa das pertinentes normas, substantivas e adjetivas, do titular do processo ou mesmo da secção, não se mostra viável concluir que os autos contêm indícios suficientes da prática pela arguida do crime de difamação agravada pelo qual vem pronunciada, nos termos previstos no artigo 283º, n.º 2, aqui aplicável por força do artigo 308º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP, antes se afigurando que a probabilidade de a arguida ser dele absolvida em julgamento, mesmo mantendo-se inalterada a matéria de facto considerada indiciada, limitada, relembra-se, à do RAI, supera largamente a da sua condenação.
(Recurso)
Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. No processo de instrução acima referenciado, que correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), em ........2024 foi proferido despacho de pronúncia (referência 21635202), da arguida, AA, procuradora da República, com os demais sinais dos autos, pela prática de um crime agravado de difamação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, 182.º, 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) e 188.º, todos do Código Penal (CP), que lhe era imputado pela assistente, BB, juíza direito, com os demais sinais dos autos.
2. Inconformados, o Ministério Público e a arguida interpuseram, respetivamente, em ........2024 (referência 694631) e ........2024 (referência 696307), recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões das suas motivações (transcrição):
2. 1. Ministério Público
« Em conclusão:
1. O presente recurso é interposto do despacho que pronunciou a arguida AA pela prática de um crime de difamação agravada pp pelos arts. 180º, 182º, 184º e 132º 2l) do Código Penal;
2. No referido despacho de pronúncia a arguida em sede de recurso, no âmbito do processo de adopção que correu termos no J5 do TFM de Lisboa, escreveu:” Com o devido respeito, chicana processual não pode ser admitida quando estão em apreciação tão importantes valores e quando compete ao Ministério Público, por competência própria, salvaguardar o superior interesse da criança adoptanda como acontece n caso sub judice.”;
3. Naquele recurso, a arguida questionava o facto de lhe ter sido cerceado o seu dever funcional de emitir parecer;
4. Entendeu o despacho recorrido que tal expressão era apta a ofender a arguida já que o art. 10º da CEDH não é aplicável nos tribunais que não são um espaço de liberdade;
5. O referido artigo vigora na ordem jurídica interna directamente na ordem jurídica portuguesa ex vi do art. 8.º, n.º 2, da CRP, e em patamar inferior ao das normas constitucionais, mas superior ao das leis ordinárias devendo o direito interno ser aplicado de harmonia com a jurisprudência do TEDH, sobre este instrumento jurídico;
6. A decisão recorrida violou assim, o disposto no art. 5º da CRP e fez uma errada interpretação do art. 180º do Código Penal já que lhe deu um alcance que não se coaduna com o art,10º da CEDH;
7. Devendo considerar atípico o referido juízo crítico da tramitação processual efectuada pela arguida.
8. A MMa. Juiz a quo considerou que a arguida teve intenção de ofender a assistente já que a relação que mantinha com a assistente era tensa;
9. Para tanto baseou-se unicamente, no depoimento desta que referiu que no período em que trabalhou com a arguida sentiu por parte desta uma atitude de desconsideração e que a situação em apreço foi o culminar de sucessivas desconsiderações e ainda “ que se sentiu muito ofendida e injuriada, particularmente porque a expressão em causa foi proferida pela Exmª Procuradora AA de quem entende ser esperado um grau de imparcialidade e de correcção equivalente ao seu”;
10. De tal depoimento resulta com meridiana clareza que caso aquela expressão tivesse sido proferida por outro profissional do foro, não se sentiria ofendida;
11. O que reforça o entendimento de que aquela expressão não era apta a ofender quem quer que seja pois não atinge o núcleo essencial das qualidades morais ou profissionais da arguida;
12. O despacho recorrido viola o disposto no art. 96º nº 3 do CPP já que a apreciação de facto se baseou unicamente, no depoimento da assistente não curando de ouvir a arguida para que esclarecesse qual o sentido da expressão utilizada.
13. Pede-se pois, que o despacho de pronúncia seja substituído por outro que não pronuncie a arguida.
V. Exas. Venerandos Conselheiros, farão certamente justiça e suprirão as insuficiências do recurso.
A Magistrada do Ministério Público
(…)».
2. 2. Arguida
«V- CONCLUSÕES:
a) Recorre-se para este Supremo Tribunal de Justiça, do Despacho de Pronúncia proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, como se de decisão da 1.ª Instância se tratasse, uma vez que a recorrente é Magistrada do M.P. tendo, pois, foro privativo no referido Tribunal da Relação.
b) Foi pronunciada pela prática de um crime de difamação agravada, sendo a assistente também uma Sra. Juíza de 1.ª Instância.
c) Ora os presentes autos tiveram origem na apresentação de uma queixa crime pela assistente imputando à denunciada a prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, 182.º,184.º e 132 nº 2 alínea l) do Código Penal.
d) A assistente considerou a expressão “chicana processual”, usada em sede de recurso apresentado pela denunciada, ofensivos à sua honra e consideração.
e) Pela PGA veio a ser proferido despacho de arquivamento, “(…) No caso, a expressão em causa está intrinsecamente ligada ao objeto do processo e não representa um ataque gratuito, desnecessário e desproporcional às características e qualidades humanas da Sra. Juiz”.
f) Despacho de arquivamento que louvamos e acompanhamos na íntegra os argumentos aí invocados.
g) Desse arquivamento veio a assistente requerer a abertura de instrução, tendo sido proferido despacho de pronúncia.
h) A denunciada nunca foi constituída arguida, não tendo à mesma lhe sido comunicados os direitos e deveres decorrentes dessa posição processual.
i) Nunca foi interrogada como arguida.
j) Não solicitou a denunciada a sua audição, porquanto nunca pensou vir a ser pronunciada.
k) Decorre da ausência da audição da denunciada não ser possível discernir o motivo pelo qual a denunciada proferiu tal afirmação e muito menos como decorreram os autos do processo de adoção com o nº 6607/23.0... (...)- Juízo de Família e Menores de ....
l) Com efeito, trata-se de um processo de adoção em que a denunciada recorreu de uma decisão proferida, por discordar da mesma, cumprindo o seu dever de objetividade e legalidade.
m) A expressão invocada vem inserida num texto em que se ataca uma decisão, não sendo só por si vexatória ou achincalhante.
n) Nunca a denunciada quis ofender a assistente na sua honra e consideração, tendo embora o direito à liberdade de expressão (art.º 37.º da CRP) e de defesa da legalidade (art.º 4 nº a alínea a) do Estatuto do M.P.), tendo atuado sempre ao abrigo desse seu dever.
o) Tendo assim, também o direito de emitir a sua opinião, aliás, em termos alargados como decorre da jurisprudência do TEDH já mencionada na motivação de recurso e que por razões de síntese nas conclusões e economia processual não se cita de novo.
p) Não estará assim em causa uma “necessidade social imperiosa da condenação”, como o T.E.D.H. vem exigindo para que haja crime – por todos, o recente Acórdão da Relação do Porto, de 11 de Abril de 2 019, Mota Ribeiro, acessível em www.dgsi.pt
q) Aliás, só se obteve o acesso à decisão final e não integral dos autos de adoção, sendo que o que se alegou foi a sua tramitação enviesada ou desconforme com os princípios da objetividade e descoberta da verdade material.
r) A descrição dos factos é tão lacônica que não permite verificar se no caso se está perante uma situação de não punibilidade da conduta nos termos do art.º 180 nº 2 alínea a) e b) do C.P.
s) Descrição lacunar que aliás decorre do próprio RAI em que se ataca o despacho de arquivamento e não se faz aliás uma descrição completa dos factos como se deveria fazer, art.º 287 nº 2 e art.º 283.º do C.P.P.
t) Nem nunca se fala na consciência da ilicitude por parte da ora recorrente, o que constituiu também pressuposto da infração, como decorre do art.º 16 nº 1 e 17.º do Código Penal.
u) Chegando-se ao ponto de não incluir nos meios de prova-quer no RAI, quer no despacho de pronúncia, da própria peça processual de recurso em que a denunciada proferiu a expressão “chicana processual”.
v) Ficou assim a denunciada estupefacta com o presente despacho de pronúncia, que julga nunca poder proceder a final, lembrando-se que no inquérito a mesma também nunca foi ouvida, porque como decorre do douto despacho de arquivamento é evidente que nunca poderia ser acusada.
w) Tal como agora é evidente que não poderá ser pronunciada e assim, por simples razões de economia processual, a denunciada começa por atacar o fundo da questão, no sentido da sua não pronúncia e não questões de forma que implicam invalidades.
x) Pede, pois, em 1.º lugar a revogação do despacho proferido e a sua não pronúncia nestes autos, parecendo-lhe completamente dispensável que os autos andem de Instância a Instância, no sentido de declaração de invalidades e sua sanação na Instância que as cometeu.
y) Se assim não se entender, porém, sempre se deve referir que houve uma completa omissão de diligências com vista à descoberta da verdade material e do princípio do contraditório que como se disse, determinariam uma descrição dos factos imputados muito incompleta, desenquadrada e sem lógica.
z) Assim é que esta é feita na sequência do RAI que se preocupou fundamentalmente em fazer uma crítica do despacho de arquivamento da Digníssima PGA, surgindo os factos “salpicados” no referido requerimento, “um aqui” e “outro acolá”.
aa) O que tem especial relevo na decisão instrutória, uma vez que esta foi feita por remissão completa para aqueles factos.
bb) Sendo de referir novamente, que nem no RAI, nem na decisão Instrutória aparece como meio de prova, a peça processual-Recurso em que a denunciada proferiu a expressão imputada.
cc) Isto é, não se faz uma narração completa dos factos imputados, da motivação da denunciada, nem do enquadramento em que as expressões foram proferidas, o que se traduz no incumprimento do despacho no art.º 283 nº 3 alínea b) do C.P.P aplicável ao despacho de pronúncia, art.º 287.º nº 2 também do C.P.P.
dd) Aliás, tal só poderia ser feito, nomeadamente ouvindo a denunciada, para que esta se pronunciasse, sobre o que no seu entendimento correu mal no referido processo e tendo uma certidão integral dos autos da adoção ou acesso integral dos mesmos, daí se retirando os factos necessários à acusação.
ee) Da maneira lacunar, pouco objetiva e ilógica e desgarrada que consta dos autos é que não.
ff) Nomeadamente, o simples facto imputado de forma desgarrada é insuficiente para que se possa considerar como difamatória a expressão proferida ou pelo menos para se aferir da aplicabilidade das cláusulas de exclusão da punibilidade previstas no art.º 180 nº 2 alíneas a) e b) do C.P.P.
gg) Termos em que e meramente como argumentação subsidiária se invoca a nulidade do despacho de pronúncia proferido, que deve ser assim sanada no Tribunal recorrido e pelo menos com a realização das duas diligências referidas, interrogatório da denunciada e acesso integral aos autos de adoção.
hh) Sobretudo em matérias de liberdade de expressão não importa só referir que expressões a denunciada utilizou, mas o seu contexto e circunstâncias, sob pena da decisão dar prevalência à honra e consideração (art.º 26 nº1 da CRP ) em detrimento do direito à liberdade de expressão (art.º37 da CRP), de forma não explicada.
ii) O que colide frontalmente com o princípio do excesso na restrição de Direitos, Liberdades e Garantias, prevista constitucionalmente, no art.º 18 nº 2 da CRP.
Termos em que se pede:
1) a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por despacho de não pronúncia,
2) Ou e se assim não se entender e por mera cautela de patrocínio, a declaração de nulidade da mesma, com vista a contextualizar a afirmação proferida pela denunciada, pelo menos com o interrogatório da denunciada e o seu acesso integral aos autos de adoção em cujo recurso a denunciada no cumprimento de funções proferiu a afirmação em causa dos autos.
A Advogada
(…)»
3. Os recursos foram admitidos por despachos da Juíza Desembargadora titular, de, respetivamente, ........2024 (referência 21770799) e ........2024 (referência ...), para subirem imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. Não houve resposta aos referidos recursos.
5. Neste Tribunal, o Ministério Público, em ........2024 (referência ...), emitiu o seguinte parecer no sentido da procedência dos recursos, salvo quanto às nulidades/irregularidades neles invocadas, e da revogação da decisão sob escrutínio (transcrição parcial):
«(…) 12. Parecer (art. 416.º do CPP)
O despacho de pronúncia é recorrível (arts. 310.º, n.º 1, a contrario, e 399.º do CPP).
12.1. A violação do disposto nos arts. 96.º, n.º 3, e 97.º, n.º 3, do CPP (recurso do MP)
Na conclusão 12.ª das motivações, o MP refere que «o despacho recorrido viola o disposto no art. 96.º n.º 3 do CPP já que a apreciação de facto se baseou unicamente, no depoimento da assistente não curando de ouvir a arguida para que esclarecesse qual o sentido da expressão utilizada».
No corpo das motivações escreve que «o despacho recorrido carece de fundamentação suficiente violando o disposto no art. 97.º n.º 3 do CPP» porquanto «[a] fundamentação da existência de dolo directo limita-se a parte de um parágrafo partindo de um pressuposto que conforme acima se refere, leva à conclusão de que a expressão em causa não contém em si a virtualidade de ofender, caindo no domínio da atipicidade» (pág. 6 do respetivo ficheiro pdf).
De acordo com o art. 96.º do CPP, salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prestação de quaisquer declarações processa-se por forma oral, não sendo autorizada a leitura de documentos escritos previamente elaborados para aquele efeito (n.º 1). A entidade que presidir ao ato pode autorizar que o declarante se socorra de apontamentos escritos como adjuvantes da memória, fazendo consignar no auto tal circunstância (n.º 2) No caso a que se refere o número anterior devem ser tomadas providências para defesa da espontaneidade das declarações feitas, ordenando-se, se for caso disso, a exibição dos apontamentos escritos, sobre cuja origem o declarante será detalhadamente perguntado (n.º 3).
In casu, não ficou documentado que a assistente se tenha socorrido de quaisquer apontamentos ou auxiliares de memória quando prestou declarações perante a Sra. juíza desembargadora de instrução [9.1. supra].
Estamos, por isso, convictos de que a invocada violação do art. 96.º, n.º 3, do CPP ficou a dever-se a lapso da Sra. magistrada que subscreve o recurso.
Quanto à ofensa do art. 97.º, n.º 3, do CPP.
Dispondo o art. 97.º, n.º 3, do CPP que os atos decisórios do MP tomam a forma de despachos, parece evidente, também aqui, que o MP pretendia referir-se ao art. 97.º, n.º 5, do CPP que, esse sim, estabelece que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Como é sabido, a fundamentação «[c]omprende as razões de facto e de direito da decisão tomada, para que, de forma clara e inequívoca, os interessados conheçam as decisões, e, discordando, se para tanto tiverem legitimidade, possam contraditá-las inclusivamente por via de recurso» (Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal anotado, 4.ª edição Almedina, pág. 174).
Ora, basta ler o despacho recorrido para constatar que o raciocínio que culminou na decisão de pronúncia encontra-se adequada e suficientemente explicitado, seja em relação aos requisitos objetivos, seja em relação ao requisito subjetivo do ilícito [10. e 10.1. supra].
Donde que o despacho em questão não padeça de qualquer anomalia, seja de nulidade, nomeadamente por não conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena (arts. 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), do CPP), seja de irregularidade por falha de fundamentação, a qual, ainda que fosse o caso, estaria sanada por não ter sido invocada no prazo legal (arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 119.º, 120.º, n.º 2, e 123.º do CPP).
12.2. A não constituição como arguida da denunciada (recurso da arguida)
Diz a recorrente que «nunca foi constituída arguida» e que jamais lhe foram «comunicados os direitos e deveres decorrentes dessa posição processual.»
Conforme assinalado, a Dra. AA não foi constituída arguida na fase de inquérito [2. supra] mas assumiu essa condição com a admissão do requerimento de abertura de instrução (arts. 57.º, n.º 1, parte final, e 287.º, n.º 3, do CPP).
Ainda assim, devia-lhe ter sido comunicado, oralmente ou por escrito, de que a partir daquele momento era considerada arguida, e deviam ter-lhe sido indicados e, se necessário, explicados os direitos e deveres processuais previstos no art. 61.º do CPP, com entrega de documento com a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os referidos direitos e deveres processuais (arts. 57.º, n.º 3, e 58.º, n.ºs 2 e 5, do CPP).
No caso em análise, esta formalidade não foi cumprida [4. a 10. supra].
A recorrente, aliás, nem sequer prestou (ainda) termo de identidade e residência conforme determina o art. 61.º, n.º 6, al. c), do CPP.
Segundo o art. 58.º, n.º 7, do CPP, a omissão ou violação das formalidades a que deve obedecer a constituição como arguido implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.
Como a recorrente não chegou a prestar declarações, o incumprimento daquela formalidade acaba, assim, por ser inconsequente.
12.3. A não audição como arguida da denunciada (recurso da arguida)
Diz ainda a recorrente que «[n]unca foi interrogada como arguida» (embora reconheça que não solicitou a sua audição «porquanto nunca pensou vir a ser pronunciada») e que essa omissão, acrescida do não «acesso integral aos autos de adoção», gera a «nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, d) do Código Processo Penal» (v. o n.º 70 do corpo das motivações).
De acordo com o art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade constitui uma nulidade dependente de arguição.
A insuficiência do inquérito ou da instrução apenas se verifica quando não tenham sido praticados atos legalmente obrigatórios.
A omissão posterior de diligências essenciais para a descoberta da verdade reporta-se à omissão de atos processuais na fase de julgamento e de recurso [a título de exemplo v. os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2017, processo 220/14.0GBCMN.G1, relatado pelo desembargador Jorge Bispo, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2017, processo 161/15.4GBAGN.C1, relatado pelo desembargador José Eduardo Martins (www.dgsi.pt), e, na doutrina, António Henriques Gaspar, Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, pág. 349, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, págs. 472-473].
Pois bem, se é verdade que para a fase de inquérito o art. 272.º, n.º 1, do CPP estabelece a obrigatoriedade de interrogar como arguido a pessoa em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, salvo se não for possível notificá-la, e que o STJ fixou jurisprudência no sentido de que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP (acórdão n.º 1/2006, relatado pelo conselheiro Oliveira Mendes, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 1, de 02.01.2006), na fase instrutória o juiz de instrução apenas interroga o arguido quando o julgar necessário e sempre que este o solicitar (art. 292.º, n.º 2, do CPP). Fora isso, os únicos atos legalmente obrigatórios da fase de instrução são o debate instrutório (art. 289.º, n.º 1, do CPP) e a audição da vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente, se esta, tal como o arguido, o solicitar (art. 292.º, n.º 2, do CPP).
A avaliação da pertinência de realização de outras diligências instrutórias cabe ao juiz de instrução que, nesta matéria, goza de total discricionariedade (arts. 289.º, n.º 1, 1.ª parte, e 291, n.ºs 1 e 2, do CPP).
In casu, como a recorrente, que até abdicou do direito de estar presente no debate instrutório [8. supra], não pediu para ser interrogada, não foi omitido qualquer ato processual obrigatório.
De resto, ainda que por hipótese de raciocínio se admitisse que a não audição da arguida e a ausência de consulta dos autos de adoção configurava a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 1, al. d), do CPP, esta já estaria sanada em virtude de não ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório (art. 120.º, n.º 3, al. c), do CPP).
12.4. Indiciação do crime de difamação (recurso do MP e da arguida)
Quer o MP quer a arguida defendem que a expressão «chicana processual» vertida nas alegações de recurso apresentadas no processo de adoção 6607/23.0... é atípica, «não atinge o núcleo essencial das capacidades morais ou profissionais» da assistente (recurso do MP) e «vem inserida num texto em que se ataca uma decisão, não sendo só por si vexatória ou achincalhante» (recurso da arguida).
Vejamos.
No que ora importa considerar, o art. 26.º, n.º 1, da Constituição estabelece que a todos são reconhecidos os direitos ao bom nome e reputação e à imagem.
Este direito pessoal é objeto de proteção penal no art. 180.º, n.º 1, do CP que prevê e pune criminalmente a conduta de quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
O conceito jurídico de honra «inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa, äussere Ehre), mas, também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna, innere Ehre)» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4.ª edição atualizada, pág. 786).
Estabelece, por outro lado, o art. 37.º da Constituição que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações (n.º 1), que o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura (n.º 2) e que as infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social (n.º 3).
O art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, publicada no Diário da República, I Série, n.º 57, de ........1978, prevê que todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Também o art. 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de ........1978, dispõe que qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras (n.º 1) e que o exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial (n.º 2).
Como se observa no acórdão do STJ de 20.06.2024, proferido no processo 2726/22.9T9VNF.S1, relatado pela conselheira Albertina Pereira (cujo texto integral não se encontra publicado, que seja do nosso conhecimento, em qualquer base de dados), «o direito penal intervirá quando é posto em causa a tutela constitucional do direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa direito esse consagrado no art.º 26.º n.º 1, da nossa Constituição (…), devendo esse direito compatibilizar-se com direito fundamental da liberdade de expressão, como decorre do art.º 37.º n.º 1 do mesmo diploma fundamental (…). Ocorrendo conflito entre esses direitos, a solução não passa pela sua hierarquização, mas antes por sofrerem limitações de modo a respeitar-se o núcleo essencial de um e de outro (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, pág. 110), devendo atender-se ao caso concreto e segundo os critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação.
Na actualidade tem-se assistido, contudo, a um “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico e à perda relativa da sua importância. (…)
A esse respeito, os nossos tribunais têm vindo a salientar que na ponderação dos referidos direitos constitucionais em conflito, exige-se que a ofensa à honra seja grave, desproporcionada e ilegítima, de modo a justificar a compressão do direito de liberdade de expressão (Ac. TRP de 11.04.2019, proc. 14936/16.3T9PRT.P1).
(…)
A este propósito, o TEDH, embora reconheça a honra pessoal e a consideração como parte integrante do direito ao respeito pela vida privada (art.º 8.º da CEDH), tem vindo a entender que para haver violação desse direito, o ataque à honra ou consideração (“reputação”) terá de atingir um certo patamar de gravidade, de molde a prejudicar o gozo daquele direito. Só um determinado nível de gravidade permitirá que uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não possa ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10.º, § 1.º, da mesma Convenção. Deste modo, esse tipo de condenação só será aceitável, nos termos do art.º 10.º, § 2, da CEDH, na medida em que se mostre necessária, numa sociedade democrática, à proteção da reputação ou de direitos de outrem. Devendo por isso, uma intervenção desse jaez, revelar-se concretamente necessária, proporcional e baseada numa interpretação razoável das normas do Código Penal. Sendo o vocábulo “necessário”, constante da norma do art.º 10.º, § 2.º, da Convenção interpretado com o sentido de “uma necessidade social imperiosa”.
Para o TEDH, a liberdade constitui um dos fundamentos essenciais duma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento pessoal de cada um. E sem prejuízo do disposto no § 2.º do art.º 10.º, uma tal conceção de liberdade cale não apenas para as ‘informações’ ou ‘ideias’ acolhidas favoravelmente ou com indiferença, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou produzem inquietação.
Sendo estas exigências de pluralismo, tolerância e mentalidade aberta, fundamentais, sem as quais não poderá haver uma sociedade democrática. E pese embora, como resulta do art.º 10.º, uma tal liberdade esteja sujeita a exceções, estas, todavia, têm de ser interpretadas de modo estrito, assim como a necessidade de quaisquer restrições tem de ser estabelecida de modo convincente”.
Refere Henriques Gaspar, in “A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional”, Revista Julgar, n.º 7, 2009, pág. 39 e 40, que "os juízes nacionais estão vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais, devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional. (...) Os tribunais nacionais e, de entre estes, em último grau de intervenção mas no primeiro de responsabilidade, os Supremos Tribunais, são os órgãos de ajustamento do direito nacional à CEDH, tal como interpretada pelo TEDH; as decisões do TEDH têm, pois, e deve ser-lhes reconhecida, uma autoridade interpretativa".»
Tendo, então, como pano de fundo os mencionados normativos e parâmetros jurisprudenciais, regressemos ao caso.
A controversa expressão consta de um único parágrafo das alegações do recurso interposto pela arguida no processo de adoção 6607/23.0... (v. a peça processual que instruiu a queixa que deu azo ao inquérito).
Uma vez que «a relevância penal de qualquer expressão, mormente a expressão grosseira ou indelicada, nunca pode ser aferida descontextualizadamente, do mesmo modo que um vocábulo, qualquer vocábulo linguístico, só adquire um sentido no contexto em que é utilizado, mudando até de significado consoante a frase em que se insere» [acórdão do STJ de 13.03.2024, processo 253/21.0T9GDM.P1.S1, relatado pela conselheira Ana Barata Brito (www.dgsi.pt)], passamos a reproduzir integralmente a referida peça processual (destacando a negrito a expressão reputada de difamatória):
«Exm.ª Senhora ... de Direito
do J5 do Juízo de Família e Menores de ...
O Ministério Público, não se conformando com a primeira parte do douto despacho proferido a ... de ... de 2023 (referência ...), com o douto despacho prévio à douta sentença e com a douta sentença proferidos a ... de ... de 2023 (referência ...) no processo supra identificado, dos mesmos vem atempadamente requerer a interposição de recurso ordinário de apelação, devendo subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Exm.ºs Senhores Venerandos Juízes Desembargadores
do Tribunal da Relação de ...
MOTIVAÇÃO
Na primeira parte do douto despacho proferido a ... de ... de 2023, despacho esse que[..] nunca foi formalmente notificado ao Ministério Público e que com o mesmo o Ministério Público acabou por contactar a ... de ... de 2023, quando, nessa data, os autos lhe foram apresentados com termo de vista, a Mmª ... a quo indeferiu a promoção que havia sido por si efectuada a ... de ... de 2023, promoção essa do seguinte teor (referência ...):
“Antes do mais promovo que o requerente seja notificado para, em prazo a fixar, efectivamente juntar aos autos documento que comprove a adopção da criança CC por parte de DD (note-se que no assento de nascimento cuja cópia consta dos autos a fls.11 e 11v. já não há qualquer referência à mencionada adopção)”
No âmbito dos autos em apreço, pelo requerente EE, companheiro de DD, foi requerida a adopção da criança CC, tendo alegado no art. 3.º da sua petição que “O CC nasceu a ... de ... de 2016, é filho de DD, por via da adopção concretizada em ...”.
Ora, na primeira parte do despacho recorrido (proferido a ... de ... de 2023) a Mm.ª Juiz a quo considerou suficiente o documento n.º 4 junto aos autos a fls. 11 e 11 v. (assento de nascimento da criança CC sem qualquer referência à adopção anteriormente ocorrida), considerando que pela adopção o adoptado adquire a situação de filho do adoptante, bastando estar comprovado que o CC é filho do DD, nenhuma outra prova sendo necessária para aferir do pressuposto da qualidade de filho do companheiro, tendo o relatório de adopção confirmado que o mesmo CC é filho de DD por processo de adopção.
Com o devido respeito, a adopção da criança CC pelo companheiro DD vem alegada pelo próprio requerente EE na petição inicial apresentada e só pode ser comprovada por documento idóneo/autêntico, não bastando isso ser confirmado oralmente e o relatório de adopção elaborado pela ... e junto como documento nº 3 conter uma breve referência a esse aspecto.
Aliás, a própria sentença proferida a ... de ... de 2023 dá como provado no n.º 3 do elenco dos factos provados que “CC nasceu em ... de ... de 2016 e é filho de DD por via de adopção concretizada em ...”, facto esse que só podia ser comprovado por documento adequado, o que torna nula a douta sentença se idóneo/autêntico documento não vier a ser efectivamente junto (vd. arts. 363.º, n.º 1, do CC e 411.º do CPC), não bastando para tal alegar, como consta da douta sentença recorrida, que o facto sob o n.º 3 foi considerado demonstrado pelo teor do assento de nascimento da criança junto como documento n.º 4 com a petição inicial, o qual indica que é filho de DD, conjugado com o documento n.º 3 que concretiza a data de adopção da criança por este.
Ora, no documento n.º 4 não consta qualquer menção à anterior adopção e o documento n.º 3 corresponde ao relatório de adopção elaborado pela ... e não é o meio próprio para comprovar tal aspecto (desconhecendo-se, inclusivamente, como é que as autoras do relatório disso tomaram conhecimento).
No dia ... de ... de 2023, quando o Ministério Público se apercebeu que do documento n.º 4 junto aos autos não havia qualquer referência à anterior adopção, logo começou a diligenciar, através dos Serviços da Procuradoria do Juízo de Família e Menores ..., no sentido de obter certidão de nascimento completa da mesma criança, o que conseguiu alcançar, tendo então, no dia ... de ... de 2023, elaborado os seguintes requerimento e aditamento ao mesmo requerimento (referências 36154245 e 36155332):
“Por ter interesse para os autos, a Magistrada do Ministério Público em funções neste Juízo, vem, por este meio, requerer a junção aos mesmos de cópia do assento de nascimento da criança FF (actualmente CC) obtida na ..., aproveitando para informar que correu termos neste mesmo J5 do Juízo de Família e Menores de ... o processo de adopção 8041/20.5..., tendo sido proferida, em ... de ... de 2020, pela mesma Mm.ª Juíza ainda em funções neste Juízo a douta sentença que decretou a adopção entre DD e a referida criança.” E.D. A Procuradora da República AA (que apenas iniciou funções no J5 do Juízo de Família e Menores de ... em ... e por isso desconhecia a existência de tal processo de adopção).
“Por ter seguido incompleta, em aditamento, a Magistrada do Ministério Público em funções neste juízo, vem, por este meio, novamente requerer a junção aos mesmos de nova cópia do assento de nascimento da criança FF (actualmente CC) obtida na ....” E.D. A Procuradora da República AA
Certamente por lapso da secção os anteriores requerimento/aditamento ao mesmo requerimento não foram dados a conhecer à Mm.ª Juiz a quo, tendo os autos seguido com termo de vista e apresentados ao Ministério Público a ... de ... de 2023.
Foi então, a ... de ... de 2023, que o Ministério Público foi confrontado com o douto despacho proferido pela Mmª Juiz a quo a ... de ... de 2023, tendo nessa sequência elaborado promoção do seguinte teor (referência ...):
“Apesar de não ter sido formalmente notificado o MP tomou conhecimento do teor do douto despacho com a ref.ª. ..., de ... de ... de 2023.
Antes do mais promovo que seja aberto termo de conclusão à Mmª Juiz titular dos autos para eventual apreciação do requerido pelo MP a ... de ... de 2023.”
É então que a Mm.ª Juiz a quo, de forma completamente desadequada e arbitrária, em despacho que não tem qualquer fundamentação de direito e por isso é nulo, dado não estarmos na presença de despacho de mero expediente (vd. arts. 152.º, n.º 4, 154.º, n.º 1, e 411.º do CPC e art. 205.º da CRP), determina o desentranhamento e a eliminação informática (!!!) do requerimento/aditamento ao mesmo requerimento apresentados a ... de ... de 2023 pelo Ministério Público a solicitar a junção aos autos de cópia da certidão de nascimento integral da criança adoptanda (com a menção à anterior adopção), com o fundamento de que os documentos já juntos aos autos eram suficientes para a boa decisão da causa e, em completa e precipitada desobediência à lei, proferiu de imediato sentença a declarar procedente o pedido de adop-ção de CC efectuado por EE, impedindo, dessa forma, que o Ministério Público emitisse o seu parecer.
Ora, de acordo com o disposto no art. 26.º do RJPA (Regime Jurídico do Processo de Adopção), o Ministério Público intervém no processo de adopção defendendo os direitos e promovendo o superior interesse da criança.
Para além das específicas competências enunciadas no art. 27.º para cujas anotações se remete, cabe ao Ministério Público, no processo judicial de adopção, uma ampla intervenção em todos os seus termos, o que provém da sua posição de interveniente principal na acção, à luz da qual pode e deve requerer e propor tudo o que se mostrar necessário para a defesa dos interesses das crianças envolvidas (vd. anotação ao mesmo art. 26.º do RJPA da autoria da Exm Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta Ana Teresa Leal, in Processo Jurídico do Processo de Adopção anotado, Coordenação: Ana Rita Alfaiate e Paulo Guerra, ed. Almedina).
Ao abrigo de tal preceito e tendo em atenção que tinha sido alegado um facto que se mostrava desacompanhado de documento idóneo/autêntico que o comprovasse, tinha e tem o Ministério Público o direito de diligenciar no sentido de ver junto aos autos o adequado documento.
Acresce que ao abrigo do preceituado pelo art. 27.º, al. g), do RJTA, compete, em especial, ao Ministério Público, emitir parecer na fase final do processo de adopção.
Esta competência especial do Ministério Público encontra a sua materialização no n.º 1 do art. 56.º
Como vimos, a propósito do art. 26.º, o Ministério Público tem intervenção principal nos processos de adopção e, nessa medida, é notificado de todos os actos e decisões – deste modo acompanhando todos os termos do processo –, está presente em todas as diligências e pode requerer tudo o que se afigure como necessário ao bom andamento do processo e à defesa dos interesses da criança.
É neste quadro que a presente alínea deve ser compreendida. Previamente à prolação da sentença, ao Ministério Público cabe pronunciar-se, expressando, em forma de parecer, o seu entendimento, devidamente fundamentado de facto e de direito, sobre qual deva ser a decisão final a proferir (vd. anotação ao art. 27.º do RJPA da autoria da Exm Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta Ana Teresa Leal, in Processo Jurídico do Processo de Adopção anotado, Coordenação: Ana Rita Alfaiate e Paulo Guerra, ed. Almedina).
A Mm.ª Juiz a quo, em clara e expressa violação da lei, impediu o Ministério Público de elaborar o seu parecer, tendo deixado mencionado na douta sentença recorrida o seguinte:
“Inquiriu-se o Autor, o pai do menor e companheiro do Autor e as testemunhas que o Autor arrolou”
“Após, foi aberta vista à Digna Magistrada do Ministério Público que anda (nada?) opôs à constituição do vínculo de adopção (promoção de ... de ... de 2023).”
Com o devido respeito, chicana processual não pode, de forma alguma ser admitida quando estão em apreciação tão importantes valores e quando compete ao Ministério Público, por competência própria e como interveniente principal, salvaguardar o superior interesse da criança adoptanda, como acontece no caso sub judice.
Senão vejamos:
. No seguimento de promoção elaborada pelo Ministério Público no dia ... de ... de 2023, a Mm.ª Juiz a quo proferiu, no dia ... de ... de 2023, um despacho a indeferir a principal pretensão do mesmo Ministério Público, despacho esse que nunca foi, como devia, formalmente notificado ao mesmo Ministério Público;
. No dia ... de ... de 2023 o Ministério Público, por iniciativa própria, apresentou um requerimento e um aditamento ao mesmo requerimento a solicitar a junção de essencial documento, o que não foi concluso à Mmª Juiz a quo para apreciação;
. Quando, no dia ... de ... de 2023, o processo foi apresentado ao Ministério Público com termo de vista, o mesmo Ministério Público foi bastante claro ao deixar mencionado que ainda não iria elaborar qualquer parecer, pois da sua promoção resulta que antes do mais (antes, portanto, da elaboração de qualquer parecer) solicitava que fosse aberto termo de conclusão à Mm.ª Juiz titular dos autos para eventual apreciação do requerido pelo Ministério Público a ... de ... de 2023 (já que certamente por lapso da secção os autos não lhe foram antes feitos conclusos).
Em momento anterior à elaboração do seu parecer o Ministério Público tinha todo o direito em ver apreciado o que por si havia sido requerido a ... de ... de 2023, tanto mais que solicitava a junção aos autos de documento idóneo/autêntico para dar como provado facto que foi alegado pelo requerente da adopção na sua petição inicial.
E o facto de não ter sido emitido qualquer parecer não pode levar a Mm.ª Juiz “a quo” a afirmar que o Ministério Público nada tem a opor, por se tratar de conclusão ilegal e contrária a todas as regras.
Efectivamente, nos termos do disposto no art. 56.º, n.º 1, do RJPA, efectuadas as diligências de prova requeridas e outras julgadas convenientes e ouvido o Ministério público, é proferida sentença.
A sentença é necessariamente precedida de emissão do parecer do Ministério Público (vd. também art. 27.º, al.g) e respectiva anotação), conduzindo a omissão deste acto, porque passível de influir no exame ou na decisão da causa, a uma nulidade que determinará a anulação de todos os actos subsequentes, inquinando, por isso, a própria sentença final (cf. art. 195.º, CPC) – vd. anotação ao mesmo art. 56.º do RJPA da autoria do Exm.º Sr. Dr. Juiz de Direito Pedro Raposo de Figueiredo, in Processo Jurídico do Processo de Adopção anotado, Coordenação: Ana Rita Alfaiate e Paulo Guerra, ed. Almedina.
Ao Ministério Público foi ilegitimamente cerceado o direito a elaborar o seu parecer com fundamentos de facto e de direito, o que não se pode, de forma alguma, aceitar e implica a nulidade de todos os actos subsequentes, incluindo a sentença final (vd. art. 195.º do CPC).
Como é que a Mm.ª Juiz a quo num processo de natureza urgente como é o de adopção não teve qualquer pressa quando foi para marcar as diligências que se impunham realizar (o processo foi feito concluso no dia ... de ... de 2023 para a elaboração do 1.º despacho e as necessárias audições só vieram a ser designadas para o dia ... de ... de 2023, ou seja, para daí a mais de dois meses), tendo depois, em completo atropelo às normas legais, negado ao Ministério Público a oportunidade de elaborar o parecer que se impunha.
O Ministério Público não abdica de exercer os seus direitos, como interveniente principal, procurando ver juntos aos autos todos os elementos que considera essenciais para a explicitação de eventuais dúvidas e para a elaboração de parecer esclarecido (desde o primeiro momento que o Ministério Público ficou intrigado com a circunstância da criança já apresentar na composição do seu nome o apelido GG, coincidente com o do requerente, e também pretendia ver clarificada qualquer questão que pudesse haver relativamente a esse aspecto, parecendo-nos verdadeiramente deficiente a argumentação que da sentença recorrida consta a tal respeito “O adoptante não pediu a alteração do nome do menor, mas verifica-se que do seu nome já conta o sobrenome do adoptante, pelo que nada mais há a ordenar quanto a tal”).
Ora, através de consulta dos necessários documentos, designadamente através de consulta da douta sentença proferida no âmbito do processo de adopção 8041/20.5... deste mesmo ... do Juízo de Família e Menores de ..., muitos pormenores poderiam ser concretizados, desde logo o atrás mencionado quanto à composição do nome, sendo ainda de acrescentar que o processo estava acessível e facilmente localizável (afinal correu termos no mesmo J do mesmo Juízo de Família e Menores de ...), sendo que o requerente destes autos até prestou declarações como testemunha no âmbito daqueles outros autos de adopção.
EM CONCLUSÃO
Pelo requerente EE, companheiro de DD, foi requerida a adopção da criança CC, tendo alegado no art. 3.º da sua petição que “O CC nasceu a ... de ... de 2016, é filho de DD, por via da adopção concretizada em ...”.
A adopção da criança CC pelo companheiro DD vem alegada pelo próprio requerente EE na petição inicial apresentada e só pode ser comprovada por documento adequado, o que torna nula a douta sentença se idóneo/autêntico documento não vier a ser efectivamente junto (vd. art. 363.º, n.º 1, do CC e art. 411.º do CPC), não bastando para a boa decisão da causa o documento n.º 4 junto aos autos a fl. 11 e 11 v. (assento de nascimento da criança CC sem qualquer referência à adopção anteriormente ocorrida), nem sendo a breve referência quanto a esse aspecto existente no documento n.º 3 (relatório de adopção elaborado pela ...) o meio próprio para o comprovar.
É nulo o despacho que determinou o desentranhamento e a eliminação informática do requerimento/aditamento ao mesmo requerimento apresentados pelo Ministério Público a solicitar a junção aos autos de certidão integral da criança adoptanda (com a menção à anterior adopção), dado não estarmos na presença de despacho de mero expediente e tal despacho não apresentar qualquer fundamentação de direito (vd. arts. 152.º, n.º 4, 154.º, n.º 1, e 411.º do CPC e art. 205.º da CRP).
Em momento anterior à elaboração do seu parecer o Ministério Público tinha todo o direito em ver apreciado o que por si havia sido requerido a ... de ... de 2023, tanto mais que solicitava a junção aos autos de documento idóneo/autêntico para dar como provado facto que foi alegado pelo requerente da adopção na sua petição inicial.
Nos processos de adopção compete ao Ministério, por competência própria e como interveniente principal, salvaguardar o superior das crianças.
Ao Ministério Público foi ilegitimamente cerceado o direito a elaborar o seu parecer com fundamentos de facto e de direito, o que não se pode, de forma alguma, aceitar e implica a nulidade de todos os actos subsequentes, incluindo a sentença final (vd. arts. 26.º, 27.º, al.g), e 56.º, n.º 1, todos do RJPA, e art. 195.º do CPC).
Pelo que deverão ser revogados a primeira parte do douto despacho proferido a ... de ... de 2023, o douto despacho prévio à douta sentença e a douta sentença proferidos a ... de ... de 2023 e substituídos por decisão que determine a manutenção nos autos de documento essencial e permita ao Ministério Público, previamente à prolação de sentença, a elaboração de parecer com fundamentação de facto e de direito, sob pena de violação dos atrás mencionados preceitos legais.
Contudo, VEXAS farão, como sempre, JUSTIÇA!
(texto elaborado em computador e revisto pela signatária)
A Procuradora da República AA»
Como se pode verificar, a Sra. procuradora da República, ora arguida, Dra. AA, depois de selecionar os incidentes processuais que considerou relevantes para a sua pretensão recursiva, adjetivou a conduta funcional da Sra. juíza, ora assistente, de «chicana processual», expressão que é antecedida de «[c]om o devido respeito» («Com o devido respeito, chicana processual não pode, de forma alguma ser admitida quando estão em apreciação tão importantes valores e quando compete ao Ministério Público, por competência própria e como interveniente principal, salvaguardar o superior interesse da criança adoptanda, como acontece no caso sub judice»).
Ora, com base no que anteriormente ficou exposto, uma vez que a aludida locução, que mais não representa do que uma crítica, é introduzida num recurso de uma sentença proferida num processo de adoção no qual o MP detém uma função central e insubstituível [arts. 4.º, n.º 1, al. i), e 9.º, n.º 1, al. d), ambos do Estatuto do MP (Lei n.º 68/2019, de ........2019), e 26.º e 27.º do Regime Jurídico do Processo de Adoção (Lei n.º 143/2015, de ........2015)] e não se dirige diretamente à pessoa da assistente mas à forma como esta conduziu o processo, não temos dúvida que, independentemente da sua justeza, estamos perante uma afirmação destituída de relevância jurídico-penal.
Vale a pena assinalar que num contexto factual equivalente, em que estava em debate um relatório de inspeção a um Sr. juiz de direito no qual se fez constar, entre outras expressões, que «[e]m todas as Jurisdições por onde passou neste período de desempenho, o Senhor juiz deixou um rasto de exercício arbitrário de punições, indeferimentos, ameaças e sanções», que «[a]s avaliações do Senhor Juiz mostram-se muito marcadas pelo preconceito» ou que «[o] impacto pessoal e social de algumas das suas decisões arbitrárias, persecutórias e autoritaristas», salientou-se no despacho de não pronúncia de 12.09.2022, proferido pelo conselheiro Lopes da Mota no processo de instrução 58/21.9YGLSB que correu termos pelo STJ (não publicado, que seja do nosso conhecimento, em qualquer base de dados), que «“[os] princípios elaborados pela jurisprudência de Estrasburgo [TEDH], na interpretação da CEDH, devem ser considerados na interpretação das normas penais incriminadoras. Neste sentido, faz todo o sentido a aceção da doutrina maioritária alemã, entre nós postulada por Costa Andrade, segundo a qual os juízos de valor que se consubstanciem numa crítica objetiva sobre a criações de índole (…) profissional (…) não beneficiem da tutela jurídico penal da honra, por serem consideradas atípicas. (…) A responsabilidade criminal do agente encontra na tipicidade um obstáculo intransponível. (…) é atípico o juízo de valor ferozmente crítico (…). Os sentidos interpretativos das normas incriminadoras avançados, teleológico-funcionalmente fundados, respondem às exigências ditadas pela ponderação de todos os interesses que envolvem cada um dos bens jurídicos no conflito. De forma coerente, a tutela penal do bem jurídico honra não cobre os juízos de valor objetivamente críticos, excluindo-se, desde logo, ao nível da tipicidade.” Já a crítica subjetiva, “compreendida como aquela que se dirige diretamente à pessoa, não se cingindo à (…) prestação, deve, em princípio ser considerada típica”».
Da mesma forma, noutra situação em que um queixoso consignou num requerimento de intervenção hierárquica as expressões «Sabido que o apelido P..., que integra o nome da senhora advogada, não é público nem notório (…) é de todo o interesse conhecer, de forma clara e transparente quais foram, exatamente e que extensão tiveram, os procedimentos extra processuais utilizados nestes autos de inquérito! E não pode deixar de se perguntar: Será que o titular do inquérito já conhecia, pessoalmente, a senhora advogada participada? Será seu familiar? Amigo? Será seu conhecido? Será vizinho da senhora advogada? E, a ser assim, será que esse conhecimento pessoal teve qualquer influência no estranho e insólito arquivamento destes autos? Ou terá havido qualquer outro tipo de intervenção e de intervenientes? E de que forma? E com que extensão? Porque razão esses procedimentos que, necessariamente, tiveram lugar, não constam, de forma clara e transparente nos autos? E o que leva o titular do inquérito a omitir, nos autos de inquérito, os procedimentos utilizados para obter um elemento fundamental do inquérito, a identificação do sujeito participado? Pretenderá furtar-se a qualquer tipo de escrutínio? Ou existirá outra razão? E, a ser assim, qual será essa outra razão? E haverá outra razão que esteja por detrás da outra razão? Por outras palavras: o que se terá passado, às ocultas, – à socapa, por assim dizer – e que não consta dos autos? A verdade é que a forma pela qual se desvendou o verdadeiro significado do enigmático “P.”, não deixa de se apresentar, aqui, neste contexto, como o rabo que o gato, quando se esconde, tradicionalmente, costuma deixar de fora e que, nestes autos, não pode deixar de ser fonte de todas as suspeições, inquinando de forma irremediável a transparência de procedimentos aqui utilizados. (…). E o desconforto decorrente desta suspeição, decorrente deste procedimento anómalo, não pode deixar de se evidenciar, sobretudo quando o desfecho deste inquérito – o seu arquivamento – é tão bizarro e desconcertante conforme se irá demonstrar. (…) afigurando-se (…) que o presente Despacho, com a decisão de arquivamento, desafiando flagrantemente o direito, está sim a esboçar a prática de um outro crime, bem mais grave – até do ponto de vista ético – e que se traduz na impunidade de um comportamento contrário à lei», o acórdão do STJ de 07.04.2022, proferido no processo 115/21.1TRPRT.S1, relatado pelo conselheiro António Gama (www.dgsi.pt), entendeu que «o escrito foi o modo de reação processual (art. 278.º, CPP) a um despacho de arquivamento liminar de uma queixa contra terceiro, apresentada pelo aqui arguido (art. 277.º, CPP). (…).
4. Segundo o recorrente o requerimento do arguido na questão prévia faz insinuações colocando em causa a honestidade do redator do despacho (…) o arguido estabelece um sem número de hipóteses todas elas apontando no sentido de o ofendido estar a esconder uma relação com a denunciada que o levou a produzir o despacho de arquivamento (…).
(…)
6. (…) Segundo o recorrente o arguido lança suspeições gratuitas e infundadas sobre os procedimentos do ofendido, sendo que do texto constam expressões que colocam em causa os deveres de isenção, objetividade, independência, respeito pela Lei e prossecução da Justiça a que o ofendido está obrigado, lançando também uma acusação sobre a honestidade deste como Magistrado do Ministério Público. E que ao afirmar que o despacho esboça ele mesmo a prática de um crime, parece ao recorrente evidente, o arguido pretendeu dizer que o ofendido ao arquivar o inquérito estava a adotar uma conduta que integra o tipo legal de crime de favorecimento pessoal (…) ou até mesmo o crime de prevaricação (…).
7. (…) Ora como objetiva e lucidamente refere o PGA neste tribunal, “a argumentação do arguido, na reclamação hierárquica por si interposta (…) surge escusadamente agressiva – exageradamente impertinente, como diz o Mmo. Juiz recorrido – e até mesmo descabida, por exemplo, no que toca à identificação da Sra. Advogada denunciada. Porém, nem todo o comentário crítico que deslustra, recrimina ou humilha – mesmo que injustificado –, cabe na previsão do art. 180.º do Código Penal. De facto, estados de alma emotivamente exteriorizados numa peça processual (…) nem sempre ultrapassarão aquela margem de tolerância intrínseca à liberdade de expressão, que concede ao cidadão independência (e tolerância) para pensar e exteriorizar as suas opiniões, por injustas ou disparatadas que o sejam. (…)”.
8. Em via subsidiária, admitindo por eficácia de argumentação que as expressões constantes do escrito são ofensivas da honra e da consideração do ofendido, diremos com Manuel da Costa Andrade (…) e seguindo o relato do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de ........2006, (…) que devem ser considerados atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais (…) quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou do desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica (…) atipicidade da crítica objetiva que pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os atos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público (…). Ora o texto em causa constitui uma peça processual de reclamação do despacho liminar de arquivamento de um inquérito pelo Ministério Público, para o imediato hierárquico, reclamação que configura o exercício de um direito (art. 278.º/1, CPP), que no caso era fundada, razão por que foi atendida, apesar de a atipicidade da crítica não depender do acerto, da adequação material ou da "verdade" das apreciações subscritas, as quais persistirão como atos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tomar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objetiva.
9. Ora, do texto do arguido, texto que constitui uma peça processual que se enquadra numa das áreas atrás referidas, pese embora o arguido não tenha obedecido ao cânone do “respeitinho”, consabidamente não exigível num Estado de Direito, também não enveredou pela crítica caluniosa nem se comportou com o único propósito de rebaixar e de humilhar o ofendido, pelo que, admitindo por mera hipótese que algumas expressões que constam do escrito, possam ser atentatórias da honra e consideração do ofendido, teriam de ser consideradas atípicas.»
Seguindo esta linha de pensamento, amplamente aceite, conforme se disse, pela jurisprudência do STJ, uma vez que, repete-se, a expressão «chicana processual» apenas reflete a opinião que a Sra. procuradora da República formou quanto ao desempenho funcional da assistente naquele específico processo e não se vislumbra que tenha sido escrita com o propósito de denegrir a honra e consideração da mesma, entendemos que a factualidade narrada no requerimento de abertura de instrução não cabe, nem sob o ponto de vista objetivo nem, consequentemente, sob o ponto de vista subjetivo, na descrição típica do crime de difamação.
E daí que se emita parecer no sentido da procedência do recurso e da revogação do despacho recorrido com a correspondente não pronúncia da arguida.
(…)»
6. Observado o contraditório, não foi apresentada qualquer resposta.
7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
1. Considerando a motivação e conclusões dos recursos, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões neles colocadas cingem-se:
a) à invalidade (nulidade) do despacho de pronúncia, por falta ou insuficiência de fundamentação [recurso do Ministério Público – conclusão 12ª];
b) à invalidade (nulidade) do procedimento, por insuficiência da instrução resultante da omissão de diligências, designadamente da constituição da denunciada como arguida, sua audição nessa qualidade e junção de documentos [recurso da arguida – conclusões h a k, q a u e y a gg]; e
c) (in)suficiência indiciária dos elementos típicos do crime de difamação pelo qual a arguida foi pronunciada [restantes conclusões do recurso do Ministério Público e algumas das mencionadas e as restantes do recurso da arguida].
III. Fundamentação
1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):
«(…) Decisão instrutória
(…)
Iniciaram-se os presentes autos com a queixa apresentada pela assistente BB, Juíza de Direito colocada no Quadro Complementar de ..., contra AA, Procuradora da República a exercer funções no Juízo de Família e Menores de ..., porquanto esta a teria difamado, através da inserção em peça processual de expressão que considerou atentatória da sua honra e consideração pessoal e profissional.
A Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação arquivou o inquérito argumentando, em síntese, que:
(…)
Inconformada com o despacho de arquivamento veio a assistente requerer a abertura de instrução pugnando pela pronúncia da arguida pela prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 180.º, 182.º, 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) e 188.º, todos do Código Penal. Fê-lo nos seguintes termos:
“(…)
2- O presente requerimento de abertura de instrução pela assistente respeita a razões de facto, mas sobretudo de direito relativamente à não acusação proferida, nos termos do art. 287.º, n.º 2 do C.P. Penal.
3- Com efeito, o Ministério Público desconsiderou a factualidade carreada para os autos e sobretudo a sua devida apreciação e gravidade.
4- A ora requerente é Juíza de Direito e exerce de forma imaculada as suas funções com rigor, objectividade e equidistância devidas à boa administração da justiça.
5- Assim, proferiu a sentença devida num processo de adopção, o qual correu os seus termos pelo Proc. n.º 6607/23.0... ..., Juízo de Família e Menores de ... - ......, conforme prova documental cuja junção se requer como acto de instrução.
6- Os autos acima indicados são de delicadeza a responsabilidade acrescidas tendo em conta o objecto do mesmo e as consequências para a vida dos sujeitos processuais envolvidos.
7- A denunciada, não concordando com a tramitação processual, recorreu da decisão proferida, apresentando alegações de recurso, em ... de ... de 2023, no âmbito das quais, além do mais, alegou nos seguintes termos:
“Com o devido respeito, chicana processual não pode, de forma alguma ser admitida quando estão em apreciação tão importantes valores...”
8- Assim, é evidente que a expressão proferida da ora requerente ter praticado ‘‘chicana processual” é grave, feridente e lesiva da honra e consideração pessoal e profissional da magistrada judicial ora requerente.
9- Como é consensualmente sabido, a definição de chicana processual significa trapacear, obstaculizar ou criação de obstáculos processuais.
10- Ora, nada pode ser mais ofensivo para a honra e consideração da requerente.
11- A ora requerente sentiu-se gravemente afectada com a conduta da participada, a qual agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que as expressões utilizadas feriam a honra e consideração pessoal e profissional da ora requerente.
12- Assim, a participada cometeu um crime de difamação agravada, p. p. pelos arts. 180.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea 1), todos do Código Penal.
13- E não se diga que a expressão utilizada se insere ainda nos limites do discurso judiciário e liberdade de expressão pois nos presentes autos a violência da expressão utilizada faz intervir a tutela penal.
14- Estão, pois, verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime.
15- A requerida abertura de instrução é tempestiva e legalmente admissível.
16- Impõe-se, pois, a prolação de um despacho de pronúncia em relação à arguida.
(…).”
Declarada aberta a instrução foram tomadas declarações à assistente2 e realizado debate instrutório.
Conforme resulta do disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”
Nos termos do n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Quanto ao despacho de pronúncia e conforme decorre do disposto no artigo 309.º do Código de Processo Penal, está o mesmo limitado aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação ou que tenham sido descritos no requerimento de abertura de instrução.
Para a prolação despacho de pronúncia, tal como para a acusação, não se exige um juízo de certeza da existência do crime, mas impõe-se se verifique uma razoável probabilidade dessa existência, permitindo uma convicção fundada de que em julgamento se concluirá pela condenação do arguido ou “…quando esta seja mais provável do que a absolvição (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 133).
Vejamos o caso dos autos.
A assistente imputa à arguida a prática do crime de difamação agravado, previsto e punido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 180.º, 182.º (que, no que ora releva, equipara a difamação feita por escrito à verbal), 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) todos do Código Penal.
Dispõe o artigo 180.º do Código Penal que incorre na prática do crime de difamação “Quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo (…).”
Por sua vez, o artigo 184.º do mesmo diploma prevê a agravação das penas aplicáveis se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132., “no exercício das funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e pratica o facto com grave abuso de autoridade.”, sendo aí elencados, entre outros, os membros de órgão de soberania e os magistrados.
Quanto ao elemento subjectivo, o seu preenchimento exige o dolo, em qualquer das suas formas e que se traduz na consciência do agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração do visado e na vontade de imputar o facto ou de formular o juízo, ou de reproduzir a imputação ou juízo, sabendo que a sua conduta é proibida por lei.
Estando em causa expressão utilizada pela Senhora Procuradora em alegações de recurso no âmbito do processo de adopção n.º 6607/23.0..., temos que, no essencial, a prova da factualidade imputada se reconduz ao teor da peça processual junta aos autos, bem como ao seu significado e contexto.
No recurso interposto no mencionado processo de adopção insurgiu-se a Senhora Procuradora contra:
a) o despacho de ... que indeferiu promoção por si formulada no sentido de que o requerente do processo de adopção fosse notificado para juntar aos autos “documento que comprove a adopção da criança CC por parte de DD”, seu companheiro;
b) o despacho prévio à sentença de ... de ... de 2023 que ordenou o desentranhamento do requerimento do Ministério Público de ... de ... de 2023, por considerar que os documentos já juntos aos autos eram “suficientes para a boa decisão da causa”;
c) a sentença de ... de ... de 2023 que decretou a adopção do menor por parte de EE, suscitando a nulidade desta por falta do referido documento e inexistência de parecer do Ministério Público.
Ao longo de todo o articulado argumentou a Senhora Procuradora que a adopção do menor por parte do companheiro do requerente tinha de ser provada por documento3 e que lhe foi “cerceado o direito de elaborar o seu parecer”4. E, discordando do consignado na sentença quanto à não oposição do Ministério Público à constituição do vínculo de adopção, a mesma Senhora Procuradora escreveu o seguinte:
“Com o devido respeito, chicana processual não pode, de forma alguma ser admitida quando estão em apreciação tão importantes valores e quando compete ao Ministério Público, por competência própria e como interveniente principal, salvaguardar o superior interesse da criança adoptanda, como acontece no caso sub judice.”
Quer o RAI, quer o despacho de arquivamento coincidem, no essencial, quanto à definição da palavra “chicana” e, em particular, quanto à definição de “chicana processual” vindo consignados no despacho de arquivamento e no que para o caso releva5, os seguintes significados: “1. Dificuldade levantada por malícia ou má vontade com o objectivo de atrasar ou prejudicar um processo. 2. Qualquer dificuldade, enredo ou tramoia em questões judiciais. 3. Ardil, trapeçaria ou sofisma. (…).”
No contexto, é manifesto que a expressão em causa é dirigida à Senhora Juíza e à forma como a mesma geriu o processo, imputando-lhe uma actuação contrária aos seus deveres funcionais e de gestão diligente e independente do processo. Além do que consta do Estatuto dos Magistrados Judiciais quanto aos deveres e à natureza das funções exercidas, cabe ao Juiz titular do processo dirigi-lo “… e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório… (artigo 6.º do Código de Processo Civil).
Tem toda a razão a Senhora Procuradora quanto afirma que não se admite à Senhora Juíza “chicana processual”, o que é dizer, uma actuação maliciosa e de má fé “com o objectivo de atrasar ou prejudicar um processo.”. E é precisamente por se tratar de actuação inadmissível a um qualquer Juiz que a imputação assume particular gravidade e é particularmente ofensiva, o que a Senhora Procuradora bem sabia, face às funções que exerce e aos deveres que sobre si impendem.
Trata-se de uma imputação objectivamente ofensiva da honra e da consideração devidas a um magistrado, no caso, magistrado judicial, desnecessária à finalidade do recurso e indo muito para além do meramente desagradável.
Também não vale argumentar que a imputação se insere no domínio da liberdade de expressão. É que os Tribunais e o processo não são “espaços de liberdade”, nem aí se podem emitir desnecessários e ofensivos juízos de valor.
O relacionamento institucional - e em Tribunal - entre Juízes, Procuradores e Advogados está sujeito a especiais regras de respeito e de cortesia. E os articulados previstos na lei tem finalidades específicas devendo o respectivo conteúdo ser para elas orientado.
Do mesmo modo, não vale dizer-se que ao escrever o que escreveu, a Senhora Magistrada do Ministério Público apenas pretendia defender os interesses do menor ou a imprescindibilidade do seu parecer. É que para o fim pretendido, a utilização da expressão em causa (com conotação negativa bem conhecida no meio judicial), não só é excessiva e inadmissível, como perfeitamente desnecessária, extraindo-se da mesma que a Senhora Procuradora e ora arguida quis utilizá-la para ofender a ora assistente, com quem mantinha um relacionamento institucional de tensão, como resultou das declarações desta última6.
Em face do exposto, decide-se:
Pronunciar a arguida AA pelos factos constantes do RAI apresentado e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 307.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e pela prática de um crime agravado de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, 182.º, 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) e 188.º, todos do Código Penal.
Prova: a do RAI.
Estatuto Processual: Termo de Identidade e Residência.
Registe e notifique.
Oportunamente, remeta os autos à distribuição.
(Data e assinatura electrónicas)
(…)»
2. Avancemos, pois, para a apreciação e decisão das questões suscitadas pelos recorrentes, tal como resultam das transcritas conclusões.
2. 1. Invalidade (nulidade) do despacho de pronúncia, por falta ou insuficiência de fundamentação
Na conclusão 12ª do recurso do Ministério Público afirma-se que a decisão de pronúncia impugnada violou o artigo 96º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), por não ter considerado a versão da arguida acerca do sentido da expressão “chicana processual” usada na sua peça recursiva, visto nem sequer ter sido ouvida no processo.
Essa conclusão encontra arrimo na motivação do recurso, em que se alinham idênticas considerações, embora aí se mencione como norma jurídica violada a do artigo 97º, n.º 3, do mesmo diploma legal.
E, bem vistas as coisas, sob outra roupagem, também no recurso da arguida se alinha por esse diapasão, quanto à sua não constituição como arguida e audição nessa qualidade.
Tal argumentação, além de não assumir a qualificação da invocada violação, parece incorrer num manifesto lapso quanto aos referentes normativos convocados, como se adverte no parecer do Ministério Público, pois nenhuma daquelas normas colhe pertinência no caso em apreço.
Quando muito, como ali também se assinala, aquela alegação traduz a invocação da invalidade da decisão recorrida, por falta ou insuficiente fundamentação, em violação dos artigos 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 97º, n.º 5, do CPP.
Com efeito, o artigo 205º, n.º 1, da CRP estabelece que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
E, como ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira7, esse “(…) dever de fundamentação (…) obedece a várias razões extraídas do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais”, e, em função deles, “explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual (…)”, e por “exigências de abertura e transparência da actividade judicial (…)” e “serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efetuado pelas instâncias judiciais superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais”.
Por seu turno, o artigo 97º, n.º 5, do CPP, dando execução àquele comando constitucional para os atos decisórios nele definidos, dispõe que os mesmos “(…) são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
A decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, é indiscutivelmente um ato decisório, que assume a forma de despacho prevista no n.º 1, al. b), do citado artigo 97º e não é de mero expediente, estando, portanto, sujeita ao referido dever geral de fundamentação.
A doutrina e a jurisprudência, no entanto, salientam a diversidade de grau da fundamentação exigida para os diferentes atos decisórios, desde aquele específico das sentenças e acórdãos estabelecido nos artigos 374º e 375º do CPP, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, ao dos meros despachos, por muito relevantes que sejam, como o é, sem dúvida, a decisão instrutória, assinalando ainda a sua inevitável diferença em função do maior ou menor poder de concisão e clareza discursiva do juiz e do concreto objeto das decisões e dos efeitos da falta ou insuficiência da devida fundamentação8.
Pese embora a persistência de alguma divergência doutrinal e jurisprudencial, de resto referenciada nas referidas anotações, decorre dos artigos 307º e 308º do CPP que a fundamentação da decisão instrutória se integra no leque dos atos decisórios de fundamentação mais simplificada, sem dispensar, naturalmente, aquele mínimo exigível para garantir o respeito pelos princípios constitucionais a que antes se aludiu e as finalidades que a demandam e justificam, como sejam as de transparência e legitimação do poder judicial/jurisdicional e do escrutínio interno e externo do seu exercício, sob pena de irregularidade sujeita ao regime de arguição e sanação previsto no artigo 123º do CPP, salvo no caso das nulidades cominadas no 309º, aqui inaplicável9.
Tendo presentes tais considerações, vejamos se a decisão recorrida cumpriu ou não o dever de fundamentação e, em caso negativo, quais as respetivas consequências sobre a sua validade.
Ora, o despacho de pronúncia sub judice, após ter cumprido o disposto no n.º 3 do artigo 308º do CPP, e de ter consignado, em sucinto, mas completo relatório as mais relevantes incidências processuais até aí verificadas, com transcrição do despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público e do requerimento de abertura de instrução (RAI) formulado pela assistente, pronunciou-se sobre a natureza, âmbito e finalidades da instrução e discorreu sobre o conceito de indícios suficientes, concluindo pela posição nela adotada, de entre as várias doutrinária e jurisprudencialmente referidas.
Seguidamente, procedeu à discussão e subsunção jurídico-penal dos factos em discussão constantes do RAI, contrariando os fundamentos determinantes do arquivamento do inquérito, por entender serem aqueles suficientes para a pronúncia, e cuja suficiente indiciação assentou na provas produzidas, essencialmente as declarações prestadas pela assistente no Debate instrutório, no qual a presença da arguida foi, a seu pedido, dispensada, sem que, paralelamente, tivesse requerido o respetivo interrogatório, e a sentença por aquela proferida no processo de adoção objeto de recurso pelo Ministério Público suportado na peça recursiva em cujas alegações foi inserta a suprarreferida controversa expressão, peça, no entanto, não junta a este processo na fase da instrução, nem na do inquérito, embora passível de consulta eletrónica, mediante autorização acesso neste obtida.
Situou, pois, o objeto do processo e motivou a decisão de pronúncia proferida, por referência aos factos relevantes considerados suficientemente indiciados, que fixou por remissão para o RAI, nos termos consentidos pelos artigos 307º, n.º 1, 2ª parte, e 308º, n.º 2, in fine, do CPP.
Tudo, por conseguinte, no sentido de se poder afirmar, como no parecer do Ministério Público, que o despacho de pronúncia ora sindicado cumpriu cabalmente o dever de fundamentação dos atos jurisdicionais decisórios, permitindo aos seus destinatários e às instâncias de recurso apreender e compreender o iter racional da formação da convicção do juiz e o seu escrutínio, como, aliás, evidenciam a motivação e conclusões dos recursos que dela foram interpostos pelo Ministério Público e pela arguida, rebatendo precisamente, além do mais, esse convencimento e os respetivos fundamentos, sendo certo que a falta de fundamentação não se confunde com a discordância ou com a eventual insuficiência indiciária dos elementos típicos do crime imputado, de que infra se se cuidará.
Nenhuma invalidade, portanto, se descortina na decisão sob recurso quanto à respetiva fundamentação10.
Acresce que, ainda que se admitisse ter ela ocorrido nos termos sufragados pelos recorrentes e qualquer que fosse a tese a que se aderisse nesse âmbito, a da mera irregularidade, como acima mencionado, ou mesmo da nulidade sanável, a sua arguição teria de ocorrer nos prazos e termos previstos nos artigos 120º e 123º do CPP, sob pena de sanação, em conformidade com o disposto nesses preceitos e no artigo 121º do mesmo Código.
Não tendo sido arguidas em tais termos e prazos, não poderia, neste momento, delas conhecer-se, salvo na situação prevista no n.º 2 do artigo 123º, que, como vimos, aqui não se verifica.
Improcede, pois, a questão da invalidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
*
2. 2. invalidade (nulidade) do procedimento, por insuficiência da instrução resultante da omissão de diligências, designadamente da constituição da denunciada como arguida, sua audição, interrogatório nessa qualidade e junção de documentos.
Nas conclusões h a k, q a u e y a gg, com correspondência nos pontos 5 a 11 e 67 a 72, da motivação do seu recurso, a arguida suscita a questão da invalidade – nulidade – do procedimento e, consequentemente, da própria decisão de pronúncia, por insuficiência do inquérito e da instrução, seja por não ter sido constituída como arguida e não ter sido ouvida, interrogada nessa qualidade, em qualquer dessas fases, em clara violação da correspondente obrigatoriedade estabelecida nos artigos 58º, n.º 1, 59º e 272º, n.º 1, do CPP e do princípio do acusatório estruturante do processo penal português e do inerente exercício do contraditório, conforme decorre do artigo 32º, n.º 5, da CRP, seja por não terem sido carreados para o processo elementos probatórios essenciais à boa decisão da causa, designadamente a antes referenciada peça recursiva por si subscrita e apresentada no processo de adoção n.º 6607/23.0..., que correu termos no J 5 do Juízo de Família e Menores de ..., no qual interveio em representação do Ministério Público e a assistente como juíza titular e subscritora dos despachos e sentença naquela impugnadas.
Vejamos.
A constituição e interrogatório como arguido é, na verdade, um dos atos de realização obrigatória no inquérito, sob pena da respetiva nulidade, por insuficiência, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 58º, n.º 1, 59º e 272º, n.º 1, do CPP, nulidade sanável e dependente de arguição, nos termos previstos nos artigos 120º, n.ºs 1, 2, al. d), e 3, al. c), e 121º do mesmo código11.
No caso em apreço, como se diz no parecer do Ministério Público, a arguida não foi como tal constituída nos termos do artigo 58º do CPP, tendo adquirido essa qualidade, nos termos do seu artigo 57º, n.º 1, por contra si ter sido requerida a abertura de instrução, que culminou com a decisão de pronúncia ora impugnada.
Tanto quanto se afigura resultar da interpretação aplicativa conjugada dessas normas, a condição, estatuto processual de arguida não tinha de ser atribuído no inquérito, porque o Ministério Público não reconheceu que sobre ela existisse fundada suspeita da prática de qualquer crime, designadamente daquele que fora denunciado pela assistente, tanto assim que arquivou o inquérito por ter concluído que os factos denunciados eram atípicos sob o prisma jurídico-criminal.
Se assim é, também não se impunha o seu interrogatório como arguida durante o inquérito, uma vez que o artigo 272º, n.º 1, só o impõe, sob pena de verificação da referida nulidade, se existir aquela fundada suspeita, que, como dito, no caso, o Ministério Público entendeu inexistir.
Sendo assim, também não se impunha que nele fossem cumpridas as formalidades e comunicações estabelecidas no artigo 58º, por não verificação de qualquer das situações previstas nas diferentes alíneas do seu n.º 1, cumprimento que só se imporia se e quando, como veio a suceder, houvesse de lhe ser aplicada alguma medida de coação, como agora foi determinado pela decisão de pronúncia, que a sujeitou a TIR, considerando a sua qualidade de arguida adquirida ope legis, nos sobreditos termos.
Em suma, salvo melhor opinião, só agora, se a pronúncia vier a ser confirmada, se impõe a formal constituição da recorrente como arguida, com as inerentes comunicações, em ato imediatamente anterior à prestação do TIR.
Acresce que, ao contrário do que sucede no inquérito, o interrogatório do arguido não constituiu um ato de realização obrigatória na instrução, sem prejuízo do direito potestativo do arguido a solicitá-lo, conforme decorre do artigo 292, n.º 2, do CPP, hipótese que aqui não se coloca, considerando que a arguida não o solicitou e até renunciou ao direito de estar presente no debate instrutório, aí sendo representada pela sua defensora.
Não ocorreu, pois, in casu, a omissão de qualquer ato obrigatório no inquérito e/ou na instrução, tão pouco se vislumbrando a violação do princípio do contraditório, visto que a arguida foi notificada do RAI e da abertura da instrução e convocada para o debate instrutório, renunciando expressamente a nele participar, sendo aí representada pela sua defensora, que teve oportunidade de requerer e contraditar o que se lhe afigurasse pertinente em sua defesa, por contraponto com a posição da assistente e do Ministério Público.
E também não se mostra que alguma diligência de prova necessária à boa decisão da causa tenha sido preterida, designadamente a consulta ou junção de certidão integral ou parcial do processo de adoção n.º 6607/23.0..., que correu termos no J 5 do Juízo de Família e Menores de ..., que não foi requerida por qualquer dos sujeitos processuais interessados e o tribunal recorrido não considerou indispensável, no exercício do seu amplo e discricionário poder em matéria de provas a produzir na instrução, com a dita ressalva e a das declarações para memória futura de vítimas especialmente vulneráveis, conforme decorre dos artigos 292º a 295º, conjugados com os artigos 67º-A e 271º, todos do CPP.
Tudo, naturalmente, como antes sublinhado, sem prejuízo da discussão acerca da suficiência indiciária dos elementos típicos da infração imputada à arguida, a que adiante se procederá.
Seja como for, ainda que se tivesse verificado qualquer omissão de realização de atos obrigatórios ou de pertinentes diligências probatórias, ela seria passível de constituir apenas vício determinante da referida nulidade sanável e dependente de arguição ou de uma mera irregularidade, a arguir nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 120º, n.ºs 2, al. d), e 3, al. c), e 123º, n.º 1, ou seja, até ao encerramento do debate instrutório ou no prazo de 3 dias seguintes à notificação da decisão de pronúncia, respetivamente.
Não o tendo sido nesses prazos, mas apenas em sede recurso, interposto para além deles, tais nulidades e/ou irregularidades considerar-se-iam sanadas e de nenhum efeito sobre a validade e continuação da normal tramitação do processo, como decorre dos artigos 121º e 123º, n.º 1, do CPP, tal qual se considerou no segmento anterior.
Ao que acresce, como bem refere o Ministério Público no seu parecer, que a eventual omissão ou violação das formalidades previstas no artigo 58º do CPP, teria como consequência apenas a impossibilidade de utilizar como prova as declarações prestadas pela visada, o que, no caso em apreço, se perfila inaplicável por nenhumas declarações terem sido prestadas pela arguida e recorrente.
Termos em que, também estas questões e correspondente pretensão recursiva, de resto formulada a título subsidiário, improcedem.
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2. 3. (in)suficiência indiciária dos elementos típicos do crime de difamação pelo qual a arguida foi pronunciada [restantes conclusões do recurso do Ministério Público e algumas das mencionadas e as restantes do recurso da arguida]
Por último, ambos os recorrentes questionam a suficiência indiciária dos elementos típicos do crime de difamação pelo qual a arguida foi pronunciada na decisão sob escrutínio, considerando mesmo a sua atipicidade.
Vejamos.
Apesar de nalguns países europeus, membros do Conselho da Europa, e de outras latitudes, se assistir a um movimento de descriminalização da ofensa à honra, entre nós, mesmo à luz da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, mantém-se indiscutível a necessidade de, às demais formas de tutela jurídica, acrescer a tutela penal da honra, considerando que a mesma constitui um bem jurídico com relevo e densidade constitucional justificativas dessa tutela, ainda que, sublinhe-se, restrita a situações de ofensa pessoal grave e indiscutível e sempre nos limites consentidos pelo respeito e mesmo prevalência de outros direitos fundamentais e valores que lhes subjazem com igual dignidade e proteção constitucional e convencional, em particular os da liberdade de expressão e informação, com os quais inevitável e frequentemente colidem nos variados campos de atividade humana, em particular no âmbito do exercício de funções políticas, públicas e de poder em geral, de que não está excluída a atividade judicial e judicante, conforme reconhecem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação aos artigos 26º e 37º da CRP, in ob. e loc. citados, e Paulo Pinto de Albuquerque, em notas prévias ao artigo 180º do CP e comentários aos artigos 180º e ss. do mesmo diploma legal, conjugados com o disposto naquelas normas constitucionais e no artigo 10º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH), no seu “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 6ª edição, UCP Editora, 2024, ambos com vasta resenha doutrinária e jurisprudencial concordante.
Por outro lado, ainda que persista alguma divergência doutrinária quanto à natureza dos crimes contra a honra, de mera atividade, para uns12, e de resultado/dano, para outros13, a generalidade dos autores e da jurisprudência convergem no sentido de que se trata de crimes expressivos, ou seja, resultam da ação comunicacional entre pessoas inerente à vida em comunidade, por palavras, gestos ou escritos, cuja consumação não reclama um atuação com dolo específico de ofensa à honra, mas apenas o dolo genérico, aferido em função da idoneidade ou aptidão das palavras, gestos ou escritos para ofender a honra dos visados, enquanto bem jurídico fáctico-normativo complexo, que se desdobra na dignidade pessoal e no bom nome, consideração e reputação social - honra sob a perspetiva subjetiva ou interna do ofendido sobre si próprio e honra externa ou social, reputação de que goza -, segundo os padrões vigentes no meio social e profissional em que ocorram e não de harmonia com a maior ou menor sensibilidade pessoal da pessoa a quem são dirigidos ou por eles visada14.
Convergência que igualmente se verifica quanto à necessidade de distinguir a imputação de factos da formulação de juízos de valor, não apenas para aferir da viabilidade aplicativa da cláusula especial excludente da ilicitude e determinante da não punibilidade das condutas prevista no n.º 2 do artigo 180º do CP, também aplicável à injúria, por remissão do artigo 181º, n.º 2, reservada para a primeira, sem prejuízo da aplicação aos segundos da cláusula geral estabelecida no artigo 31º do mesmo código, mas também entre juízos de valor dirigidos à pessoa e juízos de valor “sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações” os quais, “não preenchem os tipos legais em estudo”, ou seja, os dos artigos 180º e 181º do Código Penal15.
À luz destas considerações, vejamos, pois, se os factos imputados na decisão de pronúncia se mostram suficientes para indiciar a prática pela arguida do crime de difamação que nela lhe foi imputado.
Antes de mais, convém lembrar que na decisão impugnada, os factos considerados indiciados o foram, nos termos legalmente consentidos, por remissão para o RAI.
O seu conteúdo factual, expurgadas as considerações de índole subjetiva e conclusiva acerca dos sentimentos da ofendida, que, como vimos, não relevam em termos de preenchimento do tipo, deve ser analisado segundo a perspetiva da generalidade dos profissionais do meio judiciário onde ocorreram os factos denunciados sobre o que seja ou não seja relevantemente ofensivo da honra daquela no concreto contexto funcional e processual onde ocorreram, como referem os autores e jurisprudência referenciada e salienta o Ministério Público no seu parecer.
Ora, sobre tal contexto é parca a matéria indiciária assente, não permitindo mais do que perceber ser a expressão “chicana processual”, inserta num determinado parágrafo de uma peça recursiva subscrita pela arguida, em processo de adoção no qual intervinha como procuradora da República, o único fundamento da imputação do crime de difamação pelo qual foi pronunciada, no pressuposto de que a mesma foi dirigida à ofendida, enquanto juíza titular do processo e subscritora da sentença recorrida, e que se traduz numa profunda e relevante ofensa à dignidade desta enquanto pessoa e profissional, mais a mais considerando os deveres funcionais a que está vinculada na direção e gestão processual decorrentes do seu Estatuto e do artigo 6º do Código de Processo Civil.
Acrescentou-se que, ao contrário do afirmado no despacho de arquivamento, a atividade processual está adstrita a regras e procedimentos incompatíveis com a liberdade de expressão, que nele não encontra campo de aplicação, o que, como supra se expôs, não é defensável à luz da interpretação doutrinária e jurisprudencial do âmbito de aplicação dos artigos 37º da CRP e 10º da CEDH, que, sem dúvida, abrangem a atividade judicial e judicante, sendo certo ainda que o direito fundamental à liberdade de expressão neles amplamente consagrado, em caso de conflito com o da honra, ganha sobre esta preponderância, sem a anular, mas limitando-a às situações de ofensa grave e gratuita à honra pessoal dos profissionais do foro, juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça.
Sucede que, apesar de na fundamentação da decisão instrutória ainda se ter esboçado um alargamento das circunstâncias concretas que desembocaram na peça recursiva na qual foi inserta a referida e censurada expressão, a verdade é que esse esforço se ateve ao esclarecimento de que o recurso em causa não visou apenas a sentença de adoção proferida no processo n.º 6607/23.0..., que correu termos no J5 do Juízo de Família e Menores de ..., mas também dois anteriores despachos judiciais nele proferidos, um em ... de ... de 2023 e outro em ........2023, prévio à sentença, no mesmo termo de conclusão.
Tudo, porém, essencialmente conclusivo e sem matéria de facto esclarecedora da concreta tramitação processual que culminou nessa peça recursiva e inserção daquela expressão no parágrafo transcrito no ponto 7 do RAI, cuja verdadeira natureza fica assim por compreender na sua totalidade na correspondente dinâmica processual, nomeadamente quanto a tratar-se da imputação de factos ou de juízos sobre a ofendida, enquanto juíza titular do processo, ou de mero juízo da arguida, enquanto procuradora da República no processo, sobre a tramitação deste, pelo menos desde o despacho judicial de ... de ... de 2023, que considerou anómala e impeditiva do exercício do seu múnus, hipótese cuja verificação tornaria a sua conduta atípica e não punível, nos termos acima referidos e em conformidade com o proposto no parecer do Ministério Público.
Por outro lado, nada se apurou quanto ao verdadeiro sentido da expressão “chicana processual”, de entre os vários que a sua polissemia comporta e cuja identificação só aquele concreto iter processual permitiria, sendo certo que ela pode e é entendida no próprio meio judiciário, não necessariamente com o sentido ofensivo da honra da pessoa a quem é imputada, mas como uma atuação processual obstrutiva da fluidez processual, uma vezes em exercício abusivo de prerrogativas legais, outras como expressão de desadequada, mesmo errada direção e gestão processual, por inabilidade, distração ou incorreta interpretação aplicativa das pertinentes normas, substantivas e adjetivas, do titular do processo ou mesmo da secção, como pode ver-se nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de ........1992, proferido no processo n.º 9130486, relatado pelo Desembargador Matos Fernandes, e do STJ, de 18.02.2010, proferido no processo n.º 13/05.6...-B.S1, relatado pelo Conselheiro Arménio Sottomayor, ambos disponíveis no antes mencionado sítio da DGSI, e nas palavras do anterior presidente da ASJP, reproduzidas em notícia da SAPO, de ........2023, acessível em https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2023/03/18/juizes-pedem-a-ministra-da-justica-o-fim-chicana-processual-e-a-regulacao-do-sorteio-de-juizes/324359/,
Omissões, incorreções, incertezas e indefinições que não se compaginam com a afirmação de que os autos contêm indícios suficientes da prática pela arguida do crime de difamação agravada pelo qual vem pronunciada, nos termos previstos no artigo 283º, n.º 2, aqui aplicável por força do artigo 308º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP, antes se afigurando, em conformidade com a doutrina que a decisão recorrida considerou e aqui se acolhe, que a probabilidade de a arguida ser dele absolvida em julgamento, mesmo mantendo-se inalterada a matéria de facto considerada indiciada, limitada, relembra-se, à do RAI, supera largamente a da sua condenação.
Termos em que, deve o recurso proceder nesta parte e, em consequência, não pronunciada a arguida.
IV. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento aos recursos do Ministério Público e da arguida e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar o arquivamento do processo.
Sem tributação.
Lisboa, d. s. certificada
(Processado pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos subscritores)
João Rato (Relator)
Jorge dos Reis Bravo (1º Adjunto)
Vasques Osório (2º Adjunto)
2. Neste ponto, a decisão transcrita, inseriu a seguinte nota de rodapé n.º 1 “Notificada para comparecer ao debate instrutório, veio a arguida, nos termos permitidos pelo artigo 300.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, renunciar ao direito a estar presente e fazer-se representar pela Ilustre Defensora”.↩︎
3. Neste ponto, a decisão transcrita inseriu a nota de rodapé n.º 2, do seguinte teoro “Embora tenha também feito constar que o processo de adopção em causa por parte do companheiro do requerente (processo 8041/20.5...(LSB) também correu termos no mesmo ... do Juízo de Família e Menores de ..., tendo a sentença de adopção sido proferida pela mesma Senhora Juíza”.↩︎
4. Inserindo aqui a nota de rodapé n.º 3, com o seguinte teor “Regista-se que o recurso não pôs em causa a bondade do decidido - ter sido decretada a adopção -, incidindo antes sobre a preterição de formalidades reputadas essenciais pelo recorrente”.↩︎
5. E aqui, a nota de rodapé n.º 4, do seguinte teor “Porque utilizada no âmbito de um processo e por referência ao teor de sentença”.↩︎
6. Neste ponto, a decisão transcrita inseriu a nota de rodapé n.º 5, com o seguinte teoro “Nas declarações que prestou a Senhora Juíza afirmou que a situação dos autos não foi única”.↩︎
7. Em anotação ao artigo 205º da “Constituição da República Anotada”, Volume II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010.↩︎
8. Cfr. Henriques Gaspar e Inês Ferreira Leite e Paulo Pinto de Albuquerque em anotação aos artigos 97º e 119º a 123º do CPP, respetivamente, no “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar, [et al], 3ª Edição Revista, Almedina 2021, e no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”/ org. [de] Paulo Pinto de Albuquerque, Lisboa, UCP Editora, 2023, 2º Vol.↩︎
9. Vide, neste sentido, Maia Costa em anotação aos preceitos citados no “Código de Processo Penal Comentado”, de Henriques Gaspar [ et al].
No mesmo sentido, pode ver-se, com particular interesse para o caso em apreço, o acórdão do STJ, de 16.05.2019, proferido no processo n.º 21/18.7TRPRT.S1, relatado pelo Conselheiro Francisco Caetano, acessível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2019:21.18.7TRPRT.amp.S1.9D?search=1mEnJcCX23wFlzVE60Q.↩︎
10. Aliás, mesmo admitindo, por hipótese académica, que a falta de fundamentação gera a nulidade do ato decisório em apreço, ela não poderia dar-se por verificada, na medida em que, como se pode ler no ponto VI do sumário publicado do acórdão do STJ, de 26.03.2014, proferido no processo n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, “Não padece do vício da nulidade a decisão que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada, mas somente aquela que omite, em absoluto, os fundamentos de facto e de direito que a justificam”, o que, como vimos, aqui não ocorre.↩︎
11. Neste sentido podem ver-se António Henriques Gaspar e Inês Ferreira Leite e Paulo Pinto de Albuquerque, em comentário aos referenciados artigos, in ob e loc cit, e o Ac. STJ de fixação de jurisprudência nº1/2006, DR, I Série de 2-01-2006.↩︎
12. Vide, “Dos Crimes Contra a Honra – Dignidade Penal, Constrangimentos da Comunicação e Consequências Jurídicas” de Fernando José da Cruz Santos, Mestrado Forense, Faculdade de Direito da Universidade Católica, Escola de Lisboa, acessível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/28241/1/DOS%20CRIMES%20CONTRA%20A%20HONRA_Tese%20Mestrado_Fernando%20Jos%C3%A9%20da%20Cruz%20Santos%20pdfa.pdf, e doutrina e jurisprudência aí resenhada.↩︎
13. V.g. Paulo Pinto de Albuquerque, no citado comentário do Código Penal.↩︎
14. Cfr. acórdão do STJ, proferido no processo n.º 21/18.7TRPRT&.S1, relatado pelo Conselheiro Francisco Caetano, já antes referenciado, e ainda, do mesmo relator, aqueloutro de 14.01.2021, proferido no processo n.º 30/15.8TRLSB.S1, este último disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎
15. Conforme se refere no trabalho referido na nota 12, citando Manuel da Costa Andrade, também referenciado no parecer do Ministério Público, mediante citação e parcial transcrição do acórdão do STJ, de 7.04.2022, proferido no processo n.º 115/21.1TRPRT.S1, relatado pelo Conselheiro António Gama, que, por sua vez, cita e reproduz parcialmente o acórdão do mesmo Tribunal, de 18.01.2006, proferido no processo n.º 115/21.1TRPRT.S1, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, que, aliás, reiterou o mesmo entendimento em acórdão de 7.03.2007. proferido no processo n.º 07P440, todos disponíveis no sítio identificado na nota anterior.↩︎