RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
CÚMULO JURÍDICO
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
REJEIÇÃO PARCIAL
IN DUBIO PRO REO
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
HOMICÍDIO QUALIFICADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
REDUÇÃO
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário


I - O disposto no n.º 5 do art. 411.º do CPP impõe ao recorrente que especifique “os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos na audiência”.

II - Não satisfaz esse requisito o pedido de audiência com a seguinte formulação: “Requer, atenta a importância das questões de direito suscitadas a discussão das mesmas em audiência”.

III - Não é admissível e deve ser rejeitado o recurso para o STJ de acórdão proferido, em recurso, pelos tribunais da Relação, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

IV - Não é admissível e deve ser rejeitado o recurso para o STJ de acórdão proferido, em recurso, pelos tribunais da Relação, com fundamento em alegados erro de julgamento, insuficiente e contraditória fundamentação da matéria de facto ou em erro notório na apreciação da prova.

V - Não é admissível e deve ser rejeitado o recurso para o STJ de acórdão proferido, em recurso, pelos tribunais da Relação, que confirmaram a condenação em pena de prisão não superior a 5 anos.

VI - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida.

VII - Tendo sido dado como provado que o arguido namorou com a vítima e com ela viveu em comunhão de cama, mesa e habitação, mostra-se verificada a agravante qualificativa estabelecida no art. 132.º, n.º 1, al. b), do CP.

VIII - Tendo sido dado como provado que o arguido vivia atormentado com a ideia de tirar a vida à vítima desde 25-04-2023, tendo concretizado esse propósito no dia 27 do mesmo mês, mostra-se verificada a agravante qualificativa estabelecida no art. 132.º, n.º 1, al. j), do CP.

IX - A aplicação de penas deve ter, também, em consideração, o que tem sido decidido, em casos similares, pelos tribunais superiores.

Texto Integral


ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1. Os despachos e acórdão da primeira instância.

A.1.1. O despacho de 2 de julho de 2024

Através deste despacho o Juízo Central Criminal de Loures – ...indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido, no sentido de:

• Ser solicitada documentação clínica ao Gabinete do Utente de ... e ao Hospital de ...;

• Subsequentemente, serem solicitados esclarecimentos ao perito médico que realizou a perícia psiquiátrica forense ao arguido;

• Ser realizado teste para determinação do QI do arguido.

A.1.2. O despacho de ... de ... de 2024

Através deste despacho o Juízo Central Criminal de Loures – ... indeferiu os requerimentos apresentados pelo arguido, no sentido de:

• Serem solicitados esclarecimentos ao perito que realizou a autópsia da vítima;

• Ser junto aos autos um conjunto de documentação clínica proveniente do Centro Hospitalar ..., bem como de um atestado médico.

A.1.3. O acórdão de ... de ... de 2024

Através deste acórdão o Juízo Central Criminal de Loures –... condenou o arguido

AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes e nas seguintes penas:

- um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nº 2, alíneas b), e j), ambos do Código Penal, na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão; e

- um crime de profanação de cadáver, previsto e punível pelo art. 254º nº 1, alíneas a) e b) do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

- operado o cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão.

Mais foi o arguido condenado a pagar às vítimas BB e CC, representadas pela sua progenitora, DD, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) para cada uma das menores, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 16.º da Lei 130/2015, de 4 de setembro, e 67.º-A n.ºs 1 a) ii) e 2 e 82.º-A, estes do Código de Processo Penal.

A.2. O acórdão da Relação de Lisboa

O arguido não se conformou com essas decisões, pelo que delas recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o qual, por acórdão de ... de ... de 2024, decidiu “negar provimento aos recursos (interlocutório e principal) e confirmam o acórdão recorrido.”

A.3. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça

Continuando inconformado, recorre agora para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas motivações com as seguintes conclusões (transcrição integral):

“1ª Dispõe o artº 158º nº 1, al a) do CPP, sob a epígrafe “esclarecimentos e nova perícia “ que : 1. Em qualquer altura do processo pode a Autoridade Judiciária competente determinar , oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que :

a. Os perito sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares, devendo ser-lhes comunicados o dia , a hora e o local em que se efetuará a diligência.”

Artº 158º Esclarecimentos e nova perícia

1. Em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar oficiosamente ou a requerimento , quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade , que :

a)

b) Seja realizada nova perícia ou renovada a perícia anterior a cargo de outro ou outros peritos.“

Tais esclarecimentos deviam ser trazidos aos autos.

2ª É matéria de facto assente nos autos ( cfr exame de toxicologia) que foi encontrado no corpo da vítima, volvidos dias, da sua morte as seguintes substanciais:

ÁLCOOL NO SANGUE:

Está cientificamente demonstrado que após 48 horas sobre a ingestão de álcool é muito difícil captar a quantidade de etanol no corpo.

Ora, pese embora o facto de autópsia ter sido realizada vários dias após a morte, foi encontrado no cadáver :

- Uma taxa de álcool no sangue de 0,19g/l

E ainda a presença de :

antidepressivos tais como a mirtazapina e a venlafaxina, os quais não podem ser tomados em conjunto, uma vez que a venlafaxina é um antidepressivo de tipo IMO, sendo que a toma conjunta destes dois antidepressivos, e nas quantidades elevadas que o tomava a vítima, como testemunhou nos autos e na audiência de julgamento, a ex-mulher da vítima, são, por si só passíveis de provocar a morte.

- Mas a vítima, além de alcoolizada, ingerida uma quantidade não apurada dos antidepressivos supra referidos, apresentava também COCAÍNA no sangue, detetada na autópsia legal e que segundo o arguido teria sido injetada.

3ª Perante este quadro e na ausência do registo nacional de saúde da vítima, quer nesta perícia que visionou apenas alguns elementos do estabelecimento prisional, não havia motivos para recusar à defesa os esclarecimentos pretendidos pela defesa.

4ª O Tribunal a quo aceita “a causa de morte” que se encaixa na tese desejada de homicídio pela Polícia Judiciária que fez questão de presenciar a autópsia. Se assim não fosse, não recusaria esclarecimentos periciais que nunca foram pedidos quando ao teor do exame toxicológico realizado ao cadáver.

5ªDe igual modo a perícia psiquiátrica realizada ao arguido mostra-se confusa, contraditória e insuficientemente fundamentada.

O arguido contou à perita que o mesmo teve já três meningites, sendo que a terceira vez que foi internado foi alvo de cirurgia no Hospital de ..., colocada uma prótese metálica na cabeça.

Que por depressões múltiplas foi julgado incapaz para o seu trabalho, já que apresentava uma sintomatologia alucinogénia, acreditando ouvir vozes e apresentando frequentes ataques de pânico por crer visionar os mortos com que teve de trabalhar.

Apesar de considerar muito baixo o QI do arguido, nada fez de exames complementares que permitissem avaliar qual era esse QI que não é adivinhável por mera observação , mesmo para um psiquiatra.

Não se pronunciou fundamentadamente sobre a questão de saber se as doenças vividas pelo Recorrente influenciavam ou não as suas capacidades de pensar e agir conforme ao direito.

Tanto mais que lhe reconheceu um baixo ( a roçar o atraso ) no seu QI.

6ª Esta perícia deixou sem resposta o quesito 1, especificando a necessidade de realização de outro exame psicológico para avaliar o que parecia ser um perfil narciso no recorrente, ficando-se igualmente sem saber se a ser assim, se tal teria consequências nas capacidades de pensar e agir conforme ao direito.

7ª A defesa considera também aqui a fundamentação é contraditória e insuficiente para decidir algo tão fulcral para os autos, como possíveis inimputabilidade ou inimputabilidade diminuída do arguido.

8ªDe resto, São apontadas versões contraditórias sobre os factos por parte do arguido. Mas isso não acontece. :

9ª Foi a Polícia Judiciária que tendo interrogado e diligenciado junto do arguido vários dias , sem se preocupar com a necessidade de sono e apropriada alimentação ao arguido que num primeiro momento levou o arguido a casa e lhe apreendeu várias almofadas alegando que o arguido asfixiara a vítima depois de um golpe de mão nos seus testículos;

Depois que o teria matado a tiro, já que encontrou em casa do arguido a bala de coleção que foi apreendida nos autos.

E

finalmente, após o auxílio do recorrente em vista a encontrar as peças do corpo em falta, observou a cabeça da vítima e afirmou que a morte ocorreu por pancadas na cabeça, estória que levou ao Instituto de Medicina Legal.

10ª O arguido não falou perante a Mmª Juiz de Instrução sobre a morte.

Também não o fez perante o Magistrado do Ministério Público que em momentos tão confusos e difíceis para o arguido só lhe perguntava se “podia escusar-se a ler o que dissera na PJ, se o arguido se recordava “

O arguido não sabemos se recordava ou não e recordando a que se referia concretamente quando perguntava do que se lembrava

Por outro lado na audiência de julgamento negou ter matado a vítima.

11ª Há um erro na interpretação dos factos quando o Tribunal a quo considera que o arguido ao dizer a DD que a vítima podia aparecer morta, avisava-a de que o ia matar, atentas as dívidas e as pessoas perigosas com que lidava.

12ªBem apreciada toda a matéria de facto, teria o Tribunal a quo que concluir, pelo menos, que na dúvida sobre a verdadeira causa de morte da vítima, o Recorrente devia ser absolvido da prática deste crime.

13ªMas, sem conceder, ainda que assim não fosse impunha-se reconhecer que não se verifica qualquer premeditação, porque só após a morte o recorrente vai adquirir sacos e produtos de limpeza para esconder uma morte que temia atribuíssem a ele, designadamente por terem estado zangados face a uma paixão desenvolvida pela vítima meses antes por uma refugiada ucraniana acolhida pelo recorrente.

14ª Por outro lado nunca houve uma relação comparável às dos cônjuges entre os dois, já que bem avaliados os factos só tiveram esporádicos momentos de intimidade, sem sentimento por parte da vítima que se casou, teve duas filhas e durante os 14 anos do seu casamento, sempre tratou o arguido como mero amigo

Após o divórcio apaixonou-se por outra mulher.

15ª Termos, em que sem conceder o crime de homicídio a ser provado fundamentadamente, deveria ser punido apenas nos termos do artº 131º do CP

Importa salientar os termos dos artº 71 do CP.

16ª As necessidades de prevenção geral nunca deverão ser mais ponderadas que as especiais.

17ª Não é verdade que o ... por ser uma terra pequena caiu em grande alarme social por causa deste e tribunal crime (o alarme é feito pela comunicação social, influenciando público e Tribunal), já que quase toda a gente nem acredita na culpabilidade do arguido que é ali considerado uma pessoa afável, muito amigo de ajudar o próximo, ligado ao voluntariado.

Já é tempo dos processos em Portugal deixarem de ser julgados pela comunicação social, aliás!

18ª E no que respeita às necessidades especiais, pese a sua eventual personalidade narciso que esconde o que realmente sente, o arguido sofre a dor da perda da vítima que muito amou e ajudou, nada fazendo prever que pudesse ter outra situação como esta.

Depois, porque sendo verdade que abstratamente é elevada a ilicitude do caso, o tribunal não avaliou o suficiente o grau e capacidade da culpa do arguido e por isso proferiu uma decisão tão dura com ele.

Requer, atenta a importância das questões de direito suscitadas a discussão das mesmas em audiência.”

A.4. A resposta do MP

A propósito do recurso acima aludido foi apresentada, no Juízo Central referenciado, resposta do ..., na qual se defende a total improcedência do recurso e da qual se extraem os seguintes excertos (transcrição parcial):

“Salvo melhor interpretação, o ora recorrente pugna no sentido peticionado, sem afinal rebater os fundamentos determinantes da decisão expendida no acórdão sob recurso, de cuja leitura se extrai:

a) Que do seu texto, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, não resultam vícios nem nulidades;

b) Que de forma assaz proficiente e rigorosa, procedeu a exame crítico da prova à luz do princípio da livre apreciação da prova e dos poderes de cognição do Tribunal superior, para fundada e justificadamente concluir pela improcedência dos recursos.”

(…)

O mesmo concluímos no que tange à invocada violação do artº. 71º do C.Penal.

Com efeito:

Analisada a motivação de recurso, verifica-se que estas pretensões, se alicerçam o facto de o recorrente considerar, que o tribunal enfatizou as necessidades de prevenção geral e, relativamente às necessidades de prevenção especial, não teve em conta “o grau e capacidade de culpa do arguido”, nem o sofrimento pela “ dor da perda da vítima que muito amou e ajudou, nada fazendo prever que pudesse ter outra situação como esta”.

Ora, sempre ressalvando melhor entendimento, afigura-se-nos ser patente a falta de razão do recorrente.

É que, como se evidencia, essas questões já foram por si suscitadas no recurso interposto para o Tribunal da Relação, e este não deixou de ponderar esses vectores, para concluir nos seguintes termos: (…)

(…)

Manifestamente, o acórdão sob recurso de forma clara e proficiente procedeu a correta aplicação dos critérios de determinação da medida concreta da pena, não se podendo concluir, comosufraga orecorrente, que as penas parcelarese única aplicadas,são excessivas por errada interpretação e aplicação dos artºs. 40º e 71º do C.Penal.

A.5. O Parecer do Ministério Público

Neste Alto Tribunal o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto apresentou extenso e muito detalhado parecer no qual conclui, em síntese:

• Que o recurso deve ser julgado em conferência uma vez que “não são especificados os pontos da motivação que o recorrente pretende ver debatidas, as quais não se confundem com a globalidade e o resumo das questões do recurso que estão sintetizadas nas conclusões”;

• Que o recurso deve ser rejeitado quanto à condenação pelo crime de profanação de cadáver já que a pena aplicada é inferior a 8 anos de prisão;

• Que os recursos interlocutórios devem ser igualmente rejeitados tendo em conta o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do C. Processo Penal;

• Que os recursos quanto aos alegados vícios devem ser também rejeitados dado que o que é impugnado é uma decisão proferida, em recurso, por um Tribunal da Relação;

• Que a apreciação da qualificação jurídica dos factos (solicitando que o recorrente seja apenas condenado pela prática de homicídio simples e não por homicídio qualificado) não tem fundamento, por não ter qualquer apoio nos factos provados;

• Quanto à medida da pena, para além de considerar não ser claro se o arguido impugna a pena aplicada pelo crime de homicídio ou se discorda da pena única, não pode o mesmo ter provimento porquanto o recorrente não indica quais os fundamentos concretos que, no quadro do artigo 71.º, do Código Penal, (o qual invoca expressamente), justificam a sua discordância.

A.6. Resposta

Devidamente notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou resposta, na qual consigna a sua discordância perante o parecer acima sumariado e mantém o que alegara em sede de recurso, transcrevendo-se o seguinte trecho dessa resposta:

7 - De igual modo também constitui um direito do arguido requerer nos termos do artº 411º 5 do CPP a realização da audiência , em nada constando da letra ou do espírito da lei que a “ audiência é cada vez mais facultativa “, porque a ser assim ter-se-ia de aceitar quase que a decisão de fazer ou não fazer a audiência podia ancorar-se num juízo arbitrário , não carente de fundamentação .

8.A audiência foi requerida e como indicia o final do texto do recurso, pretendendo ver-se nesta discutidas as questões levadas às Conclusões de Recurso e deste constantes de páginas 11 a 16, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

(…)

“11º Em todo o caso, sempre se dirá que o Tribunal a quo viola o artº 158º nº 1 al a) do CPP no que respeita à matéria das perícias.

12º Sendo que por causa disso incorre num erro de avaliação da prova a sindicar por via do artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal, conjugado com a al d) do nº 2 do artº 120 do CPP.

13º Do erro na avaliação da prova decorre, logicamente, a violação do disposto no artº 127º do CPP que foi mal aplicado, bem como a violação do principio do in dubio pro reo.

14º Quanto à medida da pena, naturalmente que nos referimos sempre à pena globalmente aplicada. Nem haveria sentido em ser de outra maneira”

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B – Fundamentação

B.1. Questão Prévia – A não realização de audiência

O recorrente solicitou a realização de audiência.

Nos termos do disposto no nº 5 do artigo 411º do Código de Processo Penal, “o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos do recurso que pretende ver debatidos.” (negrito e sublinhadoss nossos)

Ora, o recorrente limitou-se a consignar, no fim do recurso, que “Requer, atenta a importância das questões de direito suscitadas a discussão das mesmas em audiência”

Como bem assinala o Digníssimo Procurador-Geral Ajunto tal formulação não preenche os requisitos legais.

Com efeito, não é ao Tribunal que compete descortinar quais são as “questões de direito” que o recorrente pretende discutir, sendo a este que cabia o ónus de as indicar especificadamente.

E, como se refere em acórdão proferido por este Supremo Tribunal de JJustiça a 1 de julho de 20201:

“O significado de especificar é descrever detalhada e exaustivamente algo, indicar minuciosamente, pormenorizar, particularizar.

Antónimo de especificação é a indicação lata, generalizada indistinta total, global

O que já de si seria suficiente para desamparar a argumentação do recorrente”

(…)

Entende o Tribunal que a fórmula genérica, lata, utilizada pelo recorrente não cumpre minimamente o requisito legal que exige a indicação especificada dos pontos que pretendia ver debatidos em audiência, como também não a cumpriria se tivesse indicado todos os pontos da motivação ainda que pormenorizadamente, um a um.”

Assim, por não se mostrarem preenchidos os requisitos estabelecidos no nº 5 do artigo 411º do Código de Processo Penal, não se admitiu a realização de tal diligência, tendo-se determinado o julgamento do recurso em conferência.

É, aliás, esta a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a qual se mostra em consonância com o entendimento do Tribunal Constitucional.

Com efeito, a esse propósito escreve-se no acórdão acima referido o seguinte:

“I - Na vigente modelação do recurso, a audiência converteu-se em faculdade, sujeita ao cumprimento de requisitos: formal – pedido expresso do recorrente – e substancial – especificação dos concretos pontos da motivação que pretende “ver debatidos.

II - A declaração de que se pretende debater na audiência todos os pontos da motivação de recurso não cumpre minimamente o requisito legal que exige a indicação especificada dos pontos que pretende ver debatidos na audiência, como também não o cumpriria se indicasse todos os pontos, pormenorizando um a um.

III – O requisito da especificação dos pontos da audiência não pode cumprir-se com o seu antónimo.

IV -A inobservância daquele requisito redunda na denegação da audiência, sem prejudicar o conhecimento do recurso, que, não tendo sido rejeitado pelo relator, é julgado em conferência.” Assim, não tendo cumprido o requerente com os ditames legais relativos à realização da Audiência de Julgamento, por, como se referiu, se ter limitado a remeter para o conjunto dos 3 pontos das Conclusões por si apresentadas, a indicação das questões que pretendia debater em Audiência, sem ter observado a necessidade da sua especificação, como lhe é legalmente exigível, não poderia este Tribunal decidir de outro modo que não fosse recusar o deferimento de uma pretensão ilegalmente formulada.”

No mesmo sentido também decidiram os acórdãos deste Tribunal de ...0...122 e de ...0...333, podendo ler-se neste último o seguinte:

Assim, não tendo cumprido o requerente com os ditames legais relativos à realização da Audiência de Julgamento, por, como se referiu, se ter limitado a remeter para o conjunto dos 3 pontos das Conclusões por si apresentadas, a indicação das questões que pretendia debater em Audiência, sem ter observado a necessidade da sua especificação, como lhe é legalmente exigível, não poderia este Tribunal decidir de outro modo que não fosse recusar o deferimento de uma pretensão ilegalmente formulada. Nesta conformidade, igualmente se não verifica qualquer irregularidade pois que a validade do ato processual em causa – a realização de Conferência em detrimento do ato Audiência de Julgamento – é a única legalmente possível face à inexistência dos requisitos legais para realização do ato pretendido – a realização de uma Audiência - , como aliás o requerente já tinha conhecimento, face à notificação do Parecer exarada nestes Autos pelo Ex.mo PGA, nos termos do disposto no artigo 416º do CPP.

B.2. Âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).

Assim, nos presentes autos o recorrente coloca as seguintes questões:

A. Relativamente ao recurso interlocutório que impugnou o despacho de ... de ... de 2024 insurge-se contra o indeferimento dos seguintes pedidos:

• Ser solicitada documentação clínica ao Gabinete do Utente de ... e ao Hospital de ...;

• Subsequentemente, serem solicitados esclarecimentos ao perito médico que realizou a perícia psiquiátrica forense ao arguido;

• Ser realizado teste para determinação do QI do arguido.

B. Relativamente ao recurso interlocutório que impugnou o despacho de ... de ... de 2024 insurge-se contra o indeferimento dos seguintes pedidos:

• Serem solicitados esclarecimentos ao perito que realizou a autópsia da vítima;

• Ser junto aos autos um conjunto de documentação clínica proveniente do Centro Hospitalar ..., bem como um atestado médico.

C. Relativamente ao acórdão

• Erro de julgamento, insuficiente e contraditória fundamentação da matéria de facto,e erro notório na apreciação da prova;

• Violação do princípio in dúbio pro reo;

• Subsunção dos factos ao crime de profanação de cadáver, previsto e punível pela alínea a) (e não também pela alínea b)) do nº 1 do artigo 254º nº 1 do Código Penal;

• Subsunção dos factos ao crime de homicídio simples, previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal;

• Diminuição da medida da pena.

B.3. Matéria de facto dada como provada e não provada

Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais, consignar a matéria de facto dada como provada e não provada que serviu de fundamento do acórdão recorrido.

Assim, foi dada como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

1.1. Factos Provados

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da mesma:

1) O arguido AA e EE conheceram-se em data não concretamente apurada do ano de ..., quando este último contactou o arguido para o ajudar no processo de legalização em território nacional, atividade a que aquele se vinha dedicando.

2) Em janeiro de 2022 o arguido AA tomou conhecimento que o relacionamento de EE com DD tinha terminado, pelo que foi-se aproximando daquele por quem sentia uma atração física e amorosa.

3) Em data não concretamente apurada, o arguido AA e EE iniciaram uma relação amorosa, passando desde o dia ... de ... de 2023 a partilhar cama e mesa na habitação do arguido, sita na ...

4) Desde o início do relacionamento que EE, por se encontrar numa situação económica débil, com cada vez mais frequência pedia ao arguido AA ajuda financeira para fazer face ao pagamento da pensão de alimentos das filhas, das mensalidades do empréstimo do veículo da marca Audi, modelo A5, com a matrícula ..-SJ-.., e das despesas da sua própria alimentação.

5) O arguido AA acedia aos pedidos.

6) Em consequência do referido e das frequentes pressões por parte de EE para que o ajudasse naquilo que eram as suas necessidades financeiras diárias sob pena de terminar a relação, o arguido AA foi-se convencendo cada vez mais que aquele apenas mantinha a relação amorosa para poder obter benefícios económicos.

7) Tal desconfiança levou a que passasse a controlar os movimentos de EE com vista a apurar o seu paradeiro quando saía de casa.

8) Assim, no dia ... de ... de 2023, o arguido AA encetou uma conversação por mensagens telefónicas com DD, ex-mulher de EE, onde referiu o seguinte:

Às 21h07 - “O valdene saiu à pouco e já voltou ele diz ke foi ver as filhas você me confirma se é verdade?”

Às 23h19 – “Sim verdade ele só pensa nele é egoísta e não tem pena de ninguem esplora toda a gente sem ter o minimo de escrupulos mas eu tenho a certeza ke a hora dele ta a xegar em breve ele ou vai preso ou vai aparecer morto num sitio qualquer so espero ke não seja aki na minha casa e kero ver kuando vierem buscar o carro”, “E eu ainda vou passar por trabalhos por causa dele”.

9) No dia ... de ... de 2023, pelas 21h00, quando EE chegou a casa comentou com o arguido AA de que tinha a prestação da sua viatura em atraso desde fevereiro entregando ao arguido um papel onde constavam uma entidade e referência de pagamento pedindo-lhe que pagasse € 900,00.

10) Como o arguido AA tinha de pagar a pensão de alimentos devida por EE no valor de € 400,00 na semana seguinte, recusou, alegando que só o poderia ajudar com um dos pagamentos, pelo que aquele começou a apelidar o arguido de “FF”.

11) No entanto, continuou a insistir com o arguido AA para que fizesse o pagamento, chegando a dizer que se gostava que ele vivesse em sua casa teria de lhe pagar estas despesas e ainda dar-lhe € 2.000,00 para as suas despesas pessoais, conversa que se manteve até cerca das 5h00 da manhã do dia 27.

12) Depois da referida hora, quando o arguido AA estava deitado na cama e EE no colchão colocado no chão ao lado da cama do lado direito de quem entra no quarto, onde habitualmente dormia, aquele despediu-se deste com o cumprimento habitual de “dá cá mais cinco”, altura em que EE disse “chegue-se para lá que você dá-me nojo”.

13) Em face da resposta daquele o arguido AA sentiu-se humilhado e ficou revoltado, o que acentuou ainda mais a sua convicção de que EE só mantinha uma relação consigo para que lhe pagasse as despesas.

14) Cerca das 6h00 da manhã do dia ... de ... de 2023, após EE ter adormecido, o arguido AA foi até à cozinha e bebeu um copo de vinho enquanto refletia no que aconteceu e na sua relação, altura em que decidiu executar a ideia de tirar a vida a EE, a qual já o vinha atormentando desde dia 25.

15) De seguida dirigiu-se à casa de ferramentas, situada ao lado da residência, de onde retirou uma marreta, voltou ao quarto, colocou-se em pé entre a cama e o colchão junto da cintura de EE e, com toda a força, desferiu-lhe uma pancada com a mesma na cabeça.

16) Na prossecução dos seus intentos, em ato contínuo, colocou-se de joelhos sobre a cama e desferiu mais duas pancadas com a marreta na cabeça de EE, o que provocou de imediato a projeção de sangue para as paredes e móveis ali existentes, bem como a perda abundante de sangue que se infiltrou no colchão onde aquele se encontrava deitado.

17) Como causa direta e necessária da atuação do arguido AA, EE sofreu múltiplas fraturas dos ossos da abóbada, dos ossos da base, dos ossos das cavidades orbitarias, dos ossos dos globos oculares, dos ossos das fossas nasais, dos ossos dos seios maxilares frontais e esfenoidais e hemorragia cerebral.

18) Tais lesões foram causa direta e necessária do seu falecimento imediato.

19) De seguida, o arguido GG deslocou-se novamente à cozinha onde bebeu mais um copo de vinho enquanto decidia que destino daria ao corpo daquele e, pelas 7h00 foi tomar banho e foi ao café como era seu hábito para não levantar suspeitas.

20) Como tinha experiência profissional no corte de cadáveres por ter trabalhado na morgue do ... como ajudante de Tanador decidiu que iria esquartejar o corpo de EE para assim dele se desfazer de forma mais fácil.

21) Assim, pelas 8h50 deslocou-se ao ..., sito na ..., n.º ... onde comprou três rolos de sacos de plásticos pretos de 120 litros, detergente em pó e esfregões de cozinha.

22) Cerca das 23h00, o arguido AA deslocou-se novamente à casa de ferramentas onde se muniu das facas de talhante de EE e de um serrote, voltou ao quarto e com as facas de talhante cortou os tecidos moles do corpo daquele pelos joelhos, junto às ancas, pelos ombros, tórax e pelo pescoço e, com o serrote, cortou os ossos nos locais onde tinha feito o corte dos tecidos moles.

23) Dessa forma, o arguido AA conseguiu separar a cabeça de EE do seu tronco, separar o tronco dos braços e pernas, o tórax das ancas e separar os membros inferiores pelos joelhos.

24) À medida que ia cortando uma parte do corpo de EE o arguido AA colocava-a dentro de três dos sacos de plásticos que havia comprado, os quais colocou a um canto do quarto tapados com uma manta preta, tarefa que lhe levou cerca de uma hora terminando pelas 24h00.

25) Em hora não concretamente apurada da madrugada do dia ... de ... de 2023, em concretização desse propósito, o arguido AA transportou as partes do corpo de EE desde o quarto até ao citado veículo da marca Audi, modelo A5, com a matrícula ..-SJ-.., que se encontrava estacionado no pátio da residência comum e colocou-as na bagageira, a qual forrou previamente com dois sacos pretos.

26) Cerca das 5h00 da manhã introduziu-se no veículo e iniciou a marcha em direção ao ..., sito em ..., vindo a parar junto a um eucaliptal, local onde atirou a cabeça de EE para a vegetação de um lado da estrada e as coxas para a vegetação do outro lado da estrada.

27) Como não queria que as partes do corpo de EE ficassem todas no mesmo local, entrou novamente na viatura, iniciou a marcha e 143 metros mais à frente virou à esquerda para uma estrada de terra batida tendo circulado cerca de 100 metros onde imobilizou a viatura, retirou o resto do corpo daquele e espalhou as várias partes pela vegetação com vários metros de distância entre elas.

28) Pelas 6h00 da manhã regressou a casa e após ter ido ao café como era seu hábito, para evitar que detetassem qualquer tipo de vestígio, cerca das 8h00, escondeu a parte do colchão manchado de sangue onde EE dormia numa casa devoluta sita na ... e a outra parte num terreno sito na ..., ..., lavou a viatura por fora e por dentro, as roupas, o chão, as paredes e os móveis com detergente e lixívia e as facas e o serrote com lixívia e Sonasol verde.

29) O arguido AA agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a EE, bem sabendo que o mesmo era o seu companheiro com quem mantinha uma relação amorosa e que o atingi-lo na cabeça com a marreta era meio idóneo para o efeito.

30) Propósito esse que já havia formulado desde o dia 25 e no qual persistiu até ao dia 27, data em que, após refletir no mesmo mais uma vez, o concretizou com total desprezo pela vida daquele, pela qual manifestou, com a sua conduta, uma profunda insensibilidade e inconsideração.

31) O arguido AA agiu com o propósito conseguido de cortar o corpo de EE em pedaços e de os esconder para com isso impedir que o mesmo fosse descoberto e identificado, bem sabendo que agia sem autorização e contra a vontade de quem de direito.

32) Sabia igualmente que ao assim atuar ofendia o sentimento moral coletivo do respeito devido aos mortos e desrespeitava o corpo do falecido EE.

33) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

34) O arguido foi sujeito a perícia psiquiátrica, resultando que não apresenta uma anomalia psíquica à data dos factos, necessária para a produção de um juízo de inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída, em razão de anomalia psíquica).

35) AA mantinha residência desde ..., tal como à data dos factos, na morada acima referenciada, uma moradia térrea arrendada, onde vivia sozinho. Nas duas semanas que precederam os factos subjacentes ao presente processo judicial, mais precisamente desde .../.../2023, o arguido coabitava com EE.

36) Pontualmente e de forma mais ou menos temporária (um dos apoiados viveu na sua casa cerca de 10 anos), AA ia acolhendo alguns imigrantes do ... ou do ..., a quem apoiava na integração no país. Assim, os seus tempos livres seriam maioritariamente passados a apoiar cidadãos estrangeiros, agilizando os processos com vista à regularização de permanência destes em Portugal, trabalho assumido em regime de voluntariado e que terá tido o seu início em ....

37) Previamente ao referido período de coabitação, o contacto entre o arguido e EE já se mantinha, numa dinâmica relacional descrita como gratificante até ... e a partir dessa data como intensa e pautada por conflitos, devido a alegados e sucessivos pedidos de empréstimo de quantias monetárias e/ou de ajuda para obtenção de empréstimos bancários que este último lhe ia solicitando, aos quais acedia na maioria das vezes. Justifica esta sua atitude, com o facto do parceiro se encontrar alegadamente a vivenciar um quadro depressivo e de dificuldades financeiras, ainda que este contexto relacional lhe desagradasse.

38) O arguido, em ..., contraiu meningite, o que lhe causou sequelas graves e que obrigou a um longo e complexo período de recuperação, quer em meio hospitalar, quer em casa da sua progenitora, por necessitar de cuidados básicos. Tal condição de doença, terá espoletado mudanças significativas no seu trajeto vivencial, com incidência no abandono definitivo da sua vida profissional, como ... da ..., passando à situação de inativo e a beneficiar de uma reforma por invalidez no valor de € 500,00 mensais. Era com esta quantia que, à data dos factos, assegurava as suas despesas pessoais e domésticas, sem que tenham sido referidas acentuadas dificuldades a este nível.

39) No plano emocional, este período de dois anos de doença viria a promover em AA sentimentos de alguma ambivalência, por um lado de mágoa, pelo facto de EE nunca o ter visitado ou lhe prestado apoio, e por outro, apesar disso, de continuar a gostar dele.

40) O reaparecimento de EE na sua vida, em 2021, ter-se-á regido em moldes semelhantes ao anteriormente vivenciado, com encontros casuais e discretos, assinalando, contudo, comportamentos cada vez mais conflituosos entre ambos, especialmente a partir de dezembro desse ano, data em que ocorre o desemprego e a separação conjugal daquele, que passa a agravar uma alegada conduta alcoólica e de consumo de estupefacientes.

41) Também o alegado interesse de EE por uma imigrante apoiada, à data, pelo arguido veio a agravar a relação amorosa, já de si instável e volátil, sendo que tal situação terá promovido em si sentimentos de maior ressentimento e de questionamento sobre os sentimentos de EE para consigo. Ainda assim, por este se encontrar em situação economicamente precária, veio a acolhê-lo em sua casa, em ..., agravando, desta forma a tensão, o conflito, a desconfiança e o consequente distanciamento afetivo entre ambos.

42) Em termos do processo evolutivo de AA, o mesmo foi marcado por períodos muito conturbados durante a infância e pré-adolescência, em que foi alvo das condutas agressivas por parte do progenitor, alcoólico, para consigo e com a família, que motivaram a sua saída do agregado familiar com 10 anos, data em que concluiu o 4.º ano de escolaridade e iniciou precocemente o seu percurso profissional como ... num hotel, ainda que gostasse de ter ingressado no seminário para se tornar ....

43) Ainda assim, o mesmo teve outros períodos, já na fase adulta, que avalia como muito gratificantes do ponto de vista pessoal, nomeadamente a sua vida profissional e o apoio a emigrantes.

44) O falecimento do progenitor, por suicídio, quando contava cerca de 13 anos de idade, terá levado o arguido a optar por regressar ao lar materno. Todavia, este regresso, também terá sido conturbado, descrevendo, nesse período, uma tentativa de suicídio com consequente internamento hospitalar, que viria a dar início a uma relação com um casal que o acolheu, por questões de solidariedade, durante cerca de 2 anos, auxiliando os mesmos nas tarefas domésticas.

45) Aos 15 anos de idade deu continuidade à atividade laboral por conta de outrem, no setor agrícola, que desenvolveu durante cerca de 7 anos, interrompendo por motivos de doença infetocontagiosa de foro pulmonar. O percurso laboral do arguido nos anos seguintes foi maioritariamente caracterizado por desempenhos indiferenciados nos setores agrícola, pecuário e na restauração, a que se seguiu o trabalho como operário fabril.

46) Posteriormente, ingressou nos quadros da ... para desempenhar as funções de ..., com uma anterior passagem pela morgue do cemitério do ..., tendo assegurado a sua efetividade aos 31 anos de idade e obtido uma alegada certificação como ... e preparador de cadáveres (tanatador) através do ..., atividade que exerceu até aos 42 anos.

47) Desta atividade o arguido destaca o gosto e a gratificação pessoal, pela profissão que desenvolvia, bem como as suas competências para o desempenho da mesma, assumindo-se como como um dos melhores coveiros da região e arredores, exercendo por vezes tarefas que os colegas recusavam, como exumações, por serem do seu gosto pessoal. Tal gosto, associado ao fascínio pela morte e pelo corpo humano, terá sido adquirido aos 12 anos de idade, ainda que não tenha revelado o que terá dado origem a tal fascínio.

48) No plano da saúde, AA, entre os 40 e 41 anos de idade, apresentou sintomatologia depressiva, tendo recorrido a consultas de Psiquiatria que terão confirmado um diagnóstico de depressão. Nesse período descreve duas tentativas de suicídio. Mais tarde, uma terceira tentativa de suicídio é situada num período em que alega que ouvia vozes e visualizava pessoas que tinha enterrado, tendo sido internado em ..., com posterior baixa médica, durante quatro meses.

49) Reiniciada a função de ... na ..., AA sofreu nova recaída em termos de saúde mental, por volta dos 43 anos de idade, descrevendo um novo período de alucinações, de ouvir vozes, situação que tentaria afugentar com a ingestão abusiva de álcool, tendo recorrido a nova baixa médica emitida por médico .... A ingestão abusiva de bebidas alcoólicas, é assumida por AA como sendo ocasional, negando veemente o consumo de estupefacientes.

50) Em termos de características pessoais, o arguido, apesar de se apresentar como um indivíduo educado e de trato fácil, o seu discurso ao longo das entrevistas parece indiciar uma forma de estar marcada por alguma rigidez de pensamento, se não mesmo intolerância quanto a eventuais desvios das suas regras e expectativas face aos outros, denotando uma necessidade de controlo das situações. Apresenta uma boa memória quanto a factos remotos da sua vida.

51) AA parece revelar especial agrado pessoal quando os outros pensam de si de forma positiva, reconhecendo-lhe valor, pelo trabalho voluntário que desenvolvia. Da mesma forma, sentimentos de rejeição para com a sua pessoa poderão despoletar o efeito inverso, podendo reagir de forma desajustada, quer pela irritabilidade, quer pela impulsividade, que por vezes poderão não ser contidas.

52) AA encontra-se preso preventivamente no EPL desde .../.../2023. No presente contexto prisional, o arguido tem mantido um comportamento institucional relativamente ajustado, registando uma infração disciplinar em .../.../2023, por questões ligadas a posse de objeto não consentido. Desde então tem mantido um comportamento regular, sem conhecimento de qualquer outra situação anómala. O seu quotidiano será ocupado maioritariamente na cela ou no convívio com outros companheiros de reclusão, auxiliando em algumas atividades da sua ala.

53) O arguido não tem beneficiado de visitas por parte da progenitora, por esta residir a considerável distância do EP, mas mantêm um contacto regular por via telefónica. Para além dos contactos telefónicos assíduos, a progenitora também envia encomendas e valores monetários que vai transferindo para a conta deste.

54) AA vivencia a presente situação de privação de liberdade com sentimentos de aparente angústia, especialmente pelo facto de não lhe ser agora possível apoiar a progenitora, pessoa de idade avançada e com algumas fragilidades físicas. Não foram referidos apoios/visitas dos irmãos, com quem o arguido parece manter uma relação de algum distanciamento, mencionando inclusivamente o facto da irmã ter cortado a comunicação com ele, após conhecimento da sua prisão.

55) A forma de estar de AA parece estar a refletir-se também no presente contexto prisional, onde o próprio refere os seus esforços na imposição de algumas das suas regras a outros reclusos, seja de higiene ou outras, na ala onde se encontra, transparecendo no seu discurso sentimentos de alguma frustração e mesmo de irritabilidade perante o não cumprimento das mesmas pelos companheiros de reclusão.

56) O arguido é tido no seu meio social e familiar como uma pessoa educada, prestável, altruísta e cuidadora.

57) O arguido foi condenado por sentença proferida em .../.../2017, no processo n.º 262/16.1..., do Tribunal Judicial do ...e transitada em .../.../2013, pela prática em .../.../2013 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 65 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias, declaradas extintas por cumprimento, respetivamente, em .../.../2014 e .../.../2014.

58) Foi condenado por sentença proferida em .../.../2013, no processo n.º 271/13.2..., do J2 do Juízo Local Criminal de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... Norte e transitada em .../.../2017, pela prática em .../.../2016 de um crime de ameaça simples, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, substituída pela prestação de 100 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta por cumprimento em .../.../2018.

59) E ainda foi condenado por sentença proferida em .../.../2018, no processo n.º 281/16.8..., do J1 do Juízo Local Criminal de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... Norte e transitada em .../.../2018, pela prática em .../.../2016 de um crime de ofensa à integridade ... qualificada e um crime de injúria agravada, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, substituída a pena substitutiva de multa por 90 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta por cumprimento em .../.../2018, e na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

1.2. Factos Não Provados

Com relevo para a boa decisão da causa, não se fez prova em audiência da seguinte factualidade:

a. a) Que a relação amorosa entre o arguido e EE tivesse iniciado a partir de ... de ... de 2023.

  b) Que o arguido em troca exigisse a EE que cada vez mais se comprometesse com a sua relação amorosa.

  c) Que o descrito em 25) ocorresse entre as 3h e as 4h da madrugada.

  d) Que o arguido AA soubesse que a expressão que EE lhe dirigiu, bem como as pressões financeiras que sobre ele exercia não eram motivo que minimamente justificasse a sua atuação de lhe tirar a vida.

B.4. O Direito

B.4.1. Os recursos interlocutórios

Como já atrás se deixou consignado, o recorrente declarou manter interesse na apreciação dos recursos interlocutórios.

Tais recursos reportam-se aos despachos de 2 e ... de ... de 2024, através dos quais o Juízo Central Criminal de Loures –..., indeferiu requerimentos apresentados pelo recorrente com vista a produção de prova.

Tais despachos foram impugnados junto da 5ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa que, através do acórdão recorrido, não concedeu provimento aos recursos (v.g. ao interlocutório) e manteve os despachos referenciados.

Dispõe a al. b) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal que:

“1. Não é admissível recurso:

(…)

b. De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;”

Ora, como bem refere o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto, relativamente aos despachos referenciados o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não conheceu, a final do objeto do processo pelo que a sua decisão é irrecorrível.

Aliás, nesse sentido tem decidido o STJ, transcrevendo-se, a propósito, o seguinte acórdão:

VII. As decisões interlocutórias caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP).4

Aliás, mesmo que assim não fosse, este Supremo Tribunal de Justiça não poderia apreciar o recurso desses despachos dado que, nos termos do disposto no artigo 434º do Código de Processo Penal e salvo as exceções nele previstas – que, in casu, não se verificam –, apenas tem competência para apreciar matéria de direito.

Pelo que, nesta parte, o recurso tem de ser rejeitado, nos termos do disposto nas normas acima indicadas e no disposto nos artigos 420º, nº 1, al. b) e 414º, nº 1 do Código de Processo Penal.

B.4.2. O erro de julgamento, a insuficiente e contraditória fundamentação da matéria de facto e o erro notório na apreciação da prova;

Conforme se refere no acórdão recorrido “Ora a impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: mediante a invocação de vícios da sentença enunciados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal (dita impugnação de âmbito restrito), ou mediante a invocação de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada pelo Tribunal recorrido (impugnação ampla).”

Ora, como já atrás se deixou referido, o Supremo Tribunal de Justiça só tem competência para apreciar matéria de direito, constituindo única exceção a esta regra as situações em que ocorrem os vícios e nulidades a que se reportam as als. a) e c) do nº2 do artigo 432º do Código de Processo Penal.

Daí que, desde logo, não seja possível apreciar o aludido erro de julgamento.

E o mesmo acontece quanto aos alegados vícios de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova.

Com efeito, dado que está em apreciação um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu um primeiro recurso do tribunal da primeira instância, este Supremo Tribunal não pode conhecer dos vícios e nulidades a que se reportam os nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Com efeito e como decorre claramente do disposto no artigo 434º do Código de Processo Penal tal apenas seria possível

a. Relativamente a um acórdão do Tribunal da Relação proferido em primeira instância e visando exclusivamente matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do mesmo diploma legal;

b. Relativamente a acórdão final proferido pelo tribunal coletivo ou pelo tribunal do júri que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e visando exclusivamente matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Termos em que, também nesta parte, o recurso tem de ser rejeitado nos termos do referido no ponto anterior.

B.4.3. A violação do princípio in dúbio pro reo;

A este propósito, é jurisprudência há muito sedimentada neste Supremo Tribunal de Justiça que:

I - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.5

Ou seja, e citando outro acórdão deste Alto Tribunal:

5 – Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

6 – Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, mas que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.”6

Passando a analisar o caso dos autos verifica-se que, depois de expor a sua versão dos factos, o recorrente refere que: “Bem apreciada toda a matéria de facto, teria o Tribunal a quo que concluir, pelo menos, que na dúvida sobre a verdadeira causa de morte da vítima, o Recorrente devia ser absolvido da prática deste crime.”

Ou seja, o Recorrente não sustenta a alegada violação do princípio com base no que foi consignado pelo tribunal da primeira instância na motivação da decisão da matéria de facto, nem em qualquer parte dessa decisão.

Nem lhe seria possível fazê-lo já que, da leitura da aludida decisão, resulta justamente o contrário do que é alegado pelo recorrente. Ou seja, o tribunal não teve qualquer dúvida sobre os factos que deu como provados, devendo acrescentar-se que, da leitura da extensa motivação da decisão de facto, resulta bem clara a firme e bem sustentada convicção do tribunal da primeira instância relativamente a essa matéria.

Face a todo o acima exposto, nesta parte o recurso improcede.

B.4.4. A subsunção dos factos ao crime de profanação de cadáver, previsto e punível pela alínea a) (e não também pela alínea b) do nº 1 do artigo 254º nº 1 do Código Penal;

O recorrente foi condenado pela prática do crime em epígrafe referido na pena de 2 (dois) anos de prisão.

E esta decisão foi confirmada pelo acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Assim e como bem refere o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto, esta última decisão é irrecorrível.

Com efeito, nos termos da al. e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, não é admissível recurso:

“e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

B.4.5. A subsunção dos factos ao crime de homicídio simples

O recorrente foi condenado, como já atrás se referiu, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nº 2, alíneas b) e j), ambos do Código Penal.

E, no presente recurso, vem defender que devia ter sido antes condenado pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal.

Para fundamentar esse entendimento alega que:

“13ªMas, sem conceder, ainda que assim não fosse impunha-se reconhecer que não se verifica qualquer premeditação, porque só após a morte o recorrente vai adquirir sacos e produtos de limpeza para esconder uma morte que temia atribuíssem a ele, designadamente por terem estado zangados face a uma paixão desenvolvida pela vítima meses antes por uma refugiada ucraniana acolhida pelo recorrente.

14ªPor outro lado nunca houve uma relação comparável às dos cônjuges entre os dois, já que bem avaliados os factos só tiveram esporádicos momentos de intimidade, sem sentimento por parte da vítima que se casou, teve duas filhas e durante os 14 anos do seu casamento, sempre tratou o arguido como mero amigo Após o divórcio apaixonou-se por outra mulher.”

Entretanto e a este propósito, no acórdão referido refere-se, transcrevendo-se o que ficou consignado na decisão da primeira instância, o seguinte:

“Ora, atenta a factualidade provada, tendo em conta que o arguido e EE iniciaram em data não concretamente apurada, uma relação amorosa, passando desde o dia ... de ... de 2023 a partilhar cama e mesa na habitação do arguido, sita na ..., dúvidas não restam quanto ao preenchimento da circunstância qualificativa prevista na alínea b), que encontra um maior grau de censurabilidade no crime cometido contra uma pessoa que assuma tal papel na vida do agente. Dúvida, pois, não existe de que o arguido e a vítima viveram numa situação análoga à dos cônjuges, numa situação de comunhão de vida, ainda que a mesma apenas durasse desde ... de ... de 2023; de que, por virtude dessa relação, se criou uma especial relação pessoal entre os dois e de que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal de uma relação de solidariedade, respeito, proteção e entreajuda criada por uma relação de coabitação. Deve, assim, concluir-se no sentido de que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.

Passando para a análise da qualificativa a que alude a alínea e), (…) tal não é suficiente para se considerar que se encontra preenchida a circunstância qualificativa a que se refere a alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP. (…)

Face ao circunstancialismo que envolveu toda a dinâmica, resulta provado, para o Tribunal Coletivo, a circunstância qualificativa prevista na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, na medida em que cerca das 6h00 da manhã do dia ... de ... de 2023, após EE ter adormecido, o arguido AA foi até à cozinha e bebeu um copo de vinho enquanto refletia no que aconteceu e na sua relação, altura em que decidiu executar a ideia de tirar a vida a EE, a qual já o vinha atormentando desde dia 25, pelo que é manifesto estar verificado o propósito de matar por mais de 24 horas. O arguido agiu com frieza de ânimo, demonstrando frieza e calculismo, uma total insensibilidade e indiferença pela vida de outro ser humano, dado que ficou provado que de seguida dirigiu-se à casa de ferramentas, situada ao lado da residência, de onde retirou uma marreta, voltou ao quarto, colocou-se em pé entre a cama e o colchão junto da cintura de EE e, com toda a força, desferiu-lhe uma pancada com a mesma na cabeça. Na prossecução dos seus intentos, em ato contínuo, colocou-se de joelhos sobre a cama e desferiu mais duas pancadas com a marreta na cabeça de EE, o que provocou de imediato a projeção de sangue para as paredes e móveis ali existentes, bem como a perda abundante de sangue que se infiltrou no colchão onde aquele se encontrava deitado. A persistência na consumação da morte de EE, evidenciada pelo desferimento de três pancadas na cabeça do companheiro com o marreta que foi buscar de propósito à casa das ferramentas, manifestam, na sua globalidade, uma atitude interna, um estado de espírito de franca e evidente insensibilidade e desprezo, indiferença para com o valor jurídico da vida e uma deficiência de carácter, que por isso refrange qualidades desvaliosas ao nível da sua personalidade, e, deste modo, não pode deixar de se considerar que é com frieza de ânimo que o arguido cometeu o crime de homicídio contra EE.

Ficou demonstrado que, em consequência direta e necessária da conduta supra descrita, EE sofreu múltiplas fraturas dos ossos da abóbada, dos ossos da base, dos ossos das cavidades orbitarias, dos ossos dos globos oculares, dos ossos das fossas nasais, dos ossos dos seios maxilares frontais e esfenoidais e hemorragia cerebral. Tais lesões foram causa direta e necessária do seu falecimento imediato. Quanto ao elemento subjetivo, resultou assente que o arguido AA agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a EE, bem sabendo que o mesmo era o seu companheiro com quem mantinha uma relação amorosa e que o atingi-lo na cabeça com a marreta era meio idóneo para o efeito. Igualmente mostra-se provado que tal propósito já havia sido formulado desde o dia 25 e no qual persistiu até ao dia 27, data em que, após refletir no mesmo mais uma vez, o concretizou com total desprezo pela vida daquele, pela qual manifestou, com a sua conduta, uma profunda insensibilidade e inconsideração. Para além disso, ao ter ficado provado que o arguido agiu, nos termos descritos, de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a conduta era proibida e punida por lei, atuou com dolo direto, nos termos do já citado artigo 14.º n.º 1 do CP.

Destarte, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, encontrando-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do ilícito criminal em apreço, conclui-se que o arguido AA cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 b) e j), ambos do CP, pelo qual deve ser condenado.»

Subsequentemente, o acórdão recorrido adere e reforça esta argumentação, mantendo a condenação por homicídio qualificado, nos precisos termos em que foi decidido pela primeira instância.

E também nós concordamos, afigurando-se que a argumentação do recorrente ignora o que foi dado como provado e que, neste momento e nesta instância, já não é possível contestar.

Com efeito:

Dispõe a alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal o seguinte:

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; (sublinhado naturalmente nosso)

Por outro lado, foi dado como assente que:

3) Em data não concretamente apurada, o arguido AA e EE iniciaram uma relação amorosa, passando desde o dia ... de ... de 2023 a partilhar cama e mesa na habitação do arguido, sita na ....

Portanto, para além de se ter dado como provado uma “relação amorosa” (ou seja, uma relação de namoro), também se deu como assente que o arguido e a vítima partilharam “cama e mesa na mesma habitação” (o que traduz uma vivência em condições análogas à dos cônjuges)

Assim, é evidente que os factos provados são subsumíveis ao disposto na norma atrás transcritas.

Por outro lado, a al. j) do nº 2 do artigo atrás referido, estabelece o seguinte:

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

E, a este propósito, ficou provado o seguinte:

12) Depois da referida hora, quando o arguido AA estava deitado na cama e EE no colchão colocado no chão ao lado da cama do lado direito de quem entra no quarto, onde habitualmente dormia, aquele despediu-se deste com o cumprimento habitual de “dá cá mais cinco”, altura em que EE disse “chegue-se para lá que você dá-me nojo”.

13) Em face da resposta daquele o arguido AA sentiu-se humilhado e ficou

revoltado, o que acentuou ainda mais a sua convicção de que EE só mantinha

uma relação consigo para que lhe pagasse as despesas.

14) Cerca das 6h00 da manhã do dia ... de ... de 2023, após EE ter adormecido, o arguido AA foi até à cozinha e bebeu um copo de vinho enquanto refletia no que aconteceu e na sua relação, altura em que decidiu executar a ideia de tirar a vida a EE, a qual já o vinha atormentando desde dia 25.

15) De seguida dirigiu-se à casa de ferramentas, situada ao lado da residência, de onde retirou uma marreta, voltou ao quarto, colocou-se em pé entre a cama e o colchão junto da cintura de EE e, com toda a força, desferiu-lhe uma pancada com a mesma na cabeça.

16) Na prossecução dos seus intentos, em ato contínuo, colocou-se de joelhos sobre a

cama e desferiu mais duas pancadas com a marreta na cabeça de EE, o que provocou de imediato a projeção de sangue para as paredes e móveis ali existentes, bem como a perda abundante de sangue que se infiltrou no colchão onde aquele se encontrava deitado.

17) Como causa direta e necessária da atuação do arguido AA, EE sofreu múltiplas fraturas dos ossos da abóbada, dos ossos da base, dos ossos das cavidades orbitarias, dos ossos dos globos oculares, dos ossos das fossas nasais, dos ossos dos seios maxilares frontais e esfenoidais e hemorragia cerebral.”

Portanto, o facto de se ter provado que ideia de matar a vítima já vinha “atormentando (o arguido) desde o dia 25” consubstancia premeditação, já que o homicídio apenas se consumou “(c)erca das 6h00 da manhã do dia ... de ... de 2023”, ou seja, durante mais de 24 horas.

Tanto bastava para que tivesse como provada a agravante qualificativa acima referida.

Acresce que o Tribunal também considerou que o arguido “agiu com frieza de ânimo, demonstrando frieza e calculismo, uma total insensibilidade e indiferença pela vida de outro ser humano (…)”

Ora, o recorrente não contesta, no seu recurso, o facto de o Tribunal a quo ter considerado que ele atuou nos termos supra referidos, o que sempre conduziria a que se tivesse de dar com provada a circunstância prevista na al. j) do nº 2 do referido artigo.

Aliás, sendo as alíneas do nº 2 do artigo 132º do Código Penal meramente exemplificativas e indiciadoras da ocorrência de “especial censurabilidade ou perversidade” não restam dúvidas, face à matéria dada como provada, que o comportamento do arguido deve ser caracterizado dessa forma.

Face ao exposto, não merece censura o acórdão recorrido quando confirmou a condenação do recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nº 2, alíneas b) e j), ambos do Código Penal.

Termos em que, nesta parte o recurso não merece provimento.

B.4.6. A medida da pena

O recorrente discorda da medida da pena, sem explicitar qual(is) entende ser(em) a(s) adequada(s).

O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto no seu parecer consignou que “(n)ão se percebe explicitamente, embora se possa intuir, se o recorrente considera a pena parcelar aplicada ao homicídio qualificado e/ou a pena do cúmulo excessiva ou excessivas e em que medida

Concordamos com a crítica, mas também com o que é intuído, até porque o recorrente se reporta explicitamente ao crime de homicídio e ao artigo 71º do Código Penal.

Assim sendo, verificamos que, para além de considerações de ordem genérica e de proclamações que não temos de comentar, o recorrente fundamenta a diminuição da pena que lhe foi aplicada numa desajustada avaliação da culpa, definida nos seguintes termos:

“Não é verdade que o ... por ser uma terra pequena caiu em grande alarme social por causa deste e tribunal crime (o alarme é feito pela comunicação social, influenciando público e Tribunal), já que quase toda a gente nem acredita na culpabilidade do arguido que é ali considerado uma pessoas afável, muito amigo de ajudar o próximo, muito amigo de ajudar o próximo, ligado ao voluntariado.”

(…)

“E no que respeita às necessidades especiais, pese a sua eventual personalidade narciso que esconde o que realmente sente, o arguido sofre a dor da perda da vítima que muito amou e ajudou, nada fazendo prever que pudesse ter outra situação como esta.”

Entretanto, o acórdão da primeira instância justificou a pena aplicada relativamente ao crime de homicídio qualificado, nos seguintes termos:

Nestes termos, considerando os critérios fixados, deve atender-se no que tange ao crime de homicídio qualificado:

À intensidade da culpa demonstrada pelo arguido, que surge moldada sobre a forma de dolo direto e que, por isso, corresponde com o nível mais elevado de intencionalidade criminosa; com efeito o arguido agiu com dolo intenso, persistindo no seu propósito de matar EE.

À intensidade da ilicitude, que comporta um grau elevadíssimo, atenta a natureza dos atos praticados, o modo como foram desferidas três pancadas com uma marreta e a zona atingida pelo mesmo, que culminou na morte de EE, seu companheiro, enquanto o mesmo dormia, manifestando um total desprezo absoluto pela vida humana, motivo que leva à existência de duas circunstâncias agravantes, no que ao crime de homicídio qualificado respeita.

No que respeita às exigências de prevenção geral, importa salientar que as mesmas se

afiguram especialmente acentuadas relativamente ao crime em apreço porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro a vida é, em geral, fortemente repudiada pela

comunidade. E, por isso, a estabilização contra fáctica das expectativas comunitárias na

afirmação do direito reclama uma reação forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do Direito.

As exigências de prevenção especial são intensas, pois o arguido demonstrou ter uma personalidade que não respeita os valores humanos, age emotivamente e com frieza, com

pouca capacidade de controlo O arguido tirou a vida de forma cobarde a alguém que era o seu companheiro durante o sono deste, munindo-se de um sentimento de vingança que o atormentava, nada justificando tal conduta.

A desfavor do arguido há também a considerar a existência de antecedentes criminais,

ainda que por crimes de diversa natureza.

Acresce ainda a postura assumida em audiência de julgamento, de total vitimização e de

tentativa de manipulação, desculpabilizando o que jamais poderá alguma vez ser desculpável quando em momento anterior foi capaz de assumir os seus atos, por mais hediondos que fossem.

Tudo ponderado, mostra-se justa e adequada à prossecução dos fins subjacentes à aplicação das penas, a condenação do arguido na pena parcelar de 23 (vinte e três) anos de prisão.”

Passando a analisar os argumentos apresentados pelo recorrente, desde logo há a sublinhar que não podemos ter em conta factos por aquele alegados, mas que não constam da matéria dada como provada.

Por outro lado, é notório e reconhecido por toda a doutrina e jurisprudência que as necessidades de prevenção geral, relativamente ao crime de homicídio qualificado, se afiguram particularmente elevadas, já que o bem jurídico que está em causa é o mais valioso de todos e, por isso mesmo, o ato de matar alguém, sobretudo nos termos em que narram os autos é fortissimamente (e bem ) repudiado pela sociedade, ocorra ele onde ocorrer, nesta comunidade global e onde a informação circula de forma quase instantânea e por todos os lugares.

Quanto às necessidades de prevenção especial, podendo acreditar-se no alegado sofrimento do recorrente (provocado por ele próprio…), o seu comportamento cobarde, relativamente a uma pessoa que continua a dizer que ama e que se desenrolou de forma fria, calculista, vingativa e com total insensibilidade e indiferença pela vida de outro ser humano, justifica que se considerem elevadas tais necessidades.

Assim adere-se, embora apenas parcialmente, à fundamentação do acórdão condenatório e recorrido.

Com efeito, entende-se que é de ter também em consideração que a vítima morreu instantaneamente e quando estava a dormir (ou seja sem grande sofrimento)7 que o arguido revela problemas ao nível da saúde mental8 , que é uma pessoa educada, prestável, cuidadora e altruísta (ajuda imigrantes, em regime de voluntariado desde 1998)9 e que os seus antecedentes são pouco relevantes e que nunca justificaram a aplicação de uma pena de prisão.

Por outro lado, e não menos importante, há que ter em devida consideração o que tem sido decidido pela nossa jurisprudência em casos similares.

A este último propósito veja-se, a mero título de exemplo, o ac. deste STJ de 30 de setembro de 202010, no qual também estava em causa a prática dos crimes de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131, n.º 1 e 132, nºs. 1 e 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal (ou seja, com menos uma circunstância agravante modificativa que o caso dos autos) e de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art.º 254º n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal e no qual se confirmou, relativamente ao crime de homicídio, uma pena de 23 anos de prisão, e relativamente ao crime de profanação de cadáver a pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, ficando o arguido condenado na pena de 24 anos de prisão

Assim, face a todo o exposto, entende-se por adequado reduzir a pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nº 2, alíneas b), e j), ambos do Código Penal, com pena de prisão de 12 a 25 anos, e condenar o arguido e ora recorrente na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

B.4.7. A pena única

Alterada a sanção aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado há que proceder a novo cúmulo jurídico, da pena agora aplicada com aquela a que o arguido foi condenado pela prática do crime de profanação de cadáver previsto e punível pelo art. 254º nº 1, alíneas a) e b) do Cód. Penal (2 anos de prisão).

Face ao disposto no nº 2 do artigo 77º do Código Penal a moldura abstrata dessa pena única tem como limite mínimo 22 anos de prisão e como limite máximo 24 anos de prisão.

Apreciando, em termos globais, os factos praticados pelo recorrente, contata-se que os mesmos revelam acentuada ilicitude, foram praticados com dolo direto, mostram-se agravados por mais do que uma circunstância agravante modificativa e que são elevadas as necessidades de prevenção; e, por outro lado, a personalidade do arguido, quer a desvelada pelos comportamentos pelo mesmo praticados – punidos com penas muito próximo/ no seu limite máximo - quer a apurada relativamente as suas condições pessoais, sociais, profissionais revelada pelos factos dados como provados com base nos relatórios juntos autos, entende-se como justa a pena única de 23 anos de prisão.

D – Decisão

Por todo o exposto, decide-se:

a. Rejeitar os recursos interlocutórios interpostos por AA, dado que os mesmos não são admissíveis, nos termos do disposto nos artigos 400º, n1, al. c), 432º nº 1 al. b) (a contrario sensu), 420º, nº 1, al. b) e 414º, nº 1, todos do Código de Processo Penal;

b. Rejeitar os recursos relativamente aos alegados erro de julgamento, insuficiente e contraditória fundamentação da matéria de facto e ao alegado erro notório na apreciação da prova, dado os mesmos não serem admissíveis, nos termos do disposto nos artigos 434º, 432º nº 1 al b) (a contrario sensu), 420º, nº 1, al. b) e 414º, nº 1, todos do Código de Processo Penal;

c. Rejeitar o recurso relativamente à subsunção dos factos ao crime de profanação de cadáver, previsto e punível pelas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 254º nº 1 do Código Penal, dado o mesmo não ser admissível, nos termos do disposto nos artigos 400º, nº 1, al. e), 432º nº 1 al b) (a contrario sensu), 420º, nº 1, al. b) e 414º, nº 1, todos do Código de Processo Penal;

d. Negar provimento ao recurso no que concerne à alegada violação do princípio in dúbio pro reo;

e. Negar provimento ao recurso no que concerne ao crime de homicídio qualificado, confirmando-se a decisão recorrida;

f. Conceder parcial provimento ao recurso e reduzir a pena aplicada ao crime de homicídio qualificado para 22 (vinte e dois) anos de prisão;

g. Reformular, em consequência, o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao recorrente pelos crimes suprarreferidos e condená-lo na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Os Juízes Conselheiros,

Celso Manata (Relator)

António Latas (1º Adjunto)

Jorge Gonçalves (2º Adjunto)

________________

1. Proc. 301/19.4T8LSB.L1.S1 in www.dgsi.pt↩︎

2. Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1 in www.dgsi.pt↩︎

3. Proc 38/19.4PESTR.S1 in www.dgsi.pt↩︎

4. Ac. STJ de 30 de setembro de 2020 - Proc. 195/18.7GDMTJ.L1 – disponível em www.dgsi.pt↩︎

5. Ac. de 14 de outubro de 2009 - Proc. nº 101/08.7PAABT.E1.S1- disponível em www.dgsi.pt↩︎

6. Ac. de 5 de julho de 2007 – Proc. 07P2279 – disponível em www.dgsi.pt↩︎

7. Facto 8 da matéria dada como assente.↩︎

8. Factos 48 e 49 da matéria dada como assente.↩︎

9. Factos 36 e 56 da matéria dada como assente.↩︎

10. Ac. STJ de 30 de setembro de 2020 - Proc. 195/18.7GDMTJ.L1 – disponível em www.dgsi.pt↩︎