FACTOS INSTRUMENTAIS
SINISTRO
CONTRATO DE SEGURO
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

I. Tendo a Ré, em sede de contestação, impugnado – por desconhecimento – o sinistro e a forma como o mesmo havia ocorrido, cabia ao Autor a demonstração dos factos constitutivos do seu direito, isto é, de que o “sinistro” em causa estava abrangido por um dos contratos de seguro que o mesmo invocou como causa de pedir relativamente à pretensão formulada nos autos.
II. Os tribunais de instância podem e, aliás, devem considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como os factos complementares ou concretizadores que provenham dessa actividade e integrem a relação jurídica material devidamente individualizada pela causa de pedir, conquanto seja observado o contraditório (cfr. alíneas a) e b), do nº 2, do art.º 5º, do CPC).
III. Na medida em que o concreto facto 23 é um facto concretizador não se suscita a questão da violação do principio da concentração da defesa e da preclusão, na medida em que é o próprio art.º 5.º, n.º 2, que prevê a possibilidade de lançar mão de factos não articulados, sendo que a única limitação que a lei coloca à consideração destes factos pelo julgador é a possibilidade de contraditório das partes quanto ao mesmo (cf. art.º 5.º, n.º 2, al. b), in fine).
IV. Sendo tarefa do Tribunal aferir do evento e sua cobertura pelo contrato de seguro temos como certo que podia e devia o Tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes de apreciação da matéria de facto, fazer constar da factualidade o concreto facto 23, aqui em dissenso, não tendo – a fazê-lo – excedido pronúncia.
V. A dimensão do princípio do contraditório envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
VI. Não obstante, a latitude do princípio do contraditório, terá sempre de observar limites de razoabilidade pelo que, não é o Tribunal obrigado a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico, discutindo com as partes o que quer que seja.
VII. Por isso, não se viola o n.º 3 do art.º 3.º do CPC quando se decide uma acção de responsabilidade contratual com base na não verificação dos pressupostos que lhe estão subjacentes, ainda que os factos fundamentadores tenham sido adquiridos em sede de julgamento, na medida em que a audiência decorreu com pleno cumprimento do contraditório, no que se refere a instâncias, contra-instâncias, alegações e contra-alegações.

(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
a intentou acção de processo comum contra c limited se formulando o seguinte pedido:
a) se condene a Ré no pagamento ao Autor do montante de € 7.447,03, ao qual deverão acrescer juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, contados desde 17-02-2014 sobre o montante de € 1 305,52 e desde 28-02-2019 sobre o valor de € 6 141,51, até efectivo e integral pagamento.
Para fundamentar o pedido alega o Autor sumariamente:
- que nasceu a 05-05-1962, exercendo profissionalmente a actividade de agricultor;
- pelo que, com o objectivo de cautelar o equilíbrio económico do seu agregado familiar, decidiu aderir a dois contractos de seguro de saúde comercializados pela Ré, denominados “plano de Incapacidade por doença” e “Hospitalização por doença”, dando origem às apólices ***33 e ***44, através das quais a Ré ficou obrigada a garantir o pagamento dos montantes acordados, em caso de incapacidade temporária ou absoluta por doença coberta de pessoa da pessoa segura não decorrente de danos corporais por acidente ou enfermidades durante o período de vigência da apólice, bem como ao pagamento dos montantes acordados em caso de hospitalização por doença coberta da pessoa segura durante o período de vigência da apólice;
- por seu turno, o Autor obrigou-se ao pagamento dos prémios comerciais dos referidos contractos de seguro, cujo valor era estipulado de acordo com as opções escolhidas em função do previsto nas listas das Garantias;
- em caso de incapacidade temporária absoluta, o subsídio deveria ser pago de forma contínua pelo período máximo de 6 meses, se estivesse em causa incapacidade temporária parcial, o pagamento deveria ser efectuado pelo período de 1 mês, sendo o montante diário calculado com a divisão do valor mensal contrato por 30 dias;
- o Autor, no contrato de seguro designado por “Incapacidade por Doença” optou pela Unidade 6 Diamante, ao qual correspondia a garantia de um subsídio no valor de € 600,00 mensais em caso de incapacidade temporária absoluta e de € 300,00 mensais em caso de incapacidade temporária parcial, os quais, em 2013, por força da actualização anual e automática, perfaziam o valor de € 661,50 e 330,75, respectivamente, e em 2018, por força da mesma actualização, perfaziam 765,77 e € 382,88, respectivamente;
- relativamente ao contrato de seguro de hospitalização por doença, cabia à Ré a obrigação de pagar um montante diário ao Autor pelo período de tempo que decorresse a hospitalização, variando o valor do subsídio em função da Lista de Garantias escolhida na proposta;
- o Autor escolheu a opção platina, à qual correspondia a garantia de um subsídio no valor de € 100,00, por noite em caso de hospitalização, aos quais acresceriam € 100,00 em caso de doença crítica;
- os referidos contractos renovaram-se automaticamente, estando em vigor quer à data de 24-07-2013, quer à data de 02-09-2018;
- em 24-07-2013 o Autor deu entrada no serviço de urgência do Hospital com edema no pénis associado a dor, tendo tido alta e volta a essa unidade a 27-07-2013, ficando internado durante 2 dias, tendo-lhe sido concedida uma incapacidade temporária absoluta de 24-07-2013 a 21-09-2013;
- no início de Setembro de 2018 o Autor começou a sentir desconforto e dores na coluna cervical, tendo ido a uma consulta médica em 21-11-2018 onde lhe foram diagnosticadas cervicalgias e parestesias dos membros superiores;
- tendo realizado uma ressonância magnética, verificou-se a existência de pequenas protusões discais posteriores de C4 a C7, bem como alterações degenerativas interfacetarias em C2 e C3 à esquerda e C7-D1;
- por tal facto esteve o Autor totalmente incapacitado de desempenhar tarefas profissionais pelo período de 270 dias (16-10-2018 a 12-07-2019);
- e, como tal, teve necessidade de accionar o seguro do Plano de Incapacidade por Doença contratado com a Ré;
- o primeiro sinistro foi participado em 17-01-2014, tendo-lhe sido atribuído o número 201306154, processo ao qual o Autor remeteu a documentação solicitada;
- em 18-10-2016 a Ré decidiu assumir a regularização do sinistro disponibilizando o pagamento de uma indemnização no valor de € 51,33, correspondente a 7 dias de incapacidade temporária absoluta;
- apesar do desagrado manifestado pelo Autor a Ré permaneceu irredutível na sua posição;
- o segundo sinistro foi participado em 29-01-2019, tendo lhe sido atribuído o número Q34158 e tendo a Ré exigido do Autor a apresentação de documentação referente a registos clínicos e guia de tratamentos e resposta terapêutica;
- após diversa troca de comunicações e contactos a Ré, em 09-04-2019, decidiu assumir a regularização do sinistro disponibilizando uma indemnização no valor de € 675,00, correspondentes a 27 dias de incapacidade e referindo aguardar documentação com vista à regularização de restante período de ITA;
- Não obstante a Ré continuou a enviar cartas padronizadas, invocando a insuficiência da documentação e solicitando nova documentação, tentando vencer o Autor pelo cansaço e protelando ao máximo a regularização do sinistro, numa actuação contrária aos princípios da boa fé e da confiança contratual;
- incumprindo sucessiva e reiteradamente o contrato estabelecido como Autor;
- Deveria a Ré, relativamente ao primeiro sinistro ter indemnizado o Autor no valor de € 1.356,85, correspondentes a 57 dias de incapacidade temporária absoluta (à razão diária de € 22,05) e a € 100,00 respeitante a uma noite de internamento, sendo que apenas lhe pagou € 51,33;
- Relativamente ao segundo sinistro deveria a Ré ter indemnizado o Autor à razão de € 25,53 durante 267 dias de incapacidade, num total de € 6 816,52, dos quais apenas pagou € 675,00.
- São devidas ao Autor estas quantias, bem como juros de mora desde a data de vencimento até efectivo e integral pagamento.
Terminou pedindo a procedência da acção e consequente condenação da Ré no pedido.
Devidamente citada, a Ré veio contestar, alegando – com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos – o que de forma sucinta se refere infra:
- que não obstante a celebração do contrato de seguro do Plano de Incapacidade por Doença, o Autor veio, em 11-06-2013, a reduzir as coberturas e prémio da apólice desse contrato para a Unidade 2;
-Na unidade 2 o benefício, em caso de situação de incapacidade temporária absoluta, é de € 200/mês e, em caso de incapacidade temporária parcial, de € 100,00/mês;
- Relativamente ao primeiro sinistro, invoca a Ré a prescrição do eventual direito à indemnização, tendo em atenção a data de instauração da acção;
- para além disso, desconhece qualquer situação de internamento por nunca lhe ter sido remetido qualquer documento de suporte para essa situação;
- pelo que, na falta dos elementos e esclarecimentos solicitados, pagou ao Autor 7 dias de ITA, no valor de € 51,33, correspondentes à unidade vigente – Unidade 2 do Plano de Incapacidade por Doença;
- Relativamente ao segundo sinistro a Ré liquidou 27 dias de incapacidade, tendo em atenção os elementos que lhe foram disponibilizados;
- nunca lhe tendo sido disponibilizados os elementos em falta: relatório da Alta e declaração da Clinica que atestasse a realização dos tratamentos, sendo que até ao presente não dispõe a Ré do Relatório do médico fisiatra, nem do relatório apresentado na comissão de verificação de incapacidade, nem registos clínicos, nem extracto de remunerações;
- por tal razão, por desconhecer a factualidade dos eventos, seus diagnósticos e consequências, sem que tal lhe seja imputável, impugnou os factos atinentes aos mesmos.
- mais invocou a prescrição de um eventual direito do Autor, no que tange ao evento ocorrido em 2013.
Conclui assim a Ré pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.
Por despacho de 03-02-2023 dispensou-se a realização de audiência prévia e proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio, elencaram-se os temas de prova e proferiu-se despacho sobre a admissibilidade dos requerimentos probatórios.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, no início da qual foi pelo Autor exercido o contraditório relativamente à excepção de prescrição, e em 29-07-2024 foi proferida sentença na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenou-se a Ré a pagar ao Autor a indemnização no valor de 2.005,65 € (dois mil e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos), sendo devidos juros de mora civis à taxa legal sobre este valor desde 18/05/2019;
b) Absolveu-se a Ré do demais peticionado.

Inconformado com a sentença que julgou a acção parcialmente improcedente, veio o Autor apelar, tendo apresentado alegações, em que formulou as seguintes conclusões:
(I) A discordância do Recorrente face à decisão recorrida funda-se no facto de o tribunal a quo ter considerado que o sinistro ocorrido em 24.7.2013 não tinha enquadramento contratual nas apólices melhor identificadas nos pontos 5. a 21. da matéria de facto considerada provada.
(II) Aliás, quanto a este segmento da decisão recorrida entende o Autor, salvo o devido respeito por opinião contrária, que terá existido um excesso de pronúncia do tribunal recorrido, existindo, igualmente, uma violação do princípio da concentração da defesa e preclusão, além de se tratar, inequivocamente, de uma decisão surpresa, em que houve violação do contraditório, ferindo, desse modo, de nulidade a decisão recorrida.
(III) Compulsada a contestação apresentada pela Ré seguradora, constata-se que esta, em momento algum, veio invocar a falta de enquadramento contratual do sinistro ocorrido em 24.7.2013, não o tendo feito nem por exceção, nem por impugnação;
(IV) Muito pelo contrário, a Ré não só não o excecionou, como veio expressamente a aceitar que o sinistro participado e ocorrido em 2013, tinha o seu risco coberto pela apólice em causa, tendo efetuado o pagamento do capital seguro que esta entendeu ser devido;
(V) O tribunal recorrido veio a considerar provada a factualidade contida no ponto 23, do elenco de factos provados, de forma oficiosa, por entender que a mesma constitui concretização do alegado pela Ré no artigo 39.º da sua contestação e por ter resultado da instrução da causa, nos termos do disposto no art.º 5.º, n.º 2, alínea b) do CPC;
(VI) Ora, compulsado o art.º 39.º da contestação infere-se que a Ré se limita a impugnar por desconhecimento se o Autor no período em causa apresentava edema no pénis associado a dor, se procurou assistência médica, quando, onde e por quem foi atendido, exames e diagnóstico realizados e respetivas implicações na sua atividade profissional como relatado nos artigos 47.º a 50.º, da petição inicial;
(VII) A Ré relativamente à causa desse edema nada alegou, referiu ou sequer teorizou;
(VIII) Não se pode compreender que o Tribunal recorrido tenha substituído a Ré para, a partir de “nada”, passar a concretizar um facto que se veio a revelar ser essencial ou nuclear para a defesa;
(IX) O conhecimento dos factos essenciais ou nucleares da causa de pedir ou da exceção invocada pela Ré, quando estes não sejam alegados pelas partes, está liminarmente afastado do conhecimento oficioso do tribunal, a não ser que esteja subjacente um interesse público que urge acautelar, o que não sucede no caso sub judice;
(X) O tribunal recorrido não pode conhecer uma questão que não foi suscitada pelas partes e que, concomitantemente, também não era do conhecimento oficioso;
(XI) A faculdade prevista no art.º 5.º, n.º 2, alínea b) do CPC, exige a verificação de uma dupla condição, (i) que esses factos sejam complementares ou concretizadores da causa de pedir ou da exceção invocada pela parte a quem aproveita e (ii) que as partes tenham tido a possibilidade de, sobre os mesmos, se pronunciarem, sendo certo que nenhuma dessas condições se verificam no caso em apreço;
(XII) Nessa conformidade, o tribunal recorrido veio a conhecer de questões que não estava autorizado a conhecer, quer por não terem sido suscitadas pelas partes, quer por não serem do tipo de questões de que o tribunal tem o dever de conhecer independentemente de terem sido suscitadas (de conhecimento oficioso), ferindo de nulidade a decisão proferida, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC;
(XIII) Deverá ser expurgada do elenco de factos provados a matéria de facto constante do ponto 23.;
(XIV) O tribunal recorrido veio a proferir uma decisão surpresa, baseada em fundamento não configurado pelas partes e numa questão suscitada oficiosamente pelo tribunal, pelo que as partes não tinham obrigação de a prever, constituindo, por isso, uma violação dos princípios do contraditório e da proibição de decisão surpresa, constituindo uma nulidade nos termos do previsto no art.º 195.º do CPC;
(XV) Termos em que deve a decisão proferida ser julgada nula, com as legais consequências;
Sem conceder,
(XVI) O direito invocado pelo Autor relativamente ao sinistro ocorrido em 24.7.2013 não se encontra prescrito;
(XVII) Ainda que se aplique ao caso sub judicio o prazo prescricional estabelecido no art.º 121.º do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16.4, o certo é que o pagamento da quantia constante dos pontos 32 a 35 da matéria de facto provada, consubstancia o reconhecimento da Ré de que o sinistro reclamado era suficiente para acionar a convocação das garantias e coberturas dos riscos contratados;
(XVIII) Esse reconhecimento efetuado diretamente pela Ré ao Autor tem idoneidade suficiente para interromper o decurso do prazo prescricional, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 325.ºdo CC, inutilizando o tempo decorrido anteriormente e começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo;
(XIX) Entretanto, por força da pandemia provocado pela COVID 19, foi determinada a suspensão de vários prazos, incluindo de prescrição, designadamente nos períodos compreendidos entre 9.3.2020 e 3.6.2020 e entre 22.1.2021 e 6.4.2021;
(XX) Por força dessas suas situações, o direito decorrente do primeiro sinistro apenas prescreveria a 6.4.2022, motivo pelo qual, à data de entrada da petição inicial em juízo (18.3.2022), ainda não tinha decorrido o prazo prescricional previsto no art.º 121.º, do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16.4, já que no dia 23.3.2022 considerou-se interrompido esse prazo, por força do previsto no art.º 323.º, n.º 2 do CC;
(XXI) Logra aplicação no caso em apreço o prazo prescricional previsto no artigo 309.º do CC;
(XXII) A decisão ora posta em crise ofende o preceituado nos artigos 309.º, 323.º e 325.º do Código Civil e artigos 5.º, n.º 2, alínea b), 195.º, 573.º, 574.º e 615.º, n.º 1, alínea d), todos do Código de Processo Civil.
A Ré apresentou contra-alegações, nas alega, em suma:
- ao Tribunal não estava vedada a possibilidade de conhecer da verificação de todos os pressupostos necessários para a constituição da obrigação de indemnizar, na medida em que o contrato de seguro e o seu objecto são a causa de pedir do pedido formulado nos presente autos: conhecer da cobertura ou não do sinistro pelo contrato de seguro, mais não é do que apreciar e conhecer da causa de pedir invocada pelo Autor;
- na tarefa de subsunção dos factos ao contrato de seguro, não está o tribunal sujeito às alegações das partes;
- não tem sentido convocar o princípio da concentração da defesa e da preclusão, na medida em que aquilo que se fez foi analisar se os factos alegados pelo Autor estão ou não verificados e integram ou não o objecto do contrato, cujo incumprimento o Autor defende;
- a Ré impugnou o sinistro, não lhe cabendo impugnar em pormenor até porque nada sabia do mesmo, nem tinha obrigação de conhecer;
- o Autor/Apelante não actuou de boa fé, na medida em que dissimulou e omitiu factos relevantes para a decisão da causa, pois nunca disse que o edema e dor no pénis, que identificou como doença, tinha tido origem num trauma resultante do embate numa tábua;
- relativamente ao decurso do prazo prescricional refere a Ré/apelada que o pagamento por si efectuado em 18-10-2016 não corresponde a qualquer declaração ou confissão expressa do direito de crédito do apelante e se algum reconhecimento ele comporta é o de um direito de crédito de €51,33 e nada mais;
Conclui assim a Ré pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.

Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim apreciar no caso concreto:
- da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, ao incluir nos factos provados o ponto n.º 23;
- da prolação de decisão surpresa em violação do princípio do contraditório;
- da prescrição do direito do Autor.

*
II. Fundamentação:
Na primeira instância foram considerados os seguintes
Factos provados
1. Na sequência de um “Acordo de Transferência de Ativos”, datado de 13/03/2012 e subsequente decisão tomada pelo Tribunal da República da Irlanda, com data de 23/03/2012, foi efetuada a incorporação por trespasse da “I Limited” na Ace “E Limited” (ACE), o que teve por consequência que os ativos da sucursal da “I Limited em Portugal” se tivessem integrado na sucursal portuguesa da ACE.
2. Pela apresentação n.º 121, de 02/05/2017, foi alterada a representação de “Ace E Limited – sucursal em Portugal”, para “C Limited – sucursal em Portugal”.
3. Pela apresentação n.º 115, de 20/09/2018, foi alterada a representação de “C Limited – sucursal em Portugal” para “C E SE – sucursal em Portugal”.
4. O Autor A, nasceu em 05/05/1962 e é agricultor, desde data concretamente não apurada.
5. Em 11/06/2011, o Autor subscreveu dois seguros junto da sociedade “I Limited – Sucursal em Portugal”, um denominado “Plano de Incapacidade por Doença”, e outro “Plano de hospitalização por doença”.
6. As subscrições referidas em 5. foram mediadas por T, então mediadora da Ré.
7. As subscrições referidas em 5. deram origem às emissões das apólices n.ºs ***33 e ***44, respetivamente.
8. O Autor figurava em ambas as apólices referidas como tomador e como pessoa segura.
9. O Autor, enquanto tomador dos sobreditos seguros estava obrigado a efetuar o pagamento dos prémios comerciais, cujo valor era estipulado de acordo com a opção escolhida em função do previsto na Lista das Garantias.
10. Através do “Plano de Incapacidade por Doença” referido em 5., a Ré “garante o pagamento dos montantes acordados, em caso de INCAPACIDADE TEMPORÁRIA ABSOLUTA OU PARCIAL POR DOENÇA COBERTA da pessoa segura, contraída, iniciada ou originada pelo menos 30 dias após a data da emissão deste contrato, e que não sejam, de forma alguma, derivadas de acidentes ou condições preexistentes, nos termos, condições e limites adiante estabelecidos”.
11. As coberturas e garantias da apólice referida em 10. subdivide-se em duas secções: “(…) SECÇÃO A - INCAPACIDADE TEMPORÁRIA ABSOLUTA (ITA) - DOENÇA COBERTA
Se, em resultado de uma doença coberta, a pessoa segura ficar totalmente incapacitada e necessitar de receber regularmente tratamento por um Médico qualificado e registado, a Companhia pagará, durante o período contínuo em que a pessoa segura se encontrar totalmente incapacitada, a partir do QUARTO DIA de incapacidade e até um máximo de SEIS MESES, o subsidio mensal estipulado na seguinte lista de garantias, conforme a opção escolhida expressamente na Proposta. O valor do subsídio diário resultará da divisão do valor mensal por 30.
Lista de Garantias
Plano Unidade 1 Unidade 2 Unidade 3 Unidade 4 Unidade 5 Unidade 6
Subsídio Mensal € 100 € 200 € 300 € 400 € 500 € 600
ALARGAMENTO DO PERÍODO DE GARANTIA: O período máximo de garantia em caso de incapacidade temporária absoluta será aumentado em UM MÊS por cada período de TRÊS MESES em que a Apólice se mantiver em vigor até à data em que a Pessoa Segura apresentar os primeiros sintomas da doença, no limite máximo de DOZE MESES.
INCAPACIDADE RECORRENTE: Os períodos intercalados de Incapacidade, que ocorram durante a vigência da presente Apólice e sejam relacionados com a mesma doença coberta, serão tratados como um único período de Incapacidade, excepto se entre dois períodos de Incapacidade decorrer um intervalo mínimo de doze meses seguidos, durante o qual a Pessoa Segura não apresenta qualquer sintoma da doença coberta.
SECÇÃO B - INCAPACIDADE TEMPORÁRIA PARCIAL (ITP) - DOENÇA COBERTA
Se, em resultado de uma doença coberta, a Pessoa Segura ficar parcialmente incapacitada e necessitar de receber regularmente tratamento por um Médico qualificado e registado, a Companhia pagará, desde que não haja lugar ao pagamento do benefício estipulado na Secção A, durante o período contínuo em que a Pessoa Segura se encontrar parcialmente incapacitada, a partir do QUARTO DIA de incapacidade e até ao máximo de UM MÊS, o subsidio mensal estipulado na seguinte lista de garantias, conforme a opção escolhida expressamente na Proposta. O valor do subsídio diário resultará da divisão do valor mensal por 30.
Lista de Garantias
Plano Unidade 1 Unidade 2 Unidade 3 Unidade 4 Unidade 5 Unidade 6
Subsídio Mensal € 50 € 100 € 150 € 200 € 250 € 300
Cobertura para o Quarto Dia
Se a pessoa Segura tiver direito ao benefício sucessivo das garantias referidas nas Secções A e B, a exclusão de garantia durante os 3 primeiros dias da Doença Coberta aplica-se uma só vez.”
12. Quanto à apólice referida em 10., e a propósito do valor mensal do subsídio, o aqui Autor, optou pela Unidade 6 - Diamante.
13. Quanto à apólice referida em 10., o Autor optou por efetuar o pagamento do respetivo prémio anualmente, através do sistema de débito direto.
14. Da apólice referida em 10., consta ainda uma cláusula de proteção contra a inflação, nos seguintes termos: “(…) O prémio comercial e as garantias crescerão, anual e automaticamente, à taxa de 5%, na data da renovação da apólice, durante um período de 5 anos. Em caso de sinistro, o montante do valor convencionado a pagar corresponderá ao valor garantido à data da ocorrência dos primeiros sintomas relacionados com o sinistro, ou seja, com a doença causadora da incapacidade. (…)”.
15. Da apólice referida em 10., constam ainda as seguintes cláusulas [1]:
“(…) DEFINIÇÕES
DOENÇA COBERTA - Significa uma doença ou enfermidade sofrida pela Pessoa Segura, mas que não decorra de danos corporais causados por acidente ou qualquer Condição Preexistente à emissão da Apólice, e que não tenha sido expressamente excluída.
(…)
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA ABSOLUTA (ITA) - Impossibilidade física absoluta, em consequência de doença coberta e clinicamente comprovada, de a Pessoa Segura desempenhar todas e quaisquer tarefas inerentes à sua profissão ou, no caso de não exercer uma profissão remunerada, de desempenhar as actividades usuais da sua vida doméstica, social elou escolar. Caso a Pessoa Segura tenha mais do que uma actividade remunerada, a avaliação da incapacidade será feita com base na actividade principal.
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA PARCIAL (ITP) - Impossibilidade física parcial, em consequência de doença coberta e clinicamente comprovada, de a Pessoa Segura desempenhar uma ou mais tarefas inerentes à sua profissão remunerada ou, no caso de não exercer uma profissão remunerada, de desempenhar parte das actividades usuais da sua vida doméstica, social elou escolar. Caso a Pessoa Segura tenha mais do que uma actividade remunerada, a avaliação da incapacidade será feita com base na actividade principal.
(…)
EXCLUSÕES
1. São excluídos os sinistros resultantes ou consequência de danos ou leões corporais causados por acidente, gravidez, parto, infeção com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou qualquer estado resultante do síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) e distúrbios mentais emocionais ou psíquicos.
(…)
OUTRAS CONDIÇÕES (…)
(7) Procedimento em caso de sinistro: (…)
7.2 Aos beneficiários cabe efetuar a prova da sua qualidade, enviando à Companhia, no mais curto prazo, a documentação comprovativa da titularidade do direito ao valor convencionado e, sem prejuízo do demais estabelecido nestas Condições ou na Lei.
O participante deverá remeter à Companhia, juntamente com o impresso de participação:
uma fotocópia do Bilhete de Identidade e do cartão de contribuinte da Pessoa Segura, o relatório médico atestando a extensão e a causa da doença, o respetivo tratamento e o período previsível da incapacidade parcial ou absoluta, e, para as pessoas que exercem uma profissão, o Certificado de Incapacidade Temporária por Estado de Doença emitido pelos serviços de saúde competentes do Serviço Nacional de Saúde e, se for o caso, uma declaração da entidade patronal certificando o período de baixa. Em qualquer caso, a Companhia reserva-se o direito de solicitar os documentos justificativos que considere necessários ao caso em apreço, proceder às diligências que julgar oportunas para avaliar a realidade e duração da incapacidade em causa, nomeadamente solicitar novos justificativos que a Pessoa Segura deverá entregar no prazo de 20 dias e submeter a mesma a um exame médico por um médico mandatado pela própria Companhia.
Em caso de divergência entre as conclusões dos relatórios médicos, a Companhia reserva-se o direito de seguir as conclusões do médico por ela mandatado.
(…) ”.
16. Com o “Plano de hospitalização por doença” referido em 5., a Ré “garante o pagamento dos montantes acordados, em CASO HOSPITALIZAÇÃO POR DOENÇA COBERTA da Pessoa Segura, contraída, iniciada ou originada pelo menos 30 dias após a data da emissão desta apólice, e que não sejam, de forma alguma, derivadas de acidentes, nos termos, condições e limites adiante estabelecidos”.
17. A lista de Coberturas e Garantias Conferidas do seguro de “Hospitalização por Doença”, a Lista de Garantias a que reporta subdivide-se em:
 “(…) SECÇÃO A – SUBSÍDIO POR HOSPITALIZAÇÃO – DOENÇA COBERTA
Se a Pessoa Segura, durante a vigência da Apólice, necessitar de internamento hospitalar devido a doença coberta, a Companhia pagará durante o período do internamento, com início no primeiro dia e por um período máximo de TRÊS ANOS, um subsídio diário por cada noite de hospitalização de valor a determinar em função da opção escolhida expressamente na proposta:
Plano Bronze Prata Ouro Platina
Subsídio Diário € 25 € 50 € 75 € 100
HOSPITALIZAÇÃO RECORRENTE: Os períodos sucessivos de hospitalização que possam ocorrer durante a vigência da presente Apólice, para a mesma doença coberta ou outra que lhe esteja relacionada, serão tratados como um período de hospitalização único, a menos que dois períodos sejam separados por pelo menos doze meses consecutivos, durante os quais a Pessoa Segura não apresente sintomas dessa Doença.
SECÇÃO B – SUBSÍDIO POR HOSPITALIZAÇÃO ADICIONAL – DOENÇA CRÍTICA
Se a Pessoa Segura tiver direito às garantias constantes da Secção A desta Apólice e se o tratamento recebido for para CANCRO, CIRURGIA DE BYPASS CORONÁRIO, ENFARTE CARDÍACO, INSUFICIÊNCIA RENAL OU ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL, então ADICIONALMENTE ao valor convencionado pago na Secção A desta Apólice, a Companhia pagará durante o período em que a Pessoa Segura estiver a receber o respectivo tratamento, um subsídio por cada noite de hospitalização de valor a determinar em função da opção escolhida expressamente na Proposta:
Plano Bronze Prata Ouro Platina
Subsídio Diário € 25 € 50 € 75 € 100
SECÇÃO C - SUBSÍDIO POR CONVALESCENÇA - DOENÇA COBERTA
Se a Pessoa Segura tiver direito às garantias constantes da Secção A desta Apólice e se imediatamente após a alta hospitalar, a Pessoa Segura permanecer Totalmente Incapacitada devido à Doença Coberta, tendo que ser regularmente tratada por um médico qualificado, então a Companhia pagará por cada dia em que a Pessoa Segura se mantiver incapacitada (excluindo todos os períodos de internamento hospitalar), por um período de até o DOBRO do número de dias que durou o internamento hospitalar, um subsídio por cada dia de convalescença de valor a determinar em função da opção escolhida expressamente na Proposta:
Plano Bronze Prata Ouro Platina
Subsídio Diário € 12,5 € 25 € 37,5 € 50
SECÇÃO D – SUBSÍDIO POR CONVALESCENÇA ADICIONAL – DOENÇA CRÍTICA
Se a Pessoa Segura tiver direito às garantias constantes da Secção B desta Apólice e se imediatamente após a alta hospitalar, a Pessoa Segura permanecer Totalmente Incapacitada devido à Doença Coberta, tendo que ser regularmente tratada por um médico qualificado, então a Companhia pagará ADICIONALMENTE ao valor convencionado pago na Secção C desta Apólice por cada dia em que se mantiver incapacitada (excluindo todos os períodos de internamento hospitalar), por um período de até o DOBRO do número de dias que durou o internamento hospitalar, um subsídio por cada dia de convalescença de valor a determinar em função da opção escolhida expressamente na Proposta:
Plano Bronze Prata Ouro Platina
Subsídio Diário € 12,5 € 25 € 37,5 € 50
SECÇÃO E – SUBSÍDIO DE CUIDADOS INTENSIVOS – DOENÇA COBERTA
Se durante o período de hospitalização, previsto na secção A, a Pessoa Segura tiver necessidade de ser submetida a tratamento de cuidados intensivos numa unidade de cuidados intensivos, a Companhia pagará um subsídio adicional de valor a determinar em função da opção escolhida expressamente na Proposta. Este benefício é atribuído apenas uma vez por doença coberta:
Plano Bronze Prata Ouro Platina
Subsídio Diário € 250 € 500 € 750 € 1000
(…)”.
18. Da apólice referida em 16., constam ainda as seguintes cláusulas[2]:
“(…)
EXCLUSÕES
1. São excluídos os sinistros resultantes ou consequência de danos ou leões corporais causados por acidente, gravidez, parto, infeção com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou qualquer estado resultante do síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) e distúrbios mentais emocionais ou psíquicos.
(…)
OUTRAS CONDIÇÕES (…)
(7) Procedimento em caso de sinistro: (…)
7.2. O participante deverá, em qualquer caso, remeter à Companhia, juntamente com o impresso de participação, uma descrição da doença que necessitou o internamento hospitalar, bem como fornecer, a expensas suas, no mais curto prazo possível, meios de prova satisfatórios dos direitos ou garantias que solicite, tais como certificados Médicos e outras informações clínicas do médico que o tenha atendido em clínica, consultório, Hospital ou posto médico ou outras que lhe sejam solicitadas.
A Companhia, a expensas suas, reserva-se o direito de solicitar à Pessoa Segura um exame médico, por um médico qualificado e registado, quando e sempre que o considerar necessário, durante o processo de liquidação de um sinistro abrangido por esta apólice.
Em caso de divergência entre as conclusões dos relatórios médicos, a Companhia reserva-se o direito de seguir as conclusões do médico por ela mandatado. (…) ”.
19. As subscrições referidas em 5. foram celebradas por um período de um ano, automaticamente renováveis por iguais períodos, existindo a possibilidade de qualquer uma das partes se opor a essa renovação, dirigindo-se por escrito à outra, com uma antecedência mínima de 30 dias em relação ao termo da respetiva anuidade.
20. A renovação automática não opera caso o tomador não procedesse ao pagamento do prémio ou caso o acordo caduque nos termos da cláusula de “Elegibilidade e termo”.
21. A cláusula de elegibilidade e termo determina que os acordos caduquem (respetivamente) quando a pessoa segura complete 70 anos de idade e ainda que não podem ser aceites como pessoas seguras, as pessoas com idade inferior a 16 anos ou as pessoas a partir de 65 anos de idade.
22. A vigência dos seguros referidos em 5. renovou-se automaticamente, sendo que os mesmos estavam em vigor, quer à data de 24/07/2013, quer em 02/09/2018.
23. Em momento anterior a 24/07/2013, e enquanto estava na fazenda, o autor magoou-se no seu pénis com uma tábua.[3]
24. Em 24/07/2013, por volta das 01:43 horas, o Autor deu entrada no serviço de urgência do Hospital N com edema e dor no pénis.
25. Depois de devidamente assistido e medicado, veio a ter alta cerca de duas horas depois.
26. Como a situação não se alterava, o Autor voltou a essa unidade hospitalar a 27/07/2013, tendo ficado internado durante dois dias.
27. Em face desse quadro clínico, o médico que o assistiu concedeu-lhe uma incapacidade temporária absoluta de 60 dias, entre 24/07/2013 e 21/09/2013.
28. A Ré recebeu informação ou documentação do Autor, em 28/10/2013, relativamente a este primeiro episódio, e iniciou procedimentos internos.
29. A Ré enviou uma carta ao Autor, datada de 15/11/2023, na qual confirmou a receção da informação do sinistro e solicitou o envio de documentação, designadamente uma participação de sinistro, atestado médico a preencher por médico, declaração de entidade patronal ou comprovativo de desemprego, fotocópia do bilhete de identidade, originais dos certificados de incapacidade temporária e relatórios e exames de diagnóstico da doença que motivou internamento e incapacidade.
30. Aberto o respetivo processo de sinistro, a que foi atribuído o número *****54, a Ré enviou missiva ao Autor, datada de 27/12/2013, segundo a qual informa da insuficiência dos documentos apresentados, reiterando a necessidade de envio de participação de sinistro e certificados de incapacidade temporária.
31. Através de missiva, datada de 13/01/2014, a Ré deu conta da receção de uma missiva remetida pelo Autor, rececionada em 26/12/2013, dando conta da insatisfação dos serviços da Ré, informando ainda terem contactado o Autor telefonicamente, em 07/01/2014 e em 13/01/2014, a informar a documentação que seria necessária para a análise do sinistro.
32. No dia 17/01/2014, o Autor participou formalmente o primeiro sinistro à ora Ré, tendo instruído essa participação com o formulário preenchido e assinado pelo Dr. J, com cópia do processo de utente respeitante ao episódio de urgência e com os inerentes atestados médicos.
33. Em 27/01/2014, após análise da documentação recebida e porque entendeu que o período de incapacidade participado não encontrava justificação nos documentos remetidos, a Ré solicitou ao Autor, em alternativa aos certificados de incapacidade, declarações e extrato da Segurança Social que compreendesse o período da incapacidade e relatório médico que atestasse o motivo ou complicação decorrente da patologia que motivou o prolongamento do período de incapacidade.
34. Através de missiva, datada de 14/03/2016, a Ré deu conta que se encontrava a rever a documentação enviada e havia solicitado ao Dr. J, médico que terá assistido o Autor, informação clínica sobre a patologia, tratamento realizado e motivo do período de incapacidade atribuído.
35. Considerando a Ré estar demonstrada uma situação de ITA de 7 dias, liquidou ao Autor o valor de 51,33€, informando-o por carta datada de 18/10/2016.
36. Na missiva referida em 35., a Ré solicitou ainda documentação complementar relativa ao restante período peticionado, designadamente um formulário de prorrogação de incapacidade preenchido e o diário clínico das consultas realizadas em consequência da patologia participada
37. Na sequência do referido em 35. e 36., em data anterior a 04/04/2017, o Autor enviou à Ré formulário de prorrogação de incapacidade preenchido, tendo na data mencionada a Ré acusado a receção de documentação.
38. Por missiva datada de 12/04/2017, a Ré comunicou ao Autor que após análise da documentação enviada, entendeu que aquela não revelava informação clínica e imagiológica que comprovasse a existência de qualquer complicação decorrente da parafimose (doença participada) que justificasse o restante período de incapacidade, entendendo-se como adequado o período de incapacidade já regularizado.
39. Por missiva, datada de 26/04/2017, o Autor demonstrou o seu descontentamento com a postura da Ré.
40. Por missiva, datada de 05/05/2017, a ré informou o Autor ter reanalisado o processo e manter a posição referida em 38..
41. Após posterior troca de correspondência entre Autor e Ré, designadamente datadas de 16/05/2017, 29/05/2017, 30/05/2017, 31/05/2017, 12/06/2017, 26/06/2017, 29/06/2017, 11/07/2017, 17/07/2017, 31/07/2017 e 14/08/2017, esta manteve a posição referida em 38., sem prejuízo do envio de documentação que o autor viesse a apresentar que justificasse o pedido.
42. Durante o início do mês de setembro de 2018, o Autor começou a sentir desconforto e dores episódicas na sua coluna cervical, mormente quando efetuava determinados movimentos posturais ou quando precisava de fazer esforços com os seus membros superiores.
43. A situação referida em 42. foi-se agravando e o Autor dirigiu-se a uma consulta médica com o Dr. F, no dia 21/11/2018, onde lhe foram diagnosticadas cervicalgias e parestesias dos seus membros superiores.
44. Na sequência do diagnóstico feito em 43., o Autor foi encaminhado para os serviços de imagiologia onde realizou uma ressonância magnética à sua coluna cervical.
45. Com o exame referido em 44., foi possível verificar a existência de pequenas protrusões discais posteriores de C4 a C7, sem aparente compromisso mielo-radicular, bem como, alterações degenerativas interfacetarias em C2-C3 à esquerda (com associações inflamatórias associadas) e em C7-D1.
46. Em função das lesões referidas em 45., o Autor esteve totalmente incapacitado de desempenhar as tarefas inerentes a sua profissão de agricultor pelo período de 270 dias, desde 16/10/2018 até 12/07/2019.
47. O Autor participou o referido em 42. à Ré, no dia 29/01/2019, tendo instruído essa participação com um atestado médico preenchido e assinado pelo Dr. F, acompanhada de um relatório de exame de ressonância imagiologia datado de 28/09/2018, notificação da decisão da Segurança Social e de quatro Certificados de Incapacidade Temporária para o Trabalho para o período de 16/10/2018 a 12/02/2019.
48. A participação e restante documentação referidas em 47. foram recebidas pela Ré em 31/01/2019.
49. Aberto o respetivo processo de sinistro, a que foi atribuído o número Q***58, a Ré enviou uma carta ao Autor, datada de 14/02/2019, na qual confirmou a receção da documentação para dar seguimento à instrução do processo de sinistro, tendo solicitado o envio de mais documentos, designadamente: o Registo clínico da consulta de avaliação que teve ou iria ter naquele mês, o Registo clínico da consulta relativa ao dia 16/10/2018 no centro de saúde, e o guia de tratamentos onde conste a medicação instituída e qual a resposta à terapêutica, ancorando-se na conclusão que os elementos facultados pela pessoa segura não seriam suficientes para avaliar os benefícios que deveriam ser pagos ao abrigo da apólice de seguro contratada.
50. Na sequência da missiva referida em 49., em data não apurada, o Autor respondeu à Ré afirmando que “(…) o registo clínico da consulta de avaliação que irá ter / teve este mês qualquer informação adicional sobre o meu estado de saúde, o meu médico só dará resposta ao médico da seguradora, desde que seja pedida por carta direcionada à morada da clínica (…)”.
51. A Ré, em resposta, por missivas de 01/03/2019 e de 15/03/2019, volta a solicitar a mesma documentação.
52. Por missiva remetida em data desconhecida, mas certamente posterior a 15/03/2019, o autor respondeu às comunicações da Ré, informando que a resposta à informação pedida havia sido rececionada por esta em 14/03/2019, fazendo ainda referência a alguns contactos telefónicos tidos com representantes da Ré.
53. Na missiva referida em 52., o Autor remeteu relatório médico emitido pela Dra. S, 07/03/2019, segundo o qual: “(…) atesto que António dos Ramos de Abreu (…) esteve na consulta no Centro de Saúde Dr. TN no dia 16/10/2018, com queixas de cervicobraquialgias com parestesias, trazendo o resultado da RMN da coluna cervical solicitada (28/9/218): “Pequenas protrusões discais posteriores de C4 - C7, sem aparente compromisso mielo-radicular. Alterações degenerativas interfacetárias em C2-C3 à esquerda (com associações inflamatórias associadas) e em C7-D1”. (…)”.
54. Por missiva, datada de 25/03/2019, a Ré replicou referindo que estariam a rever as informações constantes do processo e que estariam a aguardar a resposta a um pedido de esclarecimentos que enviaram ao médico assistente do Autor, Dr. F.
55. Por missiva, datada de 04/04/2019, a Ré respondeu à comunicação do Autor, solicitando a clarificação dos pontos de insatisfação deste.
56. O Autor respondeu à missiva referida em 55. em data não concretamente apurada.
57. Em 09/04/2019, a Ré liquidou ao Autor o valor de 675,00 €, correspondentes a 27 dias da incapacidade.
58. Na missiva referida em 57. a Ré informa ainda que estariam a aguardar a receção da resposta à missiva de 22/03/2019, por parte do Dr. F para procederem à regularização do restante período de ITA.
59. Em data concretamente não apurada, mas que se situará certamente entre 22/03/2019 e 18/04/2019, o médico assistente referido em 58. veio a responder à Ré.
60. Em 18/04/2019, a Ré veio a solicitar ao Autor o relatório da Alta da Fisioterapia elaborado pelo Fisiatra e declaração da Clínica que atestasse a realização dos tratamentos.
61. A Ré reiterou o referido em 60. em 03/05/2019 e em 17/05/2019.
62. Por missiva datada de 24/05/2019, a Ré solicitou informações junto da Dra. S do Centro de Saúde Dr. TN.
63. Em 08/07/2019, o Autor remeteu à Ré missiva, informando que não enviaria mais cartas até os prémios serem pagos, bem como procedeu ao envio de quatro certificados de incapacidade, com referência ao período de 15/03/2019 a 12/07/2019 e a deliberação da comissão de verificação de incapacidades.
64. Por missiva datada de 31/07/2019, a Ré solicitou ao Autor: (1) Documentação clínica que serviu de suporte à deliberação da comissão de verificação de incapacidade a que foi presente em 12/02/2019; (2) Extrato de Remunerações que ateste a sua contribuição mensal desde outubro de 2018 até à presente data; (3) Registos clínicos informatizados das consultas dos dias 14/12/2018, 18/01/2019, 15/02/2019, 15/03/2019, 10/05/2019 e 14/06/2019; (4) Relatório de Alta da fisioterapia, passado pelo fisiatra, que informe a evolução clínica da doença no seguimento dos tratamentos realizados; (5) Declaração da clínica atestando quais os tratamentos realizados e em que datas.
65. Em data não concretamente apurada, mas certamente posterior a 31/07/2019, o autor enviou missiva à Ré afirmando conter “uma informação clínica. Relativamente à restante informação que pede, essa mesma já está em vosso poder e enviada”.
66. Em anexo à carta referida em 65., foi enviado: documento assinado pelo Dr. F, disponibilizando-se para fornecer qualquer informação clínica necessária do Autor; ofício da segurança social relativa à não atribuição do subsídio de doença, datado de 06/11/2018; comunicação da deliberação da comissão de verificação, datada de 12/02/2019.
67. Por comunicação datada de 16/08/2019, a Ré reafirmou a necessidade do envio da documentação referida em 64..
68. Por carta datada de 29/08/2019, a Ré reiterou o conteúdo da missiva mencionada em 67..
69. Por missiva datada de 16/09/2019, a ré acusa a receção da comunicação e documentos referidos em 64. e 65., informando a necessidade de documento comprovativo da incapacidade obtido junto Segurança Social.
70. Em data não concretamente apurada, mas certamente posterior a 16/09/2019, o Autor manifestou a sua discordância quanto à posição da Ré.
71. A presente ação deu entrada em 18/03/2022.
72. A Ré foi citada para a presente ação em 29/04/2022.
*
B. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se consideraram provados os demais factos relevantes para a decisão da causa, não elencados no rol de Factos Provados, nomeadamente:
a) Em 11/06/2013, o Autor reduziu as coberturas e prémio da apólice do “Plano de Incapacidade por Doença” para a Unidade 2, após o departamento de retenção da Ré o ter contactado em virtude do não pagamento do prémio da referida apólice.
b) Na sequência do referido em a), o Autor veio a regularizar a situação em 24/06/2013, com o pagamento do prémio correspondente à Unidade 2.
c) No dia 18/10/2016, a Ré decide assumir a regularização do primeiro sinistro.
d) Apesar do Autor considerar que a exigência contida em 64. se afigurava desproporcional, uma vez que toda a documentação exigida contratualmente já tinha sido tempestivamente enviada – designadamente para verificação do período da incapacidade temporária absoluta – o Autor remeteu à Ré toda a documentação solicitada.                                                      
III. O Direito:
a)- da nulidade da sentença por excesso de pronúncia - inclusão nos factos provados do ponto n.º 23, principio da preclusão e concentração da defesa, decisão surpresa e violação do contraditório
a.1) inclusão nos factos provados de facto não alegado (n.º 23), princípio da preclusão e concentração da defesa
O recorrente invoca excesso de pronúncia por parte do Tribunal recorrido ao ter conhecido da exclusão da garantia da apólice, tendo por base factualidade não alegada por nenhuma das partes e, portanto, excluída do âmbito do seu dever de conhecimento oficioso.
Insurge-se o recorrente, muito concretamente quanto à inclusão na factualidade provada do facto 23, que o Tribunal a quo considerou como concretização do alegado pela Ré em 39.º da contestação e como resultando da instrução da causa.
Conclui assim o recorrente que o Tribunal excedeu pronúncia ao ter equacionado a exclusão da garantia do seguro.
Vejamos:
Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, do CPC que “é nula a sentença quando: d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A nulidade por excesso de pronúncia está estreitamente relacionada com o comando normativo ínsito no n.º 2, do art.º 608.º do CPC que dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Como se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2022 (proc. n.º 23/09.4TBSSB.E2.S1), “nos casos em que não haja previsão legal de conhecimento ex officio, verifica-se [excesso de pronúncia] quando a sentença (ou acórdão) conheça de questão que nenhuma das partes tenha submetido à apreciação do juiz”
Para melhor compreensão do inconformismo do recorrente, cumpre salientar que as razões da sua discordância se prendem com o facto 23: “Em momento anterior a 24/07/2013, e enquanto estava na fazenda, o autor magoou-se no seu pénis com uma tábua”, sendo que em nota de rodapé se fez expressamente constar que “ A matéria contida no ponto n.º 23 constitui concretização do alegado pela Ré em 39.º da contestação e resultou da instrução da causa (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
Conforme resulta dos arts. 607.º, n.º 5, e 413.º do CPC, “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; (…)” sendo que “O Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (…)”.
A este propósito, pronunciou-se o STJ no acórdão de 07-07-2021, no proc. n.º 323/17.0T8SRT.C1.S1, afirmando que “As respostas à matéria de facto não têm necessariamente de ser afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas (consubstanciando juízos delimitativos ou até mesmo elucidativos da situação nelas descrita) exigindo-se, apenas, que se mantenham no enquadramento da matéria de facto indicada na acção por uma das partes.”
No caso em apreço o Tribunal a quo, chamado a pronunciar-se sobre a abrangência e cobertura de um determinado contrato de seguro denominado “Plano de Incapacidade por Doença”- que consubstanciava a causa de pedir nos autos - delimitou a situação de facto (sinistro) que deu origem que deu origem à participação efectuada pelo Autor à Ré.
Relativamente a esta ocorrência o Autor limitou-se, na petição inicial, a dizer que no dia 24-07-2013 havia dado entrada no serviço de urgência do Hospital N com edema e dor no pénis.
A respeito deste “sinistro” invocou a Ré excepção de prescrição. Mas, no que toca à materialidade subjacente ao evento, alegou a Ré (cf. art.º 39.º da contestação) que “A Ré desconhece, sem obrigação de conhecer, se o Autor no período em causa apresentava edema no pénis associado a dor, se procurou assistência médica, quando, onde e por quem foi atendido, exames e diagnóstico realizados e respectivas implicações na sua actividade profissional como relatado nos arts. 47.º a 50.º da petição inicial, pelo que vão os mesmos impugnados”.
Em face de tal impugnação, cabia ao Autor a demonstração dos factos constitutivos do seu direito, isto é, de que o “sinistro” em causa estava abrangido por um dos contratos de seguro que o mesmo invocou como causa de pedir relativamente à pretensão formulada nos autos.
É isso que resulta do disposto no art.º 574.º, n.º 3, do CPC: Se o Réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário”. Ora, não tinha a Ré obrigação de conhecer qual o facto que havia dado origem ao “edema e dor no pénis”, limitando-se o seu conhecimento possível e atendível ao que fosse transmitido pelo seu segurado. Este facto era, na verdade, um facto pessoal do Autor cujo conhecimento pela Ré estava condicionado ao que lhe fosse dado a conhecer por aquele.
Estando tal facto impugnado, cabia ao Autor fazer a demonstração de que a ocorrência relatada se encontrava abrangida e coberta pelas garantias do seguro.
Sendo tarefa do Tribunal aferir do evento e sua cobertura pelo contrato de seguro temos como certo que podia e devia o Tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes de apreciação da matéria de facto, fazer constar da factualidade o concreto facto 23, aqui em dissenso.
Para esta afirmação convocamos o art.º 5.º do CPC, sob a epígrafe “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do Tribunal”, no qual se estipula, no n.º 2, que “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Ora, a causa do edema e dor no pénis mais não é do que a concretização do evento que deu origem à participação de sinistro!
Conforme se refere no Ac. do STJ de 08-02-2018 (proc. 633/15.1T8VCT1.S1) “Por força das alterações introduzidas no domínio da legislação processual civil vigente, os tribunais de instância passaram a dispor de maior liberdade na definição da matéria de facto que releva para a decisão da causa.
Importa ainda não esquecer que os tribunais de instância podem e, aliás, devem, considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como os factos complementares ou concretizadores que provenham dessa actividade e integrem a relação jurídica material devidamente individualizada pela causa de pedir, conquanto seja observado o contraditório (cfr. alíneas a) e b), do nº 2, do art.º 5º, do CPC).
Assim, e por contraponto aos factos que integrem a causa de pedir – relativamente aos quais continua a vigorar o princípio do dispositivo contido no nº 1, do mesmo art.º 5.º –, impende sobre o tribunal, no que toca aos factos probatórios e aos factos complementadores (em sentido lato) e ainda que não hajam sido alegados, o ónus de os tomar em consideração na sentença.”
Na senda do supra citado acórdão podemos até afirmar que tal prerrogativa, constante do n.º 2 do art.º 5.º do CPC, configura, inclusive, um poder-dever dos tribunais de instância, e não uma mera faculdade.[4] Só assim não seria se o Tribunal estivesse a aditar um facto essencial integrante da causa de pedir, sem o qual a mesma fosse insuficiente. [5]
Ora, sendo a causa do edema e dor no pénis matéria concretizadora da matéria alegada nos articulados, podia e devia a juiz a quo fazê-la constar do elenco da factualidade provada com relevância para a decisão da causa.
Vamos mais além e dizemos mesmo que bem andou o Mm.º Juiz a quo ao fazer uso do poder dever concedido pelo art.º 5.º, n.º 2. al. b), ao ter feito constar tal facto do elenco dos factos provados relevantes para verdade material e justa composição do litígio.
Sendo o facto 23 um facto concretizador não se suscita a questão da violação do principio da concentração da defesa e da preclusão, na medida em que é o próprio art.º 5.º, n.º 2, que prevê a possibilidade de lançar mão de factos não articulados: é o próprio artigo que o diz “Além dos factos articulados, são ainda considerados pelo juiz….”.
´Tem razão o recorrente quando refere que o ponto 23 dos factos provados não consubstancia uma concretização do art.º 39.º da contestação. Com efeito, é nosso entendimento que o teor do facto 23, mais do que concretizar a alegação de desconhecimento efectuada pela Ré, concretiza o evento relatado pelo Autor. A causa do evento participado pelo Autor à Ré deve considerar-se abrangida pela causa de pedir invocada pelo Autor, dela fazendo parte integrante, não sendo, por esse motivo, estranha à causa de pedir delineada pelo Autor (que foi quem, em primeira mão, na sua petição inicial, alegou - no art.º 10.º- que, contratualmente, a “doença” – para efeitos de contrato de seguro – não podia ser derivada de acidentes…)
Mas a circunstância de o facto 23 não ser concretização do art.º 39.º da contestação, mas sim concretização do evento alegado pelo Autor, para o accionar do contrato de seguro, não retira a possibilidade de, resultando o mesmo da instrução da causa (como resultou e isso o Autor não coloca em questão), poder o julgador aproveitá-lo e considerá-lo em sede de factualidade, tendo em vista o objectivo final do processo que mais não é do que o apuramento da verdade material e a justa composição do litigio.
A única limitação que a lei coloca à consideração destes factos pelo julgador é a possibilidade de contraditório das partes quanto ao mesmo (cf. art.º 5.º, n.º 2, al. b), in fine) e, essa questão será apreciada infra a propósito das considerações das conclusões de recurso acerca da existência de uma decisão surpresa e violação do contraditório.

a.2) decisão surpresa e violação do princípio do contraditório
Conforme se referiu supra, a única limitação que o legislador impõe à atendibilidade dos factos concretizadores – na parte final da al. b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC – é que sobre eles tenham as partes tido possibilidade de se pronunciarem.
A este propósito refere o recorrente no corpo das suas alegações que:
“Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis, pedidas ou não, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.
Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Consagrada está uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, o direito a exprimir posição para influenciara decisão, seja esta a pensada pelo julgador ex novo seja a pedida pela parte contrária.
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão – vide acórdão do STJ de 4.5.1999, proferido no âmbito do Proc. n.º 99057, disponível para consulta no endereço eletrónico www.dgsi.pt.
A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem – cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2002, proferido no âmbito do Proc. n.º 02A2478, os acórdãos da Relação de Lisboa de 11.3.2008 e de 21.5.2009, proferido no âmbito dos Procs. n.ºs 2051/2008-7 e 1490/04.8TBPDL.L1-6 e o acórdão da Relação do Porto de 10.1.2008, proferido no âmbito do Proc. n.º 0736877, todos disponíveis no endereço eletrónico www.dgsi.pt.
O dever de audição prévia só existe, contudo, quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si, mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar, sendo que na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração – vide acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2012, proferido no âmbito do Proc. n.º 572/11.4TBCND.C1, in dgsi.net.
Destarte, em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade, devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar – vide acórdão da Relação de Coimbra de 20.9.2016, proferido no âmbito do Proc. n.º 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net.
Ora, ao caso foi conferida uma solução jurídica sem que tenha sido facultada ao Autor, aqui Recorrente, a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão bem podendo o mesmo, com os seus argumentos, fácticos e jurídicos, influenciar a decisão, no exercício de um direito que a lei lhe atribui.
Existia o dever de observar o contraditório, e, em causa estão, mesmo, para além de questões de direito, factos, suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
Conclui-se, assim, pela efetiva violação do princípio do contraditório, mal tendo andado o Tribunal a quo ao decidir sem a sua observância.”
A esta argumentação respondeu a Ré nas suas contra-alegações que:
“Sem prejuízo, não pode a Apelada deixar de referir que nos presentes autos sempre esteve em causa e sempre se discutiu a verificação dos requisitos contratualmente estabelecidos para que o A., aqui Apelante, tivesse direito à prestação convencionada.
Defendendo o Apelante que os mesmos se encontravam preenchidos e, por isso, a sua pretensão deveria ser julgada procedente e a Apelada que tais requisitos não estavam cumpridos e, por isso, a pretensão do Apelante deveria ser julgada improcedente.
Um dos requisitos contratualmente estabelecidos para que se constitua o direito do Apelante consiste em que a situação de incapacidade derive de uma doença coberta.
E o Tribunal conclui que a situação de incapacidade do Apelante não resultou de uma doença coberta e, por isso, julga a sua pretensão improcedente.
A possibilidade de o Tribunal se pronunciar pela procedência ou improcedência do pedido, tendo em atenção o cumprimento ou não cumprimento das obrigações contratuais é o núcleo da questão desde o primeiro momento.
Basta atentar na indicação do objeto do processo – “Apurar se é devida a quantia peticionada ao abrigo do contrato de seguro celebrado” –, que o Apelante não impugnou, para se perceber que a discussão dos autos se fixa, desde o início, na existência ou não do direito de crédito do Apelante.
Não há qualquer exceção que tenha sido julgada procedente, apenas a não verificação do pressuposto de que depende a constituição do direito de crédito do Apelante.
Ao longo de todo o processo, o Apelante manifestou, e teve possibilidade de manifestar, a sua posição relativamente à constituição do direito de crédito, cujo reconhecimento reclama, alegando o que julgou ser de alegar, indicando os meios de prova que entendeu ser de indicar e valorando a prova produzida como entendeu.
Inexistindo qualquer violação do princípio do contraditório.
Em conclusão, a douta sentença reclamada limitou-se a abordar as subquestões em que se desdobra o thema decidendum suscitado pelo A., ora Apelante, sem extravasar os respetivos eixos problemáticos, pelo que não enferma dos vícios de excesso de pronúncia, de condenação em objeto diverso do pedido e de violação do princípio do contraditório (por alegada prolação de decisão-surpresa), que lhe foram assacados pelo Apelante.”
Sob a epigrafe de “Necessidade do pedido e da contradição”, diz-nos o art.º 3º, do CPC, nos respectivos n.ºs 1 e 3, respectivamente, que “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”, e que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
O dispositivo referido apenas foi introduzido na nossa Lei adjectiva [no art.º 3º, do CPC, à data em vigor] com o DL n.º 329-A/95, de 12.12, explicando então o legislador que:
“Significativo realce foi dado à tutela efectiva do direito de defesa, prevendo-se que nenhuma pretensão possa ser apreciada sem que ao legítimo contraditor, regularmente chamado a juízo, seja facultada oportunidade de deduzir oposição.
O incremento da tutela do direito de defesa implicará, por outro lado, a atenuação da excessiva rigidez de certos efeitos cominatórios ou preclusivos, sem prejuízo de se manter vigente o princípio da auto-responsabilidade das partes e sem que as soluções introduzidas venham contribuir, de modo significativo, para a quebra da celeridade processual.
Afirmam-se como princípios fundamentais, estruturantes de todo o processo civil, os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da cooperação e procuram deles extrair-se consequências concretas, ao nível da regulamentação dos diferentes regimes adjectivos.
Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, e aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª instância mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos.”.
Segundo José Lebre de Freitas[6] quis o nosso legislador adoptar uma concepção do princípio do contraditório mais lata, devendo, dali em diante, o respeito pela contraditoriedade, passar por uma “garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Segundo o mesmo professor “O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Não obstante, a latitude do princípio do contraditório, terá sempre de observar limites de razoabilidade (que não nos levem a cair em excessos ou exageros), pelo que, citando Othmar Jauernig[7], diremos desde já que o tribunal “não é obrigado sem mais a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico”, ou seja, e como assim já o considerou o STJ no seu acórdão de 04-06-2009, com total assertividade, “ a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja”, sendo que, se é certo que o 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil, exige do juiz uma diligência aturada de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, o mesmo dispositivo é assertivo em ressalvar os casos em que a obrigatoriedade de ouvir as partes é manifestamente desnecessária.
Assim e apreciando, cabe desde já fazer três chamadas de atenção que se nos afiguram determinantes:
- foi o próprio Autor quem, na sua petição inicial (art.º 10.º), refere que os acidentes se encontram excluídos da cobertura do contrato de seguro de incapacidade por doença;
- conforme consta da fundamentação de facto da sentença (cf. fls. 18) “Para a factualidade vertida nos pontos 23. a 41., relativa ao primeiro sinistro, que terá originado a assistência hospitalar referida e posterior incapacidade temporária absoluta apresentada pelo Autor, no período compreendido entre 24/07/2013 a 21/09/2013 tomou-se, desde logo, em consideração o depoimento de parte e declarações do Autor, já que afirmou ter sido atingido por uma tábua na fazenda e magoado o seu pénis (conforme infra analisaremos em detalhe).
Quanto aos restantes factos, relativos à participação efetuada e contactos posteriores, resultam da análise dos documentos n.ºs 23 a 25, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, juntos com a petição, em concreto, as missivas da ré dando conta da informação do sinistro e pedido de documentos, a participação de sinistro do Autor aquando do primeiro episódio referido, o processo do utente relativo à assistência hospitalar, um atestado médico, e quatro certificados de incapacidade temporária para o trabalho referentes ao período mencionado. Considerou-se ainda o documento n.º 6 da contestação e documentos n.ºs 26, 28 a 43 da petição, quanto às missivas trocadas posteriormente.”
- por outro lado, tomámos a liberdade de proceder à audição da gravação do julgamento e, por isso, podemos de forma fidedigna afirmar que: (i) o Autor nas suas declarações/depoimento de parte prestadas no dia 28-05-2024, ao minuto 11:11 e sgts., é o próprio a referir que quando estava na fazenda escorregou e se magoou no pénis e que 2/3 dias depois foi ao hospital; (ii) houve lugar a instâncias e contra instâncias ao depoimento do mesmo, nomeadamente no que tange à ocorrência do evento; (iii) nas suas contra-alegações a mandatária da Ré referiu não estar demonstrada e constatada a existência de doença, na totalidade das participações de sinistro.
E, aqui chegados, o que importa doravante aferir/apurar é se, maxime no caso dos autos em que a própria parte (o Autor/Recorrente) alegou que os acidentes estavam excluídos do âmbito da cobertura do seguro, em que foi o próprio em declarações/depoimento de parte a afirmar que escorregou na fazenda e se magoou no pénis, se exigia que o Juiz titular do processo e em sede de concretização do princípio do contraditório tivesse concedido às partes o poder de se pronunciarem quanto à possibilidade de inviabilidade da acção improceder com fundamento na concreta circunstância de o acidente não estar coberto pela apólice de seguro.

Adiantando desde já o nosso veredicto, estamos em crer que a resposta só pode ser negativa, sendo para nós manifesto que em razão do (i) conhecimento do Autor de que os acidentes se encontravam excluídos da cobertura por “doença”, (ii) o Autor ter conhecimento de que o evento/sinistro se tinha devido ao “acidente” que descreveu (e não propriamente a doença conforme a mesma vem definida nas cláusulas contratuais, (iii) a Ré ter impugnado o facto 47 e seguintes da petição inicial (o que determina que o mesmo se tivesse por controvertido e tivesse de ser objecto de prova), (iv) o despacho saneador ter fixado como objecto do litigio a responsabilidade contratual e (v) como temas da prova os termos dos contratos celebrados entre Autor e Réu, a expectativa do Autor /recorrente não poderia ser outra que não a de ver apreciada a verificação dos pressupostos conducentes à responsabilidade contratual, entre os quais o “evento participado” estar coberto pelo objecto do contrato de seguro.
Como se pode afirmar que, face a tudo o exposto, não poderia o Autor contar com a relevância de o evento ter consubstanciado um acidente na inclusão nos factos provados e na subsunção jurídica dos mesmos ao direito?
Face à alegação do Autor na petição inicial (de que os acidentes se encontravam excluídos da cobertura do contrato de seguro) e à sua admissão em depoimento de parte de que o edema no pénis e incapacidade daí resultante adveio de ter escorregado na fazenda (acidente), não se antevê como não tivesse o mesmo previsto a possibilidade de o Tribunal concluir nos termos em que concluiu.
Citando, uma vez mais, o Ac. do STJ de 04-06-2009, “Do que vem sendo exposto resulta que acompanhamos e continuamos a jurisprudência deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 16.1.2007 (Agravo n.º 3294/06 : “Não constitui decisão surpresa o conhecimento pela Relação da questão do esbulho violento com fundamentos jurídicos diversos e não suscitados na 1.ª instância, sem que previamente tenha sido convidada a agravante a tomar posição sobre tal questão”) e de 11.11.2008 (Revista n.º 11.11.2008 : “I - Ao aplicar ao caso o art.º 12.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 24/07, de 18-07, não foi suscitada no processo uma questão nova de direito, pronunciando-se o reclamado acórdão sobre a mesma questão de direito, que foi objecto de discussão ao longo de todo o processo, que era a questão da natureza da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas, pelos danos causados nos acidentes de viação nela ocorridos, devido ao atravessamento de animais, e do consequente ónus da prova da culpa. II - Pronunciando-se sobre essa questão, o Acórdão decidiu-a por uma razão de direito resultante da aplicação de uma norma legal que ainda não tinha sido considerada no processo, mas podia tê-lo feito, ao abrigo do art.º 664.º do CPC, pois o Tribunal não está sujeito as alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regas de direito.”).
Orientação que também o STA já assumiu (Ac. de 23.1.2008, processo 0574/07, com texto integral em www.dgsi.pt: “O princípio do contraditório, na vertente que proíbe a decisão surpresa, não impõe ao tribunal de recurso que, antes de decidir questão proposta pelo recorrente, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado e até então não referido no processo”).”
Por isso, não se viola o n.º 3 do art.º 3.º do CPC quando se decide uma acção de responsabilidade contratual com base na não verificação dos pressupostos que lhe estão subjacentes, ainda que os factos fundamentadores tenham sido adquiridos em sede de julgamento, na medida em que a audiência decorreu com pleno cumprimento do contraditório, no que se refere a instâncias, contra-instâncias, alegações e contra-alegações.
Ademais sempre se dirá que não se vislumbra qual o contraditório que o Autor queria assegurar relativamente a factos que foi o próprio quem os trouxe ao processo!

Ante o exposto, não assiste razão ao recorrente, não se verificando nulidade por excesso de pronúncia.

b)- da prescrição do direito do Autor.
A questão da prescrição é uma falsa questão nos presentes autos e, de todo o modo, sempre estaria prejudicada pela resposta dada por este Tribunal à questão da nulidade da sentença invocada pelo recorrente.
E dizemos que é uma falsa questão por duas ordens de razões:
- em primeiro lugar porque o Tribunal não decidiu, em concreto, da verificação da prescrição, não a declarou e dela não retirou consequências. O Tribunal limitou-se a dizer que mesmo que o pedido do Autor não improcedesse pelas razões que fez constar na fundamentação, sempre importaria (note-se o tempo verbal no condicional) dar como prescrito o direito do Autor, a partir de 28-10-2018.
Não obstante, como o Tribunal a quo não reconheceu a existência do direito indemnizatório do Autor, com base na responsabilidade contratual, nenhum sentido teria julgar prescrito esse mesmo direito.
O que o Tribunal disse, na sentença recorrida, foi que SE O DIREITO EXISTISSE sempre estaria prescrito.
Mas fê-lo no corpo argumentativo da sentença, na fundamentação de direito, sem transpor para o dispositivo – por razões lógicas – uma concreta decisão quanto a tal questão.
- por outro lado, ainda que assim não fosse, o pedido formulado pelo recorrente no presente recurso, por si interposto, foi que se declarasse a nulidade da sentença proferida nos autos e não que se proferisse acórdão, revogando a sentença e substituindo-a por outra que decidisse de mérito em conformidade com o peticionado pelo Autor.
Ora, caso fosse declarada a nulidade da sentença (conforme era pretensão do Autor /Recorrente), a consequência concreta sempre seria anular a sentença recorrida e determinar a notificação do Autor para, em prazo, se pronunciar querendo sobre a concreta questão abordada na sentença - definição de doença coberta (ponto 15. dos factos dados como provados) e impossibilidade de classificação do evento participado como doença, por ter tido origem num acidente - que conduziu à improcedência parcial da acção.
Tal determinaria que, cumpridas as formalidades hipoteticamente omitidas, fosse proferida nova sentença. Nenhum sentido teria este Tribunal apreciar do mérito da pretensão do recorrente, sem sentença proferida nos autos.

Tendo decaído no recurso, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.

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IV. Decisão:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 6.ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação do Autor totalmente improcedente e consequentemente confirmar a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo Autor/Apelante.
Registe e notifique.
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Lisboa, 23 de Janeiro de 2025
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Vera Antunes
Gabriela de Fátima Marques
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[1] A matéria contida no ponto n.º 15 constitui concretização do alegado pelo Autor em vários artigos da petição, como nos artigos 9.º e 14.º, bem como pelo alegado pela Ré em vários artigos da contestação, nomeadamente nos artigos 65.º, 93.º, 99.º, e que resultou da instrução da causa (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
[2] A matéria contida no ponto n.º 18 constitui concretização do alegado pelo Autor em vários artigos da petição, como os artigos 31.º, bem como pelo alegado pela Ré em vários artigos da contestação, nomeadamente os artigos 65.º e 93.º, e que resultou da instrução da causa (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
[3] A matéria contida no ponto n.º 23 constitui concretização do alegado pela Ré em 39.º da contestação e resultou da instrução da causa (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
[4] Atente-se que a norma refere “…são ainda considerados pelo juiz”, e não podem ainda ser considerados pelo juiz. Nem de outra forma se poderia entender face à interpretação sistemática e ao particular modelo crescentemente inquisitório que se vem a assistir desde a reforma do CPC de 1995/1996, tendente ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. Os poderes do juiz são lhe outorgados, pela lei processual, tendo em vista uma finalidade concreta que o art.º 411.º do CPC refere expressamente: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.
[5] Neste sentido Ac. STJ de 18-04-2023.
[6] In “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, páginas 95/96.
[7] In “Direito Processual Civil”, Almedina,2002, página 169.