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NULIDADE DA SENTENÇA
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
PEDIDO CUMULATIVO
CONVOLAÇÃO
Sumário
I. A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (arts. 607.º a 609.º do CPC), a elaboração da sentença, enquanto acto processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. II. A nulidade da sentença por condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido, prevista na alínea e) do nº. 1 do art.º 615º do CPC, deve ser articulada com o disposto no art.º 609.º do CPC. III. Tal regime decorre do princípio do pedido, consagrado no art.º 3.º do CPC, segundo o qual “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.”. IV. Como corolário lógico deste princípio do pedido, um dos requisitos da petição inicial é, precisamente, a formulação do pedido (art.º 552.º, n.º 1, al. e), do CPC), concretizando o CPC as possibilidades de pretensões deduzidas pelas partes: (i) pedidos alternativos (art.º 553.º do CPC); (ii) pedidos subsidiários (art.º 554.º do CPC); (iii) cumulação de pedidos (art.º 555.º do CPC); (iv) pedidos genéricos (art.º 556.º do CPC); e, por último, (v) pedidos de prestações vincendas e prestações futuras (art.º 557.º do CPC). V. Os pedidos subsidiários constituem aquilo que AA designou por alternativa aparente, em que o Autor formula dois pedidos numa relação de prejudicialidade um com o outro: isto é, para ser tomado em conta somente no caso de não proceder um pedido anterior. VI. As partes, através do pedido concretamente formulado, circunscrevem o thema decidendum do processo, indicam qual a sua pretensão, não cabendo ao juiz cuidar de saber se à situação real, estrategicamente, conviria ou não providência diversa. VII. Tendo a Autora formulado pedidos expressamente subsidiários, a procedência do pedido formulado em primeiro lugar determinaria – do ponto de vista da concreta pretensão que a Autora decidiu pedir ao Tribunal – que o pedido subsidiário formulado em b) ficasse prejudicado pela procedência daquele. VIII. A convolação oficiosa de pedidos subsidiários em pedidos cumulativos (desprovida de qualquer espontânea manifestação de vontade da Autora, ou de convite do Tribunal a esclarecer tal questão, desprezando e dispensando, no limite, qualquer contraditório aos Réus) viola o princípio do pedido e do dispositivo, determinando a nulidade da sentença, na parte em que conheceu do pedido deduzido subsidiariamente. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório:
santa casa da misericórdia de ... intentou acção declarativa comum contra BB e CC pedindo que:
- se condene os Réus a entregarem o imóvel sito no 7.º andar direito do n.º … da Av. …, em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e bens, atenta a legal resolução do contrato de arrendamento em 20-03-2021, com fundamento na falta de pagamento de rendas por mais de 5 anos; SUBSIDIARIAMENTE
- se condene os Réus no pagamento das rendas vencidas no montante de € 50.400,00 e das que entretanto se vierem a vencer até efectiva desocupação do locado, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento.
Alegou em síntese a Autora que:
- é proprietária da fracção correspondente ao 7.º andar direito do prédio sito na Av. …, n.º …, em Lisboa;
- que celebrou com os Réus, casados entre si, um contrato de arrendamento sobre a referida fracção nem 01-01-2016, mediante o qual os Réus se comprometeram ao pagamento de uma renda mensal de € 800,00;
- os Réus nunca procederam ao pagamento ao pagamento das rendas;
- por carta registada de 12-12-2019 os Réus foram interpelados para regularizar as rendas em falta, não tendo os mesmos nem respondido, nem procedido ao pagamento.
- encontram-se, assim, em dívida, à data da propositura da acção, 63 rendas à razão de €,00/mês, num total de € 50.400,00;
- atento o disposto no art.º 1083.º do CC, e a inexigibilidade de manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, a Autora, através de notificação judicial avulsa que correu termos sob os n.º 873/21.3T8LSB e 879/21.2T8LSB, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa- Juízo Local Cível, respectivamente no Juiz 7 e no Juiz 13, a Autora procedeu à resolução do referido contrato de arrendamento;
- não obstante a notificação dos Réus, os mesmos não entregaram as chaves do imóvel, nem obstaram à resolução mediante o pagamento das rendas em dívida com os legais acréscimos.
Concluem assim, no segmento final do pedido, pela procedência da acção e consequente condenação dos Réus na entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, e subsidiariamente, pela condenação dos Réus nas rendas vencidas no montante de € 50 400,00, assim como das rendas que se vierem a vencer até efectiva desocupação do locado.
Devidamente citados vieram os 1.º e 2.º Réus contestar impugnando a factualidade alegada pela Autora e alegando, em suma, que:
- os Réus sempre foram regularizando os valores das rendas devidas, tendo muitas vezes, inclusive, por lapso pago quantia superior ao devido - € 850,00 – sendo que a Autora não emitiu qualquer recibo de renda;
- é verdade que a Autora promoveu as notificações judiciais juntas aos autos, às quais os Réus nunca responderam formalmente, uma vez que foram tentando contacto telefónico com a Autora com vista a esclarecer a questão do pagamento das rendas;
- os Réus têm o pagamento de rendas regularizado, tendo já solicitado às instituições bancárias os respectivos comprovativos;
- Não tendo os Réus incumprido o contrato de arrendamento e não tendo uma mora superior a 3 meses, não tem a Autora legitimidade para proceder à resolução do contrato de arrendamento.
Concluem assim os Réus pela improcedência dos pedidos formulados pela Autora.
Por despacho de 09-10-2022, dispensou-se a realização de audiência prévia e proferiu-se despacho em conformidade com o art.º 593.º, n.º 2, do CPC, fixando-se como objecto do litígio “ indagação do eventual direito da Autora a haver a entrega, pelos Réus, do imóvel em causa nos autos ( por força do não pagamento, pelos mesmos, das rendas mensais por si devidas e consequente resolução do contrato pela demandante ) ou, subsidiariamente, a haver dos demandados a quantia de 50.400,00 Euros, a título de rendas em dívida e não pagas. “e elencando-se os temas de prova, os quais não foram objecto de reclamação.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento (iniciada em 29-06-2023 e terminada em 18-01-2024) e em 16-07-2024 foi proferida sentença na qual se decidiu:
A. Julgar parcialmente procedente, por provada, a acção e, consequentemente, condenar os Réus a restituírem à Autora o 7º andar Dt.º do prédio sito na Av. …, nº …, em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação.
B. Julgar parcialmente procedente, por provada, a acção, no que à al. b) do petitório se refere e, consequentemente, condenar os Réus a pagar à Autora a quantia de 18.916,56 Euros, acrescida da quantia mensal de 800,00 Euros a contar de 21.4.2021 e até à efectiva restituição do imóvel à Autora, tudo acrescido de juros de mora vincendos até integral pagamento, à taxa vigente sucessivamente em cada momento para os créditos dos não comerciantes e a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
C. No mais, julgar improcedente a acção e, por via disso, absolver os Réus do demais contra os mesmos peticionado.
D. Custas pelos Réus (uma vez que a parcial improcedência da lide decorre da inutilidade superveniente parcial do pedido de condenação em quantia certa pela Autora formulado, face ao pagamento, na pendência da lide, dos valores pelos Réus à mesma liquidados).
Inconformados com a sentença vieram os 1.º e 2.º Réus dela interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação.
Nas alegações apresentadas pelo 1.º Réu foram formuladas as seguintes conclusões:
i. A Santa Casa da Misericórdia da ..., intentou a acção declarativa de condenação, no sentido de ver o aqui recorrente condenado a entregar-lhe o imóvel sito na Avenida ..., em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e bens, uma vez que o contrato de arrendamento terá sido legalmente resolvido em 20.3.2021, por falta de pagamento de mais de cinco anos de rendas sucessivas;
E, subsidiariamente,
ii. A condenação dos Réus no pagamento das rendas vencidas, no montante de 50.400,00 Euros e das vincendas até à efectiva entrega do locado à demandante, quantia acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, invocando como causa de pedir, a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as Partes, em 01/01/2016,
iii. A Santa Casa da Misericórdia da ... nada mais deduziu no seu pedido. Não deduziu, apesar de todas as oportunidades processuais.
iv. Porém, o Tribunal “a quo” entendeu por bem decidir para além do que foi solicitado pela autora na petição inicial, sem qualquer fundamentação elegível.
v. O Tribunal apenas pode decidir sobre aquilo que lhe for expressamente pedido pelas partes envolvidas na acção, respeitando a autonomia das mesmas no processo, limitando-se o juiz, apenas, àquilo que é trazido a julgamento pelos litigantes.
vi. O tribunal não pode, por iniciativa própria, resolver questões que não tenham sido objeto de pedido pelas partes.
vii. A decisão no que se reporta á indemnização está ferida de nulidade, devendo ser anulada com base na seguinte fundamentação:
viii. Diz o Artigo 608.º, n.º 2 que o juiz deve decidir de acordo com os factos e o direito aplicável ao caso, respeitando sempre o objeto do litígio tal como foi previsto pelas partes.
ix. Ou seja, o juiz não pode decidir para além dos limites do pedido das partes.
x. Mais, o tribunal só pode conceder aquilo que foi pedido pelas partes, sem ultrapassar os pedidos formulados. Este é o reflexo do princípio do dispositivo, que limita a atuação do juiz ao que foi especificamente pedido pelas partes (Art.º 609.º, n.º 1, do CPC),
xi. Quando não existe respeito ao supra preceituado, a decisão resulta em nulidade da sentença, nomeadamente quando o juiz condena em algo diverso ou em quantidade superior ao que foi solicitado pelas partes. Neste caso, isso configuraria uma violação ao princípio do pedido (Art.º 615.º, n.º 1, al. e),
xii. Não podendo proceder e a sentença ser anulada no que concerne à indemnização e juros dela decorrentes.
Conclui assim pela revogação da decisão com base da referida nulidade e consequente absolvição do Réu do pedido de pagamento da indemnização e juros dela decorrentes.
Nas alegações apresentadas pela 2.º Ré foram formuladas as seguintes conclusões:
A) A ora Recorrente vem interpor o presente Recurso de Apelação, porquanto o Tribunal a quo e com a fundamentação que se transcreveu, decidiu julgar totalmente procedentes ambos os pedidos deduzidos pela Recorrida, pese embora o segundo o tenha sido de forma subsidiária e, consequentemente, condenar à entrega do locado e ao pagamento de quantia em montante superior ao peticionado; não podendo deixar de manifestar o nosso descontentamento com a decisão proferida na sentença de que recorre, lançando mão da presente Apelação, com os fundamentos que passamos a expor;
B) A aqui Recorrida, Santa Casa da Misericórdia da ..., intentou a ação declarativa de condenação, tendo como causa de pedir, a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as Partes, por falta de pagamento das rendas, operada mediante notificação judicial avulsa.
Tendo jamais alegado qualquer outra divida preexistente entre as Partes, que pudesse obrigar os Réus ao pagamento de qualquer valor para além da renda acordada em janeiro de 2016.
C) Na sua petição inicial, a aqui Apelada, invoca, como matéria de facto que compunha a causa de pedir, a celebração de um contrato de arrendamento, a falta de pagamento mensal, pelos Réus, da renda de €800,00, por 63 vezes, alega estar em divida o montante total de €50.400,00 à data da propositura da ação (30/04/2021) e invoca as notificações judiciais avulsas que visaram comunicar a resolução do contrato, efetuadas em 19/01/2021 e em 23/03/2021.
D) A ora Apelada peticiona a consequência da resolução contratual operada será a entrega do locado, deduzindo como pedido principal a condenação dos Réus à entrega do locado e peticiona a título subsidiário, a condenação do Réus ao pagamento as rendas vencidas no montante de €50.400,00 e das rendas que, entretanto, se vieram a vencer até efetiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora.
E) No despacho saneador proferido, o douto Tribunal de Primeira Instância determinou que o objeto do litígio se reconduzia à indagação do eventual direito da Autora a haver a entrega, pelos Réus, do imóvel em causa nos autos (por força do não pagamento, pelos mesmos, das rendas mensais por si devidas e consequente resolução do contrato pela demandante) ou, subsidiariamente, a haver dos demandados a quantia de 50.400,00 Euros, a título de rendas em dívida e não pagas.
F) Mais, definiu como único tema de prova “à indagação do eventual pagamento, pelos Réus, das rendas pelos mesmos devidas à Autora desde Janeiro de 2016, acrescidas do valor mensalmente acordado como em dívida à data da outorga do contrato em causa nos autos. (…)”.
G) Porém, na douta sentença de que ora se apela reitera-se que “o objeto do litígio se reconduz ao eventual direito da Autora a lograr a condenação dos Réus a entregar-lhe, livre e desocupado de pessoas e bens, o andar em causa nos autos, face à resolução extracontratual do mesmo contrato pela demandante, com data de 20.3.2021”, acrescentando desta feita “e ainda, subsidiariamente - ou não - a condenação dos Réus no pagamento das rendas vencidas (50.400,00 Euros) e das entretanto vincendas até à efetiva entrega do locado”.
H) Temos, portanto, que aquando da sentença e apenas nesse momento, entendeu o Tribunal a quo alterar o objeto do litígio e as questões sobre as quais havia sido chamado pelas Partes a decidir, ficando evidente que iria além do que havia sido fixado e incluir o pedido subsidiário como questão sobre a qual se iria também debruçar.
I) Não bastando a consideração e julgamento pelo Tribunal a quo de ambas as questões, principal e subsidiária, também é patente na douta sentença em causa, condenar os Réus em objeto diverso do que se pedir e em quantidade superior àquela peticionada.
J) A apelada peticionou a título subsidiário a quantia de €50.400,00, devidos pelas rendas vencidas, acrescida de rendas vincendas e juros.
K) Aquando do saneamento do processo foi fixado o valor da causa em 74.000,00, com base nos art.º 298, nº 1 do C. P. C, que determina a regra do valor das rendas em divida acrescido de dois anos e meio de rendas, revelando-se, assim, que o valor de €50.400,00 foi o indicado pela Autora/Recorrida como sendo o valor das rendas em divida em março de 2021.
L) É indiscutível que petição inicial tal como configurada pela Autora e a Contestação dos Réus determina o objeto do processo, as questões a resolver e coloca limites de condenação ao Tribunal a quo, afigurando-se o princípio do dispositivo pedra basilar de qualquer decisão judicial e é com base neste princípio do dispositivo, consagrado no art.º 609º do CPC, que se desenham os nós górdios que fere a douta sentença de que se decorre de nulidade.
M) Com a justificação que supra se transcreveu, que se “crê patente que o alegado pedido subsidiário formulado em sede da al. b) do petitório não reveste tal natureza e sim a de um pedido cumulado com o da condenação dos Réus a restituírem-lhe o locado, livre e devoluto de pessoas e bens”, porque subsidiariamente também se peticiona as rendas que se vencerem até à efetiva restituição do imóvel, veio a Exma. Juiz do Tribunal de Primeira Instância conhecer a avaliar de ambos os pedidos.
N) Entendeu, o Tribunal a quo, que o segundo pedido não foi formulado para a hipótese de o primeiro improceder, mas sim em cumulação com o primeiro!
O) Estamos, portanto, perante uma sentença que se substitui à Apelada, corrige a natureza dos pedidos por ela formulados, para condenar os Réus conforme considera que devia ter sido peticionado pela Autora!
P) Note-se que a Autora podia ter alterado o pedido ou mesmo ampliá-lo, no limite, até desistir da instância e intentar nova ação, nunca o tendo feito ao longo de todo o processo que durou mais de 3 anos.
Q) A aqui Recorrida deduziu o pedido conforme foi sua pretensão, manteve essa pretensão ao longo de todo processo, definindo, assim, a sua causa de pedir e o seu pedido, conforme era sua prorrogativa e delimitando, dessa forma, os poderes de cognição e decisão do Tribunal a quo.
R) Não se vislumbra qualquer motivo, justificação ou até base legal para o Tribunal se substituir à Autora e corrigir ou alterar a natureza do pedido, ao arrepio de qualquer princípio da estabilidade da instância.
S) Veja-se a este propósito Ac. proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 605/17.0T8PVZ.P1.S1, quando se determina que: “Como decorrência do princípio do dispositivo, continua a vingar na nossa lei adjectiva o princípio do pedido, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida (art.º 3º, n.º 1 do CPC)”.
T) Prossegue a mesma jurisprudência determinando que: “Se é certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, também não devem, sem assento no alegado e peticionado pelo Autor, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido”; “Quando perante o alegado na petição inicial há dúvidas quanto aos concretos e efectivos pedidos pretendidos pelo Autor ou ao real conteúdo da pretensão, e, recorrendo às regras interpretativas da declaração judicial, se extrai implícita uma outra pretensão petitória não expressamente ali formulada, pode o tribunal levá-la em conta, extraindo os efeitos jurídicos correspondentes, sem dessa forma violar o princípio do pedido”; “Pedido implícito é aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.”
U) Ora, no caso em concreto, ao invés é obvio que a Apelada escreveu o termo jurídico “subsidiariamente” no seu pedido porque assim o quis, caso contrário bastaria nada escrever para os pedidos deverem ser ambos tidos em consideração. Não se está a retirar nada implícito da ação, mas sim, a contrariar o pedido clara e expressamente formulado.
V) Ao invés de julgar e decidir em conformidade com o que havia sido pedido, a Exma. Juiz do douto Tribunal de Primeira Instância, “corrigiu” a natureza dos pedidos e decidiu tomar em consideração também o pedido formulado subsidiariamente depois de condenar tal como peticionado a título principal.
W) Salvo melhor opinião, não basta defender que é crível que os pedidos são afinal cumulados, porque da redação do pedido que, saliente-se, não devia ter sido considerado pelo Tribunal a quo pela procedência do primeiro, se deduz que se queria que fossem cumulados.
X) Andou mal o Tribunal a quo ao julgar procedente a matéria de facto que compões o pedido subsidiário, quando devia prevalecer o peticionado e os pressupostos sobre os quais se desenvolveu todo o processo e entender-se que a Autora peticionou como subsidiário aquilo que pretendia ver julgado caso não lhe fosse procedente o pedido primeiramente deduzido.
Y) A sentença de que se recorre, conforme ora exposto, está ferida de nulidade, nos termos do disposto nos arts. 608º, n.º 2, 609º, n.º 1 e 615º, n.º 1, al. e) do CPC, porquanto faz tábua rasa do pedido tal como formulado pela Recorrida, do princípio do impulso processual e estabilidade da instância e acima de tudo do princípio do dispositivo que se impunha ao Tribunal a quo, quando altera oficiosamente a natureza dos pedidos formulados e condena em ambos os pedidos.
Z) Porém, este não é a única nulidade que a sentença proferida pela Primeira Instância enferma, nem tão pouco a mais evidente. Para além de ter considerado um pedido subsidiário como cumulado ao principal, o douto Tribunal a quo condenou também em objeto diverso e em quantidade muito superior á peticionada pela Autora/Recorrida.
AA) Uma vez mais se afirma, a título subsidiário, a Autora peticionou a condenação dos RR. na a quantia de €50.400,00 em 30/04/2021, acrescida das rendas que se vierem a vencer desde a data da propositura da ação, até à data de entrega do imóvel. Surpreendentemente, veio o Tribunal a quo decidir que os RR. “deveriam ter pago à demandante, até Junho de 2023 (data da primeira sessão de julgamento e por os Réus não terem restituído o imóvel à Autora), a quantia total de 84.000,00 Euros”, considerando que “ainda se encontrarem em dívida à Autora da quantia referida em tal ponto da matéria de facto provada aludida, ou seja, a de 18.916,56 Euros.” e condenando os RR. “a pagarem-lhe a quantia de 18.916,56 Euros e, a título de indemnização pela não restituição do imóvel após o decurso de um mês a contar da resolução extrajudicial do contrato de arrendamento, a quantia correspondente ao valor da renda mensal, ou seja, o valor de 800,00 por cada mês decorrido desde 21.4.2021 até à efectiva entrega do locado à Autora, livre de pessoas e bens, conforme o disposto nos artºs 1038, al. i), 1043, 1045, 1081 e 1087 do C. Civil.”
BB) Ora, em março de 2021 a Recorrida peticionou o valor de €50.400,00, mais as rendas que se vencessem desde aí até á data da entrega do imóvel, alegando que os RR. nunca tinham procedido ao pagamento de qualquer renda.
CC)No entanto, à revelia do peticionado pela Recorrida, o Tribunal a quo condenou os RR. ao pagamento de €84.000,00, acrescida de uma indemnização, jamais peticionada pela A., contabilizada à razão de €800,00 desde a data da notificação da resolução extrajudicial do contrato e não da propositura da ação.
DD) Não podemos olvidar que o objeto do processo se prendia com a resolução do contrato de arrendamento, no entanto resulta da sentença a consideração da divida dos RR. em montante muito superior ao que resultaria se nos cingíssemos ao que o Tribunal devia apreciar, porque em bom rigor o Tribunal a quo considerou provada a existência de outra divida, imputando pagamento feitos pelos RR. a essa divida, que nunca foi alegada pela aqui Apelada.
EE) O objeto do processo corresponde às questões jurídicas sobre as quais o tribunal é chamado a pronunciar-se. Identifica-se por referência aos factos a que se reportam as questões submetidas a julgamento e à qualificação que as normas de direito fazem desses factos; pelo que, cremos que se extravasou largamente o objecto do processo como havia sido definido, tendo andado mal, uma vez mais e salvo melhor entendimento, o douto Tribunal de Primeira Instância, quando considera matéria de facto nunca alegada na petição inicial para condenar os RR. a pagar uma divida nunca anteriormente alegada e alheia ao objecto do processo anteriormente definido.
FF) Duvidas houvessem sobre a “alteração oficiosa” da natureza dos pedidos formulados pela Autora/Recorrida, fica evidente a alteração do objeto processualmente definido, por condenar os Réus sobre matéria que nunca tinha sido alegada pela Apelada e duvidas não pode haver sobre a condenação em pedido em quantidade superior do que se pediu. Deveras superior.
GG) O Acórdão proferido pelo STJ acima citado, mais se aplica no que a esta nulidade se refere, quando se afirma que os Exmos. Juízes “não devem, sem assento no alegado e peticionado pelo Autor, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido”.
HH) Em bom rigor o Tribunal a quo considerou provada a existência de outra divida e imputou pagamento feitos pelos RR. a essa mesma divida, que nunca foi alegada pela aqui Apelada e neste ponto em concreto, cremos que se extravasou largamente o objecto do processo como havia sido definido.
II) Duvidas houvessem sobre a “alteração oficiosa” da natureza dos pedidos formulados pela Autora/Recorrida, duvidas não restam quanto à condenação dos RR. em objeto diverso do processualmente definido e duvidas também não pode haver sobre a condenação em pedido em quantidade superior do que se pediu. Deveras superior.
JJ) É facto que o Tribunal a quo foi para além do objeto e muito para além da quantidade peticionada pela Recorrida, violando, também neste ponto, os limites que se impunham a uma condenação, previstos no art.º 609º do CPC, pelo que também por esta via se reitera a nulidade da sentença prevista no art.º 615º, n.º 1., al. e) do CPC.
KK) Face a todo o exposto, resulta evidente que a sentença proferida pela douta Primeira Instância, ao apreciar e condenar os RR. também no pedido subsidiário, em objeto diverso do pedido e em quantidade superior daquela peticionada, padece de duas nulidades, previstas no art.º 615º, n.º 1, al. e) do CPC, porquanto apreciou questões que não devia resolver, nos termos do art.º 608º, n.º 2 do CPC e condenou apara além dos limites que se lhe impunham, nos termos dos art.º 609º, n.º 1 do CPC.
LL)Quando o que se impunha ao Tribunal a quo na observância do princípio do dispositivo, era o impedimento de condenar em quantia superior ou em objeto diverso do que havia sido pedido, devendo cingir-se a conhecer o pedido principal, a matéria de facto relevante para as questões que foi chamado a resolver e limita-se à quantia peticionada.
MM) O Exmo. Juiz da 1ª Instância não podia conhecer senão das questões apresentadas pelas partes e tal como o foram, como também não pode proferir decisão que ultrapassasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objeto, sob pena de a sentença ficar afetada de nulidade, quer no caso de conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, quer ainda quando condene em quantidade superior ou em objeto diferente do pedido.
NN) De todo o supra exposto, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo merece censura, devendo, por isso, a sentença de que se recorre ser alterada e substituída por outra que supra as vicissitudes ora invocadas.
Conclui assim pela procedência da presente apelação e consequente “alteração da sentença no que concerne ás nulidades ora invocadas e por consequência, julgar apenas o pedido principal deduzido contra os Apelantes, devendo ser absolvidos quanto a qualquer quantia peticionada ou no limite apenas á quantia peticionada pela Apelada.”
A Autora não apresentou contra-alegações.
Pela Mma. Juiz a quo foi proferido despacho, nos termos do art.º 641.º do CPC, tendo-se pronunciado nos seguintes termos:
“1 – Das pretensas nulidades da decisão recorrida
Em sede das suas alegações de recurso vêm os Réus arguir nulidades da sentença nos autos proferida, nulidades alegadamente previstas pelo art.º 615, nº 1, al. e) do C. P. Civil, ex vi do art.º 609 do mesmo diploma legal.
Para tanto, alegam a nulidade da aludida decisão com fundamento em excesso de pronúncia e violação do princípio do dispositivo, quer por o tribunal ter proferido condenação dos mesmos, desde logo, a pagar uma indemnização nos autos não peticionada pela Autora, quer por ter, alegadamente, considerado como pedidos cumulados pedidos subsidiários - assim, supostamente, alterando o pedido da demandante a seu bel prazer - e tal lhe estar vedado quer, ainda, por ter condenado em quantia diversa do pedido por nunca ter sido alegada, pela Autora, qualquer outra dívida além das rendas vencidas desde a outorga do contrato.
Salvo o devido por opinião contrária, é evidente que as aludidas nulidades de excesso de pronúncia se não podem imputar à decisão recorrida.
Com efeito, os pedidos formulados pela Autora nos autos contra os Réus, em sede da p. inicial, cifravam-se nos seguintes:
a. na condenação dos Réus a entregarem-lhe, livre e devoluto de pessoas e bens, o imóvel sito no 7º andar Dt.º do prédio sito na Av. …, nº …, em Lisboa em consequência da resolução do contrato de arrendamento em causa nos autos pela Autora, em 20.3.2021, com fundamento na falta de pagamento de rendas por mais de cinco anos de rendas sucessivas
e, Subsidiariamente,
b. na condenação dos Réus a pagarem à Autora as rendas vencidas, no montante de 50.400,00 Euros e das que se viessem a vencer até à efectiva desocupação do locado, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Da enunciação de tais pedidos resulta, de forma clara:
a. que apesar da utilização, em sede da p. inicial, da expressão subsidiariamente no que se refere ao pedido de condenação dos demandados no pagamento das rendas vencidas e das vincendas até à entrega efectiva do locado, acrescidas de juros até integral pagamento, tais pedidos foram efectivamente deduzidos numa relação de cumulação um com o outro.
Efectivamente e se assim não fosse, não se pediria a condenação dos ora recorrentes a pagar a quantia de 50.400,00 Euros de rendas vencidas e as vincendas até à efectiva entrega ou desocupação do locado, tudo acrescido de juros de mora até efectivo pagamento, não se podendo, por isso e desde logo, concluir por qualquer alteração do ou dos pedidos pelo tribunal, pela violação do princípio do dispositivo ou por excesso de pronúncia, nessa parte.
Diga-se, aliás, que nos termos do art.º 5º, nº 3 do C. P. Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, sendo que, no caso, se patenteia serem os aludidos pedidos - de condenação dos Réus a entregarem à Autora o locado, livre e devoluto de pessoas e bens e de pagamento das rendas vencidas e não pagas e das que entretanto se vencessem até à sua efectiva entrega, tudo acrescido de juros de mora -, face à redacção dos mesmos e apesar da menção “ e subsidiariamente “, pedidos cumulados entre si, inexistindo qualquer alteração do pedido pelo tribunal e/ou excesso de pronúncia ou mesmo violação do princípio do dispositivo, ao contrário do referido pelos recorrentes.
O mesmo se diga, quanto à não verificação da pretensa nulidade da sentença por condenação dos Réus em indemnização alegadamente não peticionada nos autos, no que tange à sua condenação a pagar à demandante, a título de indemnização, valor coincidente com o da renda devida desde a resolução do contrato e até à efectiva entrega do primitivo locado.
Com efeito, a demandante peticionou a condenação dos Réus, em cumulação - como se viu supra - com o pedido da sua condenação a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens e a pagarem-lhe as rendas vencidas e não pagas até à sua entrega, no pagamento das “ rendas vincendas até à entrega do locado “, pedido que se traduz, efectivamente, no de condenação dos Réus em indemnização coincidente, mensalmente, com o valor da renda mensal, ou seja, numa indemnização pela manutenção da ocupação, para lá da cessação do contrato, na sequência de resolução contratual pela Autora efectivada com fundamento no não pagamento de rendas desde o início do contrato.
Ora, tal pedido (de condenação no valor mensal da renda até à efectiva restituição do imóvel) reconduz-se ao pedido de indemnização previsto pelo art.º 1045, nº 1 do C. Civil, assim se evidenciando a não verificação da nulidade de excesso de pronúncia.
Finalmente e no que se refere à pretensa nulidade de excesso de pronúncia e condenação para lá do pedido - face à consideração de alegada dívida dos Réus não invocada nem alegada pela demandante nos autos -, também a mesma se não verifica.
Na realidade, decorre da análise da p. inicial e do contrato de arrendamento em causa nos autos (pelos demandados não impugnado) que os Réus reconheceram estar em dívida, à data da sua outorga - 1.1.2016 - e para com a demandante, da quantia de 12.000,00 Euros a título de rendas vencidas e não pagas por força de anterior contrato de arrendamento entre as partes e de que, por isso, deveriam pagar, durante 60 meses do contrato, um total mensal de 1.000,00 Euros (sendo 800,00 Euros de renda vincenda e 200,00 Euros a título de rendas já então em dívida).
É, pois, patente, que os demandados, a quem incumbia o ónus da prova do pagamento da renda e de tais prestações para amortização de tal dívida anterior, se limitaram a provar ter pago à Autora apenas os valores elencados em III -, A), 17 - e 18 - da sentença ora impugnada e que, por isso, em 29 de Junho de 2023 os mesmos deviam à Autora, a título de rendas, a quantia de 18.916,56 Euros.
Em suma e sem mais, não se verificam as arguidas nulidades da decisão, por reporte aos artºs 609 e 615, nº 1, al. e) do C. P. Civil. (…)”
*
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- se verifica a nulidade da sentença proferida.
*
II. Fundamentação:
Na primeira instância foram considerados os seguintes:
II. a) Factos Provados da instrução e discussão da causa
1 - A Autora é proprietária da fracção autónoma correspondente ao 7º andar Dt.º do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Av. ..., nº …, em Lisboa.
2 - Por acordo reduzido a escrito e datado de 1 de Janeiro de 2016, a Autora deu de arrendamento aos Réus, casados e exclusivamente para sua habitação, o 7º andar Dt.º do prédio sito na Avenida ..., nº ..., em Lisboa, que estes declararam tomar de arrendamento à mesma.
3 - Nos termos do mesmo acordo, o arrendamento entre as partes foi celebrado pelo prazo de um ano, com início em 1.1.2016 e termo em 31.12.2016, renovando-se automaticamente no seu termo por períodos sucessivos de igual duração, salvo se denunciado pela demandante com uma antecedência de 120 dias relativamente ao prazo da renovação.
4 - Nos termos do mesmo acordo os Réus não podiam dar ao andar aludido em 1 - qualquer outro fim que não o da sua habitação, nem sublocá-lo ou cedê-lo, sem prévio consentimento, dado por escrito, pela demandante.
5 - Nos termos do acordo referido supra, a renda anual a pagar pelos Réus à Autora era de 9.600,00 Euros, paga em duodécimos de 800,00 Euros, através de transferência bancária para a conta com o NIB ...067, vencendo-se no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que dissesse respeito.
6 - Nos termos do acordo referido em 2 - e segs., os Réus comprometeram-se ainda a pagar à Autora a quantia mensal de 200,00 Euros, quantia essa paga a título de amortização de rendas em dívida, no valor que declararam reconhecer como sendo devidas durante 60 meses, a contar da data de 1.1.2016 e no pressuposto da sua renovação, sendo assim o valor mensal a pagar pelos Réus à Autora de 1.000,00 Euros até à amortização da dívida.
7 - No mais, dou como reproduzido o teor do documento constante de fls. 26 a 29 dos autos, que constitui o documento nº 2 junto aos autos com a p. inicial.
8 - Por carta registada com aviso de recepção, datada de 12.12.2019, dirigida ao Réu e por este recebida, DD, advogado, comunicou ao demandado, o seguinte:
“Assunto: Falta de pagamento de rendas.
Exma Senhora,
Fui incumbido pela Santa Casa da Misericórdia de ... para resolver em definitivo o assunto respeitante à dívida de V. Exa., quer no respeitante à já confessada, quer quanto às rendas, entretanto vencidas e igualmente não pagas.
Antes de recorrer ao tribunal para fazer cessar esta situação, gostaria de reunir com V. Exa. para, através de forma consensual, chegarmos a um entendimento que ponha termo final a este assunto.
Agradeço, assim, um contacto de V. Exa. no prazo de oito dias, a fim de marcarmos reunião no meu escritório para o efeito.
Findo este prazo e caso não receba da sua parte qualquer comunicação, entenderei como tal não existir interesse da sua parte para a resolução do diferendo, intentando de imediato as acções judiciais respetivas.
Sem outro assunto, com os melhores cumprimentos.
Atentamente
DD “.
9 - Os Réus não responderam à carta aludida em 7 -
10 - A Autora requereu a notificação judicial avulsa do Réu, na morada correspondente ao locado, notificação que correu termos no 7º Juízo Local Cível de Lisboa, sob o nº 873/21.3T8LSB em que a Autora requereu a notificação do Réu de que:
a) considerava resolvido o contrato de arrendamento celebrado em 1.1.2016, referente ao 7º andar direito do nº … da Av. …, em Lisboa, por falta de pagamento da renda;
b) de que deveria entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens no prazo de 30 dias a contar da sua notificação;
c) de que se encontrava em dívida a quantia de 49.600,00 Euros, devendo o mesmo proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias a contar da sua notificação e,
d) de que a notificação em causa permitiria o recurso aos meios judiciais competentes com vista à instauração da acção de despejo com vista à entrega do locado bem como da respectiva acção com vista à cobrança coerciva da dívida ou, em alternativa, ao recurso ao procedimento especial de despejo.
11 - Na sequência do aludido em 10 -, o Réu foi, em 2.2.2021, notificado nos termos pela aqui Autora - e ali requerente - requeridos.
12 - A Autora requereu a notificação judicial avulsa da Ré na morada correspondente ao locado, notificação que correu termos no 13º Juízo Local Cível de Lisboa, sob o nº 879/21.2T8LSB e em que a Autora requereu a notificação da Ré de que:
a) considerava resolvido o contrato de arrendamento celebrado em 1.1.2016, referente ao 7º andar direito do nº … da Av. …, em Lisboa, por falta de pagamento da renda;
b) de que deveria entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens no prazo de 30 dias a contar da sua notificação;
c) de que se encontrava em dívida a quantia de 49.600,00 Euros, devendo o mesmo proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias a contar da sua notificação e,
d) de que a notificação em causa permitiria o recurso aos meios judiciais competentes com vista à instauração da acção de despejo com vista à entrega do locado bem como da respectiva acção com vista à cobrança coerciva da dívida ou, em alternativa, ao recurso ao procedimento especial de despejo.
13 - Na sequência do aludido em 12 - a Ré foi, em 2.2.2021, notificada, na pessoa do Réu e por agente de execução, nos termos pela aqui Autora - e ali requerente - requeridos.
14 - Por a notificação referida em 13 - não ter sido pessoalmente efectuada na pessoa da aqui Ré, a Autora, por intermédio do seu advogado e com cópia da procuração a favor do mesmo, dirigiu à Ré carta registada com aviso de recepção para a morada do locado em causa nos autos, carta essa datada de 10.3.2021 e nessa data expedida, procedendo à sua notificação nos termos do art.º 10º, nº 5, al. b) da Lei nº 6/2006, de 27/2.
15 - A carta referida em 14 - foi devolvida ao remetente.
16 - Os Réus foram citados para a presente acção em 24 de Maio de 2021.
17 - Entre 1 de Janeiro de 2016 e 24 de Maio de 2021, os Réus efectuaram os seguintes pagamentos à Autora, por meio de transferência bancária, referentes ao acordo aludido em 1 - a 6 -:
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 10 de Janeiro de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 9 de Fevereiro de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 10 de Maio de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 15 de Agosto de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 10 de Outubro de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 10 de Novembro de 2017;
- um pagamento no valor de 850,00 Euros, em 22 de Dezembro de 2017;
- um pagamento no valor de 18.683,44 Euros, em 4 de Março de 2021;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 5 de Abril de 2021 e,
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 3 de Maio de 2021.
18 - Após a data referida em 16 -, os Réus fizeram os seguintes pagamentos à Autora, por meio de transferência bancária:
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 8 de Junho de 2021;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 7 de Julho de 2023;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 10 de Agosto de 2023;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 1 de Setembro de 2023;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 4 de Outubro de 2023;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 1 de Novembro de 2023;
- um pagamento no valor de 800,00 Euros, em 5 de Dezembro de 2023;
- um pagamento no valor de 4.800,00 Euros, em 20 de Junho de 2023;
- um pagamento no valor de 24.000,00 Euros, em 26 de Junho de 2023;
- um pagamento no valor 4.800,00 Euros, em 27 de Junho de 2023;
- um pagamento no valor de 3.200,00 Euros, em 28 de Junho de 2023 e,
- um pagamento no valor de 855,00 Euros, em 3 de Janeiro de 2024.
19 - Em 29 de Junho de 2023, o valor em dívida pelos Réus à Autora, por referência ao acordo aludido em 1 - a 6 - supra, cifrava-se em 18.916,56 Euros.
20 - O Réu mantém-se a ocupar o andar em causa nos autos.
21 - A Autora imputou parte dos valores pelos Réus pagos à mesma, desde 1.1.2016, nos valores em débito referentes a contrato de arrendamento anterior entre as partes celebrado e relativamente ao qual os demandados reconheceram, em sede do acordo aludido em A), 2- a 7 -, a existência de uma dívida dos mesmos para com a Autora, no valor de 12.000,00 Euros.
II. b) Factos Não provados
1 - Que os Réus sempre tenham ido regularizando o pagamento das rendas devidas à Autora.
2 - Que os Réus tenham pago, muitas vezes e por lapso, valor superior ao da renda devida nos termos do acordo aludido em A), 1 - a 6 - e, em concreto, a quantia de 850,00 Euros.
3 - Que os Réus não tenham respondido às notificações feitas pela Autora por terem ficado surpreendidos com o seu teor e por terem tentado o contacto telefónico com a demandante, sem êxito, com vista a esclarecer não ser verdade que não tivessem procedido ao pagamento das rendas devidas.
4 - Que os Réus tivessem, no momento da apresentação da contestação, o pagamento das rendas regularizado.
*
III. O Direito:
Nulidade da Sentença – art.º 615.º, n.º 1, do CPC
Em sede de recurso vieram os recorrentes invocar a nulidade da sentença recorrida na medida em que a mesma os condenou em objecto qualitativa e quantitativamente diverso e superior ao solicitado pela Autora.
O 1.º Réu entende que a nulidade se verifica no que concerne ao pagamento de uma indemnização – al. c) do dispositivo;
A 2.ª Ré entende que esse nulidade se verifica quer no que concerne ao pagamento de uma indemnização – al. c) do dispositivo – quer no que concerne à condenação no pedido formulado a título subsidiário, e que o Tribunal recorrido cumulou com o pedido principal (pedido de condenação na entrega do locado, objecto de resolução).
Não obstante serem diversas as alegações, e respectivas conclusões, dos recursos do 1.º e da 2.ª Ré, ambos entendem estar em causa uma nulidade da sentença nos termos consignados na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Cumpre apreciar:
A nulidade da sentença, tendo por fundamentos os taxativamente elencados pelo legislador no art.º 615.º do CPC, reporta-se a actos ou omissões praticadas pelo tribunal a jusante, no âmbito do processo decisório, referindo-se, por natureza, à própria decisão.
Na verdade, como se sabe, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Tribunal da Relação e Supremo Tribunal têm reiteradamente declarado (entre muitos outros que se poderiam citar Ac. do STJ de 24-01-2024).
Assim a questão a analisar primeiramente é a de indagar se, in casu, (i) as causas de nulidade da decisão invocadas pelo recorrente integram alguma das previsões do art.º 615.º do CPC e, em caso afirmativo, (ii) se as mesmas se verificam em concreto.
No que a este aspecto diz respeito referem os Réus / Apelantes, nas suas conclusões que:
Recurso do 1.º Réu:
i. A Santa Casa da Misericórdia da ..., intentou a acção declarativa de condenação, no sentido de ver o aqui recorrente condenado a entregar-lhe o imóvel sito na Avenida ..., em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e bens, uma vez que o contrato de arrendamento terá sido legalmente resolvido em 20.3.2021, por falta de pagamento de mais de cinco anos de rendas sucessivas;
E, subsidiariamente,
ii. A condenação dos Réus no pagamento das rendas vencidas, no montante de 50.400,00 Euros e das vincendas até à efectiva entrega do locado à demandante, quantia acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, invocando como causa de pedir, a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as Partes, em 01/01/2016, (…)
iv. Porém, o Tribunal “a quo” entendeu por bem decidir para além do que foi solicitado pela autora na petição inicial, sem qualquer fundamentação elegível.
vii. A decisão no que se reporta á indemnização está ferida de nulidade, devendo ser anulada com base na seguinte fundamentação (…)
Recurso da 2.ª Ré:
“(…) D)A ora Apelada peticiona a consequência da resolução contratual operada será a entrega do locado, deduzindo como pedido principal a condenação dos Réus à entrega do locado e peticiona a título subsidiário, a condenação do Réus ao pagamento as rendas vencidas no montante de €50.400,00 e das rendas que, entretanto, se vieram a vencer até efetiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora.
E) No despacho saneador proferido, o douto Tribunal de Primeira Instância determinou que o objeto do litígio se reconduzia à indagação do eventual direito da Autora a haver a entrega, pelos Réus, do imóvel em causa nos autos (por força do não pagamento, pelos mesmos, das rendas mensais por si devidas e consequente resolução do contrato pela demandante) ou, subsidiariamente, a haver dos demandados a quantia de 50.400,00 Euros, a título de rendas em dívida e não pagas.
F) Mais, definiu como único tema de prova “à indagação do eventual pagamento, pelos Réus, das rendas pelos mesmos devidas à Autora desde Janeiro de 2016, acrescidas do valor mensalmente acordado como em dívida à data da outorga do contrato em causa nos autos. (…)”.
G) Porém, na douta sentença de que ora se apela reitera-se que “o objeto do litígio se reconduz ao eventual direito da Autora a lograr a condenação dos Réus a entregar-lhe, livre e desocupado de pessoas e bens, o andar em causa nos autos, face à resolução extracontratual do mesmo contrato pela demandante, com data de 20.3.2021”, acrescentando desta feita “e ainda, subsidiariamente - ou não - a condenação dos Réus no pagamento das rendas vencidas (50.400,00 Euros) e das entretanto vincendas até à efetiva entrega do locado”.
H) Temos, portanto, que aquando da sentença e apenas nesse momento, entendeu o Tribunal a quo alterar o objeto do litígio e as questões sobre as quais havia sido chamado pelas Partes a decidir, ficando evidente que iria além do que havia sido fixado e incluir o pedido subsidiário como questão sobre a qual se iria também debruçar.
I) Não bastando a consideração e julgamento pelo Tribunal a quo de ambas as questões, principal e subsidiária, também é patente na douta sentença em causa, condenar os Réus em objeto diverso do que se pedir e em quantidade superior àquela peticionada.
J) A apelada peticionou a título subsidiário a quantia de €50.400,00, devidos pelas rendas vencidas, acrescida de rendas vincendas e juros.
(…)
N) Entendeu, o Tribunal a quo, que o segundo pedido não foi formulado para a hipótese de o primeiro improceder, mas sim em cumulação com o primeiro!
O) Estamos, portanto, perante uma sentença que se substitui à Apelada, corrige a natureza dos pedidos por ela formulados, para condenar os Réus conforme considera que devia ter sido peticionado pela Autora!
P) Note-se que a Autora podia ter alterado o pedido ou mesmo ampliá-lo, no limite, até desistir da instância e intentar nova ação, nunca o tendo feito ao longo de todo o processo que durou mais de 3 anos.
Q) A aqui Recorrida deduziu o pedido conforme foi sua pretensão, manteve essa pretensão ao longo de todo processo, definindo, assim, a sua causa de pedir e o seu pedido, conforme era sua prorrogativa e delimitando, dessa forma, os poderes de cognição e decisão do Tribunal a quo. (…)”
Para além do exposto, acrescenta ainda que o Tribunal condenou ainda em quantidade superior ou objecto diverso do pedido por:
“ (…)BB) Ora, em março de 2021 a Recorrida peticionou o valor de €50.400,00, mais as rendas que se vencessem desde aí até á data da entrega do imóvel, alegando que os RR. nunca tinham procedido ao pagamento de qualquer renda.
CC)No entanto, à revelia do peticionado pela Recorrida, o Tribunal a quo condenou os RR. ao pagamento de €84.000,00, acrescida de uma indemnização, jamais peticionada pela A., contabilizada à razão de €800,00 desde a data da notificação da resolução extrajudicial do contrato e não da propositura da ação.
DD) Não podemos olvidar que o objeto do processo se prendia com a resolução do contrato de arrendamento, no entanto resulta da sentença a consideração da divida dos RR. em montante muito superior ao que resultaria se nos cingíssemos ao que o Tribunal devia apreciar, porque em bom rigor o Tribunal a quo considerou provada a existência de outra divida, imputando pagamento feitos pelos RR. a essa divida, que nunca foi alegada pela aqui Apelada.
EE) O objeto do processo corresponde às questões jurídicas sobre as quais o tribunal é chamado a pronunciar-se. Identifica-se por referência aos factos a que se reportam as questões submetidas a julgamento e à qualificação que as normas de direito fazem desses factos; pelo que, cremos que se extravasou largamente o objecto do processo como havia sido definido, tendo andado mal, uma vez mais e salvo melhor entendimento, o douto Tribunal de Primeira Instância, quando considera matéria de facto nunca alegada na petição inicial para condenar os RR. a pagar uma divida nunca anteriormente alegada e alheia ao objecto do processo anteriormente definido.
FF) Duvidas houvessem sobre a “alteração oficiosa” da natureza dos pedidos formulados pela Autora/Recorrida, fica evidente a alteração do objeto processualmente definido, por condenar os Réus sobre matéria que nunca tinha sido alegada pela Apelada e duvidas não pode haver sobre a condenação em pedido em quantidade superior do que se pediu. Deveras superior. (…”
a.1) Condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido
A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607.º a 609.º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença, enquanto acto processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A nulidade da sentença por condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido está prevista na alínea e) do nº. 1 do art.º 615º do Cód. Proc. Civil.
Este preceito deve ser articulado com o art.º 609.º do CPC onde se dispõe que “1. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir. (…)”
Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objeto, isto sob pena de a sentença ficar afectada de nulidade, quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, quer ainda quando condene em quantidade superior ou em objeto diferente do pedido (artigo 615.º, n.º1, alíneas d) e e), do Código de Processo Civil) – neste sentido ver Ac. STJ de 09-01-2024.
Como se refere no supra citado Ac. do STJ, “Como refere Miguel Teixeira de Sousa (In Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 362) - apesar de se referir ao VCódigo de Processo Civil, o ensinamento se mantém em face do NCódigo de Processo Civil - “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso …, e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido … . A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia… ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado …”.
No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
Em conformidade, a violação desta proibição importará na nulidade da sentença – vd. art.º 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
Tal regime decorre do princípio do pedido, consagrado no art.º 3.º do CPC. Conforme ali se dispõe “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.”.
Como corolário lógico deste princípio do pedido, um dos requisitos da petição inicial é, precisamente, a formulação do pedido, conforme resulta do art.º 552.º, n.º 1, al. e), do CPC.
Concretizando as possibilidades de pretensões deduzidas pelas partes, é o próprio CPC que nos diz que é permitida a dedução de pedidos (i) alternativos (art.º 553.º do CPC); (ii) pedidos subsidiários (art.º 554.º do CPC); (iii) cumulação de pedidos (art.º 555.º do CPC); (iv) pedidos genéricos (art.º 556.º do CPC); e, por último, (v) pedidos de prestações vincendas e prestações futuras (art.º 557.º do CPC).
É o próprio CPC que nos caracteriza a natureza do pedido, nos respectivos artigos em que prevê a sua admissibilidade.
Nos presentes autos, em face da petição inicial, resulta claro que a Autora deduziu pedidos subsidiários.
Atente-se na formulação efectuada pela Autora: “- se condene os Réus a entregarem o imóvel sito no 7.º andar direito do n.º … da Av. …, em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e vens, atenta a legal resolução do contrato de arrendamento em 20-03-2021, com fundamento na falta de pagamento de rendas por mais de 5 anos; SUBSIDIARIAMENTE - se condene os Réus no pagamento das rendas vencidas no montante de € 50 400,00 e das que entretanto se vierem a vencer até efectiva desocupação do locado, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento.”
Os pedidos subsidiários constituem aquilo que AA designou por alternativa aparente, em que o Autor formula dois pedidos numa relação de prejudicialidade um com o outro: isto é, para ser tomado em conta somente no caso de não proceder um pedido anterior.1
As partes, através do pedido concretamente formulado, circunscrevem o thema decidendum do processo, indicam qual a sua pretensão, não cabendo ao juiz cuidar de saber se à situação real, estrategicamente, conviria ou não providência diversa. 2
Daí que, conforme se refere no art.º 609.º do CPC, a sentença deva inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, mesmo que abstractamente, em termos legais, o fosse possível fazer.
São poucas as excepções ao princípio da vinculação do juiz ao pedido formulado pelo Autor, sendo que o campo privilegiado destas excepções se situa no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, nos quais se confere ao juiz um poder-dever de Adoptar decisões com base em critérios de oportunidade e conveniência.
Na actual CPC, fora dos processos de jurisdição voluntária, encontramos a previsão do n.º 3 do art.º 609.º (que acolheu a solução já anteriormente dada pelo art.º 661.º, n.º 3, do CPC/95 e antes deste pelo art.º 1033.º, n.º 2), do art.º 612.º do CPC (anterior art.º 665.º do CPC/95), bem como a norma constante do campo dos procedimentos cautelares no art.º 376.º, n.º 3 (introduzida inovadoramente no art.º 392.º, n.º 3, do CPC/95).
Outro princípio processual cuja convocação revela toda a pertinência para os presentes autos é o da estabilidade da instância, o qual se encontra expressamente consagrado no art.º 260.º do CPC.
O mesmo tem como escopo evitar que os elementos subjectivos ou o objecto do processo possam ser livremente modificados pelas parte4s, com isso prejudicando o regular andamento da causa e impedindo ou dificultando a actividade do Tribunal.
De acordo com a supra citada norma – art.º 260.º do CPC - com a citação do(s) Réu(s) estabiliza-se a instância quanto às pessoas e quanto ao objecto (pedido e causa de pedir), apenas se admitindo as alterações que a própria lei preveja.
Nos presentes autos nenhuma alteração foi feita ao pedido formulado nos autos, fosse por via dos arts. 264.º e 265.º do CPC, fosse por via, inclusive, de um eventual pedido de rectificação nos termos do art.º 249.º do CC (e que a jurisprudência tem desde há muito entendido ser aplicável aos actos judiciais bem como aos actos das partes).
E tanto assim foi que o objecto do litígio, fixado por despacho – na dispensa de realização de audiência prévia – foi “ indagação do eventual direito da Autora a haver a entrega, pelos Réus, do imóvel em causa nos autos ( por força do não pagamento, pelos mesmos, das rendas mensais por si devidas e consequente resolução do contrato pela demandante ) ou, subsidiariamente, a haver dos demandados a quantia de 50.400,00 Euros, a título de rendas em dívida e não pagas.” (sublinhado nosso).
Vejamos o caso dos autos: a Autora (bem ou mal) formulou pedidos subsidiários. O pedido formulado sob a al. b) foi formulado subsidiariamente ao pedido formulado sob a al. a) – restituição do locado livre e devoluto de pessoas e bens.
Enquanto pedido formulado subsidiariamente, e pela própria natureza que o CPC confere aos pedidos subsidiários (para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder o pedido anterior), a procedência do pedido formulado em a) determinaria – do ponto de vista da concreta pretensão que a Autora decidiu pedir ao Tribunal, na estratégia por si gizada, que o pedido subsidiário formulado em b) ficasse prejudicado pela procedência do pedido formulado em a).
Não foi esse o entendimento da Exma. Juiz a quo que entendeu cumular tais pedidos – quando tal cumulação não havia sido pedida – e condenar os Réus tanto no pedido formulado na al. a), como no pedido formulado na al. b), desdobrando este em dois, na sequência de integração jurídica que fez do pedido.
Logo na sentença recorrida a Mm.ª Juiz a quo justificou essa cumulação referindo:
“Considerando que a Autora peticiona, primeiro e na al. a) do petitório, a condenação dos Réus a restituírem-lhe o locado, livre e devoluto de pessoas e bens - por o contrato ter sido resolvido em 20.3.2021 com fundamento na falta de pagamento, alegadamente, de cinco anos de rendas sucessivas - e, após, em sede da al. b) do petitório, peticiona a condenação subsidiária dos Réus no pagamento das rendas vencidas - no valor de 50.400,00 Euros - e das que entretanto se vencerem até à efectiva restituição do imóvel ( além dos juros ), evidente se torna concluir que, este último pedido não é formulado para a hipótese de o primeiro improceder ( de condenação a restituírem o locado ) e não reveste, por isso, natureza subsidiária e sim a de pedido cumulado com o primeiro.
Atento todo o exposto e sendo certo que os Réus pagaram à Ré, relativamente ao contrato em questão nos autos e à dívida preexistente para com a demandante, a quantia total de 36.800,00 Euros, acrescida de 24.633,44 Euros e deveriam ter pago à demandante, até Junho de 2023 ( data da primeira sessão de julgamento e por os Réus não terem restituído o imóvel à Autora ), a quantia total de 84.000,00 Euros, é evidente, considerando o teor do aludido em III -, A), 19 -, ainda se encontrarem em dívida à Autora da quantia referida em tal ponto da matéria de facto provada aludida, ou seja, a de 18.916,56 Euros.
Impõe-se, face ao exposto, concluir pela procedência parcial da acção, com a consequente condenação dos Réus a restituir à Autora o 7º andar Dt.º do prédio sito na Av. …, nº …, em Lisboa e ainda a pagarem-lhe a quantia de 18.916,56 Euros e, a título de indemnização pela não restituição do imóvel após o decurso de um mês a contar da resolução extrajudicial do contrato de arrendamento, a quantia correspondente ao valor da renda mensal, ou seja, o valor de 800,00 por cada mês decorrido desde 21.4.2021 até à efectiva entrega do locado à Autora, livre de pessoas e bens, conforme o disposto nos artºs 1038, al. i), 1043, 1045, 1081 e 1087 do C. Civil. (…)”
Face à invocação de nulidade da sentença em sede de alegações de recurso, veio a Mm.ª Juiz a quo a pronunciar-se sobre esta nulidade, afirmando a sua convicção de que a mesma não se verifica.
Entendemos que, se relativamente à condenação numa indemnização – como desdobramento (e não acrescento) ao pedido formulado em b) –, a mesma era possível, já não podemos concordar com a convolação oficiosa de pedidos subsidiários em pedidos cumulativos (desprezando, no limite dos limites, qualquer contraditório aos Réus que apenas contavam com a dedução literal e expressa de pedidos subsidiários).
No que tange à 1.ª questão equacionada no § anterior – condenação numa indemnização como desdobramento do pedido formulado em b) – cumpre dizer o seguinte:
No pedido subsidiário a Autora formulou um pedido de pagamento de rendas vencidas e vincendas até à efectiva entrega e desocupação do locado. Não obstante, alega a Autora que havia procedido à legal resolução do contrato de arrendamento em 20-03-2021.
Ora, a partir da resolução do contrato não poderíamos, em rigor, falar de rendas vencidas/vincendas, mas apenas de uma indemnização pela ocupação do locado.
Dentro do pedido formulado pela Autora sob a al. b) inclui-se assim uma pretensão de ressarcimento devido pela não entrega e ocupação da fracção.
Se por um lado não se verificavam os requisitos para a obrigação de pagamento de renda por parte dos Réus, porque já não subsistia o contrato de arrendamento e sua correspondente obrigação pecuniária, não deixaria sempre de ser devida uma contrapartida pecuniária pelos Réus, por essa mesma ocupação indevida e que é acima de tudo uma indemnização, fixada em dinheiro, a ser paga pelo devedor.
Assim, não se verificam os requisitos para a condenação da ré a pagar uma prestação a título de renda, porque não subsiste qualquer contrato de arrendamento. No entanto, com vista à realização coactiva da prestação, seria possível a formulação de pedido indemnizatório pela Autora.
Atendendo ao raciocínio lógico evidenciado na petição inicial e no segmento em que foi deduzido o pedido – al. b) -, a pretensão da ré reconduz-se ao pagamento de uma quantia pecuniária pela ocupação indevida do imóvel e atraso na sua entrega.
A diferença entre os institutos jurídicos da “renda” e da “sanção pecuniária compulsória” é evidente para um jurista mediano, mas para o destinatário comum o efeito prático da decisão que condene numa ou noutra é o mesmo: o devedor pagará uma prestação pecuniária pela violação do dever de entrega do imóvel.- em igual sentido numa situação semelhante veja-se o Ac. desta mesma secção, de 12-09-2024, Relatado pelo aqui 1.º Adjunto e subscrito pelo aqui 2.º Adjunto.
No caso concreto, a Mm.ª Juiz limitou-se a apreciar e a reconhecer o pedido da autora em face de um distinto instituto jurídico, havendo , no entanto, uma correspondência, em termos práticos ou concretos, entre o que a autora pediu e o que o juiz lhe concedeu.
Mas se assim é relativamente ao desdobramento da alínea b) do pedido em dois segmentos condenatórios da sentença [al. B) e C)], já o mesmo não se poderá dizer relativamente à decisão unilateral do Tribunal – desprovida de qualquer espontânea manifestação de vontade da Autora, ou de convite do Tribunal a esclarecer tal questão – de cumular pedidos que haviam sido formulados em termos subsidiários.
Podia a Autora cumular tais pedidos? Podia.
Mas a verdade é que não o fez. E não cabe ao Tribunal, substituir-se aos mandatários das partes, e conceder as pretensões que a lei permite, independentemente de as mesmas não terem sido formuladas.
Conforme se refere no Ac. do STJ de 29-09-2022 (citado com elevada pertinência nas alegações da 2.ª Ré): “(…) como decorrência do princípio do dispositivo, continua a vingar na nossa lei adjetiva o princípio do pedido, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida (art.º 3º, n.º 1 do CPC), o que quer dizer que o processo só se inicia sob o impulso das partes, mediante o respectivo pedido, e não sob o impulso processual do próprio juiz. Assim, é sobre o Autor ou demandante que continua a caber o ónus de dar início à instância, mediante a apresentação da petição inicial em juízo, na qual terá de delimitar subjectiva (mediante a indicação dos sujeitos) e objectivamente (mediante a identificação do pedido e da causa de pedir que lhe serve de base) a relação jurídica controvertida que submete a tribunal e são esses limites subjectivos e objectivos da relação jurídica controvertida que conjuntamente com a defesa que venha a ser apresentada pelo Réu em que este deduza excepções, que continuam a circunscrever o thema decidendum do tribunal, limitando toda a sua actividade instrutória e decisória. Sendo que tal thema decidendum delineado pelas partes não deve ser entendido no sentido rígido, formal, próprio dos sistemas processuais liberais, uma vez que se reconhece ao juiz uma margem de actuação, o que, aliás, é atestado pela jurisprudência vertida no Assento n.º 4/95, do STJ. de 28/03/1995 e bem assim no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2001, de 23/01/2001. Se se nos afigura certo o acabado de enunciar, certo é, também, que no sistema processual civil nacional o princípio do dispositivo se encontra a par do princípio do contraditório, continuando ambos a ser princípios nucleares e fundamentais da lei adjectiva. Ora, como visto, ao considerar-se na sentença uma base retributiva que nunca foi referida nos autos, maxime pelo Autor (antes pelo contrário: indicou uma outra retribuição e foi com base nela que entendeu ser-lhe devida a peticionada indemnização, que considerou justa mesmo que recorrendo à equidade), é claro que temos uma decisão surpresa, com violação do contraditório, na medida em que a Ré não teve oportunidade de nos autos se pronunciar sobre aquela hipotética base retributiva, antes sempre agindo nos autos tendo como “pano de fundo” a alegada retribuição de €936,47 que ambas as partes sempre ali aceitaram. Portanto, não temos por legítimo que o tribunal (1ª instância) se tenha desviado do pedido que a parte lhe dirigiu, de forma expressa e devidamente fundamentada, não se podendo extrair do alegado qualquer outra pretensão petitória que não a expressamente ali formulada, mesmo que recorrendo a regras interpretativas da declaração judicial. (…)”
No Ac. da Relação de Coimbra de 10-09-2013, entendeu-se que “[o] pedido formulado pelo autor na petição inicial (artigo 467º, nº 1, e) do CPC) deve, em regra, ser feito na conclusão. Contudo, tal não obsta a que possa também ser expresso na parte narrativa do articulado, desde que se revele com nitidez a intenção de obter os efeitos jurídicos pretendidos”.
Esta posição ancorou-se “ no entendimento de um articulado processual, designadamente uma petição inicial, como configurando “[…] uma declaração de vontade tendente a obter determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos artigos 236º, nº 1 e 238º nº 1 do Código Civil […]”, acrescentando-se colher este entendimento algum respaldo no artigo 295º do CC, ao determinar a aplicação aos actos jurídicos que não se configurem como negócios jurídicos das disposições do Código Civil referentes a estes, designadamente das atinentes à interpretação e integração previstas nos ditos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, “na medida em que a analogia das situações o justifique – Ac. STJ de 21-04-2005””.
Ora, não se vê como, perante o alegado na petição inicial, um declaratário, com normal diligência, colocado na posição dos Ré, possa ter tido outro entendimento que não aquele que a Autora expressamente plasmou na petição inicial, relativamente à subsidiariedade dos pedidos formulados.
Conforme se refere no Ac. STJ supra citado de 29-09-2022, “É certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, que é absolutamente essencial nos tempos que correm. É que um processo que não seja efectivo é um processo amorfo, que nada resolve, que se perde em questiúnculas formais, muitas das vezes dessa forma remetendo para as calendas a resolução do litígio. Mas também não podemos, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido».
Aceita-se, perfeitamente, que o juiz, em determinadas situações, cumprindo um dever de prevenção, resultante do princípio consagrado no art.º 7º do CPC (princípio da cooperação), possa interferir, respeitado que seja, escrupulosamente, o contraditório, com o pedido, contribuindo para a utilidade do mesmo.
Mas aqui há sempre que actuar com o devido cuidado – pois uma sentença desrespeitadora do princípio do pedido, traduzir-se-á sempre numa decisão-surpresa.”.
Atente-se, inclusive, que a respeito dos pedidos deduzidos e da natureza dos mesmos, nem sequer a Autora/Apelada apresentou contra-alegações, alegando o que tivesse por conveniente quer quanto a um hipotético erro/lapso de escrita, quer até quanto à interpretação resultante da petição inicial.
Assim sendo, mais não resta do que reconhecer que o tribunal recorrido, ao cumular pedidos deduzidos em termos subsidiários, apreciou de um pedido que, por natureza, estava prejudicado e cuja apreciação apenas lhe foi solicitada para o caso de não proceder a primeira pretensão. Com efeito, o tribunal deferiu uma pretensão, um pedido formulado apenas subsidiariamente (nos termos definidos pelo art.º 554.º do CPC) pelo autor, não tendo a Ré tido possibilidade de se pronunciar sobre essa cumulação.
Assim, em conformidade cumpre apenas anular a parte da sentença em que o tribunal recorrido decidiu cumular o pedido formulado em b), com o formulado em a).
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto:
Acordam os Juízes na 6.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso de apelação apresentado pelos 1.º e 2.º Réus e em consequência:
a. Revogar a sentença recorrida no que tange às als. B) e C) do dispositivo, por respeitarem a pedido expressamente deduzido subsidiariamente cujo conhecimento ficou prejudicado pela procedência ínsita na al. A), no demais se mantendo a sentença recorrida.
Custas da Apelação pela Autora/Apelada (nos termos dos arts. 527.º, n.ºs e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 23 de Janeira de 20243
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Nuno Gonçalves
Jorge de Almeida Esteves (vencido nos termos da declaração infra)
Declaração de voto:
Votei vencido quanto à decisão e quanto à fundamentação pois considero que a decisão recorrida deveria ser mantida, porque correta e devidamente fundamentada, não ocorrendo os vícios que lhe foram imputados pelos recorrentes. Entendo que, face ao teor da petição inicial, resulta de forma clara que os pedidos são cumulativos e não subsidiários.
Desde logo concordo na íntegra com o afirmado na sentença recorrida quando refere o seguinte (com destacados meus):
“Ora, crê-se patente que o alegado pedido subsidiário formulado em sede da al. b) do petitório não reveste tal natureza e sim a de um pedido cumulado com o da condenação dos Réus a restituírem-lhe o locado, livre e devoluto de pessoas e bens. De facto, prevê o art.º 554 do C. P. Civil, que se podem formular pedidos subsidiários, dizendo-se subsidiário o pedido apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior. Considerando que a Autora peticiona, primeiro e na al. a) do petitório, a condenação dos Réus a restituírem-lhe o locado, livre e devoluto de pessoas e bens - por o contrato ter sido resolvido em 20.3.2021 com fundamento na falta de pagamento, alegadamente, de cinco anos de rendas sucessivas - e, após, em sede da al. b) do petitório, peticiona a condenação subsidiária dos Réus no pagamento das rendas vencidas - no valor de 50.400,00 Euros - e das que entretanto se vencerem até à efectiva restituição do imóvel (além dos juros), evidente se torna concluir que, este último pedido não é formulado para a hipótese de o primeiro improceder (de condenação a restituírem o locado) e não reveste, por isso, natureza subsidiária e sim a de pedido cumulado com o primeiro”.
E concordo também com o despacho que apreciou da nulidade invocada, nos termos do art.º 617º/1 do CPC, em especial na parte em que refere o seguinte:
“a) que apesar da utilização, em sede da p. inicial, da expressão subsidiariamente no que se refere ao pedido de condenação dos demandados no pagamento das rendas vencidas e das vincendas até à entrega efectiva do locado, acrescidas de juros até integral pagamento, tais pedidos foram efectivamente deduzidos numa relação de cumulação um com o outro. Efectivamente e se assim não fosse, não se pediria a condenação dos ora recorrentes a pagar a quantia de 50.400,00 Euros de rendas vencidas e as vincendas até à efectiva entrega ou desocupação do locado, tudo acrescido de juros de mora até efectivo pagamento, não se podendo, por isso e desde logo, concluir por qualquer alteração do ou dos pedidos pelo tribunal, pela violação do princípio do dispositivo ou por excesso de pronúncia, nessa parte”.
Na verdade, os pedidos formulados – condenação na entrega do imóvel e no pagamento das rendas em dívida – não são subsidiários entre si, pois o pedido de condenação no pagamento das rendas estava necessária e materialmente dependente da procedência do primeiro. Por isso nunca poderia ser apreciado no caso de o primeiro pedido improceder.
Mas acima de tudo discordo do decidido no acórdão por ter apenas atendido à palavra “subsidiariamente” que consta da p. i. e não ao teor integral dessa peça processual. É que no art.º 18 da p. i., que é exatamente o último artigo e antecede o pedido, a autora diz o seguinte (com destacados meus):
“Deverão assim os Réus ser condenados a entregar o imóvel sito no 7º andar direito do n.º .. da Av. … em Lisboa, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como serem condenados ao pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva entrega do locado”.
Como se constata, entre o aqui expressamente referido e palavra “subsidiariamente” há uma contradição evidente, pelo que não se pode atender apenas à expressão que consta do pedido em face do teor perfeitamente claro do art.º 18 da p. i.. A interpretação da p. i. deve ser levada a efeito de forma integral pois só assim se pode determinar aquilo que a parte efetivamente pretende. E deve-se extrair dela o real sentido da pretensão do autor segundo as regras de interpretação dos negócios jurídicos.
Concordo na íntegra com o afirmado no acórdão da Relação de Guimarães de 16.01.2020 (proferido no procº nº 5533/18.0T8GMR.G1, in dgsi.pt) na parte da fundamentação em que se diz o seguinte:
“Antes de mais, à interpretação dos articulados aplicam-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que aquelas declarações valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas (art.º 236º nº 1 ex vi art.º 295º do C.C.). Segundo jurisprudência pacífica tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma de molde a que importe o que é efectivamente pretendido pelas partes no processo apesar das eventuais incorrecções formais. Neste sentido vide Ac. do S.T.A. de 27/04/2016 (Francisco Rothes), in www.dgsi.pt, onde se lê: “(…) os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art.º 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão” (destacados meus).
E no acórdão do STJ de 29.09.2022 (proferido no proc.º nº 605/17.0T8PVZ.P1.S1, in dgsi.pt), entendeu-se o seguinte:
“Efectivamente, perante o alegado na petição inicial, dúvidas não parece haver relativamente aos concretos e efectivos pedidos pretendidos pelo Autor – precisamente os que expressamente formulou –, ou quanto ao “real conteúdo da pretensão” de que, muito justamente, fala ABRANTES GERALDES. E não havendo dúvidas, não há qualquer necessidade de qualquer esforço interpretativo para …as sanar. A causa petendi invocada pelo Autor na petição não permite que nos movamos para campos de todo distintos daqueles que conduziram à decisão recorrida, pois esta sustentou-se, de facto, no provado e no expressamente alegado e que, segundo o Autor, justificou o peticionado”.
Considero que no caso dos autos é evidente a interpretação que o Tribunal a quo extraiu da p. i., pois é a que resulta dos termos acima expostos. E este Tribunal ad quem não poderia considerar que houve nulidade por excesso de pronúncia em face do que constava no referido art.º 18 da p. i.. Tinha de ter tido em consideração o teor do aí invocado, de onde resultava que os pedidos eram efetivamente cumulativos.
Poderia, eventualmente, considerar-se que o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório prévio ao decidir no sentido de que os pedidos eram cumulativos e não subsidiários. Entendo, porém, que, no caso, a interpretação do articulado é óbvia e não havia necessidade desse contraditório prévio (em termos semelhantes aos que constam do acórdão do STJ citado). Mas ainda que se entendesse que tal contraditório se impunha, verifica-se que nenhum dos recorrentes imputa à sentença a nulidade com fundamento nesse vício, o qual não é de conhecimento oficioso.
Jorge Almeida Esteves
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1. Neste sentido ver António Santos Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”- I, 1997, Almedina, pág. 141.
2. Neste sentido Ac. STJ de 04-02-1993.
3. Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.