O tribunal de execução de penas é o competente para ordenar e fazer cumprir todos os tramites e implicações das suas decisões judiciais incluindo a emissão imediata de mandados de detenção do arguido definitivamente condenado a cumprir pena de prisão que declarou contumaz.
Conflito negativo de competência
Dos elementos com que vem instruído este procedimento extrai-se que: ---
1. O arguido AA foi julgado no processo comum n.º 522/17.4GBGMR, do Juízo local criminal de Guimarães -juiz 1 e, por sentença de 28.01.2019, transitada em julgado em 6.05.2019, condenado, no que para aqui releva, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 anos e 6 meses de prisão com execução suspensa, acompanhada de regime de prova.
2. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada foi revogada por decisão de 8.02.2024, também transitada em julgado.
3. Emitidos mandados da detenção e condução do arguido a estabelecimento prisional para execução daquela de prisão, não foram cumpridos por não ter sido encontrado.
4. Eximindo-se o arguido ao cumprimento da pena, o tribunal da condenação solicitou ao tribunal de execução de penas/TEP que iniciasse e tramitasse o procedimento para a declaração de contumácia do arguido.
5. Na sequência, o TEP instaurou o processo (supletivo) n.º 313/19.8..., no qual, por despacho de 25.09.2024, declarou o arguido contumaz no processo criminal em epígrafe.
6. Comunicando ao tribunal da condenação que não emitia mandados de detenção do arguido com fundamento na existência de “mandados de detenção pendentes emitidos pelo tribunal da condenação” concluindo inexistir “qualquer outro acto processual a praticar” no referido processo supletivo, restando “somente proceder à captura do condenado”.
7. O tribunal da condenação – agora o processo corre no juiz 4 do mesmo juízo local criminal- por despacho de 14.10.2024, conhecendo oficiosamente, declarou-se materialmente (funcionalmente) incompetente para a emissão de mandados de detenção, “nos termos do artigo 337.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”.
8. , por entendese entender ser o tribunal de
9. execução das penas o competente para o efeito, nos termos do artigo 337.º, n.º 1, do Código de
10. Processo Penal, da
11. Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade mandados de detenção do arguido e a sua condução ao EP.
12. Competência que atribuiu ao TEP, invocando para tanto aquele art. do CPP e o disposto nos artigos 17.º, alínea b), 97.º, n.º 2, e 138.º, n.º 4, alíneas t) e x), do Código 138º n.º 4 al.ª x) do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade/CEPMPL,.
13. Na sequência do que, deparando-se com conflito negativo de competência, suscitou a resolução do mesmo ao Exmo. Supremo Tribunal de Justiça.
14. As duas decisões conflituantes transitaram em julgado.
15. O condenado nunca esteve preso em cumprimento da condenação.
b) parecer do Ministério Público:
O Digno Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer e fundamentado na citação e enumeração da jurisprudência deste Supremo Tribunal, pronuncia-se pela existência de conflito negativo de competência e no sentido de ser solucionado com a atribuição ao TEP da competência para emitir os mandados de detenção do condenado que declarou contumaz.
c) o conflito:
Conforme estabelece a lei, o tribunal pode conhecer oficiosamente da sua própria competência e pode declarar-se incompetente, na fase de julgamento, até ao trânsito em julgado da decisão final, com a ressalva da competência territorial que só pode ser declarada, na fase de instrução, até ao início do debate instrutório e na fase de julgamento até ao início da audiência – art. 32.º do CPP.
Mas, o CEPMPL, no art. 139.º, autoriza o TEP a, oficiosamente ou mediante requerimento, conhecer e, se for caso declarar, a sua incompetência “até ao trânsito da decisão que ponha termo ao processo”, remetendo-o ao tribunal competente.
E no art. 140.º estabelece que à definição, denúncia e resolução do conflito de competência que se tiver suscitado aplicam-se, “com as necessárias adaptações, as normas correspondentes do Código de Processo Penal.”
No caso, os dois tribunais em dissídio estão dotados de competência em matéria criminal, podendo qualquer deles declarar a contumácia de um arguido que no respetivo processo se fuga eximindo-se da ação da justiça. Competência que, quanto a este aspeto, está atribuída na lei segundo o critério funcional: ao tribunal do julgamento, até ao trânsito em julgado da condenação; ao TEP, após a condenação se tornar firme. Do que resulta que o conflito em apreço é de competência funcional. O que se torna ainda mais evidente se se atentar em que o processo se encontra já na fase de execução da condenação.
Se o TEP não declarou expressamente a sua incompetência, todavia, atribuindo-a ao tribunal da condenação, interpreta-se com recurso aos princípios regedores da interpretação das declarações negociais que a Sra. Juíza quis declarar a incompetência funcional do TEP para emissão dos mandados de detenção do arguido que declarou contumaz.
Da economia das decisões em apreço conclui-se que os dois tribunais em dissídio conheceram oficiosamente da respetiva competência, tendo-se declarado tempestivamente incompetentes para praticar o ato processual em causa (emissão de mandado de detenção).
Embora sejam ambos de 1ª instância, pertencem a circunscrição de diferentes Tribunais da Relação – o da condenação à de Guimarães e o TEP que, embora seja um tribunal de competência territorial alargada, tem sede na área da Relação do Porto. Por isso, é ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que, nos termos do artigo 11.º n.º 6, al.ª a) do CPP, compete resolver o vertente conflito negativo de competência funcional.
Os tribunais não dissentem sobre qual deles é funcionalmente (em razão da matéria) competente para declarar a contumácia do condenado. No caso, o tribunal de comarca atribuiu essa competência ao TEP, que a aceitou. Destarte, o dissenso versa apenas sobre qual deles deve passar imediatamente e emitir os mandados de detenção a que obriga o disposto no art.º 337º n.º 1 do CPP.
d) da competência material (e funcional):
A competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território – art. 37.º n.º 1 da LOSJ.
São, pois, as leis de organização judiciária e, conjugadamente, as disposições dos códigos de processo que repartem a competência dos tribunais judiciais, em matéria criminal.
A Lei instituiu os denominados “tribunais de competência territorial alargada”. São tribunais judiciais de 1ª instância com circunscrição geográfica nacional ou maior que a de uma comarca, com competência material especializada, “sobre áreas especialmente referidas na lei”, “independentemente da forma de processo aplicável”. Entre os quais se encontra o TEP – art. 83.º da LOSJ.
A sua competência material (e funcional) está estabelecida no art.º 114º do LOSJ.
No que para aqui releva, compete-lhe acompanhar e fiscalizar a execução e decidir da modificação, substituição e extinção de penas de prisão e de medidas de segurança privativas da liberdade decretadas em sentença ou acórdão transitados em julgado – n.º 1. E, sem prejuízo de preceito legal que estatua de modo diferente (n.º 3), compete-lhe também “emitir mandados de detenção, de captura e de libertação” - al,ª s) – e “proferir a declaração de contumácia e decretar o arresto de bens, quanto a condenado que dolosamente se tiver eximido, total ou parcialmente, à execução de pena de prisão ou de medida de internamento” – al.ª v).
Normas que o art. 138.º do CEPMPL reproduz, concretamente nos n.ºs 1 e 4, al.ªs r) e t), do CEPMPL.
Deve recordar-se que o legislador do CPP, na redação dada pelo DL n.º 317/95, de 28 de novembro, prevenindo conflitos como o que aqui se nos depara, no art. 476º n.º 2 atribuía ao tribunal da condenação e ao TEP a competência para declarar a contumácia de “condenado que dolosamente se tive[sse] eximido, total ou parcialmente, à execução de uma pena de prisão ou de uma medida de internamento”.
Da remissão para o artº 470.º do CPP e da circunstância de, à data, os tribunais de execução de penas não terem competência para emitir mandados de detenção, resultava que a declaração de contumácia competiria ao TEP relativamente a preso que, por evasão ou ausência não justificada se eximisse à continuação da execução da pena de prisão ou de medida de segurança privativa da liberdade e que, nos restantes casos, caberia ao tribunal da condenação.
Se a Lei 3/99 – LOFTJ - veio conferia ao TEP competência para decretar a contumácia nos termos que se mantêm, contudo, não assim para emitir mandados de detenção – vd. art. 91º. Competência essa que só foi acrescentada, especificamente, pelas alterações que a Lei n.º 115/2009 operou na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto (a então NLOFTJ).
A Lei 115/2009 revogou o mencionado art. 476.º do CPP e aditou ao citado n.º 1 do art. 470.º a parte final, passando à seguinte redação: “a execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no artigo 138.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.”
Com a revogação do citado art. 476.º pelo art.º 8º da Lei n.º 115/2009 de 12 de outubro, a competência para a prolação da declaração de contumácia de condenado que dolosamente se eximir, total ou parcialmente à execução de uma pena ou de uma medida de internamento passou a estar regulada apenas na LOSJ e no CEPMPL.
Para o que aqui releva na resolução do vertente conflito negativo de competência, vale em primeiro lugar o disposto na LOSJ. Ademais do citado art. 114.º, assinala-se que o art. 131.º confere competência para a execução das decisões relativas a multas penais ao juízo ou tribunal que as tenha proferido.
Em conformidade, o art.º 474.º, regendo sobre a “competência para questões incidentais” dispõe: “1 - cabe ao tribunal competente para a execução decidir as questões relativas à execução das penas e das medidas de segurança e à extinção da responsabilidade, bem como à prorrogação, pagamento em prestações ou substituição por trabalho da pena de multa e ao cumprimento da prisão subsidiária.
2 - A aplicação da amnistia e de outras medidas de clemência previstas na lei compete ao tribunal referido no número anterior ou ao tribunal de recurso ou de execução das penas onde o processo se encontrar.”.
Finalmente, salienta-se que o art. 337.º n.º 1 do CPP estatui, quanto aos respetivos efeitos que “a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção (…)”.
A contumácia é uma medida de natureza processual penal que visa desmotivar a ausência do arguido ou se já sentenciado, o condenado compelindo-o a apresentar-se em tribunal (ou no EP) e “saldar as suas contas com a justiça”.
Assim mesmo a concebe o Tribunal Constitucional que, no Acórdão n.º 237/2017, expendeu caber ao legislador adotar “os meios para tornar [a] criminalização eficaz, garantindo formas de cumprimento efetivo das decisões condenatórias dos tribunais. É neste contexto que deve ser enquadrada a declaração de contumácia, prevista no artigo 97.º, n.º 2, do CEPMPL”.
Advertindo, que “a circunstância de a pena de prisão, a cujo cumprimento a declaração de contumácia se dirige, ser resultante da conversão de uma pena de multa injustificadamente não cumprida não altera os dados do problema”.
e) a jurisprudência deste Supremo Tribunal:
Porque esta modalidade dissídios de competência material (funcional) tem sido recorrente importa notar que, como vem aflorado por um dos tribunais conflituantes e o Digno Procurador-geral Adjunto atentamente reforça e evidencia, o Supremo Tribunal de Justiça tem uniformemente vindo a decidir e, no que nos diz respeito, - desde há 3 anos a esta parte - que é ao TEP que compete cumprir integralmente as respetivas decisões judiciais, designadamente emitindo mandados de detenção de arguido que declare contumaz. Aos que vêm mencionados na decisão do tribunal da condenação e no douto parecer do Digno Procurador-geral Adjunto acrescentam-se os processos n.º 1548/21.9TXLSB-B.S1 e 2292/17.7IDBGR-A.S1, 218/16./GBAVV e 234/13.8GBGMR (o mais recente, com decisão de 25.11.2024).
Não obstante a uniformidade daquelas decisões e da sua comunicação ao TEP do Porto verificamos que não têm sido levadas em consideração (provocando-se conflitos cujo resultado bem se conhece). Porque nenhum argumento novo foi aportado em defesa da solução contrária, vamos reproduzir a fundamentação expendida na decisão de resolução daqueles conflitos negativos de competência material (funcional).
f) apreciação:
Assim: -----
Na hermenêutica jurídica rege o comando legal segundo o qual o interprete, partindo da letra da lei, deve atentar nos textos com as motivações do legislador, “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, estando obrigado a presumir que o legislador consagrou as soluções que teve por mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não podendo, “porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”
Do complexo normativo citado – máxime art. 337.º n.º 1 do CPP - resulta que a declaração de contumácia “implica a passagem imediata de mandados de detenção”. Assim, a literalidade desta norma impõe que a decisão judicial que declara a contumácia inclua a determinação da passagem imediata de mandado de detenção do contumaz. Se assim não fosse, o vocábulo “implica” e a expressão “passagem imediata” seria uma inútil excrescia.
No que à mens legislatoris respeita nota-se que do ponto 15 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 252/X, que esteve na génese do CEPMPL, consta “no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efetiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas” que se quis atribuir “exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade, após o trânsito em julgado da sentença que as aplicou. Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, atualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema.”
Quanto à unidade do sistema é insofismável que o processo penal se estrutura por fases cada uma com tramites próprios. A fase de execução da condenação em pena de prisão efetiva ou medida de segurança privativa da liberdade, se encontra atribuída essencialmente ou exclusivamente aos TEPs.
Não respeitaria a unidade do sistema se em vez de ser o próprio a fazê-lo, tivesse o TEP de solicitar – ou pior ainda se pudesse impor - a outro tribunal da mesma hierarquia a execução das respetivas decisões.
Quanto às condições e circunstâncias salienta-se que os TEPs, em virtude da expansão das suas competências viram aumentados o número de juízos e de juízes.
Neste conspecto, interpretamos que o regime legal no sentido de que, na atribuição ao TEP da competência para a declaração de contumácia de condenado que dolosamente se tiver eximido à execução de pena de prisão (pena principal ou pena de prisão subsidiária), se inclui a de, por estatuição do art.º 337º n.º 1 do CPP, passar imediatamente mandados de detenção e condução ao EP para cumprimento da pena de prisão ou de medida de segurança privativa da liberdade.
Ainda que abunde, deve dizer-se que seria incongruente entender-se que da norma da al.ª r) do mesmo número (4) do art.º 138º do CEPMPL, o TEP é competente para declarar contumácia em situações como a dos autos e, de passo, interpretar restritivamente que só lhe compete emitir mandados de detenção e captura de reclusos evadidos ou em ausência injustificada.
Porque o texto da lei a comporta, a teleologia e, sobretudo, a harmonia e eficácia do sistema exigem, não resta senão entender que o tribunal de execução de penas é o competente para ordenar e fazer cumprir todos os tramites e implicações da declaração de contumácia incluindo, evidentemente, a emissão imediata de mandados de detenção do arguido definitivamente condenado que declarou contumaz.
Assim, é ao Juízo de Execução de Penas, que declarou contumaz o condenado que, nos termos dos artigos acima citados, compete ordenar a imediata passagem de mandados de detenção do mesmo.
g) dispositivo:
Pelo exposto decido, nos termos do art. 36º n.º 1 do CPP, resolver o conflito negativo surgido nos autos, atribuindo ao Juízo de execução de penas do Porto – Juiz 4, à luz das normas legais citadas, a competência material (e funcional) para ordenar a passagem imediata de mandados de detenção do arguido condenado nestes autos AA, que declarou contumaz, para que o mesmo cumpra a pena de prisão única de 1 ano e 6 meses de prisão em que, por decisão transitada em julgado, está condenado no processo penal em epígrafe.
O Presidente da 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves