I - A existência de uma eventual fundamentação deficiente, não convincente ou mesmo erro de julgamento, não integra o vício de nulidade da decisão por falta de fundamentação.
II – Mostrando-se o acórdão claramente perceptível e inteligível, não existindo qualquer desconformidade lógica entre a decisão recorrida e as razões de facto e de direito que a fundamentaram, ainda que possa ocorrer uma situação de erro na subsunção jurídica dos factos, que se situa no âmbito do erro de julgamento, não padece a decisão de vício de nulidade previsto no artigo 615.º, n.º1, alínea c), do CPC.
III - Constitui um ónus do autor definir a sua pretensão, formulando o pedido na petição inicial, o qual baliza a intervenção do tribunal.
IV - Formulando as autoras um pedido de reconhecimento do direito de propriedade e restituição de um determinado prédio urbano, e sendo esse o prédio cuja ocupação ilícita imputam às rés, não podia a sentença, em violação do artigo 609.º, n.º1, do CPC, alargar o respectivo âmbito de apreciação por forma a declarar tal direito sobre coisa diversa, com a condenação das rés no reconhecimento do direito de propriedade sobre a totalidade do imóvel relativamente ao qual não foi alegada qualquer ocupação sem título.
V - O STJ encontra-se limitado, em termos de conhecimento de erro na fixação dos factos, às situações de violação de lei na apreciação da chamada prova vinculada, estando-lhe vedada a possibilidade de sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso da prova testemunhal.
VI - No âmbito de um contrato-promessa, a entrega efectiva do bem ao promitente-comprador, não permite, por si só, qualificar este como possuidor, tudo dependendo da interpretação da vontade das partes, ou seja, poderão existir situações em que se verifica a posse do promitente-comprador com traditio, desde que ele, para além do corpus possessório, adquira também o animus de proprietário.
VII – A posse precária do promitente comprador sobre o bem entregue só é apta a conduzir à usucapião se, posteriormente, for convertida em posse em nome próprio, mediante a inversão do título de posse, prevista no artigo 1265º, do Código Civil, o que impõe, a prática de actos positivos, inequívocos e reveladores, a sua intenção de passar a actuar como titular do direito de propriedade.
VIII – A eficácia da oposição a que alude o artigo 1265.º, do Código Civil, depende de os actos serem realizados à vista daquele ou daqueles a quem os mesmos se opõem, ou que possam ser por estes conhecidos.
IX – Ao invés do que se impõe ao tribunal da Relação, nos termos do estatuído no artigo 665.º, n.º2, do CPC (dever de conhecer das questões que a 1ª instância considerou prejudicada, sempre que disponha dos elementos necessários), o STJ está impedido, nessas circunstâncias, de se poder substituir à Relação, uma vez que aquela norma não é aplicável ao recurso de revista, conforme decorre do disposto no artigo 679.º, do CPC.
I – relatório
1. AA e BB, em representação da Herança Aberta por óbito de CC, intentaram contra DD e EE, acção declarativa de condenação, deduzindo os seguintes pedidos:
a) a declaração de que as Autoras são legítimas proprietárias do prédio urbano sito no Vale ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o n.º ...13/19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ...27 da freguesia de ... (descrito no artigo 1.º da petição);
b) a condenação das Rés:
- a restituir o imóvel às Autoras, livre de pessoas e bens;
- no pagamento às Autoras de indemnização, nos termos previstos nos artigos 1305.º e 483.º, do Código Civil, pelos prejuízos decorrentes da privação do uso, fruição e disposição do imóvel, desde a ilegítima ocupação pelas Rés até à efectiva devolução do locado, no valor mensal de € 600,00, a liquidar em execução de sentença;
- na restituição às Autoras do valor do seu enriquecimento e proporcional empobrecimento destas, nos termos do artigo 480.º, do Código Civil, pelos frutos que, por sua culpa, deixaram de ser percebidos e pelos juros legais das quantias a que as empobrecidas tiverem direito até à efectiva devolução do locado, em quantia não inferior a € 600,00 mensais, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento;
- serem as Rés ser consideradas responsáveis pelo perecimento ou deterioração culposa da coisa, nos termos do artigo 480.º, do Código Civil;
Subsidiariamente,
c) A condenação das Rés a restituir às Autoras a quantia correspondente ao seu enriquecimento e proporcional empobrecimento das Autoras, pela privação de aproveitamento do valor económico do locado, nos termos do artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil, desde a data que se vier a apurar corresponder à do inicio da ocupação ilícita do imóvel pelas mesmas e até efectivo e integral pagamento, no valor mensal de € 600,00 (seiscentos euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, a liquidar em execução de sentença.
Alegaram para o efeito e essencialmente:
- serem donas do prédio urbano sito no Vale ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13/19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ...27 da freguesia de ..., destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor;
- terem tomado conhecimento de que o imóvel se encontra ocupado pelas Rés, sem qualquer título para o efeito e sem o pagamento de qualquer quantia, desconhecendo a data a ocupação, por o património ser gerido pelo falecido CC, marido da autora BB.
2. Após citação, as Rés, separadamente, apresentaram contestação.
A Ré DD excepcionou a incompetência territorial do tribunal da Comarca de Lisboa (por o imóvel se situar em ..., defendendo ser territorialmente competente o Juízo Central Cível de...).
Impugnou vários factos alegados e deduziu pedido reconvencional declarando-a legítima proprietária do referido imóvel com fundamento em usucapião.
Alegou, nesse sentido, a posse sobre o referido imóvel, desde Julho de 1989, decorrente da celebração de contrato-promessa de compra e venda (de 3 de Julho de 1989), entre seu pai, FF, na qualidade de promitente comprador, e o falecido CC e mulher BB, na qualidade de promitentes vendedores, imóvel edificado em prédio rústico, adquirido por sua mãe, GG, ao falecido CC e mulher e HH, através de escritura de compra e venda, celebrada em 29 de Fevereiro de 1984.
A Ré EE excepcionou igualmente a incompetência territorial do tribunal da Comarca de Lisboa (por o imóvel se situar em ..., defendendo ser territorialmente competente o Juízo Central Cível de ...). Impugnando parte da factualidade constante da petição referiu não utilizar o imóvel como sua habitação própria e permanente, por habitar um prédio urbano edificado no mesmo prédio rústico, mas autónomo deste.
Alegou ainda ter vivido no imóvel reivindicado desde a sua infância (antes de ingressar na escola primária) até ter ido para a casa que era habitada pela sua avó GG.
Referiu, por fim, que o imóvel reivindicado é propriedade de sua mãe (a 1.ª Ré) há mais de 20 anos e está edificado num terreno que foi adquirido pela sua avó GG, em 1982.
3. Na réplica as Autoras requereram que a presente acção fosse remetida, oficiosamente, ao Tribunal competente (Juízo Central Cível de...) nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 105.º, n.º 3, 590.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 2, e 411.º, do Código de Processo Civil (CPC).
Impugnaram ainda o pedido reconvencional, concluindo nos termos peticionados.
4. Por decisão de 05-02-2018, foi declarado territorialmente incompetente para o conhecimento da acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (Juízo Central Cível de ...- J...) e determinada a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de ..., por ser a competente em razão do território.
5. Foi proferido saneador (18-07-2018), onde foi julgada verificada a falta de personalidade judiciária da autora herança (tendo sido as Rés absolvidas da instância relativamente aos pedidos formulados por tal demandante), tendo sido determinado o prosseguimento da acção tendo como autoras, em exclusivo, as herdeiras de CC: AA e BB.
Foi fixado o valor da acção, seleccionados os factos provados por acordo e documento e enunciados os temas de prova.
6. Realizado julgamento foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, decidindo nos seguintes termos:
“a) Declaro que a autora BB é proprietária do direito a metade da metade in de ..., com a área total de 35.000 m2, a área coberta de 236,8 m2 e a área descoberta de 34.763,2 m2, composto por regadio de produtos hortícolas e parte urbana constituída por: a) rés-do-chão direito e esquerdo, com um total de seis divisões; b) cave e rés-do-chão, a primeira com cinco divisões para garagem e o segundo para habitação com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13 da freguesia de ... (anteriormente sob o n.º ...14 do Livro n.º 28), e declaro também que o direito à outra metade dessa mesma metade indivisa do mesmo imóvel integra o acervo hereditário e pertence, em comum com aquela autora, à herança deixada por óbito de CC, aqui representada pelos respectivos herdeiros desse de cujus, as autoras BB e AA;
b) Condeno as rés a reconhecerem o direito de propriedade judicialmente declarado em a);
c) Absolvo as rés do restante pedido.
Mais julgou o pedido reconvencional improcedente dele absolvendo as Autoras.
7. Inconformadas, as Rés apelaram impugnando a decisão de facto. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou procedente a apelação e decidiu nos seguintes termos:
• - ocorrer nulidade da decisão por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido;
• - aditar e alterar parcialmente a matéria de facto;
• “a. revogar as alíneas a) e b) do ponto I e o ponto II do dispositivo da sentença recorrida, julgando improcedente o pedido das autoras de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio em litígio;
b. declarar que a ré DD é proprietária do prédio urbano localizado no Vale ..., em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, construído em tijolo e coberto de telha, composto de cave e rés-do-chão, a cave tem 5 divisões e destina-se a garagem e arrumos; o rés-do-chão destina-se a habitação e tem 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor, sendo a área total do terreno de 166,00 m2, a área de implantação do edifício de 166,00 m2, a área bruta de construção de 304,00 m2, área bruta dependente de 166,00 m2 e área bruta privativa de 138 m2, inscrito na matriz sob o artigo ...27, por o ter adquirido por usucapião.”.
8. Interpuseram as Autoras recurso de revista, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“A) Julgar inexistente e infundada, a alegada nulidade da Douta Sentença por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido;
B) Julgar irrelevantes para a boa discussão da causa os aditamentos e alterações à matéria de facto feitas pelo tribunal recorrido, mantendo-se a decisão da 1ª instância;
C) Julgar verificada a nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea b) do CPC, anulando-se o Acórdão recorrido e em conformidade mandando-se baixar o processo à Relação para que esta proceda à sua reforma, nos termos das disposições conjugadas do art. 666º e 684º nº 2, ambos do CPC, por falta de fundamentos de facto e de direito da decisão de prevalência da figura da usucapião em detrimento do instituto da inversão do título da posse que se impunha em virtude do CPCV celebrado;
D) Julgar verificada a nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea c) do CPC, modificando-se a decisão no sentido de considerar que a ré sempre teria de ter invertido a posse, o que não aconteceu, pelo que, não poderia adquirir o prédio em causa por usucapião;
E) Julgar verificada a violação do disposto no artigo 376º nº 1 e 2 do CC, em virtude da desconsideração de prova documental essencial para a boa decisão da casa, nomeadamente, o CPCV constante da matéria de facto assente F) e em consequência, alterar-se a decisão, mantendo-se a decisão da 1ª instância;
F) Julgar verificada a violação do disposto nos artigos 342º, 1290º, 1257º nº 2, 1262º, 1290º e 1316º do Código Civil e do artigo 7º do Código do Registo Predial, bem como do direito à propriedade previsto no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e, revogar-se o Acórdão proferido e substituir-se por outro que mantenha a decisão da 1ª instância.”.
9. Em contra-alegações, as Rés defendem a improcedência da revista e a manutenção do acórdão recorrido.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações, mostram-se colocadas para apreciação deste tribunal as seguintes questões:
• Das nulidades do acórdão (falta de fundamentação, por contradição entre os seus fundamentos de facto e a decisão)
• Da inexistência de nulidade da sentença de 1.ª instância “por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido”
• Do erro de julgamento da matéria de facto
• Da inexistência dos pressupostos da inversão do título da posse e da usucapião
• Da presunção da titularidade do direito de propriedade a favor das Autoras
1. Os factos provados (destacada a negrito a factualidade alterada pelo acórdão em função do conhecimento do recurso sobre a matéria de facto)
A. Em escritura pública intitulada “Compra e Venda”, outorgada no dia 4 de Agosto de 1982, no Cartório Notarial de ..., II e JJ declararam vender a CC, que declarou comprar-lhes, pelo preço de Esc. 1.300.000$00 (um milhão e trezentos mil escudos), o seguinte: “um pRédio urbano sito em Vale ..., freguesia e concelho de ..., composto de Rés-do-chão, cave, omisso na matriz, mas já apresentada na Repartição de Finanças do concelho de ..., em vinte e quatro de Maio de mil novecentos e oitenta e dois a declaração para a sua inscrição, construído no terreno descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número BB, a folhas cento e cinquenta e oito, do Livro B-vinte e oito”.
B. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...13 da freguesia de... (anteriormente N.º ...14 do Livro n.º 28) um prédio Misto, situado em Vale ..., área total de 35000 m2, área coberta de 236,8 m2, área descoberta 34763,2 m2, matriz n.º 26 – Secção N.º AC; matriz n.º ...49; matriz n.º ...27.
Composição e Confrontações:
Regadio de produtos hortícolas. Norte - KK; Sul - LL; Nascente - Estrada; Poente - MM e urbanos: a) de Rés-do-chão direito e esquerdo, com um total de seis divisões, s.c. 98,80m2, art° 1749; b) Cave e Rés-do-chão, a cave tem 5 divisões e destina-se a garagem e arrumos, O Rés-do-chão destina-se a habitação e tem 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor, s.c. 138m2 e s.d. 2.662m2, artº 3.127
Desanexado o descrito sob o n° ...65/911004 da freguesia de ... (pRédio rústico 7.000m2 de cultura arvense, artº 28 da Secção AC)
Desanexado o descrito sob o n° ...44/980917 da freguesia de ... (área 7.000m2, art° 27 da Secção AC )
A área foi fixada após as desanexações.
C. Relativamente ao prédio identificado em B) encontra-se lavrada a seguinte inscrição: Ap. 24 de 4 de Junho de 1992 – Aquisição, por compra, a favor de CC casado com BB, no regime da comunhão geral de bens, e de HH casado com NN, sob o regime da separação, “em comum e partes iguais”, sendo sujeito passivo II casado com JJ, no regime de comunhão geral.
D. Com data de 4 de Agosto de 1982, no Cartório Notarial de ..., foi lavrada escritura pública intitulada “Compra e Venda”, mediante a qual, II e mulher, JJ, como primeiros outorgantes declararam vender a CC, casado no regime da comunhão geral de bens com BB, e a HH, casado no regime imperativo da separação de bens com NN, segundos outorgantes, que declararam aceitar, pelo preço global de um milhão e trezentos mil escudos, em comum e partes iguais, os seguintes prédios:
a. Prédio urbano sito em Vale..., freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz da freguesia de ... sob o artigo número ... quarenta e nove;
b. Um terreno de regadio de produtos hortícolas sito no sítio ..., Vale ... ou Estrada ..., freguesia e concelho de ..., com a área de trinta e cinco mil metros quadrados, confrontando do Norte com OO, Sul com MM, Nascente com Estrada ... e do Poente com LL e PP e constitui a parte restante do prédio inscrito na respectiva matriz rústica da freguesia de ... sob o artigo doze da Secção AC, e no qual está implantado o artigo urbano identificado na alínea a). A estes prédios foram atribuídos os valores de quatrocentos mil escudos e novecentos mil escudos respectivamente e estão descritos na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número BB, a folhas cento e cinquenta e oito do livro B-28.
E. O prédio localizado no Vale ..., em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, prédio urbano construído em tijolo e coberto de telha, composto de cave e Rés-do-chão, a cave tem 5 divisões e destina-se a garagem e arrumos; o Rés-do-chão destina-se a habitação e tem 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor, sendo a área total do terreno de 166,00 m2, a área de implantação do edifício de 166,00 m2, a área bruta de construção de 304,00 m2, área bruta dependente de 166,00 m2 e área bruta privativa de 138 m2, foi inscrito na matriz no ano de 1983, sob o artigo ...27.
F. A fls. 28 verso destes autos consta um escrito intitulado “Promessa de Compra e Venda”, com data de 28 de Fevereiro de 1984, que aqui se dá por reproduzido e no qual se fez, nomeadamente, constar: “CC […] e HH […]; e GG, casada, com FF […], Os primeiros que prometem vender aos segundos: uma propriedade rústica, com a área de 35.000 m2, sita no Vale .... Que esta venda é feita pela quantia de 6.250.000$00 (seis milhões duzentos e cinquenta mil escudos), quantia este que já receberam […] cuja escritura é realizada no dia 29 de fevereiro de 1984, e ainda uma casa de habitação e uma viatura ligeira […]”.
G. Com data de 29 de Fevereiro de 1984, a folhas 8 a 9 verso do livro de notas para escrituras diversas número Doze-B, do Cartório Notarial de Lic. QQ foi lavrada escritura pública denominada “Compra e Venda”, através da qual CC e mulher BB e HH, casado no regime imperativo de separação de bens com NN, como primeiros outorgantes, declararam que, livre de ónus e encargos, pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, que já receberam, vendem à segunda outorgante, GG, solteira, um terreno de regadio de produtos hortícolas, com a área de trinta e cinco mil metros quadrados, confrontando do Norte com RR, Sul com SS e MM, Nascente com Estrada ... e SS e do Poente com LL e PP, sito no Sítio ...ou Vale ..., o qual vai ser desanexado do prédio rústico, sito no Vale ... e ..., inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo doze da Secção AC e do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número de BB a folhas cento e cinquenta e oito do livro B-vinte e oito.
H. Em escritura pública intitulada “Escritura Pública de Habilitação de Herdeiras” a Autora BB, intitulando-se a cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, declarou que este não fez testamento nem deixou outra disposição de última vontade e que deixou como únicas herdeiras, ela mesma e a filha, aqui Autora, AA.
I. De fls. 31 verso a 33 verso consta um outro escrito intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 4 de Julho de 1989, que aqui se dá por reproduzido, do qual ficou, além do mais, a constar: “PROMITENTES VENDEDORES: CC e mulher BB, residentes na Rua..., em ....
PROMITENTES COMPRADORES:
Entre os acima referidos outorgantes é celebrado um contrato-promessa recíproco de compra e venda, nos termos e condições seguintes:
1 - Os primeiros são donos e legítimos possuidores de dois prédios sitos em lugar de Vale ..., freguesia e concelho de ..., que são:
- um prédio rústico, terreno de regadio de produtos hortícolas, com a área de cinco mil metros quadrados (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do... sob o número 10.514, a fls. 158 do livro B-28.
- um prédio urbano composto de Rés-do-chão e cave (…) construído no terreno acima identificado.
2- Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender aos segundos, e estes prometem comprar, ambos os identificados prédios.
3- A venda é ajustada pelo preço global de 11.000.000$00 (onze milhões de escudos)
(…)
4-Nesta data os promitentes compradores pagaram aos promitentes vendedores o montante de 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), a título de sinal e princípio de pagamento, pagamento este que faz objecto de recibo separado, por ter sido efectuado mediante cheque e sob reserva de boa cobrança.
(…)
7- Os promitentes compradores entram de imediato na posse dos bens objecto deste contrato, passando assim a ser da sua responsabilidade o pagamento dos encargos que sobre eles incidem, seja qual for a sua natureza.
(…)”.
J. A fls. 33 consta um escrito intitulado “Recibo de Sinal”, com a data de 3 de Julho de 1989, que aqui se dá por reproduzido, do qual se fez constar: “Declaro que me foi entregue o cheque abaixo identificado, para pagamento do sinal devido pela venda dos prédios sitos no lugar de Vale ..., (…)”.
K. DD nasceu no dia ... de Julho de 1967 e é filha de FF e de GG.
L. Desde data anterior a 1 de Junho de 2014 a Ré DD14 ocupa a construção constituída por cave com cinco divisões, destinada a garagem e arrumos e Rés-do-chão com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, referida na alínea B).
M. A mesma não paga às Autoras qualquer contrapartida por essa ocupação.
N. A Ré DD é mãe da co-Ré EE.
O. A Ré EE ocupa, conjuntamente com a co-Ré, a construção referida na alínea L), desde data anterior a 1 de Junho de 2014.
P. Essa construção, se dada de arrendamento, proporcionaria um rendimento mensal não inferior a Euros 600 (seiscentos euros).
Q. As assinaturas que constam do escrito referido na alínea F) foram apostas no mesmo pelos punhos de CC e HH.
R. As assinaturas que constam do escrito referido na alínea I) foram apostas no mesmo pelos punhos de CC e FF.
S. A Ré DD começou a utilizar a construção descrita na alínea L), a partir de dia não concretamente apurado do ano de 1990.
T. Algum tempo após o seu casamento, essa construção passou a ser a casa da morada da sua família.
U. Desde há mais de 20 anos que a mesma Ré habita essa construção e nela guarda os seus bens, o que faz à vista de toda a gente, de modo pacífico e sem oposição de ninguém.
V. A mesma Ré criou os seus filhos nesse espaço, tendo-lhes transmitido a convicção de que era proprietária dessa construção.
W. A mesma Ré colocou instalação eléctrica e canalização na cave, revestiu e pintou as respectivas paredes e criou nela divisões, incluindo uma casa de banho.
X. No Rés-do-chão, a Ré DD removeu a alcatifa existente, colocou mosaico, uniu duas casas de banho, renovou outra casa de banho, substitui o pavimento da cozinha, colocou pladur nas paredes, pintou paredes interiores, conservou portas interiores e substituiu as janelas.
Y. A mesma Ré pintou as paredes exteriores, transformou um portão em porta de entrada, removeu a vedação e colocou sebes à volta da construção.
Z. A Ré DD praticou os actos descritos sob W), X) e Y) à vista de toda a gente, exceptuando de CC e das Autoras, sem oposição de ninguém, nomeadamente, sem oposição de CC ou das Autoras, que desconheciam tais obras, assim agindo essa Ré na convicção de que, por efeito do documento escrito mencionado em I) e por ser filha de FF, era a proprietária dessa construção.
AA. CC e as Autoras, em mais de 20 anos, nunca visitaram essa construção, não efectuaram qualquer obra na mesma, nem exigiram o pagamento de rendas.
2. O direito
2.1 Das nulidades do acórdão
2.1.1. falta de fundamentação
Alegam as recorrentes que, “analisado o acórdão recorrido, constata-se que dele não consta a menção de disposição legal, doutrina, ou princípio jurídico em que se baseou a sua decisão de prevalência da figura da usucapião em detrimento do instituto da inversão do título da posse que se impunha em virtude do CPCV celebrado, deveria o tribunal ad quo indicar quais as disposições legais em que baseou a sua decisão para decidir com decidiu, à luz dos critérios legais aplicáveis e enunciados nos artºs 224º e seguintes do Código Civil dispõem sobre a eficácia da declaração negocial, sua aceitação ou rejeição e conclusão do negócio.”
Concluem que o acórdão recorrido “padece, assim, de nulidade por total omissão dos fundamentos de direito, uma vez que, não integrou quaisquer factos, nem adiantou suficientemente quaisquer razões de direito, doutrina legal ou princípios jurídicos que sustentam a sua decisão acima descrita.”
De acordo com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC: “É nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Como constitui jurisprudência pacífica neste Supremo Tribunal, “o vício de falta de fundamentação só se verifica quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos da decisão e já não quando a fundamentação seja meramente deficiente, incompleta, aligeirada ou não exaustiva” 1
A simples leitura do acórdão evidencia a falta de razão das Recorrentes. Com efeito, como se encontra realçado pelo acórdão do tribunal a quo que apreciou as nulidades, mostra-se consignado na decisão recorrida:
a. “Identificou o normativo legal que enuncia os diversos modos de aquisição do direito de propriedade;
b. Caracterizou o instituto de usucapião e a posse susceptível de permitir a aquisição de um imóvel com base na usucapião;
c. Discorreu sobre o confronto entre as presunções decorrentes do registo e da posse e a função das inscrições de registo;
d. Abordou o conceito de prédio com base nos diversos normativos legais que se lhe referem e a sua natureza rústica, urbana ou mista;
e. Tratou da possibilidade de fraccionamento do prédio rústico em virtude do reconhecimento do direito de propriedade apenas incidente sobre o urbano inscrito na matriz sob o artigo 3127;
f. Apreciou os efeitos do contrato-promessa que incidiu sobre o terreno onde está implantada a construção e ponderou a actuação material da ré DD sobre esta e o exercício do poder de facto com a intenção de exercer o direito real correspondente, concluindo pela sua qualidade de possuidora e consequente presunção da titularidade do direito, anterior à presunção decorrente do registo de que beneficiam as autoras.”
Como tem sido afirmado pela jurisprudência deste tribunal, a existência de uma eventual fundamentação deficiente, não convincente (relativamente aos requisitos da inversão do título de posse nos termos invocados pelas Recorrentes) ou mesmo de erro de julgamento, não integra o vício de nulidade da decisão por falta de fundamentação.
Verifica-se, pois, que as Recorrentes, sob as vestes impróprias da nulidade de decisão, exprimem a sua discordância relativamente ao acórdão.
Improcede, assim, a arguição da nulidade por falta de fundamentação.
2.1.2 contradição entre os fundamentos e a decisão
Defendem também as Recorrentes ocorrer contradição entre os fundamentos e a decisão atenta ao que resulta da matéria provada nas alíneas F) e G).
Segundo as Recorrentes, “tendo sido dado como provado que foi celebrado o referido CPCV, em 28 de fevereiro de 1984, com cláusula a dispor que o promitente comprador entraria de imediato na posse do bem, e pago o respectivo sinal, seria legítimo concluir e impunha-se ao acórdão recorrido a verificação de que só o pai e marido das rés poderia invocar a posse e que, por sua vez, as rés só o poderiam fazer invertendo o título da posse. Não tendo decidido neste sentido e mantendo a decisão da 1ª instância, o acórdão recorrido padece de contradição entre os seus fundamentos de facto e a decisão que declarou a ré DD proprietária do prédio por usucapião.”.
De acordo com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC: “É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Constitui jurisprudência consolidada do STJ, que este vício se verifica “quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam, logicamente, conduzir a resultado oposto ao que vem a ser expresso na decisão, evidenciando-se um manifesto e real vício de raciocínio do julgador, não se confundindo a desconformidade lógica entre as razões de facto e de direito que fundamentaram a decisão proferida, e esta última, com a discordância que a parte possa ter quanto às mesmas. Por sua vez a ambiguidade e obscuridade da decisão que a torna ininteligível, resulta de não ser percetível qualquer sentido da parte decisória – obscuridade, ou encerre um duplo sentido – ambiguidade, e assim ininteligível para um declaratário normal, só sendo relevantes quando gerem ininteligibilidade, no sentido de um declaratário normal não poder retirar da parte decisória, e apenas desta, um sentido unívoco, mesmo depois de ter recorrido à fundamentação para a interpretar”2.
Como é apontado no acórdão proferido nos autos em 11-07-2024, que se pronunciou sobre as nulidades arguidas, as Recorrentes continuam a confundir vício de decisão com eventual erro de julgamento. Com efeito, ao defenderem que em face da matéria de facto provada - alíneas F) e G) atinentes à celebração de um contrato-promessa de compra e venda incidente sobre o imóvel dos autos – caberia ao tribunal da Relação concluir que a posse só poderia ser invocada pelo promitente-comprador (pessoa em relação a quem ocorreu a tradição da coisa, pelo que as Rés teriam de inverter a posse), evidencia que a sua discordância radica na subsunção jurídica efectuada pelo tribunal recorrido quanto aos factos apurados e às conclusões que dela retirou.
Mostra-se, pois, o acórdão claramente perceptível e inteligível, não existindo qualquer desconformidade lógica entre a decisão recorrida e as razões de facto e de direito que a fundamentaram, sem prejuízo de se poder considerar ocorrer uma situação de eventual erro na subsunção jurídica dos factos que se situa no âmbito do erro de julgamento; não, nos vícios da decisão previstos no artigo 615.º do CPC.
Improcede, também, neste aspecto, a arguição deste vício.
2.2 Da nulidade da sentença de 1.ª instância “por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido”
O acórdão recorrido considerou que sentença se encontrava ferida de nulidade porque condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, uma vez que, restringindo-se o pedido das Autoras ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...27, a sentença veio declarar a propriedade da Autora sobre “metade da metade indivisa” do prédio descrito sob o número ...13, incluindo a parte rústica com 35 000 m2 e o urbano inscrito na matriz sob o artigo ...49 e outra metade dessa metade indivisa como integrante do acervo hereditário de CC, para além de identificar o prédio como omisso na matriz”.
Segundo o tribunal a quo, as Autoras apenas circunscreveram o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o “prédio urbano sito no Vale ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13/19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ...27 da freguesia de ...”, reportando-se, concretamente, ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...27, sem alusão à globalidade do prédio descrito sob o número ...13 o qual integra um terreno rústico de regadio de produtos hortícolas inscrito na matriz sob o artigo 26 da secção AC, um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...49 e um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...27, ou seja, sem que tenha estado em discussão nos autos quer o prédio rústico com a área de 35 000 m2, quer o urbano inscrito na matriz sob o artigo ...49.
Consideram as Recorrentes que, ao invés do decidido no acórdão recorrido, não se encontra a sentença de 1.ª instância afectada por nulidade “por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido”. Justificam para o efeito que “o facto alegado nulo pelas rés trata-se do Facto B e C, primeira parte, da matéria de facto ASSENTE, condensada no Despacho Saneador, proferido em 11 de Julho de 2018, - transitado em julgado, constituindo caso julgado, adquirindo força obrigatória no processo (cfr. artigo 595º, nº 1, al. a) e nº 3 e artigo 628º do CPC) - com base na certidão predial permanente, junta como Doc. nº 1, à Petição Inicial das Autoras, ora Recorrentes, referente ao prédio misto, registado na Conservatória Predial de ..., sob o número ...13, a favor de CC, casado com BB e HH.”.
Argumentam, igualmente, que “a sentença da 1ª instância reconheceu às autoras o direito de propriedade sobre o referido prédio descrito sob o número ...13, conforme consta actualmente da respectiva certidão predial, pelo que, a douta sentença limitou-se a declarar o supra exposto e que resultou provado através de prova documental, nomeadamente, da supra identificada certidão predial permanente, junta como Doc. nº 1, à Petição Inicial das Autoras, ora Recorrentes, da análise da qual, conjugada com a Habilitação de Herdeiros apresentada, resulta que as ora Recorrentes são as legítimas proprietárias do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13.”.
Vejamos.
De acordo com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, “é nula a sentença quando: (…) e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Na sua alegação, as Recorrentes, apoiando-se em matéria de facto, descuram, porém, princípios inultrapassáveis do processo civil como são o princípio do dispositivo e o principio do pedido que dele decorre, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (artigo 3.º, n.º 1, do CPC).
Como é salientado no acórdão do STJ de 29-09-2022 (Processo n.º 605/17.0T8PVZ.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ), “se é certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, também não devem, sem assento no alegado e peticionado pelo autor, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: “Não dês mais do que aquilo que te é pedido”.
Explicita-se, ainda, no acórdão do STJ de 22-02-2022 (Processo n.º 351/20.8T8ORM.E1.S1, acessível igualmente através das bases Documentais do ITIJ) que “sempre que o autor não exercite plena e eficazmente a sua pretensão, uma vez ultrapassada a fase processualmente adequada para colmatar a deficiência petitória através da ampliação do pedido (artigo 265.º, n.º2, do CPC), não pode o juiz, oficiosamente, suprir tal omissão.”
Constitui, assim, um ónus do autor definir a sua pretensão, formulando o pedido na petição inicial (artigo 552.º, n.º1, alínea e), do CPC ), o qual baliza a intervenção do tribunal (artigo 609.º, n.º1, do CPC).
Em suma, “na observância do princípio do dispositivo, o tribunal está também impedido de condenar em quantia superior ou em objeto diverso do que for pedido. Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade, quer no que respeita ao seu próprio objeto, isto sob pena de a sentença ficar afetada de nulidade, quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, quer ainda quando condene em quantidade superior ou em objeto diferente do pedido (art. 615.º, n.º l, als. d) e e), do CPC). No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor – cfr. acórdão do STJ de 09-01-2024 (Processo n.º 5766/20.9T8GMR.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ).
No caso dos autos, as Autoras formularam na sua petição inicial, entre outros, os seguintes pedidos: “a) Declararem-se as Autoras como legítimas proprietárias do imóvel supra identificado no Artigo 1.º; b) Serem as Rés condenadas a restituir o imóvel às Autoras, livre de pessoas e bens (…)”.
No artigo 1.º da petição foi alegado que “as Autoras são donas e legítimas proprietárias do prédio urbano sito no Vale ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13/19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ...27 da freguesia de ... (cfr. certidão permanente e caderneta predial que se juntam como Docs. 1 e 2 e dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).”
No artigo 2.º do mesmo articulado, as Autoras concretizaram que “o referido prédio urbano, destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, é constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor.”
Na sentença proferida em 1.ª instância foi reconhecido à Autora BB o direito de propriedade sobre “metade da metade indivisa do prédio urbano sito em Vale ..., freguesia e concelho de ..., com a área total de 35.000 m2, a área coberta de 236,8 m2 e a área descoberta de 34.763,2 m2, composto por regadio de produtos hortícolas e parte urbana constituída por: a) rés-do-chão direito e esquerdo, com um total de seis divisões; b) cave e rés-do-chão, a primeira com cinco divisões para garagem e o segundo para habitação com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º...13 da freguesia de... (anteriormente sob o n.º ...14 do Livro n.º 28)”
Foi igualmente reconhecido que “o direito à outra metade dessa mesma metade indivisa do mesmo imóvel integra o acervo hereditário e pertence, em comum com aquela autora, à herança deixada por óbito de CC, aqui representada pelos respectivos herdeiros desse de cujus, as autoras BB e AA.”
Como é salientado no acórdão recorrido, “da leitura da petição inicial, e mais exactamente dos factos integradores da causa de pedir nela vertidos e do pedido deduzido a final, parece claro que as autoras não formularam qualquer pretensão no sentido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade incidente sobre a globalidade das existências físicas imobiliárias que integram a descrição predial em referência, posto que sempre se reportaram a um prédio urbano (não rústico ou misto), que claramente identificaram como sendo “destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, é constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor” – cf. artigos 2º, 7º, 9º, 13º a 15º, 18º e 27º da petição inicial.”.
Foi, pois, sempre relativamente a este prédio assim identificado e delimitado, que as Autoras formularam a sua pretensão de ver reconhecido o seu direito de propriedade, aludindo especificamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...27,º – cf. artigo 28º da petição inicial e alínea a) do petitório, tendo sido relativamente a esse prédio que diligenciaram pela junção da respectiva caderneta predial, apresentada com a petição inicial.
E estando o princípio do dispositivo inegavelmente associado ao princípio do contraditório, importa realçar, como consta do acórdão recorrido, que “foi relativamente a esta realidade física que as rés exerceram o seu direito de defesa, como se afere dos artigos 15º, a 17º, 19º e 20º da contestação, assim como foi especificamente quanto a ela que a ré DD deduziu o seu pedido reconvencional.”
As Autoras não introduziram nenhuma alteração ao seu pedido e, concretamente, quanto ao objecto do direito de propriedade que pretendiam fazer valer, reportando-se concretamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...27.º, sem qualquer tipo de alusão à globalidade do prédio descrito sob o número ...13.º, ou seja, sem que tenha estado em discussão nos autos quer o prédio rústico com a área de 35 000 m2, quer o urbano inscrito na matriz sob o artigo ...49,º – cfr. requerimentos das partes de 10 de Abril, 11 de Abril e 4 de Junho de 2018.
Assim, independentemente do que resultou provado na acção, importa concluir nos termos considerados no acórdão recorrido, ou seja, de que as Autoras formularam um pedido de reconhecimento do direito de propriedade e restituição de um determinado prédio urbano e, sendo esse o prédio cuja ocupação ilícita imputam às Rés, não podia a sentença alargar o respectivo âmbito de apreciação por forma a declarar tal direito sobre coisa diversa com a condenação das Rés no reconhecimento de tal direito sobre o imóvel relativamente ao qual não foi alegada qualquer ocupação sem título.
Não merece, pois, qualquer censura o decidido pelo tribunal recorrido quanto à nulidade da sentença de 1.ª instância.
2.3 Do erro no julgamento da matéria de facto
Defendem as Recorrentes que os aditamentos e alterações introduzidas pelo tribunal recorrido aos pontos A, B, C e D da decisão sobre a matéria de facto deverão ser objecto de revogação e mantida a decisão da 1.ª instância, por tais alterações serem irrelevantes para a boa discussão da causa e conterem matéria conclusiva de direito.
Conforme resulta evidenciado (destaque em negrito) na matéria de facto provada acima elencada, na alínea A) o tribunal a quo manteve integralmente a redacção da sentença de 1.ª instância, não tendo, por isso, sido objecto de qualquer alteração.
Na alínea B), o tribunal a quo acrescentou a referência à inscrição do prédio na matriz predial, bem como as confrontações do prédio e as desanexações de que o mesmo foi objecto.
Na alínea C), o tribunal a quo acrescentou o sujeito passivo da aquisição por compra do prédio identificado em B), indicada na apresentação n.º 24 de 04-06-1992, que constava já da matéria de facto provada pela 1.ª instância.
Quanto à nova alínea D), o tribunal a quo aditou o teor da escritura pública de compra e venda lavrada em 04-08-1982, a qual tem por objecto: um prédio urbano inscrito na respectiva matriz da freguesia de ... sob o artigo n.º ...49 que corresponde a um dos artigos que compõem o prédio mencionado na alínea B) dos factos provados; um terreno de regadio de produtos hortícolas descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número BB, a folhas cento e cinquenta e oito do livro B-28, que corresponde ao antigo número da descrição do prédio identificado na alínea B) dos factos provados.
Nesse sentido o acórdão recorrido consignou que “independentemente da maior ou menor pertinência dos factos que as recorrentes pretendem introduzir no elenco dos factos provados para a procedência da sua pretensão recursória, nada obsta a que, com base nos documentos a que aquelas se reportam, deles se extraia o respectivo conteúdo, pois que este pode auxiliar na delineação do circunstancialismo que precedeu a ocupação do prédio em litígio por parte das rés.”
De facto, estando em causa nos autos a reivindicação de um imóvel que se encontra identificado na alínea B) dos factos provados, não podemos deixar de concordar com o tribunal a quo porquanto mostra-se plenamente justificada a inclusão, na factualidade provada, dos elementos contantes do registo predial e das cadernetas prediais, relativamente ao prédio em causa, bem como os negócios jurídicos que tiveram o referido prédio, ou partes dele, como objecto, de que é exemplo a referida escritura pública de compra e venda de 04-08-1982, para que seja possível apurar o “circunstancialismo que precedeu a ocupação do prédio em litígio por parte das rés.” Por outro lado, tratando-se de factos descritos no registo predial, constantes das matrizes prediais ou de escrituras públicas lavradas em cartórios notariais, interessam para a decisão da causa o texto concreto constante desses documentos, independentemente de conterem matéria conclusiva de direito, pois a interpretação das concretas palavras utilizadas naqueles documentos devem ser objecto de interpretação pelo julgador na fundamentação de direito da sua decisão.
Nenhum reparo merece, assim, a decisão recorrida quanto a estes pontos da matéria de facto provada.
Defendem também as Recorrentes que não foi feita prova da utilização por parte da Ré reconvinte do prédio em litígio nos autos, por não ter juntado qualquer documento comprovativo dessa utilização e estar comprometida a imparcialidade e a credibilidade da maioria das testemunhas que nesse sentido depuseram em tribunal, na sua maioria familiares da Ré, face ao interesse no desfecho da acção.
Relativamente à utilização do imóvel em causa nos autos resultou provada nos pontos L), M), O), S), T), U), V), W), X, Y e Z) que aqui se reproduzem:
(…) L) Desde data anterior a 1 de Junho de 2014 a ré DD ocupa a construção constituída por cave com cinco divisões, destinada a garagem e arrumos e rés-do-chão com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, referida na alínea B).
M) A mesma não paga às autoras qualquer contrapartida por essa ocupação.
(…)
O) A ré EE ocupa, conjuntamente com a co-ré, a construção referida na alínea L), desde data anterior a 1 de Junho de 2014.
(…)
S) A ré DD começou a utilizar a construção descrita na alínea L), a partir de dia não concretamente apurado do ano de 1990.
T) Algum tempo após o seu casamento, essa construção passou a ser a casa da morada da sua família.
U) Desde há mais de 20 anos que a mesma ré habita essa construção e nela guarda os seus bens, o que faz à vista de toda a gente, de modo pacífico e sem oposição de ninguém.
V) A mesma ré criou os seus filhos nesse espaço, tendo-lhes transmitido a convicção de que era proprietária dessa construção.
W) A mesma ré colocou instalação eléctrica e canalização na cave, revestiu e pintou as respectivas paredes e criou nela divisões, incluindo uma casa de banho.
X) No rés-do-chão, a ré DD removeu a alcatifa existente, colocou mosaico, uniu duas casas de banho, renovou outra casa de banho, substitui o pavimento da cozinha, colocou pladur nas paredes, pintou paredes interiores, conservou portas interiores e substituiu as janelas.
Y) A mesma ré pintou as paredes exteriores, transformou um portão em porta de entrada, removeu a vedação e colocou sebes à volta da construção.
Z) A ré DD praticou os actos descritos sob W), X) e Y) à vista de toda a gente, exceptuando de CC e das autoras, sem oposição de ninguém, nomeadamente, sem oposição de CC ou das autoras, que desconheciam tais obras, assim agindo essa ré na convicção de que, por efeito do documento escrito mencionado em I) e por ser filha de FF, era a proprietária dessa construção.
Infere-se da alegação das Recorrentes que as mesmas pretendem com o presente recurso de revista que a matéria de facto acima transcrita deixe de ser considerada provada. Todavia, tal pretensão descuida os poderes deste tribunal relativamente à matéria de facto.
Estando em causa matéria provada em que o tribunal formou a sua convicção através do depoimento de testemunhas, mostra-se a mesma insindicável, porquanto o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa apenas pode ser objecto de recurso de revista quando exista ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – cfr. artigo 674.º, n.º 3, do CPC.
O STJ está, assim, limitado, em termos de conhecimento de erro na fixação dos factos, às situações de violação de lei na apreciação da chamada prova vinculada, estando-lhe vedada a possibilidade de sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso da prova testemunhal (cfr. neste sentido, entre outros, acórdão do STJ de 11-07-2023, Processo n.º 400/18.0T8PVZ.P1.S2 , acessível através das Bases Documentais do ITIJ).
Não tendo as Recorrentes invocado qualquer ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, a matéria por si alegada no presente recurso de revista é insindicável pelo STJ, motivo pelo qual também improcede, nesta parte, da revista.
4. Da (in)existência dos pressupostos da inversão do título da posse e da usucapião
Na sequência do referido no ponto 2.2, o objecto da presente acção encontra-se circunscrito ao direito de propriedade relativamente a um prédio urbano, destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor, que se encontra inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3127.
Alicerçam as Autoras o direito de propriedade sobre o referido imóvel invocando que o mesmo ingressou no património da Autora BB e do seu falecido marido, CC, por contrato de compra e venda celebrado em 4 de Agosto de 1982, em que foram vendedores II e mulher.
Contrapõe a Ré DD defendendo ser proprietária do referido imóvel, adquirido por usucapião, na sequência da celebração de contrato-promessa referenciado na alínea I) dos factos provados.
Ao invés da sentença, que concluiu que as Autoras beneficiavam da presunção de propriedade decorrente do registo predial, nos termos do artigo 7º, do Código de Registo Predial3 o acórdão recorrido considerou que a Ré DD havia adquirido, por usucapião, o imóvel em causa.
Insurgem-se as Recorrentes considerando que o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 376.º, do Código Civil, ao “dar como provada a posse por usucapião pela ré DD”, porque ignorou a prova documental (designadamente o contrato promessa de compra e venda celebrado nos termos do qual o promitente comprador, o pai da Ré, entraria de imediato na posse do bem e, bem assim, ter sido pago sinal) e decidiu pela aquisição da propriedade do imóvel por usucapião, descurando o instituto da inversão do título da posse.
A inexistência de rigor técnico na forma como as Recorrentes expõem os argumentos em que sustentam o seu posicionamento (“posse” e a “usucapião” são conceitos jurídicos que não se provam), impõe que se precise os contornos da questão que cabe apreciar.
As instâncias deram como provados factos que o tribunal a quo subsumiu ao conceito de posse, tendo decidido que a mesma, pelas suas características, se mostrava apta à aquisição do direito de propriedade por usucapião.
As Recorrentes rebelam-se relativamente a essa conclusão, sendo certo que a situação não se reconduz ao erro na apreciação da prova, mas à subsunção jurídica dos factos relativamente à verificação dos requisitos da inversão do título da posse. Trata-se, por isso, de matéria de direito, sindicável por este tribunal no âmbito da revista.
De acordo com o alegação pela Ré reconvinte no artigo 19.º da sua contestação/ reconvenção, a posse exercida sobre o prédio urbano em causa nos autos e que integra o prédio mencionado na alínea B) dos factos provados, decorre directamente da celebração do contrato-promessa referido no artigo 14.º dessa peça processual, que remete para o teor do documento n.º 3 anexo, cujo teor resulta fixado na alínea I) dos factos provados.
Na fundamentação expendida, o acórdão recorrido faz realçar que a Ré DD, na sua contestação, nos artigos 14.º a 16.º, “justificou a posse do prédio em litígio precisamente com base no contrato-promessa de compra e venda referido em I), fazendo-lhe corresponder o artigo matricial 3127”.
Importa, por isso, avaliar se a celebração desse contrato-promessa implicou, efectivamente, a transferência da posse dos respectivos promitentes-vendedores, proprietários do prédio, para o respectivo promitente-comprador, FF, pai da Ré DD, invocando esta que passou ela própria a possuir o prédio a partir da data da sua celebração.
Resultou provado na referida alínea I) que “de fls. 31 verso a 33 verso consta um outro escrito intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 4 de Julho de 1989, que aqui se dá por reproduzido, do qual ficou, além do mais, a constar: “PROMITENTES VENDEDORES: CC e mulher BB, residentes na Rua..., em....
PROMITENTES COMPRADORES:
Entre os acima referidos outorgantes é celebrado um contrato-promessa recíproco de compra e venda, nos termos e condições seguintes:
1 - Os primeiros são donos e legítimos possuidores de dois prédios sitos em lugar de Vale ..., freguesia e concelho de ..., que são:
- um prédio rústico, terreno de regadio de produtos hortícolas, com a área de cinco mil metros quadrados (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número ...14, a fls. 158 do livro B-28.
- um prédio urbano composto de rés-do-chão e cave (…) construído no terreno acima identificado.
2- Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender aos segundos, e estes prometem comprar, ambos os identificados prédios.
3- A venda é ajustada pelo preço global de 11.000.000$00 (onze milhões de escudos)
(…)
4-Nesta data os promitentes compradores pagaram aos promitentes vendedores o montante de 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), a título de sinal e princípio de pagamento, pagamento este que faz objecto de recibo separado, por ter sido efectuado mediante cheque e sob reserva de boa cobrança.
(…)
7- Os promitentes compradores entram de imediato na posse dos bens objecto deste contrato, passando assim a ser da sua responsabilidade o pagamento dos encargos que sobre eles incidem, seja qual for a sua natureza.
(…)”.
Mais se provou que as assinaturas que constam desse escrito referido na alínea I) dos factos provados foram apostas no mesmo pelos punhos de CC e FF, sendo que a assinatura deste último surge no referido documento como sendo a do promitente-comprador (alíneas Q) e R)).
Provou-se também que a Ré DD começou a utilizar a construção constituída por cave com cinco divisões, destinada a garagem e arrumos e rés-do-chão com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, existente no referido prédio, a partir de dia não concretamente apurado do ano de 1990 – alínea S).
Atenta a redacção da cláusula 7.ª do referido contrato-promessa, é pacífico nos autos que tal contrato foi acompanhado da tradição da coisa para o promitente-comprador, algo que não só não é negado pelas Autoras, como é invocado a favor da sua pretensão no presente recurso de revista.
Conforme se expõe no sumário do acórdão do STJ de 27-01-2005 (Processo n.º 4387/04, a que se pode aceder através www.stj.pt/sumario-dos-acordaos): “a traditio, que não é essencial ao contrato-promessa, embora usualmente lhe esteja associada, constituiu um negócio atípico, subordinado ao princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (arts. 219º e 405º CC)”, segundo o qual “as partes no contrato-promessa, apesar do ali convencionado, entenderam, por acordo, celebrar novo negócio - negócio de tradição - nos termos do qual foi transferida a posse (para outros a detenção) do imóvel para o autor.”4.
Questão diversa, que se mostra controversa na doutrina e na jurisprudência, é a de saber se o beneficiário da tradição obtém a qualidade de possuidor da coisa ou se é um mero detentor da mesma.
A maioria da doutrina entende que, regra geral, no âmbito de um contrato-promessa a entrega da coisa ao promitente-comprador, por si só, não permite falar de posse exercida por este último, tudo dependendo da interpretação da vontade das partes, ou seja, poderão existir situações em que se verifica a posse do promitente-comprador com traditio, desde que ele, para além do corpus possessório, adquira também o animus de proprietário5..
Referem Pires de Lima e Antunes Varela a este respeito que “o contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (…) São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v. g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.” - (obra citada, pp. 6 e 7)
Menezes Cordeiro faz referência às seguintes hipóteses possíveis para definir a natureza da posse do promitente adquirente:
“- a traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo; trata-se duma hipótese frequente nos casos em que o preço esteja todo ou quase todo pago; o promitente adquirente é, então, desde logo, investido num controlo material semelhante ao do proprietário, podendo falar-se em posse em termos de propriedade;
- a entrega da coisa é um favor feito pelo promitente alienante; não houve pagamento do preço ou algo que dele se possa aproximar; o alienante, não obstante, por obsequiosidade ou por gentileza, entregou antecipadamente a coisa: desta feita, temos algo de semelhante a um comodato, pelo que a posse do promitente adquirente se deve situar no âmbito do artigo 113372;
- a entrega da coisa, não sendo uma antecipação do cumprimento do definitivo não surge, porém, como mero favor; por exemplo, ela é subsequente a um "reforço" de sinal, tendo, assim, um cariz remuneratório; desta feita, surge gozo remunerado, a aproximar da locação: impõe--se uma posse tipo artigo 1037.º/2.
Estas distinções são importantes. No primeiro caso, a posse é boa para usucapião, podendo proporcionar, por essa via, a aquisição do domínio. Nos segundo e terceiro casos, a posse é interdictal: ela dá azo às defesas possessórias, mas não à usucapião: as situações de fundo a que corresponde não são usucapíveis.” (op. cit, p. 77).
A jurisprudência do STJ tem seguido de forma uniforme o entendimento no sentido de que o contrato-promessa de compra e venda, mesmo acompanhado de tradição da coisa, não é susceptível de transferir, por norma, a posse ao promitente-comprador, ficando este na situação de mero detentor ou possuidor precário, pese embora admitir que, em circunstâncias excepcionais, são configuráveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Tais situações são admitidas pela jurisprudência nos casos acima referenciados pela doutrina: pagamento da totalidade do preço ou parte substancial do mesmo; quando, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (nomeadamente para evitar o pagamento do IMT ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse6.
Como é sintetizado no acórdão do STJ de 11-03-2021 citado: “A qualificação da natureza da posse do promitente comprador que, no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de um bem obtém a tradição deste, não emerge do contrato promessa, que não tem, por regra, eficácia translativa, decorrendo, antes, do acordo negocial de entrega antecipada e da efetiva entrega do bem pelo promitente vendedor tendo em vista a antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo, pelo que, para tanto, impõe-se valorar, caso a caso, os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração. Assim, se dessa ponderação casuística resultar comprovada a intenção do promitente vendedor de transferir, desde logo, para o promitente comprador, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade, designadamente por o promitente comprador já ter pago a totalidade do preço ou por as partes, por razões específicas, não terem o propósito de realizar o contrato definitivo, impõe-se considerar o promitente comprador com tradição do imóvel como sendo um verdadeiro possuidor, o que determina, a seu favor, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião, nos termos dos arts. 1251.º, 1263.º, al. b), e 1287.º, todos do CC.”
Tem também sido entendido consistentemente neste tribunal que nos casos em que a tradição da coisa não transmite para o promitente-comprador a posse correspondente ao direito de propriedade, nada impede a eventual ocorrência de uma situação de inversão do título da posse (artigo 1265.º, do Código Civil), desde que reunidos os respectivos requisitos, caso em que o promitente comprador ultrapassa a mera detenção do imóvel, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria posse7.
Na situação dos autos, o acórdão recorrido, seguindo o entendimento doutrinário e jurisprudencial acima referenciado, afirmou que “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da tradição da coisa, no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, depende fundamentalmente de uma ponderação casuística que atenda aos termos e ao conteúdo do negócio, às circunstâncias que o rodearam e às vicissitudes que se lhe seguiram, podendo verificar-se situações em que a traditio não teve originariamente como pressuposto subjacente à vontade dos contraentes a realização do contrato definitivo ou em que, supervenientemente, ocorreram vicissitudes na vida da relação contratual determinantes de uma radical mudança no título que tinha justificado a entrega, a título precário e limitado, ao promitente-comprador, enquadráveis na figura da inversão do título da posse”.
E em face da factualidade apurada considerou-se que «não obstante no caso concreto não ter sido paga a totalidade do preço e apesar de se ter consignado no contrato-promessa que os promitentes-compradores entram de imediato na “posse dos bens” (cf. alínea I)), devendo estes assumir todos os encargos inerente à coisa, certo é que os demais elementos apurados não permitem sequer aferir em que termos o promitente-comprador, FF, pai da ré DD, passou a exercer, se os exerceu, actos materiais sobre a coisa e menos ainda qual terá sido a verdadeira intenção das partes quanto ao assim clausulado. Os factos apurados revelam apenas que foi a ré DD quem, desde dia não apurado do ano de 1990, começou a utilizar a construção que corresponde ao artigo matricial ...27. Apesar de estar demonstrado que esta ré efectuou as obras descritas em W), X) e Y), na convicção de que, por efeito do contrato-promessa referido em I), era proprietária da construção (cf. alínea Z)), daí não se retira que os seus actos materiais sobre a coisa tenham radicado na tradição decorrente desse contrato-promessa e que tenha actuado e agido sobre o prédio na expectativa da celebração do contrato definitivo, tanto mais que não era ela a promitente-compradora.».
Entendemos que, neste aspecto, o acórdão recorrido não merece censura.
Na verdade, no referido contrato-promessa, que teve como objecto a parcela de terreno na qual se encontra edificada a construção reivindicada nos presentes autos, foi convencionado que o promitente-comprador, pai da aqui Ré reconvinte, com a celebração do contrato “entra de imediato na posse dos bens objecto deste contrato, passando assim a ser da sua responsabilidade o pagamento dos encargos que sobre eles incidem, seja qual for a sua natureza.”
Convencionou-se que o preço total do negócio definitivo de compra e venda seria de 11.000.000$00 (onze milhões de escudos), tendo o promitente-comprado pago aos promitentes-vendedores o montante de 6.000.000$00 (seis milhões de escudos), a título de sinal e princípio de pagamento.
Nada mais tendo resultado provado sobre as intenções das partes no momento da celebração desse contrato, apesar do sinal pago corresponder a mais de metade do preço convencionado, há que considerar que a entrega da coisa objecto do contrato-promessa aqui em causa não transferiu a posse ao pai da Ré DD, ficando este na situação de mero detentor ou possuidor precário.
Todavia, o acórdão recorrido também entendeu que “a factualidade provada revela que a ré DD actuou sobre o imóvel, à vista de todos e na convicção de ser sua proprietária, convicção que, inclusivamente, transmitiu aos seus filhos, sendo que a intenção de domínio não tem de ser manifestada de modo explícito e menos ainda por palavras, pois o que releva é que tal intenção se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.” E que “os factos apurados viabilizam a afirmação do estabelecimento de uma relação de exercício de poderes de facto entre a apelante DD e o prédio reivindicado, que desde há mais de vinte anos tem a disponibilidade fáctica relativamente à coisa, ao imóvel, sobre o qual sempre se comportou, à vista de todos, como se dona fosse, nele residindo, juntamente com a sua família, executando obras e melhoramentos, de modo público e pacífico, que revelam o seu domínio sobre o bem, o que não só é bastante para caracterizar o corpus da posse e, mais do que isso, para se lhe associar o animus possidendi, ou seja, o exercício do poder de facto com a intenção de exercer o direito real correspondente (direito de propriedade).”.
Concluiu, por isso, que a Ré DD adquiriu a posse sobre o imóvel acima referido por apossamento, nos termos previstos no artigo 1263.º, alínea a), do Código Civil, ou seja, através da prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Porém, como se reconhece no próprio acórdão recorrido, não foi essa a causa de pedir que a Ré apresentou na sua reconvenção. Com efeito, na sequência do supra afirmado, de acordo com a alegação da Ré (artigo 19.º da sua contestação / reconvenção), a posse que a mesma exerce sobre o prédio urbano em causa nos autos, identificado na alínea E) e que integra o prédio mencionado na alínea B) dos factos provados, decorre directamente da celebração do contrato-promessa referido no artigo 14.º dessa peça processual, que remete para o teor do documento n.º 3 anexo e cujo teor resultou provado na alínea I) dos factos provados.
Assim sendo, uma vez que a entrega da coisa objecto do referido contrato-promessa não transferiu a posse ao pai da Ré DD, tendo aquele ficado na situação de mero detentor (possuidor precário) e dado que a Ré, conforme a mesma alegou, exerceu a sua posse com base no mesmo contrato-promessa, não poderia a mesma ter posse diversa daquela que era a posse do promitente-comprador que recebeu a coisa. Ou seja, também, a Ré não poderia deixar de ser mera detentora.
E se é certo que tal situação de possuidora precária não significa que a Ré não pudesse ter transformado essa posse precária em verdadeira posse, boa para usucapião, a questão é a de saber se a factualidade provada permite concluir que se verificou, no caso, a única forma pela qual tal transformação poderia ocorrer: a de inversão do título da posse, nos termos previstos no artigos 1263.º, alínea d) e 1265.º, ambos do Código Civil.
Como já realçado, a jurisprudência do STJ tem considerado de forma uniforme que nos casos em que a tradição da coisa não transmite, para o promitente-comprador, a posse correspondente ao direito de propriedade, como sucedeu no caso dos autos, tal não impede a eventual ocorrência de uma situação de inversão do título da posse (artigo 1265.º do CC), desde que reunidos os respectivos requisitos, caso em que o promitente comprador ultrapassa a mera detenção do imóvel, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria posse.
Refere nesse sentido o supra citado acórdão do STJ de 11-03-2021 (Processo n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1), “a posse do promitente comprador sobre o bem entregue pelo promitente vendedor, iniciada como precária só é apta a conduzir à usucapião se, supervenientemente, se converter em posse em nome próprio mediante a inversão do título de posse, prevista no art. 1265.º do CC, que pressupõe que aquele torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía, através da prática de atos positivos, inequívocos e reveladores, a sua intenção de passar a atuar como titular do direito de propriedade.”
Como salienta Armando Triunfante (in Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2021, p. 54), os únicos modos através dos quais o simples detentor pode passar a possuidor são a traditio brevi manu e a inversão do título da posse, mas enquanto a primeira pressupõe o acordo com o anterior possuidor, a inversão do título faz-se independentemente ou contra a sua vontade
No caso dos autos é inegável a inexistência de acordo entre os promitentes-vendedores e o pai da Ré DD ou esta última, no sentido da transferência daquela posse, pelo que tudo se resumirá, como é alegado pelas Recorrentes, a saber se estão ou não preenchidos os requisitos da inversão do título da posse.
Estatui o artigo 1265.º, do Código Civil, que “a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.”
Em causa está a primeira hipótese de concretização da inversão do título prevista na referida disposição legal, ou seja, “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía”.
Sobre esta “oposição”, diz-nos Henrique Mesquita (Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, p. 98), que “constitui entendimento pacífico que esta oposição se há-de traduzir em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa um direito real que até então considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem. Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor, através de actos que traduzam o exercício do direito que a este pertence”.
No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela defendem que “o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito” (Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, p. 30).
Durval Ferreira (Posse e Usucapião, 3ª edição, pp 213-216) afirma que “não deve bastar, para ser relevante uma inversão do título pelo detentor, que apenas se constate um comportamento exteriorizador (declarativo) do novo animus do detentor e o seu conhecimento pelo possuidor mediato: haverá que exigir algo mais (…) isto é (segundo Orlando Carvalho, cit., Ver. 3810, p. 263) tem que haver uma oposição formal, por meios notificativos directos e levados ao conhecimento do possuidor (…). Tal comunicação directa, pode ser pessoal (pelo próprio inversor), como port intermédio dum mandatário ou núncio, para tal incumbido. (…) Não bastam meros meios exteriorizadores (declarativos) do novo estado de ânimo. (…) Não bastam, pois, meras palavras, é preciso que o inversor passe das palavras aos actos e que os actos sejam uma oposição directa, e como sendo dono, ao possuidor. Mas basta, é suficiente se o acto é a notificação do novo animus: um notum facere (uma declaração-notificativa).
Dessa forma não bastará “que o detentor emita em público, perante outras pessoas, a pretensão de se considerar como dono; ou que actue de facto como se já o fosse, por exemplo fazendo demolições ou novas construções (cits. Planiol-Ripert.Picard). Ou que se faça chegar tal intenção ao possuidor imediato, mas por vias travessas”.
Também Orlando de Carvalho considera que a oposição do detentor ao possuidor prevista no artigo 1265.º, do Código Civil, “é uma oposição formal, por meios notificativos directos e levada ao conhecimento do possuidor. (…) A declaração tem que ser levada ao conhecimento do possuidor (ainda que com funcionamento da teoria da recepção), e não apenas para que a posse do inversor seja pública, mas para que a própria inversão se verifique e, por conseguinte, se adquira a posse. O que resulta da ideia de comportamento declarativo ou notificativo – notum facere: levar a alguém o conhecimento de alguma coisa. Só que a notificação não tem que ser individualizada e muito menos presencial. Pode, nomeadamente, ser feita através de uma circular que se remete a um círculo mais ou menos alargado de pessoas, incluso o possuidor ou o seu representante.” (Introdução à Posse, RLJ, ano 124, n.º3810, p 263).
Na senda desta doutrina, a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal tem defendido que a oposição deve ser expressa em actos positivos, materiais ou jurídicos, que permitam com segurança e de forma inequívoca perceber a vontade do detentor em alterar o título da sua posse, passando a actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem, exigindo-se que esses actos incluam uma declaração expressa e comunicada ao anterior possuidor, ou seja, que a oposição do detentor seja diretamente levada ao conhecimento da pessoa em cujo nome possuía8.
Alguma jurisprudência afirma mesmo que “a inversão do título da posse por oposição do detentor tem uma natureza receptícia, tendo de se exteriorizar face àquele perante quem produzirá efeitos jurídicos, ou seja, aquele que constituiu a posse precária” – cfr. acórdão do STJ de 30-03-2017 (Processo n.º 809/14.8T8SLV-B.E1.S1, inédito, com o sumário publicado em www.stj.pt/sumario-dos-acordaos).
Algumas decisões deste tribunal defendem não se mostrar necessária uma declaração expressa directamente dirigida à contraparte, sendo apenas necessário que os actos nos quais se consubstancie a oposição sejam realizados à vista daquele ou daqueles a quem os actos se opõem, ou que possam ser por estes conhecidos9.
Como se sintetiza no sumário do acórdão deste tribunal de 09-02-2012 (Processo n.º 3208/04.6TBBRR.L1.S1, igualmente publicado nas referidas Bases Documentais do ITIJ “a oposição que aquele preceito legal (art. 1265.º) reclama implica uma contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica.”. Desenvolve-se a este respeito na fundamentação deste acórdão que tal oposição “não tem que revestir uma feição conflituante ou de antagonismo físico-material, mas tão só de reversão ou de refracção de uma posição dominial para outra. A reversão e desconstrução do direito radicado numa pessoa recompõe-se na esfera jurídica de outrem mediante a manifestação de factos que revelem e se manifestem, inequivocamente, como uma rejeição ou contraposição à posição em que se encontrava, passando, a partir desse momento, a agir por forma condizente com um direito real típico. O processo translativo de um estado ou situação jurídica de possuidor em nome de outrem para um estádio superior e com estatuto e qualificação jurídica mais densa e com uma configuração diversa de possuidor em nome próprio, opera-se mediante uma assumpção de actos materiais e de configurações típicas que anunciem e façam representar aos observadores normais uma alteração qualitativa da situação jurídica especifica e típica em que se manifesta a actuação e a acção do sujeito. Esta oposição não possui formas preestabelecidas de se anunciar mas há-de manifestar-se através dos actos e sinais exteriores que convençam aqueles que os assistem de que houve uma transmutação radical, efectiva e essencial no modo de actuar e estar do sujeito que operou a inversão do titulo possessório de modo a inculcar uma mudança do paradigma jurídico em que exercita um novo direito.
No caso sob apreciação, ainda que se entenda que a Ré DD praticou actos materiais que revelam, de forma segura e inequívoca, a sua vontade em alterar o título da sua posse, passando a actuar como se tivesse sobre o imóvel o direito de propriedade, entendemos não resultar demonstrada qualquer declaração directamente dirigida à contraparte, nem que os actos em que se consubstancie a oposição tenham sido realizados à vista daquele ou daqueles a quem os mesmos se opõem, ou que possam ser por eles conhecidos.
Efectivamente, não se encontra provado que tenha ocorrido qualquer comunicação expressa às Autoras ou a quem elas sucederam na posse, nem que estas últimas tenham tido conhecimento dos actos praticados pela referida Ré sobre a coisa.
Note-se que resultou provado que a Ré DD começou a utilizar, a partir de dia não concretamente apurado do ano de 1990, a construção constituída por cave com cinco divisões, destinada a garagem e arrumos e rés-do-chão com cinco salas, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo e corredor, não pagando às Autoras qualquer contrapartida por essa ocupação, e que algum tempo após o seu casamento (cuja data não resulta dos factos provados), essa construção passou a ser a casa da morada da sua família.
Mais se provou que há mais de 20 anos que a mesma Ré habita essa construção e nela guarda os seus bens, tendo nela criado os seus filhos, tendo-lhes transmitido a convicção de que era proprietária dessa construção. A mesma Ré colocou instalação eléctrica e canalização na cave, revestiu e pintou as respectivas paredes e criou nela divisões, incluindo uma casa de banho. No rés-do-chão, a referida Ré removeu a alcatifa existente, colocou mosaico, uniu duas casas de banho, renovou outra casa de banho, substitui o pavimento da cozinha, colocou pladur nas paredes, pintou paredes interiores, conservou portas interiores e substituiu as janelas. Também pintou as paredes exteriores, transformou um portão em porta de entrada, removeu a vedação e colocou sebes à volta da construção.
Resultou, porém, provado que a Ré DD praticou os actos acima descritos à vista de toda a gente, exceptuando de CC e das Autoras, sem oposição de ninguém, nomeadamente, sem oposição de CC ou das autoras, que desconheciam tais obras, assim agindo essa Ré na convicção de que, por efeito do documento escrito mencionado em I) e por ser filha de FF, era a proprietária dessa construção.
Da matéria de facto apurada evidencia-se que a Ré não tornou directamente conhecida de CC e das Autoras os actos de oposição que praticou em relação à dita construção e a sua intenção de actuar como titular do direito de propriedade, não relevando o facto de se ter provado que CC e as Autoras, em mais de 20 anos, nunca terem visitado essa construção, efectuado qualquer obra na mesma, nem exigido o pagamento de rendas.
Na verdade, na inversão do título da posse o que assume relevância é uma conduta positiva por parte do detentor, ou seja, para que se possa afirmar a oposição prevista no artigo 1265.º, do Código Civil, é necessária a demonstração da prática de actos e de os levar ao conhecimento da contraparte.
Pretendendo a Ré reconvinte o reconhecimento do direito de propriedade através da usucapião, sendo a oposição prevista nessa disposição legal elemento essencial de aquisição da posse necessária para a usucapião, recaía sobre a mesma o ónus da demonstração de todos os requisitos previstos para a referida inversão do título da posse (cfr. acórdão do STJ de 21-11-2002, Processo n.º 3348/02, a cujo sumário se pode aceder através de www.stj.pt/sumario-dos-acordaos).
Ainda que se partilhe o entendimento, no seguimento de alguma jurisprudência deste tribunal, que para efeitos de inversão do título de posse os actos praticados pelo possuidor precário não têm de ser efectivamente conhecidos pelos anteriores possuidores, mas apenas cognoscíveis, desde que os mesmos revelem uma contraposição ostensiva que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica, não podemos deixar de concluir que a realidade fáctica apurada não permite concluir nesse sentido.
Na verdade, o facto de a Ré DD, filha do promitente comprador, habitar o imóvel, juntamente com os seus filhos, e nele guardar os seus bens, sem pagar qualquer tipo de renda, insere-se ainda no âmbito da posse precária baseada no referido acordo de traditio previsto no contrato-promessa.
Por outro lado, ainda que os actos materiais que poderiam consubstanciar uma oposição contra os promitentes vendedores e as aqui Autoras que lhes sucederam, se traduzam nas obras realizadas pela Ré que em muito ultrapassam as meras obras de conservação (a mesma colocou instalação eléctrica e canalização na cave, criou nela divisões novas, alterou o pavimento do rés-do-chão, colocou pladur nas paredes e uniu duas casas de banho, para além de outras obras de conservação de pintura de paredes interiores e de conservação de portas interiores), tratam-se de actos que decorreram no interior da construção existente no prédio, o que, pela sua natureza, impede que as mesmas pudessem ser conhecidas por quem não tem acesso a esse espaço, como é o caso das Autoras (provou-se que CC e as Autoras, em mais de 20 anos, nunca visitaram essa construção).
As únicas obras que resultaram provadas e que seriam cognoscíveis para tal efeito reportam-se à substituição de janelas, na pintura de paredes exteriores, na transformação de um portão em porta de entrada e na remoção da vedação e colocação de sebes à volta da construção.
Porém, sendo responsabilidade dos detentores do imóvel, de acordo com o referido contrato-promessa, o pagamento de todos os encargos que incidem sobre o imóvel, as obras acima referidas que ocorreram no exterior da habitação (desconhecendo-se sequer se as paredes exteriores e as janelas são visíveis da via pública, atenta a existência de vedação demonstrada nos autos) podem ser enquadradas nos encargos de conservação do imóvel.
Apenas a transformação de um portão em porta de entrada, a remoção da vedação e colocação de sebes à volta da construção, poderiam assumir algum carácter de inovação, mas não resulta da factualidade provada qual o estado de conservação do primitivo portão, nem da vedação que anteriormente existia, pelo que a substituição desses equipamentos pode perfeitamente encontrar também justificação na sua deterioração.
Assim sendo, não se vislumbrado da factualidade provada qualquer acto praticado pela Ré reconvinte que pudesse ser cognoscível por parte das Autoras ou de CC, no sentido de revelar de forma ostensiva e inequívoca a vontade daquela em alterar o título da sua posse, passando a actuar como se tivesse sobre a coisa o direito de propriedade.
Importa sublinhar que, de acordo com a factualidade provada, o imóvel sob litígio já se encontrava vedado, desconhecendo-se a natureza dessa vedação anteriormente existente, pelo que qualquer alteração no bem teria de ser visível do exterior a partir da via pública, para que se pudesse considerar verificada a existência de oposição perfeitamente cognoscível por parte dos anteriores titulares.
Há que considerar, por isso, no sentido de não se encontrarem demonstrados os requisitos da inversão do título da posse previstos no artigo 1265.º, do Código Civil.
Assim sendo, em face do que se encontra demonstrado nos autos, não é possível concluir que a Ré reconvinte tenha deixado a sua qualidade de mera detentora do imóvel, passando a exercer a posse boa para usucapião, por forma a permitir adquirir o direito de propriedade sobre o mesmo.
Consequentemente, há que julgar improcedente o pedido reconvencional, procedendo nesta parte a revista.
3. No acórdão recorrido, apesar de se ter concluído pela nulidade da sentença de 1.ª instância por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido, não foram daí extraídas as devidas consequências, porque respeitando tal vício ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelas Autoras, o tribunal a quo veio a considerar tal pedido totalmente improcedente face à procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pela Ré reconvinte sobre o mesmo prédio.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 679.º, do CPC, que excepciona a aplicação do artigo 665.º, do mesmo Código, ao recurso de revista, impõe-se que os autos baixem ao tribunal recorrido para apreciação em conformidade em face da procedência da revista10.
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente, pelo que se revoga o acórdão recorrido, julgando-se o pedido reconvencional improcedente, dele se absolvendo as Autoras.
Consequentemente, nos termos acima explicitados, determina-se que os autos voltem ao Tribunal da Relação para a apreciação do direito de propriedade das Autoras (prejudicados em função da nulidade da sentença e da procedência do pedido reconvencional decididas pelo acórdão recorrido).
Custas pelas Rés.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2025
Graça Amaral (Relatora)
Cristina Coelho
Teresa Albuquerque
_____________________________________________
1. Acórdão de 16-11-2021, Processo n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S3, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
2. Acórdão do STJ de 15-02-2023, Processo n.º 822/15.8T8VNG-C.P2.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
3. A Autora BB relativamente a metade da metade indivisa do citado prédio descrito sob o número ...13, na sua globalidade; ambas as autoras, enquanto herdeiras de CC, quanto à outra metade dessa metade indivisa, segmento declarado nulo nos termos expostos em 2.2.↩︎
4. No mesmo sentido de que a entrega antecipada do imóvel na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato-promessa, resultando de uma convenção de natureza obrigacional lateral entre o promitente-vendedor (dono da coisa) e o promitente-vendedor, defende Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, VII – Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2014, p. 390) que a tradição da coisa no âmbito do contrato-promessa (e o que está em causa no n.º 2 do artigo 442.º do CC) “reporta-se à entrega, ao promitente-adquirente, da coisa que ele irá adquirir com a celebração do contrato definitivo. Tal entrega não poderia nunca advir do contrato-promessa que, por natureza, se limita a prever futuras prestações de facto jurídico: antes postulava uma cláusula atípica, expressa no texto escrito ou concluída oralmente a latere e com o conteúdo indicado”.↩︎
5. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 6-7; Antunes Varela, “Anotação ao acórdão de 25 de fevereiro de 1986”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3811, ano 124.º, pp. 347-348; António Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 1999, pp. 76 e 77; Fernando Gravato Morais, Contrato-promessa em geral e contrato-promessa em especial, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 243-251; João Calvão da Silva, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 349, outubro – 1985, p. 86, nota 5; e Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 471-489↩︎
6. Cfr. entre outros, acórdãos do STJ de 21-03-2013 (Processo n.º 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1), de 12-03-2015 (Processo n.º 3566/06.8TBVFX.L1.S1), de 15-04-2015 (Processo n.º 2583/05.0TBSTB.E1.S1), de 09-06-2016 (Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S2), de 14-02-2017 (Processo n.º 724/09.7TBAMT.P2.S1), de 11-03-2021 (Processo n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1) e de 01-03-2023 (Processo n.º 1813/20.2T8AVR-E.P1.S1), a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
7. Cfr. entre outros, acórdãos de 19-02-2019 (Processo n.º 1565/15.8VFR.P1.S1) e de 11-03-2021 (Processo n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1), a que pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
8. Cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 20-03-2014 (Processo n.º 3325/07.0JVNF.P1.S2), de 21-10-2020 (Processo n.º 5080/17.7T8CBR.C2.S1) e de 11-03-2021 (Processo n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1), todos acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
9. Cfr. acórdãos do STJ de 04-05-2004, Processo n.º 2111/03 e de 24-03-2011, Processo n.º383/2001.C1.S2, ambos inéditos, encontrando-se os respectivos sumários publicados em www.stj.pt/sumario-dos-acordaos.↩︎
10. Com efeito, enquanto a Relação, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 665º do CPC, deve conhecer das questões que a 1ª instância considerou prejudicada, sempre que disponha dos elementos necessários, o STJ não se pode substituir à Relação – uma vez que aquela norma não é aplicável à revista, à luz do disposto no artigo 679º do CPC. Neste sentido pronunciaram-se, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 02-06-2020 (Processo n.º 806/17.1T8FAR.E1.S1) e de 06-04-2021 (Processo n.º 1116/18.2T8PRT.P1.S1), acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎