RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
GRAVIDEZ
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO
Sumário


I - Interposto recurso do acórdão do tribunal colectivo que condenou o arguido na pena superior a 5 anos de prisão  pelo arguido para a Relação e pelo MºPº para  o STJ, visando ambos matéria de direito, é o Supremo Tribunal de Justiça o competente para a apreciação de ambos os recursos
II - O recurso, como remédio jurídico, abrange na determinação da medida da pena a observância dos princípios gerais, das regras e as operações impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena (artº 71º 3 CP), mas  não abrange a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” reconhecendo-se, uma margem de atuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar, relacionada com a perceção de quem realizou o julgamento e teve perante si o arguido, se situa no local dos factos e tem uma melhor compreensão sobre a sua repercussão social.
III - Não pode ser valorado contra o arguido o facto de a ofendida já haver sido vítima anteriormente do mesmo ilícito por terceiro, quando tal facto não lhe é imputável e o facto de os atos sexuais terem sido praticados sem proteção (por potenciar doença transmissível, que não ocorreu nem se mostra que tenha ocorrido perigo do mesmo) tendo sido punido pelo crime agravado por do ato ter resultado a gravidez.
IV - Fixada a moldura do concurso ( artº 77º2 CP) os critérios da determinação da pena única, traduzem-se na apreciação, em conjunto dos factos e da personalidade do arguido, devendo considerar-se que a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção” e que “ tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global … “, atendendo à conexão e temporalidade entre os ilícitos de molde a compreender se traduzem a sua personalidade, e se esta é ou não produto de uma tendência criminosa, em ordem a apurar o efeito ressocializador da pena sobre o condenado.
V - Os ilícitos em causa de índole sexual, são criminalizados  pela sua simples ocorrência independentemente de ocorrer a ofensa do bem jurídico (traduzida  no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera da sua sexualidade jovem) razão pela qual a lei presume, de forma absoluta que tais atos prejudicam o desenvolvimento dom menor, e por essa razão o consentimento da vitima é irrelevante, e se assim é em termos de tipicidade, o modo como os factos ocorreram e a anterior  prática de idênticos ilícitos por parte de terceiros, pode fomentar uma errada perceção sobre os deveres do arguido, sendo certo que estamos perante uma situação em que  ocorreu abuso apenas pela imaturidade/ deficiência cognitiva, e está em causa uma família com deficiências cognitivas (a mãe, a filha, e o filho) com fraco nível social, cultural e educativo.
VI - Na ponderação da personalidade do arguido revelada nos factos há que ponderar  desde logo a ausência de antecedentes criminais, e depois o modo e condições da sua vida, quer em termos laborais, sociais, familiares e educativos apurados, o seu nível cultural e educacional potenciador de uma atitude ou perceção inadequada sobre a convivência familiar e os deveres, direitos e obrigações que a devem reger, e a que os conviventes se vinculam a observar, tendo presente que estamos perante um defeito de socialização, traduzido na necessidade de prevenir a prática de futuros crimes.
VII - Na determinação do quantitativo indemnizatório por danos não patrimoniais, com recurso à equidade, há que ponderar os critérios previstos no art.º 494º CC como sejam o dolo do arguido, o modo como agiu, o tempo durante o qual agiu, os atos a ponderar, as consequências que daí emergiram, as situações económicas do arguido como lesante e da ofendida como lesada tal como emergem dos factos apurados e em face do estilo, condições e modo de vida que levavam e que os factos e respetivas profissões deixam antever aliado ao seu nível educacional e cultural e as demais circunstancias do caso, com o seja a intensidade das ações lesivas, as razões e motivos da sua ocorrência e as suas repercussões e os valores atuais fixados pela jurisprudência;
VIII - Se o acórdão recorrido, que fixou a indemnização não atentou nas circunstâncias económicas do lesante e da lesada (que viviam em economia comum) pessoas de condição social humilde e modesta condição económica como resulta dos dados económicos apurados e da atividade profissional do arguido, e das consequências advindas para a ofendida (traduzidas nos termos provados nos pontos p) q) e t) na medida em que se possam imputar à ação do arguido e não também à atuação anterior de que a ofendida fora vitima) impõe-se a intervenção corretiva deste Tribunal Superior.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Proc. C. C. nº 158/24.3JACBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Central Criminal de ... - Juiz 2 em que é arguido AA,

foi, na sequência de uma alteração não substancial de factos comunicada em audiência, por acórdão de 17/9/2024 decidido:

“Por todo o exposto, este Tribunal Colectivo, em conformidade com as razões e preceitos citados,

a) Absolve o arguido AA da prática, em autoria material, de 7 crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;

b) Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de 33 crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, nas penas unitárias de 5 anos por cada crime;

c) Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5 do Código Penal, na pena de 6 anos e 6 meses;

d) Em sede de cúmulo jurídico e em conformidade com o artigo 77.º do Código Penal, condena o arguido AA na pena única de 11 anos de prisão;

e) Condena o arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal, na sanção acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 15 anos;

f) Condena o arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na sanção acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 15 anos;

g) Condena o arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-C, n.º 3, do Código Penal, na inibição do exercício de responsabilidades parentais por um período de 15 anos;

h) Arbitra a indemnização de € 20.000,00 à ofendida BB e, consequentemente, condena o arguido AA a pagar-lhe a indemnização de €20.000,00 (vinte mil) euros, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal em vigor desde a data deste acórdão até efectivo e integral pagamento;

i) Condena-se o arguido AA nas custas do processo em conformidade com o disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC –n.º 5 do artigo 8.º e Tabela III constante do Regulamento das Custas Processuais – e que deverá ser reduzida a metade por força da intervenção do artigo 344.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal.

j) Ordena-se a remessa, após trânsito, de boletim ao registo criminal;

k) Ordena-se que se proceda ao depósito desta sentença nos termos do disposto no artigo 372º n.º 5 do Código de Processo Penal.

a) Providencie pela recolha de amostras do arguido AA para efeitos da base de dados de perfis de ADN com fins de investigação criminal [artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, n.º 3 da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro]. Efectivamente, mesmo a considerar-se que esta recolha não surge como consequência automática da condenação mas antes impõe a mediação do julgador com vista a dispensá-la nos casos em que se mostre desnecessária ou inviável [neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 333/2018], temos que a factualidade demonstrada obriga a concluir pela existência de perigo de continuação criminosa ulterior. Pelo que se justifica ordenar a recolha de amostra de ADN para análise e inserção na base de dados de perfis por se mostrar necessária e proporcional para finalidades de investigação criminal.

b) Nos termos do artigo 213.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, por ter sido proferida decisão, a final, que conhece do objecto do processo e não determina a extinção da medida aplicada de prisão preventiva, impõe-se o reexame dos pressupostos de tal medida de coacção.

O arguido AA foi condenado, entre o mais, na pena única de prisão efectiva de 11 anos de prisão. E a gravidade indiciária dos factos e dos perigos que justificaram a aplicação sucessiva manutenção da prisão preventiva, saíram reforçado. Com efeito, os perigos que fundamentaram a necessidade, adequação e proporcionalidade da referida medida de coacção privativa da liberdade e que, em sucessivos reexames legais se mantiveram, saíram fortalecidos ante a condenação e em prisão efectiva.

Assim sendo, por tudo o exposto determino que o arguido AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à prisão preventiva em que se encontra, por continuar também esta medida de coacção a revelar-se necessária, adequada e proporcional ao caso e estarem verificados os perigos que justificam a referida medida [artigos 191.º, 193.º, 202.º, e 204.º, e 213, alínea b), todos do Cód. de Processo Penal].”

Recorrem o arguido para a Relação de Coimbra, e o Mº Pº para o Supremo Tribunal de Justiça, os quais no final da respetiva motivação apresentam as seguintes conclusões:

Recurso do arguido:

“49. O arguido, ora Recorrente, conforme mui douto Acordão foi condenado, em concurso efectivo a:

1)- de trinta e três (33) crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, nas penas unitárias de 5 anos por cada crime;

2)- um (1) crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5 do Código Penal, na pena de 6 anos e 6 meses;

3)- Em sede de cúmulo jurídico e em conformidade com o artigo 77.º do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 11 anos de prisão;

4)- Condenar o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal, na sanção acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 15 anos;

5)- Condenar o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na sanção acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 15 anos;

6)- Condenar o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-C, n.º 3, do Código Penal, na inibição do exercício de responsabilidades parentais por um período de 15 anos;

7)- Arbitrar a indemnização de € 20.000,00 à ofendida e, consequentemente, condenar o arguido a pagar-lhe a indemnização de €20.000,00 (vinte mil) euros, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal em vigor desde a data deste acórdão até efectivo e integral pagamento;

50. Com todo o respeito por melhor opinião que, como sempre, é muitíssimo, não pode o arguido, ora Recorrente, concordar com a mesma, em virtude desta padecer de:

- ERRO NA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

51. A mui douta sentença errou quanto à determinação e dosimetria da pena aplicada ao arguido, ora Recorrente;

Com efeito,

52. Foi considerado no mui douto Acordão que a conduta do arguido integra o crime de abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5 do Código Penal;

53. Não se conforma o ora Recorrente, com a Douta Decisão proferida, no que diz respeito à referida pena de prisão e quantitativo indemnizatório;

54. O arguido errou e como tal tem de pagar pelo seu erro, tem de ser sancionado, porém, tal pena, peca e em muito, por excesso!

Senão vejamos,

55. A determinação da medida concreta ou judicial da pena, obedece a determinados parâmetros com dois vectores fundamentais:

- a culpa e a prevenção, consistindo as finalidades da pena na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade;

56. Estas finalidades convergem para um mesmo resultado:

A prevenção de comportamentos danosos, com vista à protecção de bens jurídicos comunitariamente relevantes, cuja violação constitui crime;

57. A finalidade de prevenção, na sua vertente de prevenção geral positiva, ou de integração, cabe fornecer a medida de tutela dos bens jurídicos entre um ponto considerado óptimo para a satisfação das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da norma jurídica violada e um ponto considerado mínimo, correspondente ao conteúdo mínimo de prevenção, sem a salvaguarda do qual periclita a defesa da ordem jurídica;

58. À culpa compete, nos termos do artigo 40º, nº 2 do CP, a função de limitar as exigências de prevenção geral, impondo um limite para além do qual a pena deixaria de ter um fundamento ético para passar a instrumentalizar o condenado em função de puros objectivos de prevenção;

59. Conforme melhor é afirmado pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Acórdão datado de 16/07/2008, cujo sumário refere:

“ Na ponderação concreta da pena, tendo em atenção os critérios do artº 71º do C.P., cumpre determinar a medida da sanção tendo como limite e suporte axiológico a culpa do agente e em função das exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer

que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente, sendo incompatível com o Estado de direito democrático finalidade retributiva.”;

Ora,

60. Entre o limite máximo e o limite mínimo traçado pela designada submoldura de prevenção, actuam as exigências de prevenção especial ou de socialização, as quais devendo subordinar-se ao objectivo primordial de tutela dos bens jurídicos, constituem um elemento determinante na fixação da pena;

61. Por sua vez os parâmetros a que deve obedecer a fixação concreta da pena, segundo a sua relevância em termos de culpa e de prevenção, são os indicados de forma não taxativa no artº 71 do C.P;

62. Tal preceito prevê, nomeadamente, nas alíneas a) a f) que o julgador deve ponderar o grau de ilicitude do facto que, no caso presente, conforme consta da fundamentação do mui douto Acordão, é “ evidente a “ considerável diminuição da ilicitude;

63. Deve, igualmente, o julgador ponderar o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados ao cometimento do crime, motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta

anterior e posterior ao facto e a falta de preparação do agente para manter uma conduta ilícita;

Porém,

64. A lei ao referir que se deve atender nomeadamente àquelas circunstâncias, não diz que o Tribunal não deve atender a outras ali não especificadas, isto é o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias susceptiveis de influenciarem a determinação da pena concreta;

Ora,

65. No presente caso, pugnam a favor do arguido, várias circunstâncias atenuantes, que consideramos não terem sido devidamente valoradas pelo Tribunal a quo, nomeadamente:

O Arguido está integrado social e profissionalmente na Sociedade e sempre colaborou com a justiça.

O Arguido está integrado social e profissionalmente na sociedade, possui um trabalho estável e tem um projecto de vida definido;

Pelo que,

66. Mui respeitosamente requer-se a V. Exas. que seja doutamente reduzida a pena de prisão a que o arguido foi condenado pelo Tribunal a quo, fixando-se a mesma num quantitativo penal, inferior a 11 anos;

67. Ficou provado que o arguido, é considerado uma pessoa trabalhadora, tendo hábitos de trabalho, sendo considerado um trabalhador cumpridor dos seus deveres;

68. As particularidades atrás descritas, evidenciam que é possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao futuro do arguido;

69. Condenar o arguido a uma pena privativa da liberdade no período de 11 anos, mais uma indemnização de € 20.000,00, é promover o desmoronamento de toda sua integração social, profissional e familiar conseguida, com consequências nefastas para o seu futuro;

70. É que, se a pena visa múltiplos fins – todos objecto de tratamento sistemático na doutrina e na jurisprudência – um há que não pode em circunstância alguma ser descurado: o seu fim pedagógico;

71. No caso dos autos, parece-nos particularmente válido tal entendimento, pelo que, salvo o devido respeito, afigura-se-nos adequada que a pena aplicada ao arguido, pelo crime pelo qual foi condenado, seja reduzida quanto à sua dosimetria;

72. Assim, nos presentes autos, considerando-se que, no presente caso, a pena de prisão aplicada ao arguido deve ser reduzida quanto à sua dosimetria, bem como, quanto à sua indemnização;

73. O excesso manifesto na pena e da indemnização aplicada ao arguido, a manterem-se, é desmotivador e afasta os motivos claramente definidos pelo legislador no sentido “ de que as penas devem ser sempre executadas com um sentido pedagógico e ressocializador “ e que a medida de prisão tem de ser utilizada “ com a clara consciência de que ela é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário;

74. O evidente excesso na pena aplicada ao arguido – onze anos de prisão efectiva e os €20.000,00 de indemnização - a manterem-se, é desmotivador e afasta os motivos claramente definidos pelo legislador no sentido de que as penas devem ser sempre executadas com um sentido pedagógico e ressocializador e que a medida de prisão tem de ser utilizada “ com a clara consciência de que ela é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário “;

75. Almeja, confiadamente, o arguido, ora Recorrente, que a pena de prisão e a indemnização em que foi condenado sejam reduzidas e ajustadas, de modo a possibilitar a sua ressocialização e integração social;

76. Não tendo assim, sido decidido, no mui douto Acordão de que ora se recorre, errou este, na dosimetria da pena aplicada ao arguido;

77. Violando a mui douta sentença, entre outras disposições legais, os 40º nºs 1 e 2, e 71º nºs 1 e 2, ambos do Código Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a sentença proferida e, em consequência:

a) Reduzir a pena de prisão efetiva aplicada, e

b) Reduzir o montante da indemnização civil.”

O Mº Pº respondeu defendendo a sua improcedência.

Recurso do Mº Pº

1.ª - Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido nos presentes autos, na parte em que condenou o arguido AA numa pena de 11 (onze) anos de prisão, em resultado da prática pelo mesmo, em autoria material singular, de:

- 33 (trinta e três) crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;

- 1 (um) crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5, ambos do Código Penal.

2.ª - Para determinação da medida concreta das penas parcelares e da pena única de prisão aplicada ao arguido, os Meritissimos Juízes não atenderam devidamente ao grau de ilicitude, ao dolo (directo), à gravidade objectiva dos factos, à culpa do arguido e às necessidades de prevenção geral e especial que, no caso se fazem sentir, tudo conforme melhor resulta dos factos dados como provados no douto Acórdão a quo e que nos dispensamos de reproduzir.

3.ª - O arguido revelou de forma nítida, uma personalidade com séria maturação do desígnio criminoso, sendo que praticou os referidos factos por diversas vezes e em diferentes ocasiões, aproveitando-se do facto de ter ascendente sobre a ofendida e das fragilidades desta.

4.ª - Os factos considerados como provados no douto Acórdão recorrido são de uma gravidade extrema, sendo absolutamente alarmante o número de crimes deste género cometidos na nossa sociedade, pelo se exige dos Tribunais que os mesmos sejam julgados e severamente punidos.

5.ª - Ponderando a matéria de facto provada, os bens jurídicos violados, a gravidade dos ilícitos e as molduras penais abstractas, a medida da culpa do arguido e as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes ---cada vez mais prementes---deveria o arguido ter sido condenado nas seguintes penas parcelares:

- 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um dos 33 (trinta e três) crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;

- 7 (sete) anos de prisão para o crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5, ambos do Código Penal.

6.ª - Por outro lado, entendemos que a conduta do arguido AA é de tal modo grave que a pena única terá de reflectir forçosamente tal gravidade.

7.ª - Ora, o arguido praticou 34 (trinta e quatro) crimes contra a sua própria filha durante um período de cerca de 2 (dois) anos, tendo existido uma homogeneidade dos actos praticados, mas tudo sopesado e também atendendo ao conjunto das circunstâncias já anteriormente consideradas na determinação da medida da pena, entendemos por adequada, justa e proporcional a aplicação ao arguido AA de uma pena única de 14 (catorze anos de prisão).

8.ª - Pelo que o douto Acórdão a quo não procedeu ao correcto e criterioso enquadramento jurídico-penal da matéria de facto ali dada como provada, razão pela qual violou o disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 40.º, 70.º, 71.º, 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5, todos do Código Penal;

9.ª - Devendo o mesmo, em consequência, ser substituído por outro que condene o arguido AA:

- Nas penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos 33 (trinta e três) crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;

- Na pena de 7 (sete) anos de prisão pela prática de 1 (um) crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5, ambos do Código Penal;

- Na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.

Pelo que dando procedência ao recurso, revogando o Acórdão recorrido e substituindo-o por outro que condene o arguido numa pena de prisão mais elevada,…”

O arguido não respondeu.

Foram os autos remetidos a este Supremo Tribunal, por estar em causa apenas matéria de direito (a medida da pena)

Neste Supremo Tribunal o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido e na procedência do recurso do Mº Pº.

Foi cumprido o artº 417º2 CPP.

O arguido respondeu defendendo o seu recurso e a improcedência do recurso do Mº Pº.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.

Cumpre apreciar

Consta do acórdão da 1ª instância (transcrição):

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Da instrução e discussão da causa, resultaram provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

a) BB nasceu a ... de ... de 2006, sendo filha do arguido AA e de CC;

b) A ofendida BB ostenta um Quociente Intelectual Total de 55, apresentando um funcionamento intelectual global muito inferior para o seu grupo etário e é portadora de um quadro de debilidade mental ligeira que lhe limita a percepção de perigo e do que é certo ou errado, adequado ou desadequado;

c) Correu termos no Juiz 1 deste Juízo Central Criminal o processo n.º 218/21.2... e onde DD foi condenado, por acórdão transitado em julgado, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão pela prática, em concurso real e efectivo, de 4 crimes de Abuso sexual de menor adolescente agravado e de 1 crime de Pornografia de menores agravado,

d) Ilícitos praticados na pessoa de BB e que motivaram, a partir de ... de ... de 2021 e na decorrência de acordo de promoção e protecção celebrado entre a CPCJ, os progenitores e a então menor, o seu acolhimento no Lar ..., na ...;

e) Por força do acolhimento no Lar ..., a BB apenas se deslocava a casa onde residia a sua família sita na Rua ..., ..., aos fins de semana e período de férias lectivas,

f) O que ocorreu sem pernoita entre 1 de Julho de 2021 e 15 de Janeiro de 2022 e, a partir desta última data, com pernoita;

g) BB pernoitou, assim, na residência mencionada em e) e na companhia da sua família designadamente nos fins de semana centrados de 15 a 16 de Janeiro de 2022, 19 a 20 de Fevereiro de 2022, 5 a 6 de Março de 2022, 19 a 20 de Março de 2022, 30 de Abril a 1 de Maio de 2022, 14 a 15 de Maio de 2022, 4 a 5 de Junho de 2022, 18 a 19 de Junho de 2022, 22 a 23 de Outubro de 2022, 5 a 6 de Novembro de 2022, 19 a 20 de Novembro de 2022, 14 a 15 de Janeiro de 2023, 21 a 22 de Janeiro de 2023, 11 a 12 de Fevereiro de 2023, 25 a 26 de Fevereiro de 2023, 25 a 26 de Março de 2023, 29 a 30 de Abril de 2023, 6 a 7 de Maio de 2023, 27 a 28 de Maio de 2023, 10 a 11 de Junho de 2023, 22 a 24 de Setembro de 2023, 7 a 8 de Outubro de 2023, 21 a 22 de Outubro de 2023, 4 a 5 de Novembro de 2023, 18 a 19 de Novembro de 2023 e 8 a 10 de Dezembro de 2023,

h) Tendo, por igual forma, pernoitado na residência mencionada em e) e na companhia da sua família designadamente nos períodos de férias letivas correspondentes a 14 de Abril a 17 de Abril de 2022, 13 a 15 de Agosto de 2022, 23 a 26 de Dezembro de 2022, 30 de Dezembro de 2022 a 1 de Janeiro de 2023, 6 a 10 de Abril de 2023, 14 a 16 de Abril de 2023, 19 a 27 de Agosto de 2023 e 22 de Dezembro de 2023 a 2 de Janeiro de 2024;

i) Em cada um dos períodos descritos em g) e h), o arguido AA, aproveitando a ausência dos restantes elementos do agregado familiar centrados na sua cônjuge, no filho e na sogra da correspondente divisão, manteve, no quarto do casal, na sala ou no sótão da residência sita na Rua ..., ..., relações sexuais de cópula com a filha BB;

j) Efectivamente, o arguido AA, com a anuência da filha BB, apalpava os peitos e a vagina desta,

k) Tirando, após, o pénis para fora das calças e, estando BB sem cuecas, colocava-se por cima desta e penetrava-a com introdução do seu pénis erecto na vagina da sua filha com a consumação da relação de cópula e ali ejaculando;

l) Na sequência do relacionamento mantido pelo arguido AA com a filha BB tal como descrito em i) a k), esta veio a engravidar,

m) Tendo procedido, no início de ... de 2024, a uma interrupção voluntária da gravidez e numa ocasião em que a gestação ascenderia a cerca de 19 semanas;

n) O arguido AA actuou sempre de modo livre, deliberado e consciente,

o) Bem sabendo que actuava sob a sua filha, que a mesma era menor de 18 anos e que não tinha maturidade intelectual e emocional, até porque era evidente a debilidade mental ligeira de que sofria, para se autodeterminar sexualmente,

p)Tendo ademais, percepção que, com as condutas descritas, prejudicava gravemente o desenvolvimento da sua personalidade na sua esfera sexual,

q) Aproveitando-se da sua ingenuidade e debilidade para satisfazer os seus impulsos e instintos libidinosos e com isso ofendendo reiteradamente o livre despertar da sexualidade da ofendida BB;

r) O arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas e, não obstante, não se absteve de as levar a cabo;

s) O arguido AA não usou preservativo por ocasião dos actos descritos em i) a k);

t) A menor BB, na decorrência dos factos mencionados em i) a k), ficou com dificuldades em dormir, tendo sofrido pesadelos, e perdeu o apetite;

§ DAS CONDIÇÕES PESSOAIS REPORTADAS AO ARGUIDO AA

u) O arguido AA é o primeiro filho de uma fratria de seis, tendo o seu desenvolvimento psicossocial decorrido no seio do agregado de origem,

v) Sendo a subsistência da família assegurada com os rendimentos auferidos pelos progenitores, figurando o pai como operário na ... e a mãe como funcionária na C...;

w) Ao progenitor são atribuídos consumos abusivos de álcool e comportamentos agressivos perpetrados sobre o arguido AA e a sua progenitora,

x) Assumindo-se a mãe como a figura emocional de referência do arguido AA;

y) O arguido AA concluiu o 2.º ciclo de escolaridade na via profissionalizante aos 15 anos,

z) Tendo iniciado percurso laboral aos 16 anos e trabalhado, para tanto e sucessivamente, nos sectores da ..., da ... e da ...,

aa) Tendo, à data dos factos, a sua situação contratual regularizada na S..., Lda, como ... e com funções de limpeza de matas e reflorestação pelas quais auferia ordenado de € 738,00;

ab) O arguido AA casou, aos 23 anos, com CC;

ac) CC ostenta défice cognitivo e é ..., sendo que a subsistência do agregado familiar era conseguida com os rendimentos do arguido AA;

ad) Previamente à privação de liberdade imposta no presente processo, o arguido AA residia com a cônjuge CC, com a sogra e com o filho EE,

ae) Ostentando este último 19 anos de idade e, enquanto portador de défice cognitivo, estando a frequentar curso de formação em ...na APPACDM de ...;

af) O arguido AA foi sujeito, por despacho proferido nos presentes autos em ... de ... de 2024, a prisão preventiva, encontrando-se, actualmente, recluído no Estabelecimento Prisional de ...;

ag) O arguido AA não ostenta sancionamentos disciplinares em ambiente de reclusão,

ah) Frequentando acção de formação dinamizada pela Cruz Vermelha Portuguesa de ...,

ai) E mantendo-se ocupado com actuações no domínio do ...;

aj) CC iniciou recentemente processo de divórcio contra o arguido AA,

ak) Tendo este sido citado para a acção no pretérito dia ... de ... de 2024;

al) O arguido AA confessou integralmente e sem reservas a factualidade supra plasmada nas alíneas a) a r) dos factos provados;

am) Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido AA.

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.2 - FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultou provado, com relevo para a solução da causa, que:

1. O acolhimento de BB no Lar ..., na ..., foi imposto por decisão da CPCJ;

2. Era o arguido AA que, no âmbito dos actos mencionados em k), baixava as cuecas da filha BB;

3. O arguido AA desenvolveu a actuação descrita em i) a k) nas datas de 12 de Dezembro de 2021, 6 de Junho de 2022, 9 de Julho de 2022, 16 de Julho de 2022, 27 de Agosto de 2022, 10 de Setembro de 2022, 24 de Setembro de 2022, 29 de Janeiro de 2023, 13 de Março de 2023, 6 de Junho de 2023, 23 de Agosto de 2023, 9 de Setembro de 2023, 12 de Janeiro de 2024 e 26 de Janeiro de 2024.

Não foram tomados em consideração em sede de factualidade provada e não provada juízos conclusivos ou matéria irrelevante para a decisão da causa. Seguiram-se, pois, os ensinamentos preconizados pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Março de 2014 [Processo n.º 811/12.4...] ao estabelecer que

1.- A elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação;

2.- O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra, relevantes para a decisão a proferir.

Ingressa em tal categoria, designadamente, a consideração registada no ponto 11 do libelo acusatório e que se traduz na pura enunciação de um meio de prova. Efectivamente, o resultado de um dado exame pericial em matéria de probabilidade de paternidade figura, em si mesmo, como puro suporte probatório do facto que se deseja demonstrar! E que se traduz, in casu, na imputação que a paternidade do feto transportado

por BB pertence ao arguido AA… No que o sobredito ponto 11 do despacho de acusação carece de ser exclusivamente analisado ou sopesado em sede de fundamentação da convicção do Tribunal.

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.3 - MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

1. A convicção do Tribunal na decisão respeitante à matéria de facto foi formada dialecticamente na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida em audiência, com recurso às regras de experiência de vida. Em concreto, o Tribunal teve em consideração:

a) Os assentos de nascimento de fls. 6 e 7;

b) As informações clínicas de fls. 26 e 32;

c) O acordo de promoção e protecção de fls. 44;

d) O despacho proferido no processo n.º 236/24.9... constante de fls. 60;

e) O registo de contactos de BB no Lar ... tal como constante de fls. 91;

f) O relatório pericial de investigação de parentesco biológico junto a fls. 128;

g) O relatório de avaliação psicológica de BB realizado no processo n.º218/21.1... tal como constante de fls. 146;

h) A informação da Segurança Social de fls. 180;

i) As informações da entidade patronal do arguido AA de fls. 190 e 193;

j) O relatório social de fls. 249;

k) O certificado de registo criminal de fls. 254;

l) A certidão da decisão final proferida no processo n.º 218/21.1... de fls. 260.

2.a) Quanto à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, importa, desde logo, sublinhar que o arguido AA confessou a factualidade vertida nas alíneas a) a r) e i) a r) dos factos provados na íntegra e sem quaisquer reservas. Efectivamente, o arguido AA reconheceu a prática de relações sexuais com a filha nos precisos termos recortados no despacho de acusação!

Assumindo, praticamente em pleno, o encadeamento de actos descritos nos pontos 6 e 7 da peça acusatória com a pequena ressalva por si contraposta de nunca ter sido ele a tirar a roupa da filha BB.

O arguido AA reconheceu também a sua percepção do carácter erróneo de tal actuação!

Não só em função da idade da ofendida e da relação filial que a unia à sua pessoa, mas também em função da debilidade mental ostentada pela BB [que, aliás, sempre estaria demonstrada em função da avaliação psicológica de fls. 146]. Asseverando, para tanto, o seu conhecimento “que era incorrecto e que era crime. Tinha a percepção que isto podia prejudicar o desenvolvimento psicológico e sexual da minha filha”.

b) Temos, por conseguinte, que a primacial discordância que o arguido AA suscitou em face do libelo acusatório se centrou no número de actuações que ali são imputadas no correspondente ponto 8. Admitindo que terá tido relações sexuais com a sua filha em cerca de 30 ocasiões distintas…

Estabelecendo, para tanto, que essas mesmas relações apenas se iniciaram após a BB ter começado a visitar a casa de morada de família com pernoita. E que, desde então, passou a ter sexo com a filha uma vez em cada visita!

O arguido AA refuta, ainda assim, que as relações sexuais possam ter ocorrido em algumas das datas mencionadas na acusação. Salienta, para tanto, que passava períodos alargados de tempo longe de casa em «Brigadas de trabalho» por ocasião dos incêndios florestais [com permanência, como tal, noutros pontos do país] ao ponto de apenas se deslocar à sua residência por ocasião das folgas. No que assevera que nenhum comportamento impróprio poderá ter ocorrido nessas ocasiões em que esteve afastado do seu domicílio… Inscrevendo, aliás, o aniversário da menor em tal categoria de situações! Mais nega a prática de relações sexuais nos fis de semana iniciados a ... de Janeiro e ... de Janeiro de 2024 pois que “já suspeitávamos que ela estivesse grávida”.

O Tribunal aceitou tal delimitação e contextualização temporal… Desde logo porque inexiste nos autos qualquer outra fonte probatória capacitada à quantificação dos actos sexuais incidentes sobre a BB. Sabemos, com toda a certeza, que houve, pelo menos, uma relação sexual de cópula completa e que veio a originar a gravidez da ofendida. Efectivamente, a possibilidade de 99,99999999991% de o arguido AA se afirmar progenitor do feto [fls. 128] equivale a uma certeza absoluta. E permite ter como inequivocamente demonstrada a prática do crime em, pelo menos, uma dada ocasião!

Mas a quantificação ulterior torna-se mais intrincada quando em face dos demais meios de prova! Note-se que a própria ofendida assumiu, nas suas declarações para memória futura [recolhidas em ... de Abril de 2024 e constantes de fls. 197] que tais relações se deram algumas vezes entre os seus 15 e 17 anos e se terão processado mais de 4 ou 5 vezes. Mas não logrando sequer precisar se se verificaram em mais de 10 ocasiões. Já a progenitora CC professa a sua absoluta ignorância quanto ao relacionamento que o cônjuge AA mantinha com a filha ao ponto de não conseguir, naturalmente, quantificar os actos sexuais que aquele desenvolveu com a ofendida. Expondo, ainda assim e com relevo, que “quando o meu marido ia trabalhar para fora, eu passava fins de semana em casa sozinha com os meus filhos. Mas ele vinha sempre a casa quando tinha folgas”.

Compreende-se, como tal, que o Tribunal tenha carecido de se ancorar nas declarações do arguido AA para alcançar a individualização das relações mantidas com a sua filha. Até porque, mesmo na falta de outras fontes probatórias, aquele assume plenamente a prática de tal conduta num número claramente relevante de ocasiões! Apenas refutando o seu cometimento em casos contados que, manifestamente, em nada minoram a gravidade global da sua actuação continuada.

Cabe, pois, esclarecer qual o raciocínio seguido por este Tribunal para lograr afirmar a prática dos crimes nas ocasiões mencionadas em g) e h) e, paralelamente, para as afastar por reporte às datas descritas no ponto 3 dos factos não provados.

A convicção do Tribunal deriva, nesta vertente e essencialmente, do registo de diligências constante de fls. 91 em conjugação com a informação da entidade patronal do arguido AA de fls. 190 e 193!

Permitindo o primeiro documento percepcionar as ocasiões em que BB pernoitou na sua casa enquanto que aqueloutra informação viabiliza a noção dos momentos em que o próprio arguido AA não se encontrava nesse mesmo espaço.

Cabe, para tanto, atentar que, em face daquele registo de diligências, a ofendida BB apenas iniciou a pernoita na casa de família a partir de 15 de Janeiro de 2022. Ao ponto de tal excluir necessariamente a acusada prática do facto quando reportado a 12 de Dezembro de 2021… Fica também inequivocamente arredada, em face do aposto a fls. 91v e 92, a ocorrência de relações sexuais na data de aniversário da BB. Não pela razão exposta pelo arguido AA [pois que as informações de fls. 190 e 193 asseveram que o mesmo ainda não havia ido de Brigada nessas ocasiões] mas porque o dia 6 de Junho figurou, nos anos de 2022 e 2023, como dia da semana. Ao ponto de a ofendida BB não se ter deslocado a casa e aí pernoitado… É antes o próprio registo de diligências da Lar ... que estabelece, em tais dias, que os familiares da BB se deslocaram à instituição pelas 17h30/18h e aí jantaram com ela. Já quanto às datas de 9 de Julho de 2022, 16 de Julho de 2022, 27 de Agosto de 2022, 10 de Setembro de 2022 e 24 de Setembro de 2022, resulta de fls. 193 que o arguido AA se encontrava fora em trabalho e sem gozo de folga. Não tendo estado, lapalissadamente, em casa para concretizar os imputados actos com a filha. Raciocínio que, aliás, se renova quanto às datas de 23 de Agosto de 2023 e 9 de Setembro de 2023 [fls. 190]. Quanto à data de 29 de Janeiro de 2023, falamos de ida da menor ao domicílio que se deu a um domingo e que não envolveu,

como tal, pernoita! Também o dia 13 de Março de 2023 figura como segunda-feira [sem se tratar de período de férias] ao ponto de, identicamente aqui, não puder ter ocorrido pernoita. E aceitou-se, por último, como plausível a explicação dada pelo arguido AA de que não terá praticado qualquer acto nas datas de ... de Janeiro de 2024 e ... de Janeiro de 2024 em virtude de manter já a desconfiança que a ofendida poderia encontrar-se grávida. Receio de ser descoberto que o terá, como tal, demovido da prática de actos ulteriores…

Ficam, pois, as demais ocasiões mencionadas em g) e h) como situações em que terão efectivamente ocorrido relações sexuais entre o arguido AA e a ofendida BB. Afirmação que se pode materializar em função do exposto pelo arguido AA e do seu consequente reconhecimento que, em cada ocasião em que a filha se deslocou com pernoita à sua residência, terá actuado sexualmente sobre a pessoa desta. Isto conquanto estivesse também ele em casa nesse mesmo período…

c) O facto mencionado em s) flui das declarações prestadas pela ofendida BB nas suas declarações para memória futura e que se afiguraram autênticas. Já o plasmado em t) deriva do depoimento de CC e que logrou precisar que a ofendida BB ostentava, pelo menos, aquelas sequelas.

O aposto em d) e no ponto 1 dos factos não provados resulta do acordo de promoção e protecção de fls. 44.

3. As condições pessoais resultaram das declarações do arguido AA em conjugação com o relatório social de fls. 249 e com a certificado de registo criminal de fls. 254.”


+


O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 e 7/95 de 19/10/ 95 este do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e do conhecimento dos mesmos vícios em face do artº 432º1 a) e c) CPP (redação da Lei 94/2021 de 21/12) mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo”, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada”.

+


Apreciando.

Como resulta do artº 414º3 CPP, a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior pelo que nada impede a apreciação destas questões ou outras que se suscitem.

A competência deste Supremo Tribunal, resulta das normas atributivas dessa competência nos termos expressados no Código de Processo Penal e dele resulta que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito (artº 434ºº CPP), apenas podendo conhecer dos vícios do artº 410º2 CPP (da matéria de facto) oficiosamente (artºs 410.º, n.º 2, 426.º e 434.º, CPP e Ac. FJ n.º 7/95 e 10/2005, os quais apenas podendo ser alegados pelo recorrente nas situações recursivas previstas no artº432.º, n.º 1, a) e c), CPP (em que o STJ intervém como 2ª instância), que dispõe: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”

Por sua vez o artº 432º CPP diz-nos que:

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”

Daqui decorre que estamos perante o recurso per saltum, interposto diretamente para o STJ, sendo a pena superior a 5 anos de prisão e nele se visa ( por ambos os recursos) questionar a medida da pena aplicada, donde apesar de o arguido ter interposto o recurso para a Relação a competência para dele conhecer é do STJ, e como tal foi corretamente admitido e remetido ( artº 33º1 CPP e AFJ nº8/20071)

No que ao âmbito e objecto dos recursos respeita importa ter em conta a jurisprudência fixada nos AFJ nº 5/2017: “A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas as penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores aquela medida, se impugnadas.”2, porquanto o Mº Pº no seu recurso questiona a medida das penas parcelares para além da pena única.

As questões a apreciar são as seguintes:

Recurso do arguido: A medida da pena única, e o montante indemnizatório arbitrado á ofendida;

Recurso do Mº Pº: A medida das penas parcelares e da pena única.

Atentas estas questões e por precedência logica analisaremos primeiro a questão das penas parcelares e depois a pena única questionada em ambos os recursos e por fim a questão indemnizatória.

Assim.

Considera o Mº Pº, quanto à medida da pena concreta de cada ilícito que o acórdão recorrido não atendeu devidamente ao grau da culpa e da ilicitude, dolo, gravidade objetiva e duração, indiferença e consequências causadas, à personalidade do arguido e às exigências de prevenção geral e especial, e por isso considera que a pena para cada um dos 33 (trinta e três) crimes de Abuso sexual de menor dependente agravado, p. p. pelos artº 172.º, n.º 1c) e 177.º, n.º 1a) CP deve ser de 5 anos e 6 meses e a do crime de Abuso sexual de menor dependente agravado, p. p. pelos artº 172.º, n.º 1c) e 177.º, n.º 5 CP deve ser de 7 anos.

O Tribunal recorrido fixou a pena parra os ilícitos mencionados em 5 anos e em 6 anos e 6 meses, e após fixar a pena abstrata e os critérios legais gerais para encontrar a pena para cada ilícito ponderou:

Determina o n.º 1 deste normativo que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Desta forma, a finalidade que a pena visa, primacialmente, alcançar traduz-se na necessidade de tutela da confiança e do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime ou, acolhendo a formulação da JAKOBS, na “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada” (4 Apud JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, página 77)

5. Por sua vez, lograda que esteja esta finalidade de prevenção geral positiva, à pena preside ainda, por igual forma e em segunda linha, um escopo de prevenção especial.

Prevenção esta que será pensada preferencialmente em ordem à reinserção comunitária do delinquente sempre que este se revele carente de socialização, mas já apenas de advertência quando esta carência não exista ou de inocuização quando não seja de esperar qualquer êxito na mesma tarefa.

No entanto, porque, quando comandada por este duplo propósito surge o risco de instrumentalização da pena e do respectivo agente ao serviço de finalidades meramente preventivas e duma sequencial violação da dignidade da pessoa humana, determina ainda o n.º 2 do referido preceito que, em caso algum, pode a pena ultrapassar a medida da culpa.

É este pois o quadro de fins da pena criminal que se encontra plasmado legislativamente e que recolhe uma aceitação quase consensual em sede jurisprudencial e no plano doutrinal.

2. Por outro lado, e como se disse há pouco, o programa político-criminal que se reconheça como subjacente à finalidade das penas não poderá deixar de influenciar de forma determinante a concreta tarefa de determinação daquelas. Assim, à semelhança do que sucede com a demais jurisprudência e doutrina maioritária, tendemos a aceitar que é a teoria da moldura de prevenção defendida por FIGUEIREDO DIAS (in Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, página 227 e seguintes e Direito Penal, Parte ...., página 76 e seguintes) e ANABELA RODRIGUES, in Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, pág 620), a orientação de determinação da pena que se acha mais conforme com o propósito do nosso legislador.

Desta forma, aceitando que as exigências de prevenção geral positiva não se traduzem numa pena exacta dentro da moldura penal abstracta dada pelo legislador, mas antes se reflectem numa moldura concreta de prevenção cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, temos que a pena concreta será encontrada dentro desta moldura em função de exigências de prevenção especial – em regra positiva ou de socialização –, mas sempre com a medida da culpa como seu limite máximo.

Temos, pois, que a pergunta que o julgador deve colocar ao operar a tarefa de determinação concreta da pena à luz do artigo 71.º do Código Penal para pela aferição de Qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, lograr eficazmente a ressocialização do agente e mostrar-se ainda comunitariamente suportável à luz da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e que não ultrapasse, além do mais, o concreto juízo de censura que deve ser dirigido ao agente?

Será, assim, à luz deste quadro que iremos perspectivar os concretos factores de medida da pena decorrentes do artigo 71.º do Código Penal…

Determina o n.º 1 de tal preceito que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Com o que importa apurar quais as concretas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra os arguidos em sede de culpa e de prevenção. O que deverá ser realizado com recurso ao elenco exemplificativo de factores de medida da pena previstos no n.º 2 do sobredito normativo e tendo sempre presente a proposição já avançada por ZIPF de que “a clara distinção entre culpa e prevenção é a chave para a compreensão da doutrina da medida da pena” (Apud FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português, As Consequências ..., página 220)

3. Assim sendo, com directa relevância para a determinação da medida da pena da culpa, resultam os seguintes factores [não podendo aqui ser mobilizadas as circunstâncias já consideradas para efeitos do preenchimento do tipo incriminatório e da agravação]:

a) DA MEDIDA DA PENA DA CULPA

i) O facto de os actos desenvolvidos pelo arguido AA se traduzirem em cópula, inscrevendo-se, pois, na categoria mais gravosa dos actos sexuais de relevo susceptíveis de conduzir à constatação da prática do crime;

ii) A circunstância de a ofendida ter sido já vítima da prática de crimes contra a sua autodeterminação sexual desenvolvidos por terceiro tal como julgados no processo n.º 218/21.2... Renovando-se, pois, o processo de vitimização sexual em função dos factos agora desenvolvidos pelo arguido AA;

iii) O facto de o arguido AA não ter utilizado preservativo por ocasião dos actos praticados, assim potenciando a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez da vítima [tal como veio, efectivamente, a ocorrer];

iv) A circunstância de a menor BB se achar globalmente entregue aos cuidados de instituição de acolhimento ao ponto de tal legitimar uma sua expectativa de inserção permanente num ambiente mais seguro;

v) O dolo do arguido AA na totalidade dos actos descritos, o qual reveste a forma de dolo directo intencional e que se apresenta, por conseguinte, na sua modalidade mais intensa.

5. Já com pertinência para ajustar a medida da pena preventiva, descortinamos os seguintes factores:

a) DA MEDIDA DA PENA PREVENTIVA

1. A circunstância de o arguido AA se mostrar primário. O que, ainda assim, carece de ser lido em conjugação com a constatação que os crimes praticados relevam uma personalidade antijurídica intensa e com particulares carências de ressocialização;

2. A jogar identicamente a favor do arguido AA, constata-se o comportamento conforme no seio do estabelecimento prisional;

3. A confissão integral e sem reservas pelo arguido AA da factualidade que veio a ser dada como provada. Reconhecimento que se vem a mostrar particularmente relevante in casu pois que, cabe assumir, se mostrou nuclear para a afirmação probatória da prática da quase totalidade dos ilícitos. Note-se que, sem essa confissão, o Tribunal apenas lograria constatar o cometimento do crime num leque restrito de situações… Ou seja, na cópula que conduziu à gravidez e nas outras 4 ou 5 ocasiões que a vítima BB logrou afiançar! No que é, efectivamente, o reconhecimento do arguido AA que permite traçar o quadro integral da ilicitude materializada. A justificar, pois, que a mesma se afirme como relevante factor de medida da pena.

Desta forma, tendo em conta as delineadas molduras de prevenção geral positiva e especial para a determinação da sanção concreta e em cômputo global dos factores atrás explanados, cremos estar em condições de fixar a pena adequada e necessária para fazer face aos ilícitos praticados pelo arguido. Nesta sequência, consideramos serem de aplicar as seguintes sanções,

a) A pena de 6 anos e 6 meses por referência ao crime de Abuso sexual de menor dependente agravado tal como previsto e punido nos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 5 do Código Penal

b) A pena de 5 anos por referência a cada crime de Abuso sexual de menor dependente tal como previsto e punido nos artigos 172.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;”

Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, há grosso modo que ponderar os fins das penas expressos no artº 40º CP consistentes na “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade “tendo em conta todas as circunstâncias que nela possam influir e que artº 71º CP exemplifica, devendo atender-se que “a aplicação da sanção ou a sua ameaça são simplesmente um modo de prevenir as violações futuras (teorias utilitárias) – e isto quer na medida em que a ameaça ou a execução desse mal agem sobre a generalidade das pessoas, intimidando-as e desviando-as da prática do crime (prevenção geral); quer na medida em que actuam sobre o agente num sentido segregador – afastando-o ou eliminando-o da sociedade – reeducativo ou correctivo – adaptando-o à vida social – ou intimidativa – dando-lhe consciência da seriedade da ameaça penal (prevenção especial)”3, e que tal se encontra plasmado no Código Penal, por virtude do disposto nos artºs 40º e 71º CP, ao imporem que na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido se atenderá à sua culpa, como suporte axiológico de toda a pena, sendo que “A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa”4 e ainda que o princípio da culpa é a “consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa”5, - e às exigências de prevenção quer geral quer especial, e que (assim Figueiredo Dias6) as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização.

Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (artº 40º2 CP “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”).

Tal doutrina foi no essencial condensada pelo STJ no ac.17/4/2008 Proc 08P571 Cons. Henrique Gaspar) in www.dgsi.pt/jstj onde se expende: “A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.

Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.

O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).

A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.”

Sabido que apenas podem ser ponderados na medida da pena os factos provados e não quaisquer outros, verifica-se que as considerações expressas pelo Mº Pº, se mostram no essencial ponderadas, bem como a observância das regras e princípios sobre a determinação da medida da pena e ainda que foram observadas as circunstâncias provadas do artº 71º CP.

Nessa medida e neste aspeto o recurso, como remédio jurídico abrange a determinação da pena que não observe aqueles princípios gerais, regras e as operações impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena (artº 71º 3 CP), mas (assim Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197), não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”7 reconhecendo-se, assim, uma margem de atuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar, relacionada com a perceção de quem realizou o julgamento e teve perante si o arguido, se situa no local dos factos e tem uma melhor compreensão sobre a sua repercussão social.

Visto o exposto e que foi valorado contra o arguido o facto de a ofendida já haver sido vitima anteriormente, quando tal facto não lhe é imputável (e não lhe diz respeito), e o facto de ter os atos terem sido praticados sem proteção (por potenciar doença transmissível, que não ocorreu nem se mostra que tenha ocorrido perigo do mesmo) tendo sido punido por do ato resultar a gravidez, cremos que não se impõe a intervenção corretiva deste Tribunal, no sentido de agravar cada uma das penas em mais 6 meses por esta diferença de avaliação se situar na margem de atuação do juiz da 1ª instância, sendo que as penas se mostram fixada em consonância com os critérios jurisprudenciais (cfr. nota 7).

Improcede o recurso do Mº Pº nessa parte.

No que à pena única respeita, pretende o arguido a sua redução e o Mº Pº a sua elevação.

Os argumentos do arguido traduzem-se por parte do arguido numa adequada valoração dos factos a ponderar como os seus hábitos de trabalho, o seu processo de socialização, o seu bom comportamento prisional e ausência de antecedentes criminais, confissão e colaboração com a justiça, o seu arrependimento e vergonha (recusa de visitas), o divórcio, a não ocorrência do aproveitamento da imaturidade da vitima ou soubesse do seu deficit cognitivo.

Por seu lado o Mº Pº invoca nesta sede a gravidade dos factos e sua duração, que numa apreciação da imagem global dos factos imporiam um agravação da pena única.

Diz-se na decisão recorrida: “…na medida da pena do concurso entra agora um novo facto, o qual se traduz na consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente. Em comentário a regra semelhante plasmada no ordenamento jurídico alemão, refere JESCHECK que

“Ao valorar-se a personalidade do agente deverá atender-se sobretudo à questão de saber se os factos constituem expressão de uma tendência criminosa ou, pelo contrário, delitos ocasionais carentes de conexão. A autoria em série deve considerar-se em princípio num sentido agravante (BGH, 24, 268 [270]).(...)

A valoração conjunta dos factos particulares está chamada em especial a permitir a apreciação da gravidade global do conteúdo da ilicitude e da questão da relação interna existente entre os distintos actos (H. JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde, Volumen Segundo, Bosch, 1981, página 1029)

Desta forma, no que toca à apreciação conjunta dos factos é importante salientar que a visão unitária dos mesmos potencia, de alguma forma, a aferição da gravidade global dos ilícitos cometidos pelo arguido AA. Isto quando se tenha em consideração o número de actos criminosos praticados por aquele [enquanto integrantes do cúmulo] e o extenso lapso temporal durante o qual abusou da menor BB. Cabe, não obstante, ter identicamente em mente que o modo de execução se relevou particularmente homogéneo [ainda que uma resolução criminosa unitária para cada ilícito] com invariável repetição da mesma conduta.

Em matéria preventiva, cabe renovar o já exposto em matéria de sopesação das penas parcelares.

Tratamos de agente que, pela gravidade dos factos praticados e total desconsideração da pessoa da sua filha na vertente sexual, relevou profundas carências de ressocialização. Era, não obstante, primário à data dos factos e com enquadramento familiar, laboral e social. Mantendo agora conduta adequada no Estabelecimento Prisional… E continua a relevar o exposto quanto à importância da confissão como nuclear factor de medida da pena até porque, sem ela, não lograríamos afirmar a responsabilidade criminal do arguido AA nos termos supra materializados.

Desta forma, tomando em consideração a totalidade dos vectores supra expostos, julga-se justificada e adequada a fixação da pena única do concurso em 11 anos para o arguido AA.”

Conhecendo:

Dispõe o art. 77º, n.º 1 do CP que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, e na determinação dessa pena, há que ter em conta o disposto no art. 77º, n.º 2 do CP, segundo o qual, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Importa por isso averiguar se a pena única em que foi condenado é ou não justa ou se se mostra necessário corrigir, face às regras sobre a sua determinação, regras essas que fixam os seus limites e os critérios a observar para encontrar a medida justa, como decorre do artºs 77º 1 e 2 CP ao estabelecer “1-Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Quanto aos limites, ela deve ser encontrada entre os 6 anos e seis meses e os 25 anos (pena máxima que constitui a moldura do concurso.), mas cuja soma ascenderia a 165 anos

No que respeita aos critérios da sua determinação, traduzidos na apreciação, em conjunto dos factos e da personalidade do arguido há a considerar que a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção”8 a coberto do artº 40º CP, e que se exige uma apreciação dos factos, na sua globalidade, e da personalidade do arguido neles revelada artº 77º1 CP), e como se expressa F. Dias “ tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global … “9, - o que é interpretado pelo STJ no ac. 18/6/2014 www.dgsi.pt/jstj10 como “A explanação dos fundamentos que, à luz da culpa e prevenção, conduzem o tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os factos que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade.”- e também no ac. STJ de 03/04/2013 www.dgsi.pt11, onde se defende que “…importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos e da motivação que lhes subjaz, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele” - e na “avaliação da personalidade – unitária- do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutivel a umas tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade … “12, - sendo que esta (pluriocasionalidade) como se escreve no texto do ac STJ 12/9/2007 www.dgsi.pt/13 “verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.

A pluriocasionalidade fica atestada, certificada, face à mera constatação da «sucessão» de crimes”.

Como em qualquer pena a justa medida, limitada no seu máximo pela culpa,- suporte axiológico de toda a pena - da pena única, há-se ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na proteção dos bens jurídicos e de reintegração social (ressocialização) – artº 40º CP – como finalidades preventivas e positivas de toda a pena – ponderando as penas aplicadas a cada facto, o conjunto desses factos e a personalidade do arguido neles manifestada como um comportamento global 14 a apreciar no momento da decisão.

Assim em termos de prevenção geral há a ponderar a natureza dos crimes, ambos de grande abrangência, duração e relevo social atual (abuso sexual) sobre pessoa seu familiar (filha), a exigir uma maior atenção preventiva, reafirmando a validade das normas jurídicas violadas.

Se em termos de integração social e laboral esta se mostra efetivada, e que é o que se espera de qualquer cidadão, o certo é que foi no seio familiar (que ora se mostra desagregado: o divorcio, e já antes a filha em lar de acolhimento, mas não imputável ao arguido) que os factos ocorreram, e se mostram interligados revelando uma linha de conduta permanente, e por essa razão não podem ser menorizadas as razões de prevenção especial no que aos factos ilícitos concretos respeita.

Na ponderação da personalidade do arguido revelada nos factos há que ponderar desde logo a ausência de antecedentes criminais, e depois o modo e condições da sua vida, quer em termos laborais, sociais, familiares e educativos apurados, o seu nível cultural e educacional potenciador de uma atitude ou perceção inadequada sobre a convivência familiar e os deveres, direitos e obrigações que a devem reger, e a que os conviventes se vinculam a observar, tendo presente que estamos perante um defeito de socialização, traduzido na necessidade de prevenir a prática de futuros crimes. Entronca, todavia, aqui um fator que se nos afigura relevante, pois se trata de uma família com deficiências cognitivas (a mãe, a filha (vitima) e o filho, e em relação ao arguido nada nos é apresentado como provado), com fraco nível social, cultural e educativo. A demonstrar uma desestruturação familiar, é o facto de os factos ocorrerem depois de a filha ter sido vitima dos mesmos atos por parte de terceiros, e da sua institucionalização. Acrescerá um fator não despiciendo em termos de compreensão do facto: estamos perante atos de índole sexual, criminalizados pela sua simples ocorrência independentemente de ocorrer a ofenda do bem jurídico (traduzida no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera da sua sexualidade jovem15) razão pela qual a lei presume, de forma absoluta que tais atos prejudicam o seu desenvolvimento, e por essa razão o consentimento da vitima é irrelevante, e se assim é em termos de tipicidade, o modo como os factos ocorreram e a anterior prática por parte de terceiros, pode fomentar uma errada perceção sobre os deveres do arguido, sendo certo que estamos perante uma situação em que ocorreu abuso apenas pela imaturidade/ deficiência cognitiva. Por outro lado, não fora a confissão do arguido e a prova dos ilícitos restringir-se-ia a 4 ou 5 crimes o que relevou de modo exponencial para a descoberta da verdade (como se expressa a motivação), aliado ao sentimento de vergonha (não quer visitas) de que podemos inferir uma situação de arrependimento.

Tendo em conta esses fatores, a moldura do concurso, e apreciando os factos na sua globalidade e a personalidade do arguido neles revelada e as penas parcelares aplicadas, as exigências de prevenção quer geral quer especial, a ilicitude dos factos e a culpa do arguido, e sua reinserção social e capacidade de observar as regras sociais, numa vivência sem cometer crimes, e porque a pena única encontrada se mostra conforme com a pena aplicada em situações de igual ou similar natureza16, mas tendo em conta a especificidade de cada uma, afigura-se-nos proporcional, adequada e justa a pena aplicada que não necessita da intervenção corretiva deste Tribunal.

Improcede esta questão.


+


Resta por apurar se a quantia fixada a favor da vitima se mostra exagerada, como pretende o arguido, por extravasar a sua capacidade financeira e pondo em causa os interesses da ofendida

Estamos no âmbito da reparação oficiosa do artº 82º A CPP e do n.º 2 do artigo 16º, da Lei n.º 130/2015, de 4/ 9, e o tribunal expressou-se do seguinte modo: “provou-se que as condutas do arguido AA causaram incómodos relevantes à ofendida BB, que sofreu alterações emocionais ao nível de perturbação do sono e perda do apetite. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha perfeita noção da idade da vítima e da sua vulnerabilidade. E, apesar disso, não se coibiu de praticar os actos supra descritos, ofendendo assim o sentimento de juventude, de inocência e de vergonha da ofendida, bem como a integridade física e psicológica daquela. Como se acha patente das declarações para memória futura, a ofendida BB evita falar do sucedido com o arguido AA e foi aí forçada a reviver novamente aqueles factos que lhe causaram forte abalo psicológico.

São danos não patrimoniais graves, merecedores de tutela, e que, considerando a elevadíssima gravidade da sua conduta com as suas comprovadas consequências e os critérios que carecem de ser associados a qualquer indemnização, se entende serem de fixar, equitativamente, no montante de € 20.000,00 euros.

Os juros de mora são devidos em relação aos danos não patrimoniais desde a data deste acórdão. Com efeito, tendo em conta que se encontra um juízo de equidade subjacente a este valor, mostra-se consensual que a correspondente se processará por referência à data da decisão [por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1995 (CJ-STJ, 1995, I, página 79)].”

Ora estado em caus danos não patrimoniais e estes são fixados de acordo com a equidade, nos termos do artº 496º 4 CC, que dispõe: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º;” que por sua vez estabelece que a equidade na fixação da indemnização deve ter em conta “ o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”, o que implica ter-se em conta critérios de proporção, adequação às circunstâncias, objetividade e razoabilidade tendo em atenção o pedido formulado, pois são comuns a todos os juízos de equidade.17

Assim, há que ponderar tais critérios e os demais previstos no art.º 494º CC como sejam o dolo do arguido, o modo como agiu, o tempo durante o qual agiu, os atos a ponderar, as consequências que daí emergiram, as situações económicas do arguido como lesante e da ofendida como lesada tal como emergem dos factos apurados e em face do estilo, condições e modo de vida que levavam e que os factos e respetivas profissões deixam antever aliado ao seu nível educacional e cultural e as demais circunstancias do caso, com o seja a intensidade das ações lesivas, as razões e motivos da sua ocorrência e as suas repercussões e os valores atuais fixados pela jurisprudência (Acs. STJ 6/6/93 CJ Ano I, II, 186, 11/10/94 CJ STJ, 94, III, 89 entre outros) a que se deve atender a fim de afastar a subjetividade (Ac. STJ 23/10/79, RLJ 113º 91 com anotação concordante de Vaz Serra, cit. no Ac. STJ 26/5/93 CJ Ano I, II, 130).

Atendendo assim às particularidades do caso, nos termos expostos e que o quantum indemnizatório deve ser suficiente, ressarcidor e compensador dos danos causados a este nível, constituindo “uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano" 18, ou que se traduza numa compensação «insusceptível de avaliação em dinheiro e representa a dor corporal sofrida, bem como o prejuízo de equilíbrio anímico ou espiritual» Ac. S.T.J. de 28 /2/1969, R.L.J. ano 103º, pág. 176, mas tendo presente a lição de Antunes Varela et alli, Cod. Civil Anot. I Vol., notas ao artº 494º CC, no sentido de que os tribunais de recurso devem “limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida ”19 o certo é que na presente circunstancia o tribunal recorrido, que fixou a indemnização não atentou nas circunstancias económicas do lesante e da lesada (que viviam em economia comum) pessoas de condição social humilde e modesta condição económica como resulta dos dados económicos apurados e da atividade profissional do arguido, e das consequências advindas para a ofendida (traduzidas nos termos provados nos pontos p) q) e t) na medida em que se possam imputar à ação do arguido e não também à atuação anterior de que a ofendida fora vitima) pelo que se impõe a intervenção corretiva deste Tribunal em face do que se nos afigura justo e equitativo fixar a indemnização por tais danos na quantia de doze mil e quinhentos euros.

Não há outras questões de que cumpra conhecer procedendo parcialmente, o recurso.

+

Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça, decide:

Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Publico;

Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência:

- mantêm a decisão recorrida na parte criminal, e

. revogando parcialmente a decisão recorrida, quanto à indemnização atribuída à ofendida BB e condena o arguido a pagar-lhe a quantia de doze mil e quinhentos euros a que acrescem os juros como determinado no acórdão recorrido

Sem custas

Notifique

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Lisboa e STJ, 17/12/2024

José A. Vaz Carreto (relator)

Jorge Raposo

Carlos Campos Lobo

__________


1. in DR, I Série de 4-06-2007:”Do disposto nos artigos 427º e 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame da matéria de direito devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.”

2. Publicado no DR-120 SÉRIE I de 2017-06-23.

3. Eduardo Correia in Direito Criminal, Vol. I, 2001, pág. 41.

4. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185;

5. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84,

6. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e sgt.s)

7. Cfr. por todos Ac.STJ 11.7.2024, proc. 491/21.6PDFLSB.L1.S1 www.dgsi.pt Cons. Ana Barata Brito

8. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2005, pág. 291,

9. ob. loc. cit.

10. Proc. 585/09.6TDLSB.S1 Conselheiro Santos Cabral

11. Proc. 789/11.1TACBR.C1.S1 Conselheiro Oliveira Mendes

12. Figueiredo Dias, ob. loc. cit.

13. Ac. STJ de 2007-09-12 (Proc. nº 07P2601) Conselheiro Raul Borges

14. Ac. STJ de 16/05/2019, proc. 765/15.5T9LAG.E1.S1 (Conselheiro Nuno Gonçalves), in www.dgsi.pt ;

15. M.J. Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal. I, 1999, pág 5

16. Cfr. Ac STJ 31/10/24 proc. 545/206GFSTB.L1.S1 e STJ 17/10/24 Proc 3/23.7PFALM.S1, entre outros;

17. Ou seja devem ter-se em consideração “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. 1.º,4.ª edição, pág. 501;

18. – Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, nº 1, 1º ano, APADAC, pag. 20).

19. Cfr. também ac.s STJ de 13/07/2006, 17/06/2004 e de 29/11/2001 todos disponíveis em www.dgsi.pt].