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PLATAFORMA DIGITAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
INDÍCIOS
Sumário
1 – A presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável apenas às relações estabelecidas após a entrada em vigor da lei que a introduziu no ordenamento jurídico nacional. 2 - Em presença de uma prestação de atividade de estafeta através de plataforma digital, visando-se o reconhecimento da existência de contrato de trabalho, e não sendo aplicável do disposto no Artº 12ºA do CT, deve aquilatar-se do preenchimento do disposto no Artº 12º do CT. 3 – Não provados os factos índice aí consagrados, a qualificação da relação como laboral pressupõe o recurso ao método indiciário aplicável ao preenchimento do conceito de subordinação jurídica. 4 – Reconhecendo-se, embora, algum nível de integração do prestador de atividade na organização do beneficiário, sem que os autos revelem o exercício de poderes de autoridade por este, não se pode concluir pela existência de um contrato de trabalho entre ambos.
Texto Integral
Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:
O MINISTÉRIO PÚBLICO, notificado da sentença proferida nos presentes autos, não se conformando com a mesma, vem dela interpor recurso.
Pede a respetiva revogação na parte das suas conclusões jurídicas e substituição por outra, ou por Acórdão, que declare a existência do presumido e, em concreto, provado pelo Ministério Público, aqui recorrente, contrato de trabalho entre AA e o Réu, Uber Eats Portugal – Unipessoal, Lda., desde 1 de maio de 2023.
Apresentou as seguintes conclusões:
1.O Ministério Público não se conformando com a decisão proferida por entender, conforme ab initio entendeu, que a relação existente entre o indicado estafeta AA e o Uber Eats – Portugal – Unipessoal, Lda. configura uma relação laboral, o que é patente da prova colhida e produzida nos autos, mas que não encontra respaldo, na respetiva fundamentação proferida pelo tribunal a quo.
2. Assim, remetendo-nos ao caso concreto devemos analisar os factos provados à luz do método indiciário.
3. A titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho: resulta verificado este indício na medida em que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva.
4. Assim, podemos concluir que infraestrutura essencial da atividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
5. O poder de direção e de conformação do modo como é prestada a atividade: também resulta verificado dado que e a Ré através da sua aplicação informática, organiza e gere a atividade de recolha, transporte e entrega de mercadorias.
6. Encontrando-se este procedimento perfeitamente padronizado visto que decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré.
7. O exercício do poder sancionatório: também resulta verificado, entre outros motivos pelo facto da “plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta (…)”.
8. O modo de cálculo da retribuição: que também indica subordinação, visto que é a Ré quem determina as regras essenciais de fixação da retribuição, tal como concluem os factos provados onde se diz que “a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta filtrar, aceitando ou não os pedidos que aceita no ecrã”.
9. Pelo que depois de proceder à análise dos itens que supra referimos, parece-nos que resultam provados indícios relevantes de um contrato de trabalho, que deveria ter sido declarado na douta sentença recorrida.
10. Acresce que, o legislador estabeleceu, no artigo 12º-A do Código do Trabalho, uma presunção de laboralidade que tem por objetivo dispensar o encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho.
11. Ou seja, de acordo com o normativo transcrito, o preenchimento da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital está dependente da verificação de pelo menos dois dos seguintes requisitos dos seguintes requisitos que passamos a analisar.
12. a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela: resulta verificado tal como consta do ponto 18 dos factos provados “a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta filtrar, aceitando ou não os pedidos que aceita no ecrã”.
13. b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade, também resulta verificado, dado que a Ré determina a conduta do prestador de atividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da atividade em si mesmo.
14. Desde a fase inicial, que o estafeta para poder prestar a sua atividade tem obrigatoriamente de proceder ao seu registo no site da Ré, entregando a documentação que lhe é solicitada (incluindo certificado de registo criminal), declarar o meio de transporte que vai usar, diligenciar pelo seguro do mesmo e aderir ao “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”.
15. Acresce ainda que a Ré determina a conduta do prestador de atividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da atividade em si mesmo. 16. Ou seja, o procedimento de recolha e entrega de mercadorias gerido pela Ré encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré
17. c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, também resulta provado dado que para lhe ser atribuído um pedido, por banda da Ré, o estafeta tem que estar ligado na plataforma da Ré e para terminar tem que concluir o procedimento, nessa mesma plataforma, pelo que é manifesto que a Ré consegue controlar e supervisionar a prestação da atividade e ou a sua execução.
18. Assim, a necessidade de manter o GPS ativo não se circunscreve ao momento da proposta de entrega, prolonga-se durante o período de execução da tarefa, cedendo a Ré este registo de geolocalização ao cliente, para que este possa consultar em tempo real, qual o tempo que a encomenda irá demorar a chegar ao seu destino final.
19. e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta, resulta dos factos provados 48 e 49, que “a plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta (…)”.
20. f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação, resulta dos factos provados que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva que é sua, sendo ela quem recebe as solicitações de entrega por parte dos seus clientes e o distribui o trabalho de entrega conforme os seus critérios de gestão pelos estafetas.
21. Assim, podemos concluir com segurança que a infraestrutura essencial da atividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
22. Estão, assim, como vimos, preenchidos os factos índice da presunção enumerados nas alíneas a), b), c), d) e f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, pelo que podemos concluir que, no caso, operou a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo ao contrário do que considerou a sentença recorrida que não considerou preenchido nenhuma item elencado nesta presunção de inocência.
23. Perante esta evidência cumpre aquilatar se a Ré ilidiu a presunção de laboralidade.
24. No nosso ponto de vista tal não acontece porque indícios como o horário, a exclusividade, a assiduidade, não se adequam a analisar o trabalho prestado no âmbito de uma plataforma digital.
25. Sintetizando, a Ré não se limita a ser um mero intermediário na prestação de serviços entre comerciantes e estafetas.
26. A Ré tem como fim a prestação de um serviço de recolha e entregas, que fixa o preço e as condições do pagamento do serviço, assim como as condições essências para a prestação do referido serviço.
27. Resulta ainda dos autos que os estafetas que não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma, prestando os seus serviços enxertados na organização de trabalho da Ré, submetidos à sua direção e organização, como demonstra o modo como a Ré estabelece os preços dos serviços de entrega.
28. O estafeta não negoceia preços ou condições do serviço com os proprietários dos estabelecimentos onde efetua a recolha dos bens, nem recebe a retribuição dos clientes finais.
29. Em suma, concluímos que a prestação de trabalho do estafeta está sujeita a uma organização do trabalho determinada pela Ré, que estabeleceu meios de controle do processo produtivo em tempo real que operam sobre a atividade e não apenas sobre o resultado final, mediante a gestão algorítmica do serviço e a possibilidade de conhecer constantemente a geolocalização dos estafetas, o que evidência a ocorrência do requisito da dependência e subordinação jurídica própria da relação laboral
30. Assim, entendemos, com o devido respeito, que a decisão recorrida viola normas e princípios jurídicos que regem a matéria sub judice, designadamente o artigo 11.º e 12-A do Código do Trabalho
31. Patente se torna a existência de um contrato de trabalho no âmbito da relação jurídica aqui em causa.
UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. Ré nos autos à margem referenciados, notificada das alegações de recurso apresentadas pelo Autor, vem apresentar as suas CONTRA-ALEGAÇÕES nas quais pugna pela improcedência do recurso.
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Apresentamos, seguidamente, um breve resumo dos autos para melhor enquadramento:
O Ministério Público em representação do Estado Português intentou a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho “UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL Lda.”, pedindo que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre UBER EATS UNIPESSOAL, LDA. e AA com início reportado a 1/05/2023.
Para tanto alega, em síntese, que desde 1 de janeiro de 2023 que entre a R. e AA existe uma relação laboral já que este integra a estrutura organizativa da R., recebe uma quantia mensal, sem negociação, e toda a sua atividade é controlada pela R. através dos meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, fazendo uso da geolocalização. Postula que este tem em regra um horário de trabalho, e é avaliado pela R.. Mais refere que o estafeta não se pode fazer substituir, tendo uma credencial unipessoal e confidencial e a R. pode restringir o seu acesso à plataforma. Sustenta que todas as regras da sua prestação de trabalho são fixadas pela R., supervisionando em tempo real esse trabalho por meio da geolocalização e sendo a plataforma o instrumento de trabalho utilizado.
Conclui, assim, pugnando pois pela existência de um verdadeiro contrato de trabalho o que pede seja declarado.
A R. contestou a ação e nega a existência de ordens, de subordinação, de poder disciplinar, de horário, de qualquer controlo por parte da R., e pugna pela total autonomia do estafeta. Refere, em síntese, que este pode trabalhar quando quer e onde quer, e durante o tempo que quer, podendo até ficar longos meses ou anos sem logar na plataforma. Pode escolher o percurso que entende para entregar os pedidos sem interferência da R. e decidir ele próprio aceitar ou recusar pedidos. É ainda ele quem fixa o valor mínimo que quer receber (valor mínimo das propostas) mas que ainda assim pode aceitar abaixo desse valor. Esclarece que a geolocalização é para que o mesmo receba as propostas (não faria sentido receber propostas de entregas de serviço noutra zona do pais onde não se encontrasse) e para o cliente poder acompanhar a entrega e contacta-lo sendo caso disso. Postula que durante o mesmo período de tempo em que trabalha para a R. pode trabalhar para outras plataformas, não tendo exclusividade, ou ter os seus próprios clientes. E por fim sustenta que nenhuma consequência existe, nem exercício do poder disciplinar ou algo análogo, senão nos casos contratualmente determinados de resolução do contrato e suspensão da sua atividade caso se verifique alguma das situações mencionadas.
Conclui, pois, referindo que inexistem indícios que permitam concluir pela existência de um contrato de trabalho.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento e todos os factos foram dados por assentes, com exceção de um único, que foi objeto de produção de prova: o relativo à avaliação.
Foi proferida sentença que julga a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência, absolve a R. do pedido.
***
As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – Estão provados indícios relevantes de um contrato de trabalho?
2ª – Estão preenchidos os factos índice da presunção constante do Artº 12ºA do CT?
*** FUNDAMENTAÇÃO: OS FACTOS:
1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;
2. A Ré é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efetuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do setor da restauração e do comércio;
3. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;
5. As funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final.
6. Assim, a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); - Os utilizadores estafetas; e - Os utilizadores clientes;
7. A atividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;
8. AA, natural da ..., NIF ..., NISS ..., Título de Residência n.º ..., com residência na Rua..., titular do endereço eletrónico ..., com o n.º de telefone ..., presta a referida atividade de estafeta para a Ré plataforma digital UBER EATS desde 1/1/2023;
9. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
10. No decurso de uma ação inspetiva realizada pela ACT no dia 20/09/2023, pelas 21H, foi verificado que AA se encontrava no centro comercial do... em ..., a aguardar a preparação para recolha de pedido efetuado por cliente na aplicação móvel Uber Eats e posterior entrega na morada indicada pelo cliente, tendo-se apurado que desenvolve a sua atividade da seguinte forma:
- O estafeta estava registado na plataforma digital UBER EATS, como “Parceiro de Entregas Independente”, através da criação de uma conta na plataforma, na aplicação disponibilizada na internet para o efeito;
- Visando o registo em causa, e de acordo com exigência da aplicação UBER EATS, foram submetidos pelo estafeta na referida aplicação os seus documentos de identificação, bem como o certificado de registo criminal, o comprovativo de abertura de atividade como trabalhador independente, entre outros;
- Foi ainda associado à conta do estafeta o meio de transporte em que este se desloca, conforme requerido pela plataforma;
- O estafeta, para finalizar o registo, ficou ainda obrigado a aderir aos termos e condições aplicáveis constantes do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”;
11. Embora a UBER EATS não mantenha um suporte em papel da adesão aos termos e condições aplicáveis, tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;
12. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
13. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
14. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, este tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
15. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.
16. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
17. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER;
18. A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)";
19. Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores;
20. Não existe também qualquer intervenção do estafeta no processo de negociação de preços entre a plataforma e os parceiros de negócio, nomeadamente, restaurantes e estabelecimentos comerciais;
21. Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor;
22. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”;
23. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma;
24. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Cash Out é que os mesmos são pagos semanalmente;
25. O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência.
26. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;
27. A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, sendo que, para a plataforma validar o perfil no ato de criação da conta o estafeta tem de submeter prova de detenção da mochila de transporte, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões – 44 cm de largura x 35 cm de profundidade x 40 cm de altura - assim como quanto ao estado de conservação e limpeza;
28. O estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;
29. A partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora Ré, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;
30. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
31. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
32. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe;
33. O Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar;
34. A plataforma tem a possibilidade de recolher a classificação efetuada ao estafeta, quer pelo cliente quer pelo comerciante/restaurante, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação;
35. O estafeta é livre para escolher o seu horário;
36. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;
37. E durante quanto tempo permanece ligado;
38. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender
39. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega; 41. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.
42. E a sua conta continua ativa;
43. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;
44. A prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.n. dos termos e condições aplicáveis;
45. Ou seja, o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;
46. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
47. A plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos";
48. Conforme decorre da cláusula 9 e da cláusula 16.b. dos termos e condições aplicáveis a Ré tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações: Quando a Ré está a cumprir uma obrigação legal; Quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais; Quando está em causa a segurança dos clientes; e Por motivos de autoproteção (situações de fraude)
49. O sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;
50. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado;
51. Aliás, se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;
52. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido podem introduzir dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega;
53. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes;
54. A aplicação e o site da Uber Eats Portugal (ora ré) são pertença da Uber Eats dos Estados Unidos;
55. A Ré contratou um seguro de responsabilidade civil com a seguradora Zurich e um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o Prestador de Atividade.";
56. Após aceitar a entrega o estafeta não se pode fazer substituir por ninguém.
57. Antes de aceitar uma entrega existe na plataforma a possibilidade de o estafeta designar um substituto, o qual tem que estar registado na Uber com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a ré procederá ao pagamento ao estafeta substituído.
58. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma. A Plataforma é uma das muitas ferramentas que eles têm para realizar entregas. Os prestadores de atividade podem ter sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à Uber Eats. Eles também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma. Cabe esclarecer que os prestadores de atividade não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
59. Para se registarem na Plataforma, os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção, exceto o preenchimento dos requisitos contratuais já mencionados supra;
60. A R. não faz uso do feedback dado pelos clientes a cada entrega do estafeta, apenas lhe atribuindo pontos por cada entrega que efetua para efeitos de descontos na aquisição de material diverso.
*** O DIREITO:
Antes de entramos no âmago da questão, sublinhe-se que não vem impugnada a decisão que fixou a matéria de facto, matéria que foi, aliás, fixada por acordo.
O Tribunal decide com base em factos, sendo da responsabilidade das partes carreá-los para os autos. Do que resulta ser com base nos factos em que as partes sustentaram a sua pretensão e que enformaram a decisão de facto – e não em eventuais outros- que se logrará obter a composição do litígio.
A sentença recorrida, dando conta da alteração legislativa ocorrida em Maio de 2023, da qual decorreu a introdução, no ordenamento jurídico nacional, da estatuição do Artº 12ºA do CT, deteve-se sobre cada um dos factos índice ali enunciados, concluindo que nenhum deles se preenchia. Analisou, depois, se se configuravam indícios de contrato de trabalho designadamente a partir do objeto do contrato – a prestação de atividade versus resultado – e da verificação de subordinação jurídica, concluindo não existir prova de contrato de trabalho.
Ambas as conclusões vêm postas em causa no recurso.
Razões de lógica processual impelem-nos a inverter a ordem das questões enunciadas, pelo que iniciaremos a discussão pela elencada em 2º lugar, a saber, se estão preenchidos os factos índice da presunção constante do Artº 12ºA do CT. Muito concretamente e para sermos fieis ao recurso, os das alíneas a), b), c), d) e f) – conclusão 22ª.
A presente ação tem como objeto a declaração de existência de um contrato de trabalho, desde 1/05/2023, celebrado entre um prestador e a requerida e executado mediante intervenção de uma plataforma digital.
Emerge do acervo fático que a atividade vem sendo prestada desde 1/01/2023, situando-se, pois, aí, o início da relação.
A novel presunção constante do Artº 12ºA do CT foi introduzida no ordenamento jurídico através da Lei 13/2023 de 3/04, cuja entrada em vigor se determinou dever acontecer no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação (Artº 37º/1), pelo que a produção dos respetivos efeitos só a partir de então se deve equacionar.
Este entendimento mostra-se consolidado na jurisprudência, vindo a ser constantemente reafirmado pelo STJ. Citamos, a título de exemplo o Ac. de 4/07/2018, Proc.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, no qual se afirma que “a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes. A presunção de laboralidade é um meio facilitador da prova a favor de uma das partes, pelo que a solução de aplicar a lei vigente ao tempo em que se realiza a atividade probatória pode conduzir a um desequilíbrio no plano processual provocado pela impossibilidade de se ter previsto no momento em que a relação se estabeleceu quais as precauções ou diligências que deviam ter sido tomadas para assegurar os meios de prova, o que poderia conduzir à violação do direito a um processo equitativo e causar uma instabilidade indesejável em relações desde há muito constituída”. Acórdão secundado mais recentemente nos Ac. do STJ de 25-09-2024, Proc. n.º 12510/19.1T8SNT.L1.S1 e de 01-06-2022, Proc. n.º 21116/18.1T8LSB.L1.S1.
Não se vendo que existam, por ora, razões que imponham divergir desta solução, segui-la-emos, tanto mais que o acervo fático não denota qualquer alteração no modo como a prestação se desenvolveu após o seu início.
Assim, a presunção que emerge do Artº 12ºA não tem aplicação nestes autos. No mesmo sentido os Ac. RG de 31/10/2024, Proc.º 2781/23.4T8VRL1 e 2783/23.0T8VRL.G1 e RE de 5/12/2024, Proc.º 1964/23.1T8TMR.
Deste modo, não obstante o pedido formulado – reporte do contrato a 1/05/2023- entendemos ser de relevar a data de constituição da relação, ou seja, 1/01/2023 (ponto 8), pelo que é inaplicável a presunção de laboralidade em plataformas digitais constante do Artº 12ºA.
Subsiste, contudo, a presunção de laboralidade existente à data antecedente. E, assim, não estando o juiz adstrito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (Artº 5º/3 do CPC), equacionaremos a questão sub-júdice à luz do Direito vigente à data da celebração do contrato.
O contrato de trabalho é definido no Código do Trabalho de 2009 como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas (Artº 11º).
As dificuldades de demonstração de existência de um contrato de trabalho são conhecidas dada a presença neste e em contratos de prestação de serviços de elementos coincidentes, mas, não obstante, também de outros distintivos, elegendo-se como elemento diferenciador a subordinação jurídica.
Ocorre, porém, que esta, também não é, bastas vezes, facilmente apreensível, muito especialmente quando se perspetive o exercício de profissões com elevado grau de autonomia. E, como no caso, quando o modelo contratual, desenvolvido através de uma plataforma digital, apresenta características distintivas designadamente porque o trabalho se apresenta como radicalmente distinto na forma como é organizado e realizado. Um modelo de trabalho em que, em regra, os algoritmos “desempenham um papel crucial no processamento e rastreio de grandes quantidades de dados, o que é fundamental para as plataformas, que dependem de uma correlação eficiente entre a oferta e a procura”2.
Ciente das dificuldades atinentes à qualificação de uma relação como de trabalho subordinado, o legislador consagrou no Artº 12º do CT, uma presunção de contrato de trabalho, o que resulta na dispensa do encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho tal como ele é definido no Artº 11º do CT.
Efetivamente, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (Artº 350º/1 do CC).
Como ensina José Lebre de Freitas, a parte que beneficia da presunção (a que invoca o direito, quando o facto é constitutivo; aquela contra a qual a invocação é feita, quando o facto é impeditivo, modificativo ou extintivo) não tem de provar por outro meio o facto presumido, cabendo à outra parte provar, por qualquer meio, o facto contrário para que o resultado probatório obtido com a presunção seja afastado (Artº 347º), dizendo-se então ilidida a presunção legal3.
Assim, por força de tal presunção, a quem alegue a existência de um contrato de trabalho, basta agora evidenciar algumas das características ali enunciadas – os denominados factos base-, ficando o beneficiário da prestação com o ónus de demonstrar a situação de autonomia ou, melhor dizendo, de não subordinação jurídica. É que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir (Artº 350º/2 do CC).
Nas palavras de Maria do Rosário Palma Ramalho, “a qualificação laboral do negócio pode ser afastada se o empregador provar a autonomia do trabalhador ou a falta de outro elemento essencial do contrato de trabalho4”, a saber, a atividade, a retribuição, a subordinação.
E, assim, agora pode concluir-se estar-se em presença de um contrato de trabalho se se demonstrarem alguns dos índices legais. E sem que cumpra ajuizar da maior ou menor relevância dos mesmos, pois se a inferência é efetuada pelo legislador, ao aplicador cumpre apenas verificar da evidência do elemento que integra a presunção. A relevância de determinado facto está na consagração legal, não nas mãos do aplicador.
Na verdade, “legal ou judicial, baseia-se numa regra de experiência, que estabelece a ligação entre o facto conhecido que está na base da ilação e o facto desconhecido que dele é derivado: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, este é dado como assente quando o primeiro é provado”. A presunção legal baseia-se em regras da experiência, “que o legislador tem em conta quando cria a regra da ligação entre o facto base da presunção e o facto presumido5”.
Contudo, a contraparte pode convencer que a atividade prestada, apesar da ocorrência daquelas circunstâncias que integram a presunção, configura uma relação que não é uma relação de trabalho subordinado.
O Ac. do STJ de 2/07/2015 é explícito nesta matéria. Aqui se explica, com clareza a distinção imposta pelo novo regime na apreciação do acervo fático de modo a concluir pela caracterização do contrato como de trabalho.
Consignou-se ali que “A técnica da presunção da existência de contrato de trabalho, consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, embora seja inspirada no modelo indiciário tradicional, altera radicalmente o cenário da prova dos elementos integrativos do contrato de trabalho. Na verdade, ao contrário do modelo indiciário, que apelava a uma ponderação global dos elementos caracterizadores da concreta relação estabelecida entre partes, destacando nos mesmos aqueles que apontam para a subordinação jurídica, a sopesar com os que apontem no sentido da autonomia, de forma a encontrar o sentido global caracterizador da relação, a demonstração da existência de contrato de trabalho vai ficar agora dependente, e apenas, da demonstração de «alguns» dos índices consagrados nas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º” (Proc.º 182/14.4TTGRD, www.dgsi.pt).
Centremo-nos, então, na estatuição que nos ocupa.
Dispõe o Artº 12º:
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a. A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b. Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c. O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d. Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;
e. O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
Analisemos cada um dos factos índice, desde já se afirmando, como também vem sendo uniformemente decidido, que basta o preenchimento de dois deles para que se presuma a existência de contrato de trabalho.
a. A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado
Compulsado o acervo fático verificamos que o prestador realiza a atividade de entrega de refeições e outros produtos conforme os pedidos disponibilizados na plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através de uma aplicação instalada no seu telemóvel (pontos 9 e 12). É, pois, a partir da aplicação que é determinado o local de exercício da atividade, mas tal local é livremente acedido pelo prestador, ou seja, não é definido ou determinado pelo beneficiário pois, conforme também se provou, os prestadores decidem livremente o local onde prestam a sua atividade (ponto 15).
Razão pela qual o facto índice em presença se não verifica.
b. Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade
Alega o Apelante com referência à presunção do Artº 12ºA que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva que é sua.
Efetivamente, sendo o trabalho exercido através da plataforma, está provado que para execução das atividades, a R. explora uma plataforma tecnológica através da qual as operações comerciais se concretizam (ponto 3), sendo a atividade de prestação de serviços exercida através de aplicação informática (ponto 2), pertencendo a aplicação e o site à Uber Eats Estados Unidos (ponto 54).
Não é, contudo, líquido que a aplicação possa ser entendida como instrumento de trabalho para efeitos do Artº 12º.
Não tem aqui aplicação o conceito que emerge do Artº 12ºA/2. Todavia, a Lei 45/2018 de 10/08 define plataformas eletrónicas como as infraestruturas eletrónicas da titularidade ou sob exploração de pessoas coletivas que prestam, segundo um modelo de negócio próprio, o serviço de intermediação entre utilizadores e operadores de TVDE aderentes à plataforma, na sequência efetuada pelo utilizador por meio de aplicação informática dedicada (Artº 16º). Por sua vez a Lei 96/2015 de 17/08 define plataforma eletrónica como sendo a infraestrutura tecnológica constituída por um conjunto de aplicações, meios e serviços informáticos necessários ao funcionamento dos procedimentos eletrónicos de contratação pública nacional, sobre a qual se desenrolam os referidos procedimentos (Artº 2º/1-e)).
Há, pois, uma diferença entre plataforma e aplicação informática, podendo concluir-se que a plataforma será uma infraestrutura ou local de cariz eletrónico6, 7, e a aplicação (App) uma ferramenta, revelando os autos que a aplicação e o site pertencem à Uber Eats Estados Unidos (ponto 54).
c. O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma
Não há qualquer evidência factual desta matéria.
d. Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma
Em matéria de retribuição o acervo fático revela apenas que a plataforma fixa o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua (ponto 18) e, para além disso, a ré atribui pontos por cada entrega que o estafeta efetua, pontos que servem para efeito de descontos na aquisição de material diverso (ponto 60), o que também constitui uma forma de o remunerar. Contudo, longe do pagamento com carater periódico de uma quantia certa como contrapartida da atividade desenvolvida.
Dos autos decorre ainda que o estafeta em apreço escolheu ser pago semanalmente (ponto 24), desconhecendo-se se o foi ou não, também nada se sabendo acerca dos valores efetivamente pagos. Circunstâncias que reforçam o entendimento acerca do não preenchimento deste facto índice.
Consideramos, pois, não preenchido este facto índice.
e. O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa
Não há qualquer evidência desta matéria.
Não se preenchem, pois, nenhum dos factos que indiciam uma situação de laboralidade.
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Sustenta ainda o Apelante que resulta verificada titularidade dos meios de produção na medida em que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva, sendo este uma infraestrutura essencial da atividade aqui em causa. É a Ré através da sua aplicação informática, quem organiza e gere a atividade de recolha, transporte e entrega de mercadorias, mediante um procedimento padronizado. Além disso, resulta verificado o exercício do poder sancionatório, entre outros motivos pelo facto da “plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta (…)”. E o modo de cálculo da retribuição também indica subordinação, visto que é a Ré quem determina as regras essenciais de fixação da retribuição. Conclui, por isso, pela demonstração de indícios relevantes da existência de contrato de trabalho.
Decidamos agora se estão provados indícios relevantes de um contrato de trabalho.
O contrato de trabalho caracteriza-se essencialmente “pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direção do empregador que lhe dá ordens, enquanto na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da atividade.
A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho decorre precisamente daquele poder de direção que a lei confere à entidade empregadora (artigo 150.º) a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador [artigo 121.º, n.os 1, alínea d), e 2]” (Ac. do STJ de 4/02/2015, Proc.º 437/11.0TTOAZ, in www.dgsi.pt).
A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem.
Daí que desde sempre se venha entendendo que para que se conclua por uma situação de subordinação jurídica, o empregador deve ter efetivo poder determinativo da função, poder conformativo da prestação e poder na elaboração de horário de trabalho8.
É sabida a dificuldade existente na concretização desta figura. Daí que, quer a Doutrina, quer a Jurisprudência venham apelando ao recurso a indícios reveladores da existência de subordinação jurídica, que é o elemento por excelência caracterizador do contrato de trabalho.
Tais indícios prendem-se com a existência de horário de trabalho, a prestação da atividade em local previamente definido pelo empregador, a existência de controlo no exercício da atividade, a utilização de bens do beneficiário da atividade, a sujeição a poder disciplinar, a modalidade de retribuição, a atribuição de categoria profissional, o não recurso, pelo executante, a colaboradores externos, a repartição do risco, ou mesmo a observância de um ou outro regime fiscal e de segurança social, enfim, impõe-se que recorramos a elementos próprios de uma organização laboral. Há, ainda, indícios externos ao próprio contrato que podem elucidar, como por exemplo, a prestação da mesma atividade para outrem.
Não é, contudo, imperativo que todos os indícios se verifiquem em cada caso, assumindo cada um deles valor relativo, devendo fazer-se um juízo de globalidade em relação à situação concreta evidenciada no acervo fático. Imperativo é, porém, que dos indícios presentes se possa, sem dúvidas razoáveis, concluir pela existência de contrato de trabalho por estar presente a característica que o define, a saber, a subordinação jurídica.
E, como bem nota Pedro Romano Martinez, “os tradicionais indícios desatualizaram-se com a evolução tecnológica, com diferentes modos de organização do trabalho”9.
Não despicienda é também a reflexão de Maria do Rosário Palma Ramalho que ensina que “o reconhecimento tradicional do poder diretivo como critério qualificativo por excelência do contrato de trabalho, enquanto reverso da subordinação do trabalhador merece ser reponderado, porque corresponde a uma visão excessivamente estreita da própria subordinação e porque o poder de direção é pouco saliente como marca distintiva do contrato de trabalho”10. Propõe, por isso, uma visão integrada dos dois poderes laborais como critério decisivo para a qualificação do contrato: o poder diretivo e o poder disciplinar, porquanto o vigor daquele é assegurado pela existência deste.
O poder disciplinar, contudo, estando pressuposto sempre que exista contrato de trabalho, nem sempre é visível, palpável, pressupondo apenas a hipótese de ver sancionada uma determinada conduta.
A tudo acresce a especificidade do trabalho em plataforma digital.
Na verdade, “hoje, através da gestão algorítmica de uma multidão de prestadores de atividade disponíveis para trabalhar (daí o termo crowdwork), estas empresas conseguem desenvolver o seu negócio e usufruir da respetiva mão-de-obra sem necessidade de recorrer a esses institutos tradicionais do Direito do Trabalho, provindos da era industrial11”. Sinalizando-se que, em conformidade com o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, “a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”.
Cumprirá, então, definir o que é subordinação jurídica neste contexto, parecendo-nos que a mesma se contrapõe à efetiva autonomia reportada no Artº 12ºA/412, podendo, em presença de trabalho em plataformas digitais, variar os índices que a permitem aferir.
Não deixa de ser curioso que nos vários textos publicados a propósito até das decisões proferidas pelos tribunais superiores nacionais e estrangeiros ainda não tivéssemos encontrado uma noção de subordinação jurídica para a era digital.
Independentemente desta era, já há muito que os autores vêm afirmando que “a subordinação jurídica é uma noção de geometria variável, comportando uma extensa escala gradativa13”. Desse modo, o peso dos tradicionais indícios não será agora o mesmo, o que se admite dadas as novas possibilidades de execução de contrato de trabalho, nomeadamente em teletrabalho ou mediante isenção de horário. O CT terá mesmo evoluído no sentido da valorização da inserção numa organização em detrimento da precedente noção acoplada ao poder diretivo. É assim que no Artº 11º se define contrato de trabalho como aquele em que uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra no âmbito de organização e sob autoridade desta. E assim será a inserção numa organização alheia, com submissão à respetiva autoridade, o elemento distintivo14.
Recentemente o STJ afirmou que a inserção estável e duradoura na organização da contraparte contratual, a exclusividade, a utilização de meios de produção disponibilizados pela contraparte, as instruções concretas para o exercício das funções são indícios que, avaliados no seu conjunto, levam à conclusão da existência de uma relação de trabalho subordinado (Ac. de 25/09/2024, Proc.º 12510/19.1T8SNT).
E a RG proclamou que no que respeita à relação entre estafeta e plataforma, o conceito de “subordinação” deve ser visto à luz da nova realidade, sendo de relevar a inserção do estafeta na estrutura económica da ré, na organização produtiva encarnada pela plataforma, e a inexistência de uma estrutura organizada por parte do estafeta e a sua dependência dessa organização, quer quanto ao trabalho, quer económica (Ac. de 17/10/2024, Proc.º 2793/23.8T8VRL.G1).
Tendo por base estes novos parâmetros, revelarão os autos fortes indícios de subordinação jurídica?
A resposta é negativa.
É inegável que a principal ferramenta para o exercício da atividade – o software – é indispensável a tal exercício. E é também uma especificidade desta atividade, pelo que a sua gestão desacompanhada de prova da efetiva quebra de autonomia não deve assumir importância preponderante.
Claro que dos autos emerge a vinculação do prestador a uma determinada plataforma que, como não poderá deixar de ser comporta regras próprias para o efeito. À semelhança, aliás, do que ocorrerá em qualquer empresa tradicional com a qual se contrate, seja em regime de prestação de serviços, seja de contrato de trabalho.
Também não podemos deixar de reconhecer algum nível de inserção numa certa organização. Desde logo a vinculação mediante registo prévio a uma certa plataforma digital (ponto 13), acedendo o prestador a uma prestação de serviço intermediada por essa mesma plataforma (ponto 7), associando-se à respetiva conta o meio de transporte em que este se desloca (ponto 10), com adesão aos termos do contrato de parceiro de entregas (ponto 10) e mediante preços definidos por aquela (ponto 18) e usando um sistema de geolocalização que é o da plataforma (ponto 29, 30), o que permite à UBER aceder à localização do dispositivo do prestador (ponto 50).
O que, do nosso ponto de vista, falha em absoluto é a prova da submissão à autoridade da organização. Senão vejamos!
A factualidade apurada revela o exercício de uma atividade remunerada que pressupõe o uso de instrumentos próprios do prestador (ponto 14), prestador que livremente decide o local e o melhor percurso (ponto 15, 33), o horário onde presta atividade (ponto 35, 36, 37, 41) e a quem presta (ponto 16, 17, 38), bem como o momento do cumprimento da obrigação retributiva (ponto 24). Esta obrigação está conexa com o resultado e não com a atividade (ponto 26), não sendo impostos sinais exteriores de pertença a alguma organização (ponto 28). Acresce a possibilidade de contratar com terceiros, incluindo concorrentes, e inerente não sujeição a exclusividade relacional (ponto 58) e, bem assim, a inexistência de controle acerca do desempenho (ponto 60).
Dir-se-á que o algoritmo exerce tal controle e que os tradicionais indícios como sejam a ausência de dever de assiduidade ou não concorrência, e mesmo a circunstância de não se estar vinculado a um horário de trabalho não constitui obstáculo à presença de subordinação jurídica. Porém, isso não ficou demonstrado no caso concreto e, logo, não pode pressupor-se.
Não fundamenta qualquer quebra de autonomia no exercício da atividade a circunstância de haver regras instituídas para a partilha de contas (ponto 44, 45) ou para restringir o acesso (ponto 47, 48). Isso apenas significa que cabe ao proprietário da plataforma a sua gestão. E nem mesmo impressiona a circunstância de a substituição do prestador por terceiros não ser inteiramente livre (ponto 56, 57), pois só o deixa de ser após aceitação da entrega por parte do estafeta.
A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)". Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores.
A fixação de uma retribuição do trabalho constitui fator relevante, sendo de ponderar, como reforço a favor do Apelante, que a fixação de preços por parte do prestador não é negociada. Por outro lado, na relação que se estabelece com os parceiros de negócio o estafeta não tem qualquer intervenção, tendo cada serviço o seu valor definido, valor que este pode ou não aceitar. Circunstâncias das quais emerge a falta de autonomia negocial do prestador, mas que, de algum modo é atenuada pelo facto de na Plataforma, os prestadores de atividade disporem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma.
Relativamente ao modo de cumprimento da retribuição, provou-se que os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente.
Por outro lado, o estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo. Ou seja, beneficia de liberdade na sua disponibilização para trabalhar.
A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões, assim como quanto ao estado de conservação e limpeza. Porém, o estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal.
Os factos revelam ainda que, não obstante a ferramenta de geolocalização, esta não cumpre alguma finalidade de controle. Antes se destina a permitir o funcionamento da aplicação de modo a permitir ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes. Trata-se, pois, de algo inerente à especificidade do modo de exercício da atividade laboral, permitindo também aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe.
De salientar, a este propósito, que se provou que o sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado e se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha.
Ou seja, daqui não emerge nada que abale a autonomia do trabalhador, antes estes são factos reveladores do modo específico de exercício da atividade.
Acresce que, conforme provado, o Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar. O estafeta é livre para escolher o seu horário, para decidir quando se liga e desliga da Plataforma durante quanto tempo permanece ligado. Com o que não está sujeito a períodos normais de trabalho ou horários previamente estabelecidos.
Tem, é claro, liberdade para rejeitar e aceitar as ofertas de entrega que entender, assim definindo, ele próprio, o resultado do seu trabalho. Na verdade, também conforme emerge da factualidade supra exposta, o Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si, continuando ativa a sua conta.
Não desprezível é ainda a matéria que enforma os pontos 39 e 40, a saber, a impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega.
Esta matéria tem, como parece óbvio, consequências ao nível dos resultados para a R..
Enfim, tudo ponderado não vemos no conjunto de factos cuja prova se obteve indícios de contrato de trabalho, não obstante se admitir a inserção numa certa organização, porém sem que os autos evidenciem o exercício de poderes de autoridade conformes à disciplina laboral (Artº 11º do CT).
Improcede, assim, a apelação.
<>
Dada a isenção do Apelante (Artº 4º/1-a) do RCP), não são devidas custas.
*
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Notifique.
Lisboa, 15/01/2025
MANUELA FIALHO
EUGÉNIA GUERRA
MARIA JOSÉ COSTA PINTO
_______________________________________________________
1. Da mesma RG, mas em sentido contrário, o Ac. da mesma data, 2824/23.1T8VRL↩︎
2. João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, PLATAFORMAS DIGITAIS, QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO E SUBSTITUIÇÃO DE ESTAFETAS: A “BALA DE PRATA”?, RIDT, Ano IV, Junho 2024, Nº 6, 137↩︎
3. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. I, Almedina, 435↩︎
4. Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Almedina, 51↩︎
5. José Lebre de Freitas, ob. cit., 434↩︎
6. Que não se confunde com o local de trabalho reportado na alínea a)↩︎
7. Ponderou-se no Ac. da RG de 17-10-2024, Proc.º 2821/23. 7T8VRL.G1, “… a App administrada pela ré, enquanto plataforma digital que gere os serviços de entrega que AA assegura, não pode ser incluída nos “equipamentos ou instrumentos de trabalho” que se procura determinar se pertencem à beneficiária da atividade de prestação de serviços de entrega, porquanto:
- uma plataforma digital não pode “pertencer” à ré, pois esse verbo reconduz-nos a uma ideia de propriedade, e o direito de propriedade só pode ser constituído relativamente a coisas corpóreas (cf. artigo 1302.º, n.º 1, do Código Civil), entre as quais não se conta uma plataforma digital/app;
- os vocábulos “equipamentos ou instrumentos de trabalho” traduzem uma ideia de materialidade, de utensílio ou aparelho empregado na execução de qualquer trabalho, um bem físico, sendo que uma plataforma digital de “per si” constitui uma criação do espírito humano e não uma coisa com existência física, à semelhança, por exemplo, do sistema de G.P.S., de que o estafeta poderá utilizar para se orientar durante uma entrega;
- o proémio do artigo 12.º-A, n.º 1, do C.T., faz corresponder, ainda que de forma imprópria, o empregador à “plataforma digital”, pois a entidade patronal será sempre a pessoa singular ou coletiva que gere a plataforma digital (cf. artigo 12.º-A, n.º 2, do C.T.), enquanto sujeito detentor de personalidade e capacidade jurídicas; mas se assim é, a App, que mais não é do que uma plataforma digital, não pode ser considerada instrumento ou equipamento pertencente a uma plataforma digital que o estafeta utiliza na sua atividade (cf. artigo 12.º-A, n.º 1, al. f), do C.T.)”.
Este entendimento foi sufragado pelo Ac. da RE de 5/12/2024, supra mencionado.↩︎
8. Neste sentido o Parecer publicado na R.D.E.S. – Ano XXIX, n.º 1 – Jan./Mar. de 1987, págs. 57 a 8, da autoria de Fernando Ribeiro Lopes↩︎
9. Direito do Trabalho, Almedina, 5ª Ed., 336↩︎
10. Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6ª Ed., Almedina,56↩︎
11. João Leal Amado, Teresa Coelho Moreira, As plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótula sobre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024 https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/10/08/as-plataformas-digitais-a-presuncao/↩︎
12. Que se cita apenas como referência de que mesmo nas situações de aplicabilidade da presunção dele emergente há um contraponto traduzido na autonomia no exercício da prestação↩︎
13. João Leal Amado, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 69↩︎
14. Neste sentido, António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 18.ª ed., Almedina, 133-134↩︎