OFENSA A PESSOA COLETIVA
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO
TAXA DE JUSTIÇA
Sumário

1. A imposição de um prazo limitado para a constituição de assistente no caso de procedimento por crimes particulares encontra justificação na necessidade de não condicionar o andamento do processo, uma vez que em crimes dessa natureza a constituição do denunciante como assistente, tal como a queixa e a acusação particular, constitui uma condição de procedibilidade, sem a qual o Ministério Público não tem legitimidade para prosseguir com a ação penal.
2. Contudo, nada obsta a que, em momento anterior ao início desse prazo, cujo cômputo só se inicia após a referida advertência, o denunciante requeira a sua constituição como assistente, já que pode fazê-lo em qualquer momento do processo, apenas com as limitações previstas no n.º 3 do art. 68.º do CPP.
3. Não tendo juntado, quando formulou o requerimento, o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, deveria a requerente ter sido notificada para o juntar no prazo de dez dias e, não o fazendo, deveria ter sido notificada para proceder à sua apresentação, no prazo de dez dias, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante, ficando sem efeito o requerimento apresentado em caso de não pagamento.
4- Pelo que se terá de considerar tempestiva a apresentação posterior do comprovativo de tal pagamento.

Texto Integral

Relator: Cristina Pêgo Branco
Adjuntos: Ana Carolina Cardoso
Maria Alexandra Guiné



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Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de Inquérito que com o n.º 191/23.... corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Instrução Criminal de Viseu - Juiz 1, a participante “A... Unipessoal, Lda.”, não se conformando com o despacho que indeferiu a por si requerida constituição como assistente, veio dele interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Por Douto Despacho de 08.05.2024, com a referência 95391247, da Meritíssima Juiz de Instrução, foi indeferida a constituição de assistente da ora recorrente com fundamento exclusivo na sua extemporaneidade atenta a natureza dos crimes denunciados; Ora,
2. Não pode a recorrente conformar-se com tal decisão que, na sua modesta opinião, viola as próprias normas (art.º 68º nº 2 e 246º nº 4, ambas do CPP) e Acórdão de fixação de Jurisprudência (1/2011) que a fundamentaram; porquanto
3. A recorrente requereu imediata e expressamente a sua constituição de assistente na denúncia de 18.01.2023 que originou a instauração do procedimento de inquérito criminal;
4. Não se tendo, assim, limitado apenas a declarar que o pretenderia fazer mas antes praticando desde logo tal acto previsto na Lei, no art.º 68º nº 2 do CPP;
5. Pelo que a autoridade judiciária já se encontrava desonerada de efectuar a notificação do art.º 246º nº4 por a mesma não se justificar, sendo um acto inútil e inócuo, por não fazer sentido estar a advertir um sujeito processual para a prática dum acto que o mesmo já praticou.
6. Notificação, aliás, essa, de natureza pessoal, que efectivamente nunca foi feita nem à própria nem ao seu mandatário;
7. Aliás, a recorrente, cuja participação havia sido efectuada apenas contra incertos por falta de indícios bastantes, apenas com a notificação do despacho de 01.02.2024 teve acesso aos autos e consequente conhecimento da prova indiciária ali já adquirida;
8. E só então pôde conhecer a total amplitude da actividade criminosa denunciada e de quem haviam sido os seus autores;
9. Pelo que, e apenas nesta data, começou a correr o prazo de prescrição do seu direito de queixa, nos termos dos art.º 115º nº 1 e 4 do CPP;
10. E, bem assim, a necessidade de cumprir a sua obrigação tributária de comprovar o pagamento da taxa de justiça devida pelo acto;
11. E em tempo para o fazer – até porque nunca antes notificada para o efeito, nos termos do art.º 519º do CPP e art.º 8º do RCP;
12. Sendo que também nunca foi dado cumprimento – se caso disso fosse – à notificação prevista no nº 4º do citado art.º 8º do RCP;
13. Estando em causa apenas a questão tributária (o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida), uma vez que o requerimento de constituição de assistente se encontrar previamente feito, é, pois, legítima e tempestiva a apresentação do comprovativo do pagamento feito em 16.02.2024, nunca havendo lugar também – por mera hipótese – à aplicação do preceituado no nº 5 do citado art.º 8º do RCP; Outrossim,
14. A jurisprudência do AFJ invocada não é também aplicável ao presente caso, porquanto versa sobre a natureza (peremptória) do prazo decorrente da advertência efectuada nos termos do art.º 246º nº 4 do C.P.P., nada definindo quanto aos casos em que a mesma não se aplique ou não tenha tido lugar, nada fixando também quanto às consequências processuais tributárias relativas ao não pagamento ou pagamento intempestivo da taxa de justiça inerente ao acto de constituição de assistente.
15. Como já acima referido, não é este o caso dos autos em que, ab initio, a recorrente desde logo requereu expressamente a sua constituição de assistente nos autos, tendo já praticado o acto muito antes de qualquer notificação para o referido efeito.
16. Acrescendo ainda que, por a mesma não haver sido pessoalmente efectuada e notificada ao sujeito processual – o que se impõe pelos fins teleológicos da mesma e a importância e consequências potenciais daí derivadas – não poder produzir quaisquer efeitos quanto à sua pessoa.
17. Não bastando que a mesma, para produzir quaisquer efeitos, o fosse na pessoa do seu Advogado, o qual foi notificado apenas na qualidade de mandatário de outro sujeito processual.
18. O que, mesmo a ter acontecido, e não aconteceu, seria um acto redundante e inútil, porquanto, como já visto, a recorrente já havia antecipadamente praticado o acto para o qual iria ser notificado.
19. Assim, não pode concluir-se de forma alguma  a recorrente incursa na previsão do citado aresto de uniformização de jurisprudência, e, em consequência, ser pelo mesmo negativamente afectada, já que o mesmo não pode aqui ser aplicado. Por fim, e ainda que não constando do douto despacho recorrido,
20. A ratio legis subjacente à exigência legal da previsão constante do nº4 do art.º 246º do CPP é a de assegurar a legitimidade processual do Ministério Público para prosseguir com o inquérito, no caso dos crimes particulares, desenvolvendo as diligências necessárias à angariação de prova indiciária em vista, em termos de normalidade, à dedução de posterior acusação;
21. No caso concreto, em que existe uma multiplicidade de queixosos e vítimas, das quais algumas se constituíram imediatamente (e como tal foram admitidas) assistentes, em que foram investigados factos plúrimos, mas em grande parte os mesmos e exactos factos, os quais permitiram a indiciação dos mesmos e concretos suspeitos, que vieram a ser constituídos arguidos, tendo essa constituição validada, o Ministério Público sempre esteve legitimado para prosseguir e instruir o inquérito, como, aliás, continua a fazer;
22. Nunca se tendo assim verificado qualquer período ou situação em que o mesmo não estivesse em condições legais e/ou processuais de poder iniciar ou prosseguir a sua função normal no inquérito em causa.
23. E que a ora recorrente sempre teria legitimidade para aproveitar, uma vez comprovado o pagamento (voluntário, tempestivo, por iniciativa própria e antes de qualquer notificação para o efeito) da respectiva taxa de justiça, assim cumprindo todas as suas obrigações legais; Pelo que,
24. Tendo o douto despacho recorrido violado, pelo menos, os art.º 68º nº 2, 246º nº 4, 115º nº 1 e 4, 519º, todos do CPP, e art.º 8 do RCP;
25. Deve o mesmo ser substituído por outro que admita, por legal, regular e tempestiva, a ora recorrente a intervir nos autos como Assistente.
Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.cias, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-o provado e procedente, e, em consequência, ser revogado o douto Despacho recorrida e substituído por outro que admita a recorrente a intervir nos autos na qualidade de Assistente, nos precisos termos supra requeridos, assim se fazendo a sã, serena e costumada JUSTIÇA!»

2. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta na qual pugnou pela sua improcedência, concluindo (transcrição):
«I. Recorre a entidade «A... Unipessoal, lda.» pelo facto da sua constituição de assistente, cuja data de exercício efectivo desse direito coloca em crise, ter sido indeferida pela Mmª Juiza de Instrução.
II. Considera o Ministério Público que o despacho proferido pela Mm.ª Juiz de Instrução que indeferiu a requerida constituição de assistente da recorrente, não é passível de qualquer censura e não viola qualquer disposição legal.
III. Alegam a recorrente que o seu pedido de constituição de assistente relativamente à pessoa colectiva queixosa é tempestivo.
IV. O Ministério Público entende que a recorrente foi regularmente advertida para o cumprimento do disposto no art. 246.º n.4 do Código de Processo penal e com o presente recurso mais não visa do que sanar as consequências da sua inação legal relativamente a um prazo precludido.
V. E assim, confirmando a legalidade e regularidade da posição assumida pelo Ministério Publico, conformada pela Mma. Juiz de Instrução e indeferindo a pretensão da recorrente, se fará… Justiça!»

3. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11596430), no qual refere (transcrição):

«1. Compulsados:

a) o despacho recorrido datado de 8.5.2024;
b) os fundamentos do recurso apresentado pela “A..., Unipessoal Ldª.” ;
c) os elementos constantes da certidão que instrói o presente apenso de recurso;
somos de parecer que o mesmo deverá ser julgado procedente, aderindo-se genericamente ao alegado pela recorrente.
2. Brevitatis causa, dir-se-á, em reforço do alegado, o seguinte:
a) Logo na denúncia inicial, apresentada a 18.1.2023 (fls. 45 da referida certidão), ficou bem claro, sem quaisquer margem para dúvidas, o requerimento da ofendida, agora recorrente, no sentido de ser admitida como assistente;
b) Não se tratou de uma vaga manifestação de um desejo futuro; tratou-se mesmo de um pedido expresso ao Tribunal, pelo que, e salvo o devido respeito, o posterior cumprimento do disposto no artº. 246º nº 4 do CPP não fez (grande) sentido, bem como a também posterior contagem de um prazo de 10 dias (artº. 68º nº 2 do CPP) para apresentação de um requerimento que já constava dos autos;
c) Do que decorre dessa certidão, é que esse requerimento inicial de constituição como assistente não mereceu qualquer tramitação ou decisão por parte do Ministério Público, do Juiz de Instrução Criminal ou da secção de processos, designadamente quanto ao cumprimento do disposto no artº. 8º nºs. 4 e 5 do RCP1, nem do disposto no artº. 68º nº 4 e 268º nº 1 f) do CPP, não podendo o interessado ser agora “responsabilizado” por falta de pronúncia de quem de direito e em momento oportuno;
d) A “economia” do douto acórdão de FJ do STJ nº 1/2011 não tem, manifestamente, aplicação a um caso como o dos autos, em que o requerimento de constituição como assistente foi feito logo ab initio, aquando da apresentação da denúncia pela recorrente.
Cremos que a posição ora defendida é aquela que assegura o acesso ao direito que a CRP visa garantir, sendo também a mais adequada a um processo justo e equitativo, imposto por essa Lei fundamental e por diversos instrumentos de direito internacional de que Portugal é subscritor.

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P. que seja dado cumprimento ao disposto no artº. 417.º nº 2 do CPP

4. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, e efectuada a notificação do arguido prevista no art. 411.º, n.º 6, do CPP, omitida na 1.ª instância, não foi oferecida resposta ao douto parecer.

5. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

In casu, de acordo com essas conclusões, a única questão suscitada é a de saber se o requerimento para constituição de assistente apresentado pela participante “A... Unipessoal, Lda.” é ou não extemporâneo.


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2. Da decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«Nos presentes autos veio a ofendida A..., participar factos suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelos artº. 187º do C.Penal.
Tal crime tem natureza particular (artigo 188 do CP).
Assim, deveria a mesma requerer a sua constituição de assistente no prazo de dez dias a contar da notificação que lhe foi efetuada por carta regista em 28/4/2023, como resulta de fls. 1 e 45, , e isto de acordo com o estipulado no artigo 68º, nº2, do C.P.P.
Acontece que só em 16 de fevereiro de 2024 é que a queixosa veio requerer a sua constituição como assistente (cfr. fls. 213 e 214), muito depois de decorridos os dez dias a que alude o artigo 68, nº2 do CPP.
É certo que estipula o artº 24º, nº 4 da Lei do Apoio Judiciário ( Lei nº 34/2004 de 29.07 ): “
Tal prazo, como resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2011, de fixação de jurisprudência publicado no DR. 1ª série de 26.01.2011 é perentório, estabelecendo o mencionado artigo se estabelece que: “ Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal”.
Tal como se escreveu no ac. do TRP de 15-10-2008, CJ, 2008, T4, pág.220:
“I. Tratando-se de crime particular, como é o crime de injúrias, o denunciante tem de declarar, na própria denúncia, que quer constituir-se assistente. II. Se a denúncia for feita verbalmente e o denunciante declarar que quer constituir-se assistente, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal, que a receber, deve adverti-lo da obrigatoriedade da constituição como assistente e da necessidade de apresentar o respectivo requerimento no prazo de 10 dias a contar dessa data. III. Tal prazo é peremptório, pelo que, decorrido ele, fica precludido o direito do ofendido se constituir assistente nesse processo pelos factos que aí denunciou”.
Ora, é nosso entendimento que do mencionado acórdão de fixação de jurisprudência é inequívoco que foi considerado o prazo do artigo 68.º, n.º 2, do CPP, como prazo perentório.
Na situação, concreta, resulta manifesto que o pedido de constituição de assistente é extemporâneo, por ter sido formulado depois do prazo do artigo 68, nº2, sendo que a queixa não indicia a prática de quaisquer factos que possam integrar qualquer crime que não seja de natureza particular.
Pelo exposto, e pela circunstância do pedido ser extemporâneo não se admite a A..., a intervir nos autos como assistente.»


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3. Da análise dos fundamentos do recurso

Conforme acima referimos, a única questão que nos autos se coloca é a de saber se o requerimento para constituição de assistente apresentado pela participante “A... Unipessoal, Lda.” é ou não extemporâneo.

A decisão recorrida não admitiu essa sociedade, ora recorrente, a intervir como assistente nos autos com fundamento na extemporaneidade do respectivo requerimento, por considerar que, estando em causa o procedimento por crimes particulares, o mesmo foi apresentado para além do prazo previsto no art. 68.º, n.º 2, do CPP, prazo esse de natureza peremptória.

Contrapõe a recorrente, em síntese, que, na participação que apresentou, em 18-01-2023, requereu expressamente a constituição imediata dos participantes como assistentes, que apenas o seu coparticipante foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 246.º, n.º 4, do CPP, e só na pessoa do seu mandatário, nenhum dos participantes tendo sido pessoalmente notificados, não tendo também a recorrente sido notificada para juntar aos autos o comprovativo do pagamento da taxa de justiça decorrente do pedido já formulado na participação inicial.

Acrescenta que com data de 01-02-2024 foi o mandatário constituído confrontado com um despacho do MP que, não encerrando o inquérito, determinava o cumprimento do art. 285.º, n.ºs 1 e 2, aos assistentes já reconhecidos nos autos da dedução das acusações quanto aos crimes particulares denunciados nos autos, no prazo de dez dias, excluindo a aqui recorrente dessa qualidade, pelo que, sem prejuízo da reclamação hierárquica que formulou, só então a recorrente teve conhecimento dos elementos indiciários constantes dos autos e haja entendido a necessidade de comprovar o pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, deduzindo ainda a sua acusação particular e pedido de indemnização civil, em 16-02-2024, independentemente das notificações que não lhe foram (e deveriam ter sido) efectuadas, sendo surpreendida com a prolação do despacho ora recorrido.

Que o que está em causa no art. 68.º, n.º 2, do CPP é a apresentação de requerimento de constituição de assistente, só se suscitando a questão do cumprimento do prazo previsto no art. 246.º, n.º 4, do mesmo diploma se na denúncia, sendo escrita, o denunciante se limitar à declaração da intenção de se constituir assistente ou se essa denúncia for apresentada verbalmente perante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, e não no caso dos autos, em que a recorrente, na denúncia inicial escrita expressamente requereu a imediatamente a sua constituição como assistente.

E que a jurisprudência fixada pelo AJ n.º 1/2011, que apenas versa sobre a natureza peremptória do prazo decorrente da advertência prevista no art. 246.º, n.º 4, do CPP, não tem aplicação à situação dos autos, em que a recorrente já havia praticado o acto muito antes de qualquer notificação para o efeito, sendo que essa “advertência” nem sequer pode produzir efeitos relativamente a si, por ter sido efectuada apenas na pessoa do seu mandatário e tão-só na qualidade de mandatário de outro sujeito processual.

Conclui que, estando em causa apenas a questão da junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça, uma vez que o requerimento já se encontrava previamente efectuado, é legítima e tempestiva a apresentação do comprovativo do pagamento feito em 16-02-2024, nunca havendo lugar à aplicação do preceituado no n.º 5 do art. 8.º do RCP, uma vez que nunca foi dado cumprimento ao n.º 3 do mesmo preceito.

Vejamos, antes de mais, o que resulta dos autos.

- Em 18-01-2023, AA apresentou no DIAP da comarca de Viseu participação criminal, subscrita por mandatário judicial, por si e em representação da sociedade “A... Unipessoal, Lda”, contra incertos, mas indicando como suspeitos AA, BB e CC; (fls. 33-49 da certidão);

- Nessa participação referia-se, para além do mais:

«Todos os factos supra relatados constituem crime, e, pelo menos, designadamente, Difamação (art.º 180º CP) com Publicidade e Calúnia (Art.º183º CP) (…).

Por tudo o exposto vem requerer a instauração do competente inquérito para apuramento da responsabilidade criminal, por estes motivos, determinando-se as diligências necessárias, mais requerendo, atenta a natureza dos crimes denunciados, e se encontrarem os mesmos em concurso real, a sua constituição como assistente. (…)»;

- Em 23-01-2023 a Magistrada do Ministério Público proferiu despacho determinando, designadamente, a notificação do «denunciante e sociedade denunciante nos termos e para os efeitos do art, 246.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.» (fls. 51 da certidão);

- Em 28-04-2023, foi remetida ao Ilustre mandatário dos mencionados participantes, notificação nos seguintes termos:

«Fica V. Exª notificado, na qualidade de Mandatário do Participante AA, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De todo o conteúdo do douto despacho proferido, no âmbito do inquérito acima indicado, cuja cópia se junta. (…)» (fls. 53 da certidão);

- Por requerimento entrado nos Serviços do MP/DIAP ... em 09-05-2023, o participante AA veio requerer «a junção aos autos do comprovativo do pagamento da taxa de justiça para efeitos de constituição de Assistente nos autos» (fls. 57 da certidão);

- E por requerimento entrado nesses Serviços em 16-02-2024, a participante “A... Unipessoal, Lda. “ veio «requerer a sua constituição como Assistente nos mesmos, juntando desde já aos mesmos o comprovativo do respectivo pagamento da taxa de justiça devida para esse efeito.» (fls. 58-63 da certidão);

- Em despacho de 26-02-2024, o Ministério Público determinou a remessa dos autos ao JIC, para os efeitos do disposto no art. 68.º, n.º 4, do CPP, promovendo «o indeferimento do requerimento de constituição como assistente apresentado pela sociedade A... Unipessoal, Lda., por ser extemporâneo, face à notificação efetuada a fls. 45 na pessoa do seu mandatário, em que foi igualmente remetida cópia do despacho de fls. 16» (fls. 65 da certidão);

- Na sequência, foi proferido o despacho recorrido, já acima transcrito.

Sendo estas as incidências processuais relevantes, analisemos o mérito do recurso.

Estabelece o art. 68.º do CPP, na parte que ora importa:

«1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: (…)

2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º

3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:

a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;

b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos.

c) No prazo para interposição de recurso da sentença. (…)»

Por sua vez, o art. 246.º, n.º 4, do CPP, dispõe que «o denunciante pode declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente. Tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar.»

Como se lê no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2011[1], «o prazo fixado no nº 2 do artigo 68º está indissociavelmente ligado à norma do nº 4 do artigo 246º, pois é com o devido e cabal cumprimento do dever de informação e advertência do denunciante, por crime cujo procedimento depende de acusação particular, que se inicia o prazo fixado na lei para que o denunciante requeira a sua constituição como assistente».

A imposição de um prazo limitado para a constituição de assistente no caso de procedimento por crimes particulares encontra justificação na necessidade de não condicionar o andamento do processo, uma vez que em crimes dessa natureza a constituição do denunciante como assistente, tal como a queixa e a acusação particular, constitui uma condição de procedibilidade, sem a qual o Ministério Público não tem legitimidade para prosseguir com a acção penal (art. 50.º, n.º 1, do CPP).

Contudo, nada obsta a que, em momento anterior ao início desse prazo, cujo cômputo só se inicia após a referida advertência, o denunciante requeira a sua constituição como assistente, já que pode fazê-lo em qualquer momento do processo, apenas com as limitações previstas no n.º 3 do art. 68.º do CPP.

No caso vertente, e como bem observa o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, logo na participação inicial ficou bem claro o requerimento da agora recorrente, “A... Unipessoal, Lda.”, no sentido de ser admitida como assistente nos autos.

Não uma «vaga manifestação de um desejo futuro» ou uma declaração de intenção, mas um pedido expresso, pelo que não colhe sentido a posterior advertência a que alude o art. 264.º, n.º 4, do CPP e a subsequente contagem do prazo de dez dias previsto no art. 68.º, n.º 2, do CPP para apresentação de um requerimento que já constava dos autos.

Mostrando-se a requerente devidamente representada à data da formulação de tal requerimento (cf. art. 70.º, n.º 1, do CPP), mas não tendo apresentado comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, em conformidade com o disposto no art. 8.º, n.ºs 1 e 3, do RCP[2], deveria ter sido desde logo notificada para o juntar no prazo de dez dias, e, não o fazendo, deveria ter sido notificada para proceder à sua apresentação, no prazo de dez dias, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante, ficando sem efeito o requerimento apresentado em caso de não pagamento (cf. n.ºs 3, 4 e 5 do mencionado preceito).

Toda esta tramitação foi omitida, por ter sido absolutamente desconsiderado o requerimento desde logo formulado, em 18-01-2023, circunstância que, não sendo imputável à ora recorrente, não pode redundar em seu prejuízo.

Não poderá, por isso, deixar de considerar-se que, na ausência de qualquer das notificações previstas nos n.ºs 3 e 4 do art. 8.º do RCP, é também tempestiva a apresentação, em 16-02-2024, do comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, esta atempadamente requerida, logo aquando da participação criminal.

É, em suma, manifesto que assiste razão à recorrente, não podendo subsistir o despacho recorrido que indeferiu a por si requerida constituição como assistente com fundamento na sua extemporaneidade.

Procede, pois, o recurso interposto, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que, não existindo outro fundamento legal para a rejeição do requerido, admita a ora recorrente a intervir como assistente nos presentes autos.


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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso interposto por “A... Unipessoal, Lda.”, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, não existindo outro fundamento legal para a rejeição do requerimento de constituição como assistente, admita a ora recorrente a intervir, nessa qualidade, nos presentes autos.

Sem tributação.


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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelos demais signatários, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

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Coimbra, 08-01-2025


[1] In DR, Série I, n.º 18, de 26-01-2011, e www.stsj.pt.
[2] É do seguinte teor o art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais, na parte que aqui importa: «1 - A taxa de justiça devida pela constituição como assistente é autoliquidada no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, para um valor entre 1 UC e 10 UC, tendo em consideração o desfecho do processo e a concreta actividade processual do assistente.
2 - A taxa de justiça devida pela abertura de instrução requerida pelo assistente é autoliquidada no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz para um valor entre 1 UC e 10 UC, tendo em consideração a utilidade prática da instrução na tramitação global do processo.
3 - O documento comprovativo do pagamento referido nos números anteriores deve ser junto ao processo com a apresentação do requerimento na secretaria ou no prazo de 10 dias a contar da sua formulação no processo, devendo o interessado ser notificado no acto para o efeito.
4 - Na falta de apresentação do documento comprovativo nos termos do número anterior, a secretaria notifica o interessado para proceder à sua apresentação no prazo de 10 dias, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante.
5 - O não pagamento das quantias referidas no número anterior determina que o requerimento para constituição de assistente ou abertura de instrução seja considerado sem efeito.»