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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
FALTA DE FUNDAMENTO DA PRETENSÃO
ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Sumário
I – Quando a prova produzida, considerada na sua globalidade e por referência às regras da experiência comum, não impõe decisão diversa da proferida, não merece acolhimento a impugnação da decisão da matéria de facto. II – Litiga de má fé aquele que visa obter com uma nova ação judicial uma decisão que contrarie decisão proferida anteriormente, não se coibindo de apresentar versões contraditórias entre si e documentos, por si criados, igualmente de teor contraditório.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I - RELATÓRIO
AA, NIF ...87..., e marido BB, NIF ...80..., residentes em ..., intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, NIF ...70..., residente em ..., pedindo, a final:
a) ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios descritos no artigo 1º:
i) “...”, sita no Lugar ... ou ..., da freguesia ..., do concelho ..., com uma área de 10.200 m2, omisso na matriz (inscrito na antiga matriz sob o artigo ...62) e descrito no Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...93.... ..., a confrontar de Norte com CC, Sul com EMP01..., Lda. e outros, nascente com o cemitério paroquial, BB e outros e poente com ... e
ii) “EMP02...”, sito no Lugar ..., da freguesia ..., do concelho ..., com uma área de 10.550 m2, omisso na matriz (anteriormente inscrito sob os artigos ...60, ...61, ...81, ...82, ...83, ...84 e ...59) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...95.... ..., a confrontar de Norte com Herdeiros de DD, Sul ... e caminho, Nascente com EE e Outros e poente com ..., caminho e FF.
b) ser o Réu condenado a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade dos Autores.
Para tanto alegam, em síntese, que os referidos prédios se encontram inscritos a favor dos Autores, por via de sucessão hereditária dos pais e tio da Autora e são donos e legítimos possuidores há mais de 20 anos, sem oposição.
Acrescentam que o Réu pretende proceder à ocupação abusiva suportado na decisão proferida no Processo n.º 3800/15.... que correu termos pelo Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz ... (onde os Autores não são partes), sendo que não é o mesmo prédio, tendo existido um erro de descrição.
Nas diligências de citação do Réu, deu-se conta do seu falecimento prévio à propositura da ação, tendo sido habilitadas as suas herdeiras, GG, HH, II e JJ.
Foi apresentada CONTESTAÇÃO/RECONVENÇÃO concluindo pedindo a condenação dos autores a reconhecer que são donas, sem delimitação de parte ou de direito, em comunhão hereditária do prédio designado “...”, situado no Lugar ... com a área total e descoberta de 41 500m², descrito na CRP sob o n.º ...09 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...00º, a confrontar do nascente com novo cemitério municipal e herdeiros de DD, norte com levada e CC, sul e poente com caminho de servidão; a reconhecer que toda a área de terreno reclamada nos presentes autos, delimitada na planta junta com a P.I., sob o n.º 3, faz parte do prédio descrito na CRP sob o n.º ...09 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o n.º ...00; a absterem-se de praticar quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade das autoras.
Acrescentam que os Autores – que são administradores de várias sociedades, designadamente da Autora no referido processo 3800/15...., EMP01..., LDA. e que pretendem, por esta via, eximir-se ao cumprimento da condenação, criando novas descrições através de declarações falsas no registo. Concluem pedindo a condenação como litigantes de má fé na indemnização de, pelo menos, 8.000 € (oito mil euros).
Em réplica os autores/reconvindos pugnam pela improcedência da reconvenção, uma vez que nunca o Réu exerceu a posse no referido prédio, sendo que não faz sentido o pedido de condenação como litigantes de má fé.
Foi em sede de despacho prévio, atendendo à contestação, determinado o envio de certidão do processo para o Ministério Público, Conservatória e Administração Tributária.
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A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«III. Decisão
Face ao exposto, julgo a presente ação intentada por AA e BB totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo as herdeiras habilitadas do Réu CC do pedido.
Julgo a reconvenção procedente, por provada, e reconhecendo que GG, HH, II e JJ, herdeiras habilitadas do Réu, são donas, sem delimitação de parte ou de direito, em comunhão hereditária do prédio designado “...”, situado no Lugar ... com a área total e descoberta de 41 500m², descrito na CRP sob o n.º ...09 da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...00º, e condeno os Autores a reconhecer que toda a área de terreno reclamada nos presentes autos como prédios registados sob os números ...93/S. ... e .../..., delimitados na planta junta com a P.I., sob o n.º 3, faz parte daquele prédio ...09 da freguesia ... e a absterem-se de praticar quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade das Reconvintes.
Condeno os Autores AA e BB, como litigantes de má-fé, em multa que fixo em 30 (trinta) UC’s e em indemnização a favor das herdeiras habilitadas do Réu CC, que se fixa no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros).
Após trânsito, devolva-se o processo consultado e os originais das Finanças remetidos a título devolutivo.
Custas pelos Autores (artigo 527.º, n.º1 do C.P.C.).
Registe e notifique.
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Inconformados com a sentença, os autores interpuseram recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
(…)
*
Os Recorridos contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
As questões a apreciar no presente recurso são as seguintes:
- Nulidade da sentença;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Mérito da sentença quanto ao reconhecimento do direito de propriedade.
- Litigância de má fé.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados
Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:
1. No processo que com o n.º 3800/15.... correu os seus termos no J..., do Juízo Central de Guimarães, a EMP01..., LDA. alegava ser dona e legítima possuidora do prédio rústico descrito na CRP sob o n.º ...68.... ... e inscrito na matriz sob o artigo ...00 (representado a verde na fotografia aérea junta) e reivindicava de CC, a quem reconhecia ser dono dos prédios descritos na CRP sob os n.ºs ...36.... ..., .../... e .../... (representados a azul) uma faixa de terreno com 2001 m2 (representada a amarelo), situada entre estes prédios da EMP01... e do CC, que afirmava pertencer ao ... n.º 568/19.... ....
2. O Autor é sócio-gerente da EMP01..., Lda. pessoa coletiva n.º ...62 constituída em 2002 e administrador único da sociedade EMP03..., S.A., pessoa coletiva n.º ...64, constituída em 2012, para administração do património familiar dos Autores.
3. No dia 30 de julho de 2015 foi formalizada compra e venda, em que o Autor BB e KK, na qualidade de representantes da EMP01..., Lda., declararam VENDER à chamada EMP03..., S.A., representada pelo administrador BB, vários imóveis, entre os quais, o seguinte: «...: prédio rústico denominado ...; com 41.500 m2, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...00 e descrito sob o n.º ...68...., com a configuração da planta topográfica aí anexa (doc. 27 da contestação).
4. No referido processo, CC contestou o peticionado e atendendo a esta transmissão, deduziu reconvenção pretendendo exercer o direito de preferência, por se tratar de prédios rústicos confinantes.
5. Por sentença transitada em julgado a 14 de fevereiro de 2019 foi a reconvenção julgada procedente e, em consequência, foi reconhecido ao CC o direito de preferência na alienação do prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...68.... ..., ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição a favor da EMP03... e a inscrição a favor do réu.
6. Foi ainda declarado improcedente o pedido de reivindicação, tendo sido decidida quanto à área em disputa de 2.100 m2, “«Da matéria de facto provada na presente acção resulta que a Autora não logrou provar a posse, por período de tempo ininterrupto e mais próximo, de que depende a aquisição por usucapião, sobre a parcela de terreno em litígio. O Réu, pelo contrário, logrou demonstrar que por si e antepossuidores, ininterruptamente, durante mais de 50 anos até inícios de 2015, numa área de pelo menos 7.050m2, definida do lado norte, onde confronta com prédio de LL, por um muro de pedra, do lado sul, onde confronta com o cemitério de ... e com prédios que foram de BB, pelo muro do cemitério e por mouta ou talude que junto da confrontação poente tem cerca de 2,5 metros de altura e vai baixando até desaparecer junto do cemitério, do lado nascente, onde confronta com o prédio denominado “...” e com o prédio inscrito na matriz rústica de ... sob o artigo ...18º, por um muro e por mouta ou talude, e do lado poente, onde confronta com a Rua ... e prédios que foram de BB, por uma mouta ou talude, retirou da “... ou Campo ...” todas as suas utilidades, cuidando-a, executando obras, colhendo todos os seus rendimentos e pagando as respectivas contribuições, sem violência, à vista de toda a gente, na convicção de exercer um direito próprio, sobre coisa exclusivamente sua, com a consciência e convicção de não lesar interesses de terceiros e, até Abril de 2010, sem oposição de quem quer que seja.”
7. Após o trânsito em julgado, no dia 28 de março de 2019, a autora AA apresentou pedido de registo de aquisição a seu favor, por herança aberta por óbito de MM, NN e OO, seguido de registo provisório de aquisição a favor da “EMP03...”, de um prédio declarado como «não descrito» em ...: “Prédio rústico designado por “...”, com a área de 10.200 m2, a confrontar do norte com CC, do Sul com a EMP01..., Lda. e outros, Nascente com cemitério Paroquial, BB e outros e do poente com ...; OMISSO À NOVA E ANTIGA MATRIZ e que deu origem ao prédio com a descrição n.º ...93. ....
8. A 27 de março de 2019 a Autora participa nas Finanças, para efeitos de inscrição na matriz, o prédio “...” com a área de 10.200 m2, com a configuração constante da planta junta folha ref.ª ...22, pedido que foi recusado por despacho proferido a 10/04/2019.
9. A 29 de março de 2019 a Autora participa nas Finanças, para efeitos de inscrição na matriz, o prédio “Campo ...” com a área de 6.200 m2, resultante do artigo rústico ...59 da antiga matriz, com a configuração constante da planta junta folha ref.ª ...93, pedido que foi recusado por despacho proferido a 10/04/2019.
10. No dia 10/04/2019, a autora apresentou pedido de registo de aquisição a seu favor, parte da herança aberta por óbito de MM, NN e OO, seguido de registo provisório de aquisição a favor da “EMP03...”, de um prédio declarado como «não descrito» em ...: “EMP02...”, no lugar de seu nome com a área de 10.550 m2, a confrontar do Norte com herdeiros de DD, do sul com ... e caminho, do nascente com EE e outros e do Poente com ..., caminho e FF. PRÉDIO OMISSO NA MATRIZ ATUAL E ANTERIOR. Faz parte da herança aberta por óbito de MM, NN e OO. Esta apresentação deu origem ao prédio com a descrição n.º ...95.... ....
11. A 29 de março de 2019 a Autora participa nas Finanças, para efeitos de inscrição na matriz, o prédio agora designado “EMP02...” com a área de 4.350 m2, resultantes dos artigos rústicos da antiga matriz: ... leira do tanque com 600 m2, ... leira por baixo do tanque com 90 m2, ... laranjal de cima com 1.000 m2, ... laranjal de baixo com 1.500 m2, ... o pomar com 300 m2, ... quintal da casa com 360 m2, ... leira do moinho com 200 m2 e ... quinta da eira com 300 m2, com a configuração constante da planta junta folha ref.ª ...46, pedido que foi recusado por despacho proferido a 10/04/2019.
12. Os prédios correspondentes a estes artigos matriciais foram penhorados nos autos de execução ordinária n.º 82/93, do extinto Juízo de Competência Especializada Cível, do Tribunal da Comarca de Guimarães e, no âmbito desse processo arrematados e adjudicados a PP, a favor de quem se encontram inscritos na C.R.P, sob o n.º ...44.... ..., descrito como prédio misto com área coberta de 625 m2 e descoberta de 32.500 m2.
13. A 10/04/2019 a Autora participa nas Finanças, para efeitos de inscrição na matriz, o prédio “EMP02...” com a área de 10.550 m2, com a configuração constante da planta junta folha ref.ª ...36, pedido que também mereceu despacho de projeto de indeferimento a 06/08/2019.
14. O propósito das inscrições destas descrições, bem como desta ação é contrariar o direito de preferência exercido no proc. n.º 3800/15...., vindo o Autor declarar factos contrários aos por si antes declarados.
15. As áreas indicadas dos prédios com a descrição n.º ...93. ... e n.º ...95/... contêm-se na área do prédio n.º ...68/..., denominado “...”, o que os Autores conheciam.
16. As habilitadas e antepossuidoras sociedades EMP04..., Lda., EMP01..., Lda. e depois EMP03..., S.A. vêm há mais de 30 anos usufruindo do prédio como proprietários, limpando-o, colhendo os frutos, pagando contribuições, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
17. A herança de CC tem créditos sobre os Autores que não conseguem cobrar, alegando os mesmos, em junho de 2019, que não possuíam bens, além de reformas já penhoradas.
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3.1.2. Factos Não Provados
- os prédios “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...93.... ..., e “EMP02...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...95.... ..., advieram à propriedade da A. mulher por via de sucessão hereditária, por óbito de MM e NN e OO;
- que há mais de 15 e 20 anos que os AA., por si, estão na posse, uso e fruição dos aludidos prédios, neles semeando erva, milho, feijão, centeio e batatas, plantando vinha, podando e sulfatando as vides, colhendo as uvas, apascentando o gado, cortando lenhas e madeiras, retirando dele as demais utilidades;
- que o prédio objeto da preferência é o prédio rústico denominado ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...68/... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...00, foi criado por erro das Finanças, corresponderá ao prédio ali anteriormente descrito em Livro sob o nº ...87 e inscrito na antiga matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...97, ..., que se localiza a norte do prédio do Réu e onde foram em parte edificadas 28 casas de habitação.
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3.2. O Direito
3.2.1. Nulidade da sentença
Os recorrentes vêm arguir a nulidade da sentença, por falta de fundamentação e obscuridade.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no art. 615.º nº 1 do CPC, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (alíneas b) e c)).
O Prof. Castro Mendes2, após a análise dos vícios da sentença conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela3, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis4, que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
Por sua vez, a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes; num caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.5
Todavia, conforme resulta da construção verbal da disposição legal, não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível. Ou seja, quando a decisão e o raciocínio que lhe está subjacente (o silogismo judiciário) não se logra entender, por surgir como enigmático, impenetrável, inacessível”6.
Tendo presente estas noções, a decisão recorrida não enferma dos vícios que lhe são apontados.
Em causa está o facto provado 16, que os recorrentes dizem não saber a que prédio se refere (obscuridade) e por outro lado, da forma como se encontra redigido, o mesmo não podia conduzir à procedência da reconvenção (falta de fundamentação).
Não lhes assiste razão.
Considerou a sentença recorrida não haver dúvidas que os prédios reclamados pelos autores se incluem na área do prédio ...68, sendo afirmado que tais “prédios” são criações de realidades prediais que não têm correspondência com a realidade, engendradas pelos autores junto dos competentes serviços de finanças e conservatórias do registo predial. Portanto, o prédio referido no facto 16 é o prédio ...68. Por outo lado, foi relativamente a esse prédio que os aqui réus/reconvintes viram judicialmente reconhecido o seu direito de preferência em anterior decisão, e daí a procedência do pedido reconvencional.
Donde, a redação do facto 16 é clara e objetiva, assim como clara é a sentença tanto na explicitação dos seus fundamentos como na decisão, visto que nela se especificou o fundamento em que assenta a procedência do pedido reconvencional, resultando das alegações que os recorrentes compreenderam bem os fundamentos da decisão e apenas não concordaram com ela, pelo que não ocorre a obscuridade ou falta de fundamentação invocadas.
Não padece, pois, a sentença de qualquer nulidade.
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3.2.2. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Entendem os recorrentes que houve erro de julgamento quanto aos factos provados constantes dos pontos 14, 15 e 16 e o constante do parágrafo 2 dos factos não provados.
Fundamentam a sua discordância, com essencialidade, nos documentos n.ºs 17 e 18 juntos com a contestação, nos esclarecimentos do Sr. Perito e nos depoimentos das testemunhas QQ, RR e SS.
Ouvidos todos os depoimentos prestados, analisados todos os documentos juntos, apreciado o relatório pericial e os esclarecimentos prestados, ponderando as razões de facto expostas pelos impugnantes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, podemos afirmar com segurança que não assiste razão aos recorrentes.
Vejamos.
Os factos provados em causa têm a seguinte redação:
14. O propósito das inscrições destas descrições, bem como desta ação é contrariar o direito de preferência exercido no proc. n.º 3800/15...., vindo o Autor declarar factos contrários aos por si antes declarados.
15. As áreas indicadas dos prédios com a descrição n.º ...93. ... e n.º ...95/... contêm-se na área do prédio n.º ...68/..., denominado “...”, o que os Autores conheciam.
16. As habilitadas e antepossuidoras sociedades EMP04..., Lda., EMP01..., Lda. e depois EMP03..., S.A. vêm há mais de 30 anos usufruindo do prédio como proprietários, limpando-o, colhendo os frutos, pagando contribuições, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
Por sua vez, é do seguinte teor o parágrafo 2 dos factos não provados:
- que há mais de 15 e 20 anos que os AA., por si, estão na posse, uso e fruição dos aludidos prédios, neles semeando erva, milho, feijão, centeio e batatas, plantando vinha, podando e sulfatando as vides, colhendo as uvas, apascentando o gado, cortando lenhas e madeiras, retirando dele as demais utilidades.
Pretendem os recorrentes com a impugnação da decisão de facto, em primeira linha, ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre dois prédios “...” com a descrição n.º ...93.... e “EMP02...” com a descrição n.º ...95........
Para tal competia-lhes demonstrar a sua aquisição originária.
Invocam a sucessão hereditária e a posse dos prédios há mais de vinte anos.
Do acervo probatório carreado para processo o que resulta é que estes dois prédios não têm existência real, sendo antes o produto de criações derivadas de inscrições matriciais e descrições registais.
Em 1994 os autores venderam à EMP04..., Lda., representada por TT, o prédio misto sito no ..., constituído pelos rústicos Campo ..., ..., ... e ... e ..., correspondentes aos artigos ..., ..., ..., ..., ..., ... a ..., ..., ..., ... a ... e ..., descrito na CRP sob o n.º 236/... (doc. 13 contestação).
Deste 236/..., foi desanexado o 244/...05, que se encontra registado desde 1996 a favor de PP (doc. 10 contestação).
Em 2003 esta EMP05... vendeu à EMP01..., ambas representadas pelo autor, 11 prédios, neles se incluindo já o 568, depois vendido à EMP03....
Não se consegue deslindar o trato sucessivo de terrenos herdados ou adquiridos que possam ter dado origem aos prédios agora registados e aqui reclamados.
Os prédios foram participados à matriz e registados no ano de 2019, tendo sido então declarado os prédios como «não descritos» e «omissos à nova e antiga matriz».
Cremos não restarem dúvidas que esses prédios se incluem na área do prédio ...68, como se concluiu na prova pericial realizada e reafirmada pelos esclarecimentos do sr. perito.
Todas as plantas e documentos são nesse sentido.
E nesse sentido foram as declarações do autor no âmbito do processo n.º 3800/15...., quando de forma clara e sem margem para dúvida indicou a delimitação do prédio ...68.
Advoga, agora, o autor que tal indicação padeceu de erro, não tendo as plantas por si exibidas qualquer rigor. E acrescenta que o facto de o art.º 568 aparecer representado e demarcado, em várias plantas, como consumindo a área dos prédios reivindicados, EMP02... e ..., não implica que estes prédios não existam autonomamente.
Esta versão não tem sustentação já que o referido 568 aparece claramente demarcado em várias plantas, ortofotomapas, levantamentos topográficos, processos judiciais, em que o autor atuou pessoalmente ou em representação das sociedades, designadamente: na escritura de compra e venda que levou ao exercício da preferência em 2015 (doc. 27 contestação); licenciamento de loteamento em 2006 pela EMP01..., Lda. (doc. 29 da contestação); em sede de processo n.º 1757/09.... que corre nos Tribunais Administrativos interposto pela EMP01..., Lda., ambas representadas pelo Autor (doc. 31 contestação) e no processo n.º 3800/15...., onde claramente vem identificado o prédio ...68.
De todos os meios de prova, sem exceção, resulta que a área referida como registada a favor dos autores sob os números ...93/S. ... e n.º ...95/..., efetivamente é parte integrante do prédio ...68/....
Por outro lado, o que resultou quer das declarações do autor quer do depoimento das testemunhas é que os atos de posse não foram praticados pelos autores, por si, mas por intermédio de sociedades já desde 1994, sendo os próprios autores que em outra sede afirmam não possuírem nenhum prédio em nome próprio.
Ao contrário do afirmado pelos impugnantes, não é despicienda a circunstância de a testemunha QQ, que trabalha nos terrenos agrícolas do ... desde 2008, ser assalariado da EMP03... (e antes da EMP01...), pois que tal constitui um indicio de que os atos de posse são exercidos pelas sociedades e não pelos autores.
Por último, analisando o conteúdo do processo que correu termos sob o n.º 3800/15.... em que a EMP01..., Lda. alegava ser dona do prédio n.º ...68/... e reivindicava de CC, a quem reconhecia ser dono dos prédios confinantes, uma faixa de terreno com 2001 m2 que afirmava pertencer ao prédio n.º ...68/..., foi reconhecido ao CC o direito de preferência na alienação do prédio n.º ...68 e reconhecido que a área reivindicada pertencia ao prédio de CC, dúvidas não restam que os autores, quando intentaram esta ação, sabiam do teor da sentença proferida no âmbito do processo 3800/15.... e que estes prédios agora reivindicados por si se mostram totalmente incluídos no prédio ...68, visando, com esta ação, obter uma decisão que contrarie a decisão sobre a preferência.
Conjugando e entrecruzando as versões apresentadas e os documentos juntos àquele e a este processo, constata-se que os autores apresentam versões contraditórias entre si e documentos, por si criados, igualmente de teor contraditório, originando, por esta via, realidades prediais que sabem não terem correspondência com a realidade.
Evidencia-se que a discussão no âmbito da ação n.º 3800/15...., incidiu precisamente sobre a concreta delimitação do prédio ...68, pois que se pretendia integrar nele a área de 2001 m2, afirmando agora os autores factos contrários aos por si antes declarados relativamente à configuração e delimitação do prédio n.º ...68, vindo agora a incluir entre este prédio e os pertencentes ao réu dois outros prédios, com o fim de contrariar o decidido na outra ação.
Assim, a prova produzida, considerada na sua globalidade e por referência às regras da experiência comum, não impõe decisão diversa (artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil) pelo que a impugnação não merece acolhimento, sendo a decisão de facto correspondente à realidade processualmente adquirida.
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3.2.3. Mérito da sentença
Reconhecimento do direito de propriedade.
Quanto ao reconhecimento do direito de propriedade e consequente improcedência da reconvenção, a alteração do mérito da decisão, nos termos propugnados pelos recorrentes, estava dependente da modificabilidade da matéria de facto.
Permanecendo esta incólume, a consequência é a improcedência, nesta parte, da sua apelação.
Quanto à litigância de má fé.
Foram os autores condenados como litigantes de má fé, por se ter considerado que quando intentaram esta ação, sabiam do teor da sentença proferida no âmbito do processo 3800/15.... e que a parcela de terreno reivindicada se mostra incluída na área do prédio ...68, visando obter uma decisão que contrarie a decisão antes proferida e que a factualidade aqui alegada não tem correspondência com a verdade.
Concluiu-se, assim, que os autores deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e alteraram a verdade dos factos.
Os recorrentes vêm dizer que se é verdade que nestes autos afirmaram factos contrários aos por si antes declarados (no processo n.º 3800/15....) relativamente à alegada configuração e delimitação do prédio n.º ...68/... (“...”), vindo agora a afirmar que tal configuração e delimitação padecem de erro, porquanto se sobrepõe à área de outros prédios, não é correto afirmar-se que a presente ação tenha quaisquer fins ilegítimos, mormente o de contrariar o decidido na outra ação.
Ressalvado o devido respeito, outro não pode ser o entendimento e outra não pode ser a decisão que não a tomada pelo tribunal a quo.
Atente-se nos factos.
O autor é sócio-gerente da EMP01..., Lda. constituída em 2002 e administrador único da sociedade EMP03..., S.A., constituída em 2012, para administração do património familiar dos autores.
No dia 30 de julho de 2015 foi formalizada compra e venda, em que o autor BB e KK, na qualidade de representantes da EMP01..., Lda., declararam vender à chamada EMP03..., S.A., representada pelo administrador BB, vários imóveis, entre os quais o prédio n.º ...68 com a configuração da planta topográfica aí anexa.
No processo n.º 3800/15.... a EMP01..., Ldª. alegava ser dona do prédio descrito na CRP sob o n.º ...68.... ... e reivindicava de CC, a quem reconhecia ser dono dos prédios confinantes uma faixa de terreno com 2001 m2.
No referido processo, CC contestou o peticionado e atendendo a esta transmissão, deduziu reconvenção pretendendo exercer o direito de preferência, por se tratar de prédios rústicos confinantes.
Por sentença transitada em julgado a 14 de fevereiro de 2019, a ação foi julgada improcedente e foi a reconvenção julgada procedente e, em consequência, foi reconhecido ao CC o direito de preferência na alienação do prédio n.º ...68/..., ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição a favor da EMP03... e a inscrição a favor do réu.
Após o trânsito em julgado, segue-se uma sucessão de inscrições de velhos artigos em novas descrições e, face às recusas dos organismos competentes, a indicação de omissão nas novas e antigas matrizes e a prédios não descritos.
Depois de criadas novas descrições, os autores procediam logo a um registo provisório de doação a favor das suas sociedades.
As áreas indicadas dos prédios com a descrição n.º ...93. ... e n.º ...95/... contêm-se na área do prédio n.º ...68/..., denominado “...”, o que os autores conheciam.
O propósito das inscrições destas descrições, bem como desta ação é contrariar o direito de preferência exercido no proc. n.º 3800/15...., vindo o Autor declarar factos contrários aos por si antes declarados.
Isto posto.
A lei atribui aos sujeitos processuais o direito de solicitar ao Tribunal uma determinada pretensão, todavia esta deve ser apoiada em factos e razões de direito de cuja razão esteja razoavelmente convencido, sob pena de haver lugar à sua responsabilização (princípio da auto-responsabilidade das partes).
É nestes princípios que assenta o instituto da litigância de má-fé, consagrado nos artigos 542.º e seguintes do Código Processo Civil o qual visa sancionar uma conduta processual das partes censurável, por desconforme ao princípio da boa-fé pelo qual as mesmas devem reger a sua conduta.
Corresponde o instituto da litigância de má-fé a uma responsabilidade agravada, que assenta na negligência grave ou dolo do litigante.
Se a parte atuou de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é lícita e é condenada apenas no pagamento das custas do processo, como risco inerente à sua atuação.
Se a parte procedeu de má-fé, na medida em que sabia ou devia saber que não tinha razão, ou não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume-se como ilícita, configurando um ilícito processual a que corresponde uma sanção, que pode ser penal e/ou civil (multa e indemnização à parte contrária), e cujo pagamento acresce ao pagamento das custas processuais.
Nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 1 do CPC, tendo uma ou ambas as partes litigado de má-fé, será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária. E nos termos do n.º 2 diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Enquanto as alíneas a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material ou substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual ou instrumental - neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º., 3ª edição, pag. 457.
Resulta desta disposição legal que não só as condutas dolosas, como também as gravemente negligentes, são sancionáveis.
O legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objetivos ilegítimos (atuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade.7
No entanto, não deve confundir-se litigância de má-fé com:
- a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
- a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
- discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos;
- a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer; ou
- a ousadia de apresentação de determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada.
Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do art. 542º do CPC. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade.8
Conformemente, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave.
Exige-se, pois, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade de determinada conduta praticada no exercício de um direito processual, se houver manifesto abuso, traduzindo-se esse exercício em termos clamorosamente ofensivos da boa fé e da cooperação. Revela um desajustamento evidente e insuportável a estes princípios a invocação de argumentos cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar, mas de tal modo que estes sejam repelidos pelo sistema jurídico globalmente apreciado à luz das regras da boa fé.
Daí que a conclusão no sentido da litigância de má fé não pode ser extraída mecanicamente da verificação de comportamento processual recondutível à tipicidade das várias alíneas da norma legal. A delimitação dessa responsabilização impõe uma apreciação casuística.
No caso, como bem se refere na sentença recorrida, os autores quando intentaram esta ação, sabiam do teor da sentença proferida no âmbito do processo 3800/15.... e que estes prédios reivindicados por si se mostram totalmente incluídos no prédio ...68, visando, com esta ação, obter uma decisão que contrarie a decisão proferida, não se coibindo de apresentar em vários processos versões completamente contraditórias entre si e documentos, por si fabricados, igualmente de teor contraditório, indo ao ponto de tentar criar, junto dos competentes serviços de finanças e conservatórias do registo predial, realidades prediais que sabem não terem correspondência com a realidade.
Impõe-se, concluir, que os autores deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e alteraram a verdade dos factos. E fizeram-no de forma culposa, com elevada censurabilidade, atenta a natureza pessoal dos factos de que eram conhecedores.
Impõe-se, nestes termos, a confirmação do decidido.
Consequentemente, o recurso terá de improceder em toda a sua extensão.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
1 Com base no relatório da sentença da primeira instância.
2 In “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308.
3 In “Manual de Processo Civil”, pg. 686.
4 In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, páginas 139 e 140.
5 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 152.
6 Acórdão do STJ de 31/03/2022, proferido no proc. 812/06.1TBAMT.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.
7 Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., 3ª edição, pag. 341.
8 Abrantes Geraldes, ob. cit, pag. 341.