Em sede de recurso de revisão de sentença/Acórdão, com fundamento na sua falta de citação por não ter recebido a carta entregue a terceiro, compete ao recorrente provar que efetivamente não a recebeu, não tendo tido conhecimento da mesma.
João Venade.
António Paulo Vasconcelos.
Paulo Dias da Silva.
AA, Ré nos autos principais, aí identificada,
intentou
Recurso extraordinário de revisão de sentença que a condenou, enquanto herdeira na herança aberta por óbito de BB e de CC (pais da Recorrente), a reconhecer a existência de um crédito sobre a herança e da responsabilidade desta, a favor da Autora, no valor total de 58.656 EUR.
Alega, em síntese, que:
. não foi citada para a referida ação;
. conforme já referiu em incidente de falsidade de ato judicial (o qual foi indeferido por legalmente inadmissível), só em 19/06/2024, através de contacto do seu irmão DD (também Réu nos autos), teve conhecimento que tinha sido proferida Sentença que conheceu do mérito da causa;
. supostamente teria sido citada para contestar em 23/12/2022, através de carta registada com a/r (CTT ...), constando no aviso de receção devolvido ao Tribunal uma alegada sua rubrica;
. desde 26/07/2022 que não vive na morada constante na carta em questão - ... ..., França;
. a própria notificação efetuada nos termos do artigo 233.º, do C. P. C. veio devolvida com a indicação de destinatário desconhecido na morada;
. do a/r não consta a identificação/n.º de cartão de cidadão de quem assinou, nem tão pouco o nome legível do(a) mesmo(a) (documento1);
. desde aquela data que vive, juntamente com o seu marido EE, na sua nova morada sita na ..., ... ...;
. não sabe quem possa ter recebido a carta;
. assim, nos termos da alínea e), n.º 1, do artigo 188.º do C. P. C, deve considerar-se que não foi citada;
. não foram cumpridas as formalidades previstas no artigo 233.º, do C. P. C. uma vez que existiam dúvidas sobre quem teria assinado aquela carta para citação;
Pede assim a procedência do recurso, determinando-se que todos atos posteriores à suposta citação sejam anulados.
. a recorrente não justifica por que razão não teria tomado conhecimento da citação, nem imputa à pessoa que a recebeu a violação do dever de prontamente a entregar ao destinatário, ficando sem se saber por que motivo não teria recebido a carta;
. os documentos juntos (duas faturas de água e luz)são falsos em virtude da leitura e análise do teor dos mesmos não se puder retirar o sentido e alcance que a recorrente lhes atribui, sendo emitidos em nome de uma terceira pessoa, que diz ser seu marido, não estando junto comprovativo do suposto matrimónio;
. a recorrente recebeu e teve conhecimento naquela morada (... ..., França), de quatro notificações emitidas no âmbito do processo de inventário n.º 2707/22.2T8STS, a correr seu termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 1, estando os seus termos suspensos até a decisão que vier a ser proferida na ação, tendo inclusivamente estado presente pessoal em diligência de audiência prévia realizada em 26/10/2022 (doc. 2); tais notificações são:
. carta registada com a/r, datada de 04/10/2022, com marcação de data de audiência prévia – 26/10/2022, tendo a mesma estado presente -;
. carta registada com a/r, datada de 10/11/2022;
. carta registada com a/r datada de 09/02/2023;
. carta registada com a/r datada de 10/03/2023.
. as notificações expedidas à recorrente no âmbito do processo de inventário acima identificado, começaram a serem devolvidas a partir de 21/03/2023 (veja-se carta registada com a/r datada de 21/03/2023, ou de 22/05/2023);
. até ao presente momento, a recorrente não foi ao processo alterar a morada a morada aí constante;
. a carta enviada nos termos do artigo 233.º, do C. P. C., apesar de devolvida, não inquina o ato da citação;
. o artigo 230.º, n.º 1, do C. P. C. faz presumir que a carta recebida por terceiro foi oportunamente entregue ao destinatário;
. a recorrente não logrou afastar a presunção estabelecida em tal norma.
Pede a improcedência do recurso e a condenação da recorrente como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da recorrida no valor de 10.000 EUR.
. prova da falta de conhecimento do ato de citação em causa pela recorrente;
. litigância de má-fé da recorrente.
Dá-se por reproduzido o relatório que antecede e por assentes os seguintes factos:
2.1). GG, propôs contra Herança indivisa aberta por óbito de BB e mulher, CC, ação declarativa de condenação (processo principal com o n.º 1743/22.3T8PVZ), herança representada pelos herdeiros,
1 - HH, residente ... Avenue ..., ... ..., França;
2 - AA, dada como residente em ... ..., França;
3 - II, residente em ..., ... ..., França;
4 - JJ, residente em ... ..., França;
5 - KK, residente em ... ..., ..., França;
6 - DD, residente em ..., França;
7 - LL, residente em ... ..., França;
8 - MM, residente em ... ..., França;
9 - NN, residente em ... ..., França;
10 - OO, residente em ... ..., França;
11 - PP, residente em ... ..., França.
Pede que se reconheça que tem sobre a herança de seus falecidos pais BB e CC um direito de crédito no montante de 58 656 EUR e que se condenem os Réus a reconhecer que lhe assiste o direito a reclamar da herança dos pais a referida quantia e ver esse direito satisfeito pelos bens da herança.
2). Após diligências para citação dos Réus, foi proferido despacho nos termos do artigo 567.º, do C. P. C., julgando-se confessados os factos alegados na petição inicial.
3). A Autora apresentou alegações nos termos do artigo 567.º, n.º 2, do C. P. C. e, em 22/01/2024, foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência:
. condenou os «RR enquanto herdeiros na herança aberta por óbito de BB e de CC, pais da A, a reconhecer a existência de um crédito, sobre a herança e da responsabilidade desta, a favor da A, no valor €58.656,00 (cinquenta e oito mil, seiscentos e cinquenta e seis euros), acrescida de juros à taxa legal a cada momento devida desde a citação até efetivo e integral pagamento».
4). Em relação à aqui recorrente, AA, com a finalidade de a mesma ser citada, ocorreu o seguinte:
. foi enviada carta registada com a/r, para a morada ... ..., FRANÇA, datada de 06/12/2022;
. o mencionado a/r foi junto aos autos, em 03/01/2023, sendo que no local destinado a data e assinatura tem a data de 23/12/2022 e uma rubrica;
. foi enviada, com data de 03/01/2023, carta registada à ora recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 233.º, do C. P. C.;
. essa carta foi junta aos autos em 17/01/2023, por ter sido devolvida com a menção de destinatário desconhecido na morada.
A recorrente não vivia, em 23/12/2022, em ... ..., FRANÇA.
A recorrente não teve conhecimento da citação referida em 4).
No que respeita aos factos não assentes, por ora diremos que não consta nos autos[1] qualquer prova minimamente suficiente, para demonstrar que afinal a recorrente não tinha conhecimento do ato da citação. Na verdade, a mesma alega que, na altura em que o aviso de receção foi assinado, sendo casada, vivia com o seu marido em ..., ... ..., França. Sucede que, além de não juntar qualquer comprovativo desse seu casamento, junta faturas relativas àquela morada mas em nome da pessoa com quem alegadamente casou – EE – (documentos nºs. 3 e 4) -.
Porém, de tais documentos não se retira que a recorrente vivia nessa outra morada, apenas se extrai que houve consumos de eletricidade e gás num local em que a pessoa que contratou esses serviços foi EE.
Não se indica qualquer outro meio de prova que possa demonstrar que a recorrente afinal viveria noutro local diferente daquele para onde foi enviada a carta para sua citação, pelo que não se pode considerar que a carta foi enviada para uma morada onde a recorrente não vivia.
Nem se perspetiva que se possa realizar qualquer diligência que se revele útil pois:
. mesmo que a recorrente juntasse o comprovativo do casamento, permaneceria a dúvida sobre se seria naquela morada que residiria;
. existiria até a dúvida sobre se a pessoa em nome de quem estão celebrados os contratos seria quem aí residia – poderia estar arrendado ou emprestado, por exemplo -;
. se a recorrente não indicou o marido como testemunha, terá sido porque entendeu que não era necessário ouvi-lo e não temos dados que configurem que o seu depoimento pode afastar as presunções que infra se mencionarão. Na verdade, não alega por que motivo se mudou de residência e não acautelou que as cartas que lhe fossem enviadas chegassem ao seu conhecimento. Ou seja, não é apenas mudar de residência que afasta a responsabilidade no não conhecimento do ato de citação, teria que se mencionar algo mais do que isso de modo a que se possa concluir que o desconhecimento não lhe é efetivamente imputável[2], o que não foi alegado.
No que respeita ao não conhecimento da citação, além do que já referimos, há que atender também à perspetiva jurídica desta análise, pelo que a questão também será infra apreciada.
A recorrente sustenta o seu pedido desde logo na circunstância de alegadamente não residir naquela morada em 23/12/2022. Já vimos que tal matéria não se provou.
A carta de citação foi recebida por um terceiro que não a recorrente, que a assinou, pelo que, por isso, cumpriu-se o disposto no artigo 233.º, do C. P. C. Não houve qualquer assunção pelo tribunal de que a carta tivesse sido assinada pela recorrente (como alega no 2§ da página 3 do seu requerimento); foi por se ter assumido (e bem, face ao teor da rubrica que não permite concluir com segurança que tinha sido a recorrente a assinar o aviso), que se cumpriu o disposto no artigo 233.º, do C. P. C.[3]. E não ocorreu qualquer vício processual neste cumprimento: enviou-se a notificação para a morada da citação, em que o aviso foi assinado por terceiro, pois era a morada conhecida da Ré, ora recorrente.
A circunstância desta última carta ter sido devolvida não acarreta qualquer vício do ato de citação pois esta já se considerava efetuada aquando do recebimento da carta assinada em 23/12/2022 já que o prazo de citação se inicia com a primeira carta – artigos 230.º, n.º 1, do C. P. C. -.[4]
Não há qualquer factualidade de onde se possa retirar com segurança que a pessoa que assinou o aviso não tenha entregue a carta à aqui recorrente. Não é suficiente alegar que não se conhece essa pessoa para que se possa concluir/provar que não se recebeu a carta pois, no limite, podendo ser verdadeira essa alegação, o certo é que, muito provavelmente, será complexo demonstrar que não se conhece uma pessoa. Assim, tal alegação deve ser sustentada com outra factualidade com potencial maior facilidade de prova; e a recorrente até alegou matéria nesse sentido – residia em local diferente daquele para onde foi enviada a carta -, sendo certo que sempre deveria ter-se em atenção o que já acima mencionamos em sede de fundamentação de facto.
Sabendo-se que a citação postal tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário (já citado artigo 230.º, n.º 1, do C. P. C.), competiria à recorrente essa demonstração (artigo 344.º, n.º 1, do C. C.).
Igual ideia já resultava do disposto no artigo 225.º, n.º 6, do C. P. C., onde se estatui que nos casos expressamente previstos na lei, é equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento.
Uma vez que não houve qualquer demonstração, pela recorrente, de que não recebeu a carta para citação, tem de improceder o seu pedido de revisão de sentença já que não se prova que houve falta de citação.
O artigo 542.º, n.º 2, do C. P. C. dispõe que:
«2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.».
Não podemos concluir que a recorrente alegou factos que sabia ou não podia ignorar que não correspondiam à verdade ou que deduziu pretensão que a boa-fé não lhe permitiria deduzir.
Alegou uma situação para a qual não juntou prova suficiente e que, por força da presunção de que teria recebido a citação, acaba por não conseguir demonstrar o seu contrário. Mesmo a documentação junta pela recorrida, em que se verifica que, apesar de a recorrente mencionar que não residia na morada para onde foi enviada a citação de julho de 2022:
. ainda terá comparecido a diligência judicial de 26/10/2022 em outro processo judicial, após ter sido notificada para a antiga residência, por carta de 04/10/2022 – documentos nºs. 1 e 2, juntos com a oposição -);
. poderão não ter sido devolvidas outras cartas para notificação da ora recorrente – documentos nºs. 4 e 5, de fevereiro e março de 2023 -;
. só houve devolução de cartas de março e maio de 2023 – documentos nºs. 6 e 7 -, não tem a força suficiente para se concluir pela litigância de má-fé.
É preciso atender a que, por um lado, pode estar em causa a falta de alegação de factos que afastassem a sua negligência em evitar que não recebesse cartas enviadas para a morada antiga e, por outro lado, pode ter tido conhecimento daquela diligência através de um familiar, apesar de não ter recebido a carta (não é por não ter sido junta pela opoente a devolução de cartas, que se pode concluir desde logo que as cartas não foram devolvidas).
Em suma, não se pode concluir, com segurança, que a recorrente deduziu uma pretensão que não podia ignorar que não tinha fundamento.
Assim, não se condena a requerente como litigante de má-fé.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de revisão.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
Registe e notifique.
Porto, 2025/01/09.
João Venade
António Paulo Vasconcelos
Paulo Dias da Silva
_______________
[1] Prova que tem de ser apresentada pela recorrente com os articulados pois neste específico recurso de revisão, com este fundamento, os autos não seguem a forma de processo declarativo, equivalendo assim o requerimento inicial à petição inicial, sem possibilidade de apresentação em sede de audiência prévia ou alteração de requerimento probatório. Assim, equivalendo a petição inicial, as provas têm de ser apresentadas com o requerimento (artigo 552.º, n.º 6, do C. P. C.) o que aliás a recorrente fez.
Naturalmente que há sempre a possibilidade de o tribunal entender que se realizem outras diligências, ao abrigo do artigo 700.º, n.º 1, do C. P. C.
[2] Por exemplo, veja-se Ac. da R. C. de 02/05/2023, processo n.º 1465/22.5T8FIG.C1 (O ónus da prova da falta de citação, ao abrigo do artº 188º nº1 al. e) do CPC, impende sobre o citando, e mesmo que tal falta exista, ela só é relevante se ele provar que não lhe é imputável, ou seja, que não contribuiu para tal falta, dolosa ou negligentemente, em função de factos que praticou ou omitiu ou que lhe era exigível que não praticasse ou não omitisse) – www.dgsi.pt -.
[3] Sempre que a citação se mostre efetuada em pessoa diversa do citando, em consequência do disposto no n.º 2 do artigo 228.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior, ou haja consistido na afixação da nota de citação nos termos do n.º 4 do artigo anterior, é ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando, comunicando-lhe:
a) A data e o modo por que o ato se considera realizado;
b) O prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta;
c) O destino dado ao duplicado; e
d) A identidade da pessoa em quem a citação foi realizada.
[4] O disposto no art. 230.º, n.º 1 (segundo o qual a citação se considera efetuada no dia em que se mostre assinado o aviso de receção pelo terceiro) e o estatuído no art. 232.º, n.º 6 (que considera pessoal a citação pessoal indireta regulada pelo art. 232.o, n.º 2, al. b)) mostram que a carta tem apenas uma função informativa de uma citação que já se encontra realizada – Miguel Teixeira de Sousa, C. P. C. online, acessível no blog do mesmo Professor.