CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DO CAPITAL MUTUADO
JUROS
Sumário

A nulidade do contrato de mútuo gera a obrigação de restituir a quantia mutuada acrescida de juros de mora, contados desde a citação ou da interpelação extrajudicial que tenha sido feita anteriormente, por força da remissão operada pelo n.º 3 do artigo 289.º, para o disposto nos artigos 1269.º, em conjugação com o disposto nos artigos 212.º e 1260.º, todos do Código Civil.

Texto Integral

Processo n.º 280/22.0T8MCN.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Avenida ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses, intentou a presente acção declarativa comum contra a herança jacente aberta por óbito de BB, representada pelo cabeça-de-casal CC, residente na Avenida ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses, e contra DD, residente na Rua ..., ... ..., ..., Gondomar.
Alegou, em síntese, o seguinte: em 14.11.2003, a autora emprestou à falecida BB e ao 2.º réu, filho daquela, a quantia de 5.000,00 €, que estes nunca devolveram, apesar de se terem comprometido a fazê-lo; em 30.12.2005, a autora emprestou ao 2.º réu a quantia de 3.500,00 €, que a falecida BB prometeu pagar se o referido réu não o fizesse; em 23.03.2007, a autora emprestou ao 2.º réu e a BB as quantias de 1.350,00 € e 1.400,00 €; estes montantes, num total de 11.250,00 €, não obstante servirem para satisfazer necessidades relacionadas com a atividade comercial do 2.º réu, foram mutuados também à falecida BB, a qual se assumiu devedora dos mesmos; em 25.02.2008, a autora emprestou apenas ao 2.º réu a quantia de 350,00 €; foi acordado que os referidos montantes venceriam juros à taxa legal, até efectivo reembolso, o qual deveria ocorrer no prazo máximo de um ano; por conta destes quatro mútuos, o 2.º réu entregou à autora a quantia de 500,00 €.
Concluiu pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe «o montante de € 18.584,82 (dezoito mil quinhentos e oitenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) e juros vencidos à mesma taxa legal até real e efetivo reembolso, bem como nas custas e demais encargos do processo».
O 2.º réu apresentou contestação, na qual arguiu a falta de legitimidade e de personalidade judiciária da 1.ª ré, bem como a falta de citação desta, e impugnou os empréstimos alegados na petição inicial, mais invocando, à cautela, a nulidade desses mútuos por inobservância da forma legal e a prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa (subsidiariamente invocada pela autora).
Veio a realizar-se audiência prévia, na sequência da qual a autora requereu a intervenção principal provocada dos herdeiros da herança demandada, em virtude de a mesma já não estar jacente, a qual veio a ser admitida por despacho de 03.11.2022.
Citados os intervenientes, vieram os herdeiros DD (que já havia contestado), CC e EE apresentar contestação, onde impugnaram os empréstimos alegados pela autora e, à cautela, arguiram a sua nulidade por inobservância da forma legal, a prescrição dos juros vencidos há mais de 5 anos e a prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa.
Depois de prestados os esclarecimentos entretanto solicitados pelo Tribunal a quo e de assegurado o respectivo contraditório, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Veio a realizar-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
Termos em que julgo parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, condeno os Réus, solidariamente, a pagar à Autora a quantia de €8.216,93 (oito mil, duzentos e treze euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal anual, atualmente de 4%, calculados sobre o capital de €7.250,00 (sete mil duzentos e cinquenta euros) até efetivo e integral pagamento, a satisfazer pelos bens da herança aberta por óbito de BB, sendo o Réu DD responsável, a título pessoal, respondendo com todo o seu património, pela quantia de quantia de €5.100,16 (cinco mil e cem euros e dezasseis cêntimos), e pelos juros vincendos sobre o capital de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), até efetivo e integral pagamento.

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Inconformado, o 2.º réu apelou da sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«I - Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu-se: a) condenar os Réus, solidariamente, a pagar à Autora a quantia de €8.216,93 (oito mil, duzentos e treze euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal anual, atualmente de 4%, calculados sobre o capital de €7.250,00 (sete mil duzentos e cinquenta euros) até efetivo e integral pagamento, a satisfazer pelos bens da herança aberta por óbito de BB, sendo o Réu DD responsável, a título pessoal, respondendo com todo o seu património, pela quantia de quantia de €5.100,16 (cinco mil e cem euros e dezasseis cêntimos), e pelos juros vincendos sobre o capital de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), até efetivo e integral pagamento.
II – O Tribunal “ad quo” [sic], no entendimento do Recorrente, erradamente, deu como provados os factos: (…) 3. Em 14 de novembro de 2003 a Autora, a pedido do Réu DD, entregou-lhe a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) para este fazer face a despesas da sua atividade comercial. 4. O Réu DD e a falecida BB comprometeram-se a restituir a quantia referida em 3 à Autora. (…) 7. O Réu DD entregou à Autora a quantia de €500,00 (quinhentos euros). 9. Todas as quantias ingressaram no património do Réu DD que passou a dispor de tais montantes.
III - O Recorrente não se conforma com a matéria de facto dada como provada por entender que ela não resulta, nos moldes em que foi dada como provada pelo douto Tribunal “a quo”, da prova produzida no processo (nem documental, nem testemunhal).
IV - Igualmente, não deixará de se invocar as questões de Direito que, salvo douto entendimento, não foram devidas e corretamente consideradas pelo douto Tribunal “ad quo” [sic], concretamente, no que respeita à exigência de forma legal para os alegados contratos de empréstimo.
V - “O tribunal convenceu-se da veracidade do empréstimo realizado pela Autora ao Réu DD, e que o empréstimo foi também assumido pela mãe deste, BB, com base nas declarações de parte da Autora, conjugadas com o documento 3 junto com o requerimento da Autora datado de 26/09/2023 (cópia da caderneta da Banco 1...) da qual resulta o levantamento de tal quantia em data coincidente(…);, considerando ainda essencial, por credível e isento, o depoimento da testemunha FF, e quanto à existência do empréstimo, o testemunho de GG.
VI- Quanto à prova, pese embora vigore o princípio da liberdade do julgador, no que à sua apreciação concerne, o princípio da livre apreciação não significa que se esteja no domínio do livre-arbítrio do julgador ou da discricionariedade. Na verdade, o princípio da livre apreciação das provas, ainda que não seja um princípio vinculado, no que respeita á livre convicção do julgador, é-o, contudo, em relação a algumas questões como sejam as declarações de parte da Autora/Recorrida, e o depoimento da testemunha FF, ex-mulher do Réu EE, e não pode, de todo, salvo melhor entendimento, serem-lhe reconhecidos tais atributos de credibilidade e isenção, como ocorreu.
VII – A Autora pelas razões óbvias, a testemunha FF pelas razões, também óbvias, que se vão descortinando ao longo do seu depoimento, e a testemunha GG pelo interesse direto na demanda, não se revelaram credíveis, isentas e imparciais, pelo que, não podia a decisão do douto Tribunal ter-se sustentado, de tal modo, e apenas nesta prova, para decidir como decidiu.
VIII – Invocando as Exmas. Sras. Dras. HH e II no seu parecer jurídico sobre “Limites à apreciação da prova e erro sobre a factualidade típica”, não foram, tais limites, ponderados nesta Sentença pela Meritíssima Juiz “ad quo” [sic].
IX - “O princípio da livre apreciação da prova, norteador de todos os atos processuais, comporta, porém, limites e reservas. Limites, quanto a determinados meios de prova e, reservas, relativamente à sentença. Ora, a liberdade de apreciação da prova não significa que o julgador possa, no momento valorativo da mesma, tomar uma decisão consoante o seu livre arbítrio, sem que aquela corresponda materialmente a um suporte probatório. O julgador não se encontra adstrito a critérios legais valorativos, pré-estabelecidos. O juízo crítico e rigoroso sobre a prova e a sua ligação a cada facto a provar, sendo a tarefa mais difícil do julgador, é o momento determinante para termos uma decisão de qualidade. A fundamentação da matéria de facto, (provada ou não provada) e o grau de certeza e de convicção na motivação são os ingredientes indispensáveis de qualquer sentença.” – Itálico nosso.
X - Uma vez que, no processo em apreço, concretamente, para prova dos factos 3, 4, 8, e 9, o douto Tribunal se escorou, exclusivamente, na prova testemunhal, - já que, com o devido respeito, a prova documental, já que, apesar de chamado o documento 3, este não se revela como corroborante da fundamentação que se pretende fazer, em nada se coadunando com tais factos.
XI – A prova produzida e invocada pelo Tribunal “ad quo” [sic] como escora da decisão é incongruente com esta.
XII - Citando, novamente, as Exmas. Sras. Dras. HH e II no seu parecer jurídico, (…) Ora, a liberdade de apreciação da prova não significa que o julgador possa, no momento valorativo da mesma, tomar uma decisão consoante o seu livre-arbítrio, sem que aquela corresponda materialmente a um suporte probatório. O julgador não se encontra adstrito a critérios legais valorativos, pré-estabelecidos. (…) A fundamentação da matéria de facto, (provada ou não provada) e o grau de certeza e de convicção na motivação são os ingredientes indispensáveis de qualquer sentença.” – Itálico nosso.
XIII - I. a) Análise da fundamentação de facto - Dos factos provados – Dos factos que o Recorrente considera incorretamente dados como provados: Ponto 3., da matéria de facto dada como provada, “Em 14 de novembro de 2003 a Autora, a pedido do Réu DD, entregou-lhe a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) para este fazer face a despesas da sua atividade comercial.”; Ponto 4. - “O Réu DD e a falecida BB comprometeram-se a restituir a quantia referida em 3 à Autora.” – itálico nosso.
XIV -A Autora peticionou o pagamento de várias quantias que, em momentos distintos, diz ter emprestado ao Recorrente e/ou à falecida mãe deste, nomeadamente, os montantes de €5.000(cinco mil euros), o primeiro mútuo, e €3.500(três mil e quinhentos euros), o segundo.
XV - Para prova deste facto, considerou o Tribunal “ad quo” [sic]:
- Declarações de parte da Autora; Doc. n.º 3 junto com o requerimento da A. datado de 26.09.2023, que são duas páginas de uma caderneta de uma conta do Banco 2...; Testemunha FF, Testemunha GG, conforme se transcreve: “Quanto aos factos provados em 3, 4, 8 e 9 o tribunal convenceu-se da veracidade do empréstimo (…) e que o pagamento de tal empréstimo foi assumido também pela a mãe deste, BB, com base nas declarações de parte da Autora, conjugadas com o documento 3 junto com o requerimento da Autora datado de 26/09/2023 (cópia de caderneta da Banco 1...) do qual resulta o levantamento de tal quantia, em data coincidente, conjugadas com o depoimento da testemunha FF(…)”
XVI - Ora, quanto às DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA, - como supra se transcrevem e que, aqui, se dão por integralmente reproduzidas, - A Autora com as suas declarações refere estes dois mútuos, sustentando-os com um documento manuscrito, que acompanha a sua petição inicial, que nem esse se coaduna, em termos de datas, com as declarações que presta, tentando fazer crer o douto Tribunal que emprestou tais montantes ao Recorrente.
XVII - E logrou convencer o Tribunal “ad quo” [sic], que sustenta a prova destes factos com o documento apresentado como doc. 3, junto com o requerimento datado de 26.09.2023, que, quanto ao que aqui se retrata, nada prova, estando, em abono da verdade, em absoluta contradição com a prova que se destina a fazer.
XVIII - Admitindo-se que, ainda por lapso, se referiu o documento errado, e que na realidade o douto Tribunal se referia ao documento 1., também este não representa, no entendimento do Recorrente, prova bastante que permitisse ao Tribunal formar a sua convicção e decidir como decidiu, salvo douto entendimento.
XIX - O documento n.º 1, por sua vez, é de facto uma caderneta da Banco 1..., donde consta um montante sublinhado e com o nome “DD” manuscrito, não pode servir para fazer prova de que tal valor foi, efetivamente, entregue ao Recorrente, nem tão pouco que o foi pela Autora, já que, analisando o documento, não é inteligível a quem pertencerá a conta em questão.
XXX - Mais ainda, não se consegue alcançar o entendimento do douto Tribunal, já que, no mesmo documento, linhas abaixo do movimento/levantamento do montante de €5.000,00, nas mesmas circunstâncias, consta um movimento de €3.500,00, também este sublinhado e manuscrito.
XXXI – A prova que serve de alicerce ao empréstimo dos €5.000 e para o empréstimo de €3.500 é a mesma, pelo que não se compreende o critério do douto Tribunal em dar como não provado um, mas ser prova bastante do outro.
Quanto a este ponto, dúvidas se levantam, ainda, quando na douta sentença refere, como se transcreve, “Quanto aos factos provados em 3, 4, 8 e 9 o tribunal convenceu-se da veracidade do empréstimo realizado (…) com base nas declarações de parte da Autora, conjugadas com o documento 3 junto com o requerimento da Autora datado de 26/09/2023 (cópia de caderneta da Banco 1...) do qual resulta o levantamento de tal quantia, em data coincidente, conjugadas com o depoimento da testemunha FF”.
XXXII - Ora, com o devido respeito, é vago, e não se compreende a que data se refere a Meritíssima Juiz “ad quo” [sic], nem com o que esta coincide. Como se transcreveu, supra, a Autora limita-se a referir que se terá deslocado à Banco 1... e feito um levantamento no dia “vinte e tal de Novembro de 2003”, assim, não é possível descortinar a que coincidência se refere a Meritíssima Juiz, não sendo inteligível, com base na fundamentação, ou, tão pouco por confronto com a prova em que se sustenta, salvo douto entendimento, revelando-se indecifrável a sentença.
XXXIII - Cumpre analisar, cuidadosamente, estes dois segmentos do testemunho de FF.
XXXIV - Primeiro, são contraditórios, já que, admitindo que a falecida BB tinha conhecimento desde o primeiro empréstimo, altura em que existia património, e considerando a convicção com que a testemunha se refere, e bem, à integridade e honestidade da sua falecida sogra, coloca-se a questão de perceber porque é que esta não providenciou para vender uma das suas propriedades antes?
XXXV - De novo, se percebe a tendenciosidade da testemunha, pelo que, salvo douto entendimento, e com o devido respeito, mas não se pode aceitar o valor que a Meritíssima Juiz atribui à testemunha FF. Não é pelo facto da testemunha, sistemática e insistentemente, imediatamente após deixar que os ressentimentos falem mais alto, se aperceber e recompor, proclamando-se “imparcial”, que faz dela, de facto, isenta.
XXXVI - De novo, todo o seu testemunho fica, pois, beliscado pela mágoa que é notória, desde início, relativamente ao ex-marido, e que, se vai percebendo ser extensiva a alguns, se não todos os Réus, quando compara a situação da A. com a sua própria situação, e se coloca como tendo sido muito mais injustiçada do que aquela fora. Aliás, a própria, ainda que, posteriormente, tenha procurado retirar o que havia dito, dizendo não ter ressentimentos, - o que, em abono da verdade, só demonstra que a testemunha, deliberadamente, ou não, pretendeu passar uma imagem credível e de imparcialidade, - certo é que ao longo de todo o seu testemunho é percetível a necessidade de implicar toda a família, nomeadamente, mas não só, o ex-marido e Réu, EE, no conhecimento de toda a situação, como se urdidos estivessem.
XXXVII - O depoimento da testemunha GG não se coaduna com as declarações de parte da A., ou com o depoimento da testemunha FF, já que, segundo aquelas, e como se transcreveu, supra, nos indicados momentos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, o primeiro, e alegado, empréstimo teria sido, segundo a primeira, pedido e entregue ao Recorrente, de acordo com a segunda, refere a alegada entrega ao Recorrente.
XXXVIII - A Autora, diz que o Recorrente um dia se lhe apresentou “aflito” e “à rasca”, e que, a vinte e tal de Novembro de 2003, lhe entregou a quantia de €5.000 que levantara da sua conta, e que foi o Recorrente quem, primeiro, lhe pediu dinheiro, nunca sendo referida pela Recorrida a falecida BB como interveniente neste primeiro mútuo.
XXXIX-A testemunha FF refere, - aos 6 minutos- ter ouvido, sem querer, a Recorrida a dizer à ex-sogra que já tinha entregue o dinheiro ao Recorrente, concluindo-se, salvo melhor entendimento, que, neste caso, teria sido a ex-sogra, mãe do Recorrente, a interceder por ele, fazendo ela o pedido à Recorrida.
XL - Por sua vez, a Testemunha GG, perguntada pela mandatária da Recorrida sobre como sabia que tinha sido a avó a pedir, refere, perentoriamente, que a primeira vez, ou seja, o primeiro pedido, havia sido feito pela avó, que a mãe lhe havia dito.
XLI- Ora, claramente, se percebe que a prova invocada como basilar na formação da convicção do Tribunal é, com o devido respeito, um verdadeiro emaranhado, e a fundamentação apresenta-se, inegavelmente, incongruente.
XLII - Assim, com o devido respeito, a douta sentença carece de fundamentação quanto à matéria de facto, e apresenta-se contraditória e ininteligível.
XLIII- Foram erradamente dados como provados os factos vertidos nos pontos 3, 4 e os demais a estes inerentes.
XLIV - Temos pois que, os concretos meios probatórios constantes do processo, impõem decisão diversa sobre este ponto da matéria de facto, mais se concluindo, com o devido respeito, não pode a MM. Juiz aceitar a documentação junta aos autos, porquanto, nada prova a respeito dos alegados mútuos, e é, aliás, contraditória entre si, devendo pois esta matéria dar-se como não provada por ausência de qualquer prova.
XLV - O contrato de mutuo vem regulado no art.º 1142.º do Código Civil (doravante C.C.) como o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade legal.
XLVI - Nos termos do disposto no art.º 1143.º do mesmo diploma legal, na redação vigente naquelas datas (DL 343/98 de 06/11), “O contrato de mútuo de valor superior a 20000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.” Assim, os contratos em causa nos autos, são nulos por falta de forma legal – cfr. art.º 220.º do Código Civil.
XLVII - Assim sendo, e não tendo sido feita prova da existência dos mesmos, não podendo considerar-se válidos tais negócios, devendo antes estar feridos de nulidade por inobservância de forma legal. E mais,
Neste sentido, e porque aqui assentou a convicção do douto Tribunal, não tendo confessados o Recorrente a entrega de qualquer valor, a considerar-se terem sido entregues os referidos, no ponto 7., €500 à Recorrida, impunha-se considerar poderem tê-lo sido para amortização dos valores confessados pelos Réus, não servindo, portanto como indicativo de existência de qualquer obrigação, ou assunção de dívida dos demais valores alegados.
Pelo que, se deixa invocada, expressamente, a nulidade dos, alegados, negócios jurídicos com os consequentes efeitos daí decorrentes.
XLVIII – A douta sentença, por falta de fundamentação, e incongruência na prova atendível, viola o disposto no art.º 615 do CPC, devendo, portanto, considerar-se nula, com todos os efeitos legais.
Termos em que, desde logo por violação do disposto no art.º 615.º do CPC, por falta de fundamentação da douta sentença, e demais fundamentos invocados, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequencia, revogar-se a douta sentença em crise e substituir-se por outra que absolva o réu (…)».
A autora respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela total improcedência da apelação.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes:
1. O erro no julgamento da matéria de facto;
2. A improcedência do pedido, por falta de prova dos mútuos alegados pela autora;
3. A nulidade dos mesmos, por inobservância da forma legal;
4. A nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação e incongruência na prova atendível.
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III. Fundamentação
A. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. Em 29 de outubro de 2007 faleceu BB, tendo deixado como herdeiros o viúvo e filhos:
A) CC, viúvo, NIF ..., residente na residente na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses;
B) EE, NIF ..., residente na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., concelho e Marco de Canaveses;
C) DD, NIF ......, residente na Av. ..., ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses – aqui segundo R.;
D) CC, NIF ..., residente na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses.
2. A Autora viveu em união de facto com CC, que é filho da falecida BB e irmão do primeiro Réu, tendo nascido dessa união duas filhas:
a) GG, nascida a 12 de maio de 2003;
b) JJ, nascida a 13 de dezembro de 2004.
3. Em 14 de novembro de 2003 a Autora, a pedido do Réu DD, entregou-lhe a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) para este fazer face a despesas da sua atividade comercial.
4. O Réu DD e a falecida BB comprometeram-se a restituir a quantia referida em 3 à Autora.
5. Em 23 de março de 2007, a Autora, a pedido da falecida BB, entregou-lhe as quantias de €1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros) e de €1.400,00 (mil e quatrocentos euros), para pagamento de dividas de cartão de crédito do Réu DD.
6. A falecida BB comprometeu-se a restituir as quantias referidas em 5 à Autora.
7. O Réu DD entregou à Autora a quantia de €500,00 (quinhentos euros).
8. As referidas quantias saíram de contas bancárias tituladas pela Autora e provinham de poupanças que estava a fazer a favor das suas filhas.
9. Todas as quantias ingressaram no património do Réu DD que passou a dispor de tais montantes.
10. A Autora, através de advogada, enviou ao Réu DD carta registada com AR, datada de 03/02/2021, referindo “Sou pela presente e na qualidade de mandatária da Senhora AA, a proceder à cobrança extrajudicial de €10.750,00 (dez mil setecentos e cinquenta euros) referente ao empréstimo pessoal que lhe foi concedido. (…)”
11. Em resposta à carta referida em 11, o Réu DD através de advogado, enviou e-mail em que refere “Na qualidade de advogado do Sr. DD, sou a acusar a recepção da sua missiva datada de 3 de Fevereiro e recebida a 8 do mesmo mês, à qual me cumpre dizer o seguinte;
O n/ Constituinte não contraiu qualquer empréstimo junto da Constituinte da Exa. Colega, não sendo portanto devedor à mesma de qualquer quantia, pelo que se solicita que se demonstre onde se funda tal reclamação.”
12. Em 25/08/2008 o Réu CC procedeu à entrega de €3.500,00 à Autora.
13. A Autora preencheu e assinou declaração/recibo com o seguinte teor “Dinheiro que o Sr. KK, emprestou que era do LL, na importância de 3.500 € (três mil e quinhentos euros, foi entregue à AA em 25-08-08”
“..., 25-08-08
“Recebi, em 25-08-08”
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provado que:
1. Em 30 de dezembro de 2005, a Autora, a pedido do Réu DD, entregou-lhe a quantia de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros), para este fazer face a despesas da sua atividade comercial.
2. Em 25 de fevereiro de 2008, a Autora, a pedido do Réu DD, entregou-lhe quantia de €350,00 (trezentos e cinquenta euros), para este fazer face a despesas da sua atividade comercial.
3. O Réu DD e a falecida BB comprometeram-se a restituir à Autora as quantias referidas em 3. e 5. dos factos provados, no prazo máximo de 1 ano.
4. Foi acordado entre Autora, o Réu DD e BB que o montante venceria juros à taxa legal até real e efetivo reembolso.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe, por sua vez, o n.º 1, do artigo 640.º, que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando este ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Em coerência, o mesmo autor (cit., pp. 199 e 200), enuncia assim as situações que determinam a rejeição, total ou parcial do recurso:
- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC);
- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC);
- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou nele registados, em que o recorrente se baseia;
- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
As normas dos artigos 640.º e 662.º do CPC concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos sobre a matéria facto.
Assim se compreendem as exigências em que se traduzem os ónus primários acima descritos, previstos no n.º 1, do artigo 640.º, do CPC, os quais devem ser interpretados à luz do aludido papel ou função. O mesmo sucede com o ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, sem perder de vista que este visa possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, isto é, a localização, no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados, das passagens da gravação em que se funda o recurso.
Como se escreve no ac. do STJ, de 28.04.2016 (proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. Abrantes Geraldes), estamos perante «um ónus multifacetado cujo cumprimento não se torna fácil, mas que encontra diversas justificações, entre as quais as seguintes:
- A Relação é um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;
- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais».
Deste modo, vem sendo reafirmado pela jurisprudência que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Como escreve Abrantes Geraldes (cit., p. 200), «[t]rata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo».
Mas, pelas mesmas razões, associadas à impossibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto (cfr. artigo 639.º, n.º 3, do CPC), o Supremo Tribunal de Justiça vem alertando para a necessidade de não se exponenciarem os apontados requisitos formais e de se compaginar a sua interpretação e aplicação com os princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
No caso concreto, a indicação dos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados é pouco clara.
Este começa por afirmar, no início da sua alegação, que o presente recurso tem como objeto a matéria de facto, concretamente os factos julgados provados sob os n.ºs 3, 4, 7 e 9, o que é corroborado na conclusão II, onde se afirma que o Tribunal a quo, erradamente, deu como provados aqueles factos 3, 4, 7 e 9.
Porém, no artigo 17.º da motivação e na conclusão XIII, o recorrente identifica explicitamente como pontos que considera incorretamente julgados apenas os pontos 3 e 4 dos factos provados.
Acresce que, embora ao longo da motivação e das conclusões da alegação aluda a diversos factos (designadamente aos factos 3, 4, 8 e 9), a análise crítica que aí faz da prova produzida tem em vista apenas os referidos pontos 3 e 4.
Nestes termos, exigindo a lei clareza na indicação dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, impõe-se concluir que o recorrente cingiu a sua impugnação aos pontos 3 e 4 dos factos julgados provados.
De resto, no que concerne ao ponto 7, afigura-se claro que o recorrente impugnou o facto aí descrito apenas na medida em que possa traduzir um reconhecimento do empréstimo descrito nos pontos 3 e 4. Sucede que nada na sua redacção permite concluir que a entrega dos 500 euros ali mencionada esteja apenas relacionada com esse empréstimo e já não com o empréstimo descrito no ponto 5 dos factos provados. Por conseguinte, a partir do momento em que este ponto 5 se deve considerar definitivamente provado, por não ter sido impugnado pelo recorrente, aquele ponto 7 deixa de ter autonomia relativamente aos antecedentes pontos 3, 4 e 5 e, por isso, deixa de ter necessariamente subjacente o reconhecimento do empréstimo referido nos pontos 3 e 4.
Aliás, cremos que só esta análise justifica a posição perfeitamente ambígua do recorrente a respeito deste ponto 7. Recorde-se que, para além da alusão a esse facto no início da alegação e na conclusão II, o recorrente apenas volta a referir esse ponto no artigo 56.º da motivação e na conclusão XLVII, nos seguintes termos: «não tendo confessado o Recorrente a entrega de qualquer valor, a considerar-se terem sido entregues os referidos, no ponto 7., €500 à Recorrida, impunha-se considerar poderem tê-lo sido para amortização dos valores confessados pelos Réus».
No que concerne ao ponto 9, é manifesto que nunca poderia ser julgado totalmente não provado, uma vez que o mesmo não remete apenas para a quantia referida no ponto 3 e 4, mas também para as quantias referidas no ponto 5. Assim, estando definitivamente assente este ponto 5, a definição do alcance daquele ponto 9 está apenas dependente da prova ou não prova dos pontos 3 e 4. De resto, o recorrente terá tido isso mesmo em conta quando, na conclusão XLIII afirmou que “foram erradamente dados como provados os factos vertidos nos pontos 3, 4 e os demais a estes inerentes”.
Nestes termos, para além da ambiguidade da impugnação apresentada, é manifesto que o recorrente apenas alude aí aos pontos 7 e 9 na medida em que os mesmos se reportam aos pontos 3 e 4, sendo estes os factos que pretende impugnar.
Já o cumprimento do ónus primário previsto na al. b), do n.º 1, bem como do ónus secundário previsto no n.º 2, ambos do mesmo artigo 640.º, não suscita dúvidas, pois o recorrente fundamentou a sua discordância na prova que descreve e analisa na referida alegação (as declarações de parte da autora, os depoimentos das testemunhas FF e GG e os documentos n.º 1 e 3 do requerimento de 26.09.2023) e transcreveu as partes das declarações e do depoimentos em que se baseia, mais indicando o minuto e o segundo do início desses excertos.
No que respeita ao cumprimento do ónus primário previsto na al. c), do mesmo artigo 640.º, n.º 1, embora o recorrente não o afirme de modo explícito, é inequívoco que, no seu entender, os referidos pontos 3 e 4 devem ser julgados não provados, como se extrai das conclusões que extrai da análise crítica da prova, designadamente nos artigos 18.º e 52.º da motivação da alegação de recurso (18.º: «Com o devido respeito, jamais tais factos poderiam ter sido dados como provados (…)»; 52.º: «Temos pois que, os concretos meios probatórios constantes do processo, impõem decisão diversa sobre este ponto da matéria de facto, mais se concluindo, com o devido respeito, não pode a MM. Juiz aceitar a documentação junta aos autos, porquanto, nada prova a respeito dos alegados mútuos, e é, aliás, contraditória entre si, devendo pois esta matéria dar-se como não provada por ausência de qualquer prova»).
Em suma, verificado o cumprimento dos respectivos ónus, impõe-se conhecer a impugnação da decisão sobre os pontos 3 e 4 dos factos provados.
b. A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, o recorrente pugnou pela alteração da decisão no que respeita aos pontos 3 e 4 dos factos provados.
Nesses pontos, o tribunal a quo julga provado, em essência, que em 14 de Novembro de 2003 a autora emprestou ao réu DD a quantia de cinco mil euros e que a falecida BB se comprometeu a restituir essa quantia à autora.
Ouvida a gravação integral de todas as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento e analisada toda a prova documental carreada para os autos, concluímos que estes factos são corroborados pela prova produzida.
Desde logo pelas declarações de parte da autora AA, que confirmou ter emprestado ao réu DD, em 2003, a pedido deste, a quantia de 5 mil euros, mais esclarecendo que levantou esse dinheiro da sua conta na Banco 1... e o entregou ao referido réu em numerário, para evitar que esse dinheiro ficasse cativo se o transferisse para a conta deste. Mais confirmou que a falecida BB lhe garantiu o pagamento da referida quantia, esclarecendo que só por isso acedeu a fazer novos empréstimos a esta e ao réu DD.
Não se ignora que a autora tem um evidente e natural interesse na causa, pelos que as suas declarações devem ser sopesadas com especial prudência, tendo em consideração esse interesse direto. Mas, por um lado, tal circunstância não impede o tribunal de valorar esta prova, à luz do princípio geral da livre apreciação da prova, pois nenhuma norma de direito probatório material impede essa livre apreciação, a não ser na parte em que as declarações contenham confissão judicial espontânea de factos relevantes, só nesta estrita medida configurando prova vinculada. Por outro lado, para além de se revelarem coerentes, as declarações em apreço foram corroboradas por diversa outra prova, com bem assinala a decisão recorrida. Por fim, os factos em apreço não foram infirmados por qualquer prova minimamente consistente.
As declarações de parte da autora foram, desde logo, confirmadas pelo depoimento da testemunha FF, que foi casada com o réu EE. Esta testemunha referiu que, entre 2002 e 2004, ouviu a autora a comunicar à falecida BB que já tinha entregue o dinheiro em mão ao réu e à namorada deste, que mais tarde relatou este episódio ao seu marido e que este lhe confirmou que o seu irmão DD estava “enterrado em dívidas”. Mais referiu que, posteriormente, ouviu a D. BB a falar com uma pessoa da sua confiança, que apenas conhece por “MM”, sobre a dívida à aqui autora, acrescentando que, a partir daí, a sua sogra começou a “abrir-se” mais consigo, dizendo-lhe que o DD lhe desgraçou a vida. Referiu ainda que os seus sogros tinham muitos bens, mas não liquidez financeira, e que ela e o seu marido acompanharam a sua sogra a um terreno, que esta afirmou pretender vender para pagar a dívida à AA. Este relato corrobora a existência do empréstimo ao réu DD no ano de 2003 e a assunção da dívida daí decorrente pela falecida BB. E embora o recorrente ponha em causa a credibilidade desta testemunha com base nos problemas que a mesma teve no passado com o réu EE, a audição do seu depoimento e a sua concatenação com a restante prova produzida não nos permite contrariar a credibilidade que o tribunal a quo lhe conferiu. Note-se que foi a própria testemunha que tomou a iniciativa de afirmar que não estava de bem com o seu ex-marido e de relatar as respectivas razões, logo acrescentado que não guarda ressentimentos e que nada tem contra os demais réus. Também não conseguimos vislumbrar uma relação especialmente próxima com a autora que a levasse a favorecê-la em detrimento dos réus. Por fim, alguns dos pormenores deste relato encontram respaldo na restante prova produzida, como sucede com os problemas financeiros do réu DD e com a falta de liquidez dos pais deste, que são corroborados pela factualidade descrita nos pontos 5 e 8 dos factos provados e com a prova em que estes factos assentaram. Na verdade, se os pais do réu DD tivessem liquidez financeira, a falecida BB não teria tido a necessidade de se socorrer das poupanças das suas netas para pagar as dívidas do cartão de crédito daquele réu, dívidas estas que corroboram os problemas financeiros daquele. O mesmo sucede com a alusão à entrega do dinheiro ao réu DD na presença da sua namorada, igualmente mencionada pelo réu CC, bem como com a relatada visita ao terreno, na medida em que o réu EE confirmou ter ido ao local com a sua mãe, não se recordando – mas não negando – que a sua então esposa estivesse igualmente presente.
As declarações da autora foram, também, integral e expressamente confirmadas pelo réu CC – que foi companheiro da autora, de quem está actualmente separado, e que não escondeu estar de relações cortadas com os irmãos e falar com o pai apenas o indispensável, por razões ligadas à partilha da herança aberta por óbito da sua mãe –, o qual confirmou a autoria do documento n.º 9 da petição inicial e esclareceu ter assistido à entrega dos 5 mil euros ao seu irmão, na presença da namorada deste.
As declarações da autora foram, igualmente, corroboradas pelo depoimento da testemunha GG, filha da autora e do réu CC. Embora não tenha conhecimento directo dos factos em apreço – nem poderia ter, visto contar com apenas 20 anos de idade –, esta testemunha confirmou a existência de discussões entre a sua mãe e o seu padrinho, o aqui réu DD, motivadas pelo crédito de que esta se considera titular, mais acrescentado que tanto o seu padrinho como o seu avô prometiam que iam pagar, mas nunca o fizeram.
Semelhante a este foi o depoimento da testemunha JJ, igualmente filha da autora e do réu CC, com apenas de 19 anos de idade, que afirmou ter sido assim toda a sua infância.
Por fim, também a testemunha NN, colega da autora, corroborou as declarações desta, referindo que trabalhou com ela no terreno da casa do réu CC e que, há cerca de 7 anos, ouviu diversas a autora a pedir o pagamento do dinheiro que havia emprestado ao DD e este a responder que o faria quanto pudesse.
As declarações da autora parecem ser, igualmente, corroboradas pelo documento junto com o requerimento de 26.09.2023 sob o n.º 4, de acordo com a numeração do sistema Citius, e sob o n.º 1, de acordo com a numeração nele manuscrita, na medida em que aí se descreve um levantamento de 5 mil euros, no dia 14.11.2003. Admite-se, porém, a fragilidade desta prova, visto que se trata de uma mera fotocópia do que parece ser uma caderneta de uma conta da Banco 1..., sem identificação dessa conta e do respectivo titular.
Em contrapartida, a restante prova produzida a respeito dos factos em apreço não se revelou minimamente credível, desde logo pela falta de coerência dos declarantes, que acresce ao seu interesse na causa.
Das declarações do réu CC, prestadas de forma evasiva, decorre que este entregou à autora a quantia referida no ponto 12 dos factos provados, mediante a assinatura do documento referido no ponto 13, apesar de nada saber sobre os alegados empréstimos e apesar de a sua mulher lhe ter dito que não nada devia à autora. Ora, não é verosímil que tivesse feito um pagamento consciente de que não era devido, tal como não é verosímil que nada saiba sobre os empréstimos alegados pela autora, quando fez aquele pagamento mediante a entrega de um documento que aludia expressamente ao dinheiro emprestado pelo Sr. KK, pai da autora, e quando o próprio réu DD declarou ter falado com o seu pai a respeito da carta referida no ponto 10 dos factos provados, bem como de um missiva anterior com semelhante conteúdo.
Igualmente confusas e contraditórias se revelaram as declarações do réu DD. Negou precisar do dinheiro que a autora alegou ter empestado, mas admitiu que a sua mãe pagou as dívidas bancárias reflectidas no extracto junto com o requerimento de 26.09.2023 (como documento n.º 1, segundo a numeração do Citius, ou n.º 4, segundo a numeração manuscrita), reconhecendo ainda que a letra do documento n.º 10 da petição inicial parece ser da sua mãe, resultando destes documentos que a sua mãe pagou as referidas dívidas mediante empréstimo das poupanças das filhas da autora. Tal como o seu pai, não soube esclarecer o documento junto com a segunda contestação e o pagamento aí referido. Afirmou que os seus pais tinham dinheiro, mas esse facto não encontra apoio na prova produzida, como já dissemos.
Também as declarações do réu EE se revelaram incoerentes, desde logo porque pôs em causa que o seu irmão tivesse problemas financeiros, quando antes havia confirmado o pagamento do saldo cartão de crédito deste pela sua mãe, bem as queixas que esta tinha daquele, ao ponto de dizer que era um ladrão e que se metia onde não devia. També se afigura pouco verosímil que, tal como afirmou, só tivesse sabido do diferendo a respeito dos empréstimos alegados pela autora quando foi citado para esta acção. Em todo o caso, para além do que já dissemos, das suas declarações nada mais resultou no sentido de confirmar ou infirmar os factos em apreço.
Por fim, para além de não revelar qualquer conhecimento directo dos factos em apreço, a testemunha OO, filho do réu EE, baseando-se na forte ligação que manteve com a sua avó paterna durante a sua infância e adolescências, procurou convencer o tribunal de que esta lhe teria dito se tivesse pedido dinheiro emprestado, como se fosse normal este tipo de confidências entre uma avô e o seu neto adolescente; procurou ainda convencer o tribunal de que a sua avó sempre teve muito dinheiro guardado – pelo que não necessitaria de empréstimos – aludindo aos valores de 300, 400 ou 500 euros que a mesma tinha guardados numa caixa e às notas que trazia no avental ou que colocava no sofá. Para além da aparente candura ou ingenuidade destas declarações, as mesmas são claramente contrariadas pelos já aludidos factos descritos nos pontos 5 e 8 dos factos provados.
Tudo ponderado, não vemos qualquer razão para alterar a decisão do tribunal a quo sobre os pontos 3 e 4 dos factos provados ou para restringir o alcance do ponto 9, pelo que se julga totalmente improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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B. O Direito
Na sua alegação, o recorrente começa por anunciar a sua intenção de invocar as questões de direito que, no seu entendimento, não foram devida e correctamente consideradas pelo Tribunal a quo, nomeadamente a exigência de forma legal para os alegados contratos de empréstimo (cfr. conclusão IV). Concretizando esta intenção, o recorrente começa por afirmar que os contratos em causa nos autos são nulos por falta de forma legal, atento o disposto nos artigos 220.º e 1143.º do CC (cfr. conclusão XLVI).
Compreende-se mal esta argumentação, pois foi também esta a conclusão a que chegou a decisão recorrida. Assim, o argumento esgrimido pelo recorrente não contradiz, antes confirma, a decisão recorrida. De resto, o teor da referida conclusão XLVI corresponde, ipsis verbis, ao 4.º parágrafo, da 7.ª página, da decisão recorrida.
Mais difícil ainda de compreender é a argumentação sintetizada na conclusão XLVII, de acordo com a qual «não tendo sido feita prova da existência dos mesmos [referindo-se aos contratos de mútuo invocados pela autora recorrida], não podendo considerar-se válidos tais negócios, devendo antes estar feridos de nulidade por inobservância de forma legal».
Em primeiro lugar, é de meridiana clareza que a inexistência dos contratos de mútuo não pode gerar a sua nulidade. Só o que existe pode padecer de nulidade; o que não existe não é nulo, nem padece de qualquer outro vício genético, pois nunca chegou a “nascer”.
Em segundo lugar, a alegação da falta de prova dos empréstimos invocados pela autora revelava-se, logo à partida, insubsistente no que respeita ao empréstimo descrito no ponto 5 dos factos provados, pois o recorrente não impugnou este ponto da matéria de facto.
Mas aquela alegação soçobra, igualmente, no que respeita ao empréstimo descrito nos pontos 3 e 4 dos factos provados, visto ter improcedido a impugnação destes pontos da matéria de facto.
Por fim, a falta de prova dos mútuos teria como consequência inevitável a improcedência do pedido. Mas a nulidade não importa o mesmo desfecho, ao contrário do que parece estar subjacente na argumentação do recorrente. A nulidade, que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artigo 286.º do CC), tem as consequências previstas na lei, nomeadamente no artigo 289.º do CC, entre as quais avulta a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado.
Ora, a decisão recorrida mais não faz do que extrair da nulidade dos dois empréstimos que apurou (por inobservância da forma legal prevista no artigo 1143.º do CC, na redacção vigente nas datas em que foram celebrados) as respectivas consequências, nomeadamente a obrigação de restituição do que foi prestado, ou seja, das quantias mutuadas.
Mais determinou a sentença recorrida o pagamento de juros de mora, contados desde a interpelação do recorrente para restituir as referidas quantias, à taxa legal.
Ora, é pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais, designadamente dos Tribunais superiores, que a nulidade do contrato de mútuo gera a obrigação de restituir a quantia mutuada acrescida de juros de mora, contados desde a citação ou da interpelação extrajudicial que tenha sido feita anteriormente, por força da remissão operada pelo n.º 3 do artigo 289.º, para o disposto nos artigos 1269.º, em conjugação com o disposto nos artigos 212.º e 1260.º, todos do Código Civil. Como se diz no ac. do TRL, de 20.04.1989 (CJ, t. II, p. 143), «a partir desse momento, pelo menos, os RR. não podiam deixar de ter conhecimento da falta de título legítimo para conservarem em seu poder as quantias mutuadas, e de que, por conseguinte, estavam a lesar os direitos dos AA. A boa fé em que, porventura, até aí se mantivessem, cessou com a citação (...), passando os RR. a responder pelos rendimentos que um homem diligente - um bom pai de família - teria obtido com a aplicação do capital mutuado». No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no acórdão do STJ, de 28.11.2002 (disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 02B3454, rel. Ferreira de Almeida): «Na esteira do Ac do STJ de 23-11-99, in Proc 897/99 - 1ª Sec "declarado nulo um contrato de mútuo por falta de forma, porque tal nulidade opera retroactivamente (ex-tunc), deve ser restituído tudo o que houver sido prestado, isto é o capital mutuado - art. 289º nº 1 do C. Civil; e, por força da remissão operada pelo nº 3 desse preceito para o disposto nos arts. 1269º e ss do mesmo diploma, a obrigação de restituir abrangerá, não só o capital mutuado, como também os juros legais a contar da citação (ou da interpelação admonitória se esta tiver ocorrido)". Neste mesmo sentido, vide o Ac do STJ de o8-11-01, in Proc 2895/01 - 7ª Sec.».
Em suma, como bem se refere no ac. do TRP, de 24.02.2015 (proc. n.º 46/14.1TBAMT.P1, rel. Fernando Samões, igualmente disponível em www.dgsi.pt), «anulado o contrato de mútuo por falta de forma legal, a restituição abrange não só a quantia mutuada, mas também os juros de mora a partir da citação ou da interpelação extrajudicial para pagamento, se ela tiver ocorrido em data anterior (…) Estes juros correspondem aos frutos civis e são devidos pelo mutuário enquanto possuidor de má fé da quantia não restituída».
Pelas razões expostas, improcedem totalmente os argumentos aduzidos pelo recorrente, importando confirmar a decisão recorrida.
Na improcedência da apelação, as respectivas custas são suportadas pelo recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na improcedência da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 11 de Dezembro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Pinto dos Santos
Maria Eiró