I - Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado artigo 615.º do Código de Processo Civil.
II - O depósito bancário tem a natureza de depósito irregular, em que o depositante entrega ao banco a disponibilidade da quanta depositada. Em consequência, fica na posse do banco a quantia depositada.
III - O legatário pode vir pedir a entrega do legado por via de acção comum.
IV - A propriedade do bem legado transmite-se para o legatário no momento da aceitação da herança
V - O legado de quantias depositadas em instituições bancárias não é “coisa certa e determinada”. Não estamos perante uma coisa certa e determinada, antes um direito de crédito sobre a entidade bancária que está na posse da quantia depositada existente nas contas bancárias.
VI - O cumprimento do legado deverá exigido aos herdeiros do de cujus.
Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 1
RELAÇÃO N.º 188
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Maria Eiró
Alexandra Pelayo
AS PARTES
A.: AA
R.: Banco 1..., S.A.
a) se declare que a A. é titular do direito de propriedade sobre os saldos bancários (dinheiro e valores) existentes em nome de BB, legatária melhor identificada nos autos, no Banco 1... S.A., nos montantes reportados à data do seu óbito, em 4 de novembro de 2020 concretamente, € 60.329,00 por referência na conta bancária na Agência da Ré, sita em ..., com o número ......, entre outros cuja existência se venha apurar até final e posteriores remunerações desde essa data até integral e efetiva entrega à A. de tais saldos bancários;
b) se condene o R. a reconhecer o pedido formulado em a);
c) bem como ao pagamento de juros vencidos desde 5 de agosto de 2022 e vincendos até ao efetivo e integral pagamento;
d) condenado ao pagamento de sanção pecuniária compulsória, quantia não inferior a € 100,00 diários, até à entrega do prédio, acrescida de juros, à taxa de 5%.
Articula, para o efeito, em muito breve resumo, que BB, falecido em 04/11/2020, lhe legou, por testamento exarado a 16/07/2020, “todo o dinheiro que se encontrar depositado nas contas bancárias de que é titular junto do Banco 1..., S.A.”.
À data do óbito o legado tinha o valor de € 60.329,00 na conta bancária na Agência da Ré, sita em ..., com o número .......
A pedido do R. entregou-lhe escritura de habilitação de herdeiros da qual consta que BB faleceu no estado de divorciado de CC, não se encontrando, ainda, transcrita em Portugal a dissolução deste casamento, e que deixou, como herdeiros legitimários, os seus cinco filhos DD, BB, EE, FF e GG.
O ora R. recusa-se a entregar-lhe o saldo da conta bancária, alegando, no email que enviou à A. datado de 22/08/2022, necessitar “de ter a certeza que efetivamente os herdeiros aceitam e concordam que os montantes existentes no Banco 1... sejam transferidos para uma conta titulada pela legatária, sob pena de sermos interpelados por estes sobre o destino e responsabilidade sobre os valores que se encontram nas contas sedeadas no Banco 1..., salvaguardando o banco na sua posição de depositário dos valores em causa. Acresce o facto de desconhecermos se efetivamente os valores da legítima são suficientes para que o legado seja livremente prestado, tendo ciente que não cabe, uma vez mais, ao banco efetuar partilha dos mesmos”. O R. deve ser condenado a entregar à A. o dinheiro do legado, ao abrigo do disposto no art. 2279.º do C. Civil.
O R. Banco 1..., S.A., na contestação que apresentou (além do mais), excecionou a sua ilegitimidade, defendendo que a A. deveria ter movido a presente ação contra os herdeiros legitimários do de cujus, que têm interesse em contradizer e sem os quais será impossível regularizar, em definitivo, o presente litígio. O R. não pode, por si, à revelia dos herdeiros legitimários, e por sua iniciativa, apenas a pedido da A., movimentar os valores na conta bancária do de cujus, por o único ativo que é conhecido do R. à data do óbito é precisamente o que está a ser peticionado pela – suposta – legatária. Os legados podem apenas ser feitos por força da quota disponível, por conta da legítima ou em substituição da legítima. Isto é, está vedada a hipótese de o legado defraudar normas imperativas de direito sucessório sobre a medida da legítima, pois que ao dispor de bens, sob a forma de legados, cujo valor ultrapassa a quota disponível, atingir-se-ia a legítima dos herdeiros legitimários.
a) nos termos do art. 2168.º, nº 1, do C. Civil são “inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários”. No caso, a legítima dos cinco filhos do testador;
b) por sua vez, o art. 2279.º do C. Civil permite ao legatário “reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que esta seja certa e determinada”. Esta norma não parece ter aplicação direta ao nosso caso por, se bem vemos, está colimada aos direitos reais – art. 1311.º do C. Civil – e, não, a valores;
c) seja como for, importa sempre conhecer se o legado é ou não inoficioso. Este ponto é tão importante que o processo de inventário contém uma secção própria – arts. 1118.º e 1119.º do CPC.
*
Foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:
“Julgo, pelo exposto, a A. AA parte ilegítima e, em consequência, nos termos do nº 2 do art. 576.º, 577.º, alínea e), e 578.º, todos do CPC, absolvo o R. Banco 1..., S.A., da instância.“.
A A., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
“Nestes termos e nos melhores de direito, devem as presentes alegações serem consideradas procedentes e, consequentemente, ser considerado nulo, por falta de fundamentação, o despacho que decidiu pela ilegitimidade da Autora; ou caso assim não se considere, ser revogada tal decisão, e ser substituída por outra que considere a Autora parte legítima na ação.“.
“A. Por despacho datado de 5 de março de 2024, o Tribunal a quo decidiu que:
«Nos termos do art. 2168.º, nº 1, do C. Civil são “inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários”. No caso, a legítima dos cinco filhos do testador. Por sua vez, o art. 2279.º do C. Civil permite ao legatário “reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que esta seja certa e determinada”. Esta norma não parece ter aplicação direta ao nosso caso por, se bem vemos, está colimada aos direitos reais – art. 1311.º do C. Civil – e, não, a valores. Seja como for, importa sempre conhecer se o legado é ou não inoficioso. Este ponto é tão importante que o processo de inventário contém uma secção própria – arts. 1118.º e 1119.º do CPC. Daí que aceitemos a ilegitimidade invocada. E, em resultado disso, nos termos da parte final do nº 2 do art. 6.º e do art. 316.º, nº 1, ambos do CPC, convida-se a A. a chamar para intervenção principal, como seus associados, os herdeiros do testador.»
B. A Aqui recorrente apresentou recurso desse despacho, mas foi rejeitado, sendo que posteriormente, foi proferida decisão final nos seguintes termos:
«Julgo, pelo exposto, a A. AA parte ilegítima e, em consequência, nos termos do nº 2 do art. 576.º, 577.º, alínea e), e 578.º, todos do CPC, absolvo o R. Banco 1..., S.A., da instância.»
C. Ora, o Tribunal a qua refere apenas que «parece» que a norma não é de aplicação ao caso, sem que fundamente tal decisão de fato ou de Direito, referindo o processo de inventário, para a situação; em clara confusão, salvo melhor opinião, pois a aqui a Autora não é herdeira!
D. O dever constitucional e legal de fundamentação das decisões tem por objectivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e reagir contra a mesma.
E. No caso em apreço, o tribunal a quo limita-se a dizer que não parece, tal norma, de ser de aplicar ao caso concreto, não apresentando mais justificações; sendo tal decisão nula por falta de fundamentação de fato e de Direito, o que se requer expressamente.
F. Os sucessores são herdeiros ou legatários, sendo que, diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (artigo 2030.º do Código Civil) 2 - Seguimos de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 2972/19.2TBLRA-C1, cujo Relator foi Jorge Manuel Loureiro, votado por unanimidade.
G. A autora é legatária!
H. Não tem sequer legitimidade para instaurar o processo de inventário, conforme consta do artigo 1085º, n.º 1 do CPC.
I. Neste sentido, o legatário, mesmo que a herança não haja ainda sido partilhada, sabe aquilo a que tem direito, conhece o objecto ou o valor com que foi contemplado pelo testador; ao invés, e no que respeita ao herdeiro, só pela partilha vê concretizado o seu direito, tendo até lá tem uma mera quota ideal do valor do acervo hereditário.
J. Portanto, o legado, porque incide sobre bens ou valores determinados, transmite-se ao seu beneficiário, com a sua aceitação, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão, sem necessidade de se efectuar a partilha da herança.
K. Com efeito, na falta de disposição em contrário, o legatário tem o direito de exigir o cumprimento do legado aos herdeiros (artigo 2265º/1 do CC), podendo inclusivamente reivindicar de terceiro a coisa legada (artigo 2279º do CC); o que se verifica no caso em apreço
L. Conforme consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 2972/19.2TBLRA-C1, cujo Relator foi Jorge Manuel Loureiro, votado por unanimidade: Assim sendo, sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica – neste sentido, entre outros, consultem-se os acórdãos do STJ de 3/3/1998[1], proferido no processo 160/98, do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/12/2019, proferido no processo 6441/16.4T8LSB-2[2], de 2/11/2006, proferido no processo 8566/2006-6[3], do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/11/2018, proferido no processo 73/16.4BEMDL.G1[4], do Tribunal da Relação de Porto de 1/3/2007, proferido no processo 0636972[5], de 1/6/2006, proferido no processo 0633018[6].
M. Ainda no mesmo aresto: Aliás, não assistindo ao legatário o direito a requerer o inventário, o reconhecimento pleno da posição jurídica do legatário ficaria na total dependência dos herdeiros que poderiam instaurar ou não e quando lhes aprouvesse o processo de inventário, convertendo-se o direito do legatário, na prática, a um direito desprovido da garantia judiciária, o que se mostra vedado, designadamente pelos artigos 20º/5 da CRP e 2º/2 do NCPC; posição com a qual concordamos!
N. E conclui: De todo o modo, afigura-se-nos claro o reconhecimento legal do direito que o legatário tem já sobre o seu legado por via da simples aceitação, independentemente da efectivação da partilha e sem prejuízo da eventual redução do legado por inoficiosidade (arts. 1118º e 1110º do NCPC) – no sentido de que a eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha, consulte-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2017, proferido no processo 1372/17.3T8OAZ.P1. (negrito e sublinhado nosso)
O. Termos em que deve a decisão ser revogada, e deve o processo prosseguir os seus ulteriores termos, com vista a que a Ré seja condenada à entrega do legado.
P. Normas jurídicas violadas: artigo 20º e 225, n.º 1 CRP, art. 2101º/1 CC, a contrario, artigo 2265º/1 do CC, artigo 2279º do CC, artigo 2030.º CC; 1085, n.º 1 do CPC “.
*
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
A) Nulidade da decisão por falta de fundamentação – cls A. a E..
B) O bem legado (depósito de quantia em dinheiro em instituição Bancária) transmite-se para o legatário no momento da morte autor da herança sem que seja necessária partilha, podendo o legatário exigir o cumprimento do legado dos herdeiros ou de terceiros.
*
Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e que aqui se dão por reproduzidos, e bem como o seguinte.
O de cujus, BB por testamento de 16.07.2020, declarou:
BB faleceu a 04.11.2020.
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A)
Nulidade da decisão por falta de fundamentação – cls A. a E..
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea b) in fine do Código de Processo Civil, o seguinte:
“É nula a sentença quando: (…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;“
É pacífico que a apontada nulidade somente ocorre quando ocorra falta de fundamentação e não quando a mesma seja insuficiente ou deficiente.
“Há invalidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, ROBERTO VALENTE, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1984, I, p. 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentaçã9o suficiente da decisão de condenação da parte como litigante de má fé).”, LEBRE DE FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, Vol 2º, 3ª ed., págs. 735 e 736.
Mais é de acrescentar, que de modo manifesto, a sentença em crise, contém de modo especifico e concreto qual a fundamentação – motivação da decisão de direito. Neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7129/18.7T8BRG.G1.S1, de 09.12.2021, relatado pelo Cons OLIVEIRA ABREU, “A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito (alínea b) do nº. 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil) está relacionada com o comando que impõe ao Tribunal o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Na verdade, a fundamentação das decisões é uma exigência constitucional - art.º 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - e legal - artºs. 154º, 607º e 663º, todos do Código de Processo Civil.
É na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório.
Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 615º do Código de Processo Civil.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”
Pelo exposto não está verifica a apontada nulidade, improcedendo, portanto, este segmento do recurso.
*
O bem legado transmite-se para o legatário no momento da morte autor da herança sem que seja necessária partilha, podendo exigir o cumprimento do legado dos herdeiros ou de terceiros.
A sentença em crise fundamentou do seguinte modo:
“Foi proferido despacho, a 04/03/2024, nos termos do nº 2 do art. 6.º do CPC e do art. 316.º, nº 1, ambos do CPC, a convidar a A. a chamar para intervenção principal, como seus associados, os herdeiros do testador, trazendo estes à ação por:
a) nos termos do art. 2168.º, nº 1, do C. Civil são “inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários”. No caso, a legítima dos cinco filhos do testador;
b) por sua vez, o art. 2279.º do C. Civil permite ao legatário “reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que esta seja certa e determinada”. Esta norma não parece ter aplicação direta ao nosso caso por, se bem vemos, está colimada aos direitos reais – art. 1311.º do C. Civil – e, não, a valores;
c) seja como for, importa sempre conhecer se o legado é ou não inoficioso. Este ponto é tão importante que o processo de inventário contém uma secção própria – arts. 1118.º e 1119.º do CPC.
A A., desacompanhada dos herdeiros legitimários do ora falecido BB, é parte ilegítima pelos motivos expostos.
A ilegitimidade é uma exceção dilatória – alínea e) do art. 577.º do CPC.
A exceção dilatória de ilegitimidade é de conhecimento oficioso – art. 578.º do CPC.
E, consequentemente, o R. Banco 1..., S.A., tem de ser absolvidos da instância – arts. 576.º, nº 2, e 577.º, alínea e), ambos do CPC.”
Desde já afirmamos que a presente apelação está votada ao fracasso.
Vejamos o porquê.
i)
O primeiro passo a dar diz respeito à qualificação que se faça do contrato de depósito bancário, ie, se a posse do bem depositado, dinheiro, é do banco ou do depositante.
“I. O depósito bancário em sentido próprio é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro, como se viu. Trata-se de uma operação que surge sempre associada a uma abertura de conta, de tal modo que, aquando da efectivação, o banqueiro já deu o seu assentimento genérico: ele mais não pode fazer do que aceitar as diversas manifestações da sua concretização. (…)
A natureza do depósito bancário já levantou muitas dúvidas. O depósito bancário à ordem tem sido considerado, entre nós. na doutrina e, sobretudo, na jurisprudência, como um depósito irregular, o banqueiro adquire a titularidade do dinheiro que lhe é entregue, sendo o cliente um simples credor. A pedra de toque está na disponibilidade permanente do saldo.”, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., 2008, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, págs. 480 e 481.
A jurisprudência tem vindo a caracterizar o contrato de depósito bancário ou como um depósito irregular ou como um contrato de mútuo.
Sobre esta questão este Tribunal da Relação do Porto em recente decisão pronunciou-se do seguinte modo – pela sua clareza e pela descrição da doutrina e jurisprudência, transcrevemos a seguinte passagem mais extensa:
“Com o acto de abertura da conta pela Autora no Banco Réu, gerou-se entre ambos uma relação contratual, passando a vigorar entre ambos o denominado contrato de depósito.
Com efeito, tratando-se o contrato inicial celebrado pela A. com o Banco R., de um contrato de depósito, temos como características deste tipo de contratos, o facto de alguém (depositante) entregar ao banco (depositário) uma soma de dinheiro, para que este o guarde e restitua quando peticionado.
Trata-se de uma relação complexa, alvo de aturados estudos na doutrina e jurisprudência, maxime quanto à sua natureza.
Seguimos o que deixámos escrito na nossa já citada Obra “Contratos Privados…”, vol. II, Item “Depósito Bancário”.
O mútuo bancário conta-se entre as operações bancárias activas, assim denominadas em atenção à posição activa do banco na relação de crédito. Ora, os bancos, que são por natureza instituições de mediação do crédito, recorrem por sua vez ao financiamento. No caso dos bancos comerciais ou de retalho, as mais frequentes operações bancárias passivas consistem na captação de fundos junto do público através dos chamados depósitos bancários (a prazo, com pré-aviso ou à ordem, consoante o reembolso se efectue em prazo certo, com prazo certo após interpelação ou a todo o tempo).
É muito controversa, na Doutrina e Jurisprudência, a natureza jurídica dos contratos de depósito bancário, distribuindo-se as opiniões no direito português por várias orientações [9], umas monistas (depósito irregular — opinião dominante na jurisprudência —, mútuo, contrato sui generis), outras dualistas (depósito irregular, para os depósitos à ordem e com pré-aviso; mútuo, para os contrato de depósito a prazo).
A propósito, escreve, doutamente, Carlos Ferreira de Almeida [10]:
«Algumas destas formulações fazem (a nosso ver, bem) uma distinção preliminar: por um lado, a conta corrente (que a prática designa por conta de depósito à ordem), onde se registam os movimentos gerados por um contrato-quadro entre o banco e o seu cliente; por outro lado, cada um dos actos que justificam tais movimentos, entre os quais se incluem, geralmente, um contrato de "depósito" à ordem e, frequentemente, outros contratos, tais como contratos de "depósito" a prazo ou com pré-aviso, contratos de prestação de serviço de C4…, contratos de gestão de valores mobiliários e contratos de crédito (concedido ao cliente) [11].».
E continua, ali, o ilustre Autor:
«Na verdade, o uso actual da palavra "depósito" nas expressões "contrato de depósito bancário" e "conta de depósito à ordem" apenas se explica como resquício do tempo em que os bancos recebiam dos seus clientes para depósito bens valiosos, fungíveis ou infungíveis. Ora, em minha opinião, o tipo legal do contrato de depósito não prescinde, em nenhuma das suas modalidades de um elemento de guarda, que só é compatível com as coisas corpóreas. Este requisito não deixa de ser necessário no depósito irregular que foi concebido para coisas fungíveis, mas corpóreas, como cereais e barras de ouro (cfr. artigos 1185.º e 1189.º). Os únicos contratos de depósito bancário que subsistem são, pois, os depósitos administrados (isto é, com obrigação de gestão dos bens depositados) e os depósitos em cofre forte. Os "depósitos" em dinheiro (meramente escritural) em conta bancária não satisfazem o requisito da obrigação de guarda, razão pela qual não podem ser qualificados como contratos de depósito.
Na prática actual, os contratos de "depósito" bancário preenchem, sim, todos os elementos do tipo contratual do mútuo (real quoad constitutionem), porquanto, em todas as suas modalidades, o mutuante (cliente) entrega ao mutuário (banco) uma determinada quantia em dinheiro que este se obriga a reembolsar….».
Ainda sobre a natureza jurídica do contrato de deposito bancário, veja-se o aludido (e desenvolvido) estudo de Paula P. Camanho [12] — para uns, um verdadeiro contrato de depósito (ver. ob. cit., pp. 149-156); para outros, um contrato de mútuo (ver cit., pp. 157-161); outros fazem depender a natureza jurídica do contrato do tipo de depósito efectuado (cit., pp. 161-163); contrato de depósito como relação complexa (cit., pp. 163-164); contrato de depósito como um contrato atípico (ob. cit., pp. 164-166); contrato de depósito como contrato inominado (cit., p. 166); contrato de depósito como um depósito irregular (cit., 166-167).
Esta aludida autora, após ali fazer um estudo exaustivo sobre as diversas posições que a Doutrina e Jurisprudência têm sustentado e debatido, conclui desta forma:
«O contrato de depósito reveste a natureza de um verdadeiro contrato de mútuo. É o contrato pelo qual uma das partes (cliente) empresta à outra parte (banco) dinheiro, ficando esta obrigação da a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade (artigo 1142.º do Código Civil). A definição, assim como o regime deste contrato, adequa-se perfeitamente ao depósito bancário, bem como a todo o regime deste contrato.
Na verdade, tal como no contrato de mútuo, a propriedade da quantia entregue transfere-se para o banco (mutuário), podendo este livremente utilizá-la. O motivo que leva o cliente a depositar uma quantia no banco é, não só obter a segurança do seu dinheiro (tal como aconteceria num genuíno contrato de depósito), mas também investir essa quantia, tal como o mutuante num contrato de mútuo oneroso, uma vez que receberá um juro e, eventualmente, beneficiar de um conjunto de serviços acessórios que o banco lhe poderá proporcionar.
Além disso, o interesse neste contrato não é exclusivamente o do cliente (tal como acontece nos contratos de depósito, em que o interesse é do depositante). À semelhança do mútuo, existe também um interesse do banco (mutuário) na obtenção de fundos necessários ao financiamento das suas operações de crédito, sendo mesmo frequente o recurso a meios publicitários para "recrutar" novos clientes (potenciais depositantes).
Há ainda dois argumentos que afastam a tese do depósito irregular, aproximando o depósito bancário do contrato de mútuo.
O depósito bancário a prazo nunca poderia ser considerado como depósito irregular uma vez que neste, mesmo quando é fixado um prazo ao contrato, o depositante pode, a todo o tempo, exigir a restituição da coisa. Ora, tal não acontece no depósito bancário, onde o termo é, também, estipulado no interesse do banco (mutuário).
Por outro lado, se há lugar ao pagamento de juros, tal implica que se considere que o interesse prevalecente no contrato é o do accipiens e que, deste modo, o contrato deverá ser considerado como um mútuo.
Não se diga, porém, que, nos depósitos à ordem em que não haja lugar ao pagamento de juros, se pode identificar a figura do depósito irregular. E que tais depósitos são perfeitamente enquadráveis no contrato de mútuo, tal como as outras modalidades de depósito bancário, não obstante admitirmos que aqui já não terão cabimento as duas críticas atrás referidas.
Na verdade, o facto de, nos depósitos à ordem (e, eventualmente nalguns depósitos a prazo, quando tal for acordado) 651 o cliente (mutuante) poder exigir a restituição imediata da quantia entregue não é impeditivo da qualificação por nós defendida, uma vez que a fixação de um prazo não é elemento essencial do mútuo.
Com efeito, os n.os 1 e 2 do artigo 1148.º do Código Civil revestem natureza supletiva, podendo, por consequência, as partes convencionar a restituição imediata da quantia mutuada a pedido do mutuante, fixando o momento do vencimento da obrigação de restituição, e retomando até o número 1 do artigo 777.º do Código Civil.» - destaque nosso.“, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 22158/17.0T8PRT.P1, de 14.07.2020, relatado pelo Des. FERNANDO BAPTISTA.
Em igual sentido, “I – Os contratos de depósito bancário, como categoria geral, apesar de atípicos, regem-se essencialmente pelas disposições que, na lei civil, regulam os contratos de depósito em geral e as normas que disciplinam o contrato de mútuo, conjugados com as cláusulas contratuais gerais a que os respetivos contratos crescentemente recorrem e, por fim, com os usos bancários.“, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 5463/15.7T8GMR.G1, de 08.06.2017, relatado pela Des LINA CASTRO BAPTISTA, “IV - O contrato de “depósito” bancário é um contrato real (quoad constitutionem), exigindo a sua constituição a entrega de dinheiro, com a inseparável transferência da sua propriedade do depositante para o banco, ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade e aquele, portanto, na titularidade de um direito de crédito sobre o valor equivalente à quantia depositada e aos frutos uros remuneratórios) que tenham sido estipulados (arts. 1144.º, 1142.º e 1145.º do diploma)”, sumariado, Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 17566/16.6T8LSB.L1.S2, de 30.04.2019, relatado pelo Cons ALEXANDRE REIS, e “I - Constituem elementos determinantes do contrato de depósito bancário: 1) a transferência/depósito pelo tradens de uma coisa fungível (determinada quantia em dinheiro); 2) a radicação/inclusão da quantia transferida/depositada na esfera de dominialidade (propriedade) do accipens; 3) a disponibilidade, uso e fruição da coisa entregue/depositada por parte do depositário; 4) o dever de restituir por parte do depositário, quando solicitado pelo depositante, a quantia correspondente ao saldo existente. II - O contrato de depósito (irregular) constitui-se, nos termos da prática bancária, como um contrato de adesão, porquanto o depositante e o banco estipulam entre eles um conjunto de regras predefinidas a que o aderente dá o seu assentimento e mediante o qual o banco se compromete a oferecer determinados serviços, como sejam a transmissão regular dos movimentos bancários efectuados, de débito e crédito, com o respectivo saldo final.”, sumariado, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1182/09.1TVLSB.S1.L1, de 10.11.2011, relatado pelo Cons GABRIEL CATARINO.
O depósito bancário é configurado como um contrato atípico, que reúne elementos comuns da conta corrente mercantil (artigo 347.º do C. Comercial) e de contrato de mandato. (artigo 1157.º do Código Civil), e cujo objecto se desdobra em actividades próximas do mútuo oneroso (artigos 1142.º e seguintes do Código Civil) e do depósito (artigo 1185.º do Código Civil). Não corresponde ao típico contrato de depósito, porque transfere para o Banco a propriedade da quantia depositada, ficando o titular da conta com apenas um direito de crédito sobre o Banco.
Determinada a natureza do contrato de depósito, como de depósito irregular, temos como certo que o depositante, o de cujus, entregou ao R. banco a disponibilidade da quanta depositada. Em consequência, podemos afirmar que ficou e está na posse do R. banco a quantia depositada.
ii)
Passemos, então, à apreciação do regime jurídico do legado, em causa nos autos.
O herdeiro, porque sucessor, recebe a totalidade da massa hereditária.
E recai sobre o(s) herdeiro(s) a obrigação de cumprimento do(s) legado(s) – artigo 2068.º do Código Civil (A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados.)
Por sua vez, é inequívoco que a propriedade do bem legado se transmite para o legatário no momento da aceitação da herança. Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 1372/17.3T8OAZ.P1, de 27.11.2017, relatado pelo Des CARLOS GIL:
“Os sucessores podem ser herdeiros ou legatários (artigo 2030º, nº 1, do Código Civil), dizendo-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (artigo 2030º, nº 2, do Código Civil)[4].
Em virtude do direito do legatário incidir sobre bens ou valores determinados, não lhe é reconhecido o direito de exigir a partilha, direito que é legalmente conferido a qualquer co-herdeiro ou ao cônjuge meeiro (artigos 2101º, nº 1, do Código Civil e 4º, nº 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei nº 23/2013, de 05 de março) e que se exerce mediante acordo ou por meio de inventário[5].
De facto, o legatário, na falta de disposição em contrário, tem o direito de exigir o cumprimento do legado aos herdeiros (artigo 2265º, nº 1, do Código Civil), podendo reivindicar de terceiro a coisa legada (artigo 2279º do Código Civil).
Neste contexto, o Sr. Professor Inocêncio Galvão Telles[6] distingue os legados dispositivos, dos legados obrigacionais. Os legados dispositivos implicam uma diminuição do ativo da herança, enquanto os legados obrigacionais determinam o aumento do passivo da herança. Por isso, afirma este autor, no caso dos legados dispositivos, “o direito passa recta via do falecido para o legatário” (página 163 da obra citada), enquanto nos “legados obrigacionais a aquisição da propriedade a favor do legatário dá-se por efeito de acto do sucessor onerado que, em cumprimento da obrigação imposta, lha transmite ou contrata com terceiro transmitir-lha” (página 164 da obra citada). (…)
Pelo contrário, porque a posição jurídica de legatário tem pressuposta a determinação do bem ou valor a que é chamado a suceder, não sendo instaurado inventário, é processualmente adequada a defesa e o reconhecimento pleno de tal posição jurídica com recurso à ação declarativa comum. “
Mas, já quanto à posse do legado não se passa do mesmo modo.
De modo esclarecedor decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 332/11.2TBPRG.L1.S1, de 14.01.2014, relatado pelo Cons GARCIA CALEJO:
“Decorre, por outro lado, do disposto no art. 2079º que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha[1], pertence ao cabeça de casal. Este, de acordo, com o art. 2088º pode pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar. O cabeça de casal deve prestar contas da administração anualmente, como estipula o disposto no art. 2093º.
Em relação aos bens sujeitos à administração do cabeça de casal, afirma Oliveira Ascenção (Direito Civil, Sucessões, pág. 450) que “nos termos do referido artigo 2079º, a administração da herança, até à liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal. Essa administração abrange a totalidade do património hereditário (art. 2087º nº 2). Em consequência, o art. 2088º-1 permite ao cabeça de casal «pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituídos …Em compensação, os poderes do cabeça de casal não abrangem os bens doados em vida do autor da sucessão (art. 2087º -2)”. No que toca ao legatário (com relevância para o presente caso) acrescenta o mesmo autor que os poderes do cabeça de casal não abrangem também “mesmo na ausência de declaração específica da lei, os bens certos e determinados que foram legados e estavam já em poder do legatário. Não se compreenderia efectivamente que o cabeça de casal fosse exigir bens já da propriedade dos legatários e cuja entrega teria de ser feita no prazo de um ano. Aliás o art. 2088º permite ao cabeça de casal pedir os bens que deva administrar «aos herdeiros ou a terceiros». Não se refere ao legatário, que não é evidentemente um terceiro em relação a bens que são já da sua propriedade”.
Quer dizer, em relação ao legatário, o cabeça de casal não lhe poderá exigir os bens certos e determinados que foram legados e estavam já em seu poder. Não estando esses bens em poder do legatário, o cabeça de casal poderá exigir do herdeiro ou de terceiros a sua entrega.
Ao cabeça de casal compete, como se viu, a administração da herança. Compete-lhe usar todos os meios conservatórios em relação ao património hereditário. Mas, como esclarece Oliveira Ascenção (mesma obra, pág. 452), “o cabeça de casal não tem em geral a função de satisfazer o passivo hereditário ou de cumprir legados …também não tem poderes de disposição. Pode porém alienar frutos e outros bens deterioráveis; e pode mesmo vender frutos não deterioráveis, na medida em que tal for necessário para satisfação dos encargos acima referidos (art. 2090º 2”. (…)
Estabelece o art. 2265º nº 1 que “na falta de disposição em contrário, o cumprimento do legado pertence aos herdeiros”. (…)
É certo, todavia, que não cabe ao cabeça de casal o cumprimento dos legados.
O art. 2279º permite ao legatário a possibilidade de reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que esta seja certa e determinada.
Pese embora esta possibilidade, o legatário, normalmente, mesmo aceitando o legado, não adquire (logo) a sua posse. Como refere Oliveira Ascenção (obra referida, pág. 387) “o legatário pode, é certo, reivindicar de terceiro a coisa legada, contanto que seja certa e determinada (art. 2279º)… A reivindicação é uma acção de propriedade e não de posse. A propriedade foi sem dúvida adquirida pelo legatário pela aceitação, independentemente da apreensão material da coisa; a posse não” (sublinhado nosso).
A posse do legatário opera-se através da entrega da coisa, por quem estiver onerado com a obrigação de cumprimento do legado no tempo e no lugar estabelecido no art. 2270º. Neste sentido vide Oliveira Ascenção (mesma obra, pág. 387) e também Carvalho Fernandes (obra citada pág. 459) que, a este propósito, refere “se a coisa não se encontrar na posse de terceiro, mas na de outra pessoa a quem o cumprimento do legado caiba, é através da acção de cumprimento do legado que o legatário deve exercer o seu direito”.
Em jeito de síntese, afirma Oliveira Ascenção (mesma obra e página) “quer dizer, o legatário adquire a posse através do herdeiro e não directamente do autor da sucessão …Portanto o verdadeiro esquema é o seguinte: o herdeiro adquire de facto a posse da herança, como totalidade, com a devolução. Na herança estão compreendidas …as coisas legadas. É o herdeiro quem deve subsequentemente transmitir a posse ao legatário”.
Todo este raciocínio parte do pressuposto da existência de herdeiro. Existindo herdeiro é dele que a legatária deveria exigir o cumprimento do legado. “, sublinhado nosso.
No mesmo sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 2972/19.2TBLRA.C1, de 08.09.2020, relatado pelo Des JORGE MANUEL LOUREIRO, citado pela apelante: “Como ensina Galvão Telles (Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, Coimbra Editora 1980, pp. 159 a 165) há que distinguir os legados dispositivos, dos obrigacionais.
Os primeiros implicam uma diminuição do activo da herança, ao passo que os segundos determinam o aumento do passivo da herança.
Por isso, e como ensina o mesmo autor e na mesma obra, no caso dos legados dispositivos “o direito passa recta via do falecido para o legatário” (p. 163), enquanto nos “legados obrigacionais a aquisição da propriedade a favor do legatário dá-se por efeito de acto do sucessor onerado que, em cumprimento da obrigação imposta, lha transmite ou contrata com terceiro transmitir-lha” (p. 164).
Assim sendo, sucedendo o legatário em bens ou valores determinados, a transmissão para o mesmo dos direitos legados dá-se por simples aceitação do legatário e sem necessidade de recurso a qualquer procedimento, designadamente o da partilha, por acordo ou por inventário, sendo lícito ao legatário socorrer-se de uma acção declarativa comum para obter o reconhecimento judicial de tal posição jurídica – neste sentido, entre outros, consultem-se os acórdãos do STJ de 3/3/1998[1], proferido no processo 160/98, do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/12/2019, proferido no processo 6441/16.4T8LSB-2[2], de 2/11/2006, proferido no processo 8566/2006-6[3], do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/11/2018, proferido no processo 73/16.4BEMDL.G1[4], do Tribunal da Relação de Porto de 1/3/2007, proferido no processo 0636972[5], de 1/6/2006, proferido no processo 0633018[6].
Aliás, não assistindo ao legatário o direito a requerer o inventário, o reconhecimento pleno da posição jurídica do legatário ficaria na total dependência dos herdeiros que poderiam instaurar ou não e quando lhes aprouvesse o processo de inventário, convertendo-se o direito do legatário, na prática, a um direito desprovido da garantia judiciária, o que se mostra vedado, designadamente pelos artigos 20º/5 da CRP e 2º/2 do NCPC.
De todo o modo, afigura-se-nos claro o reconhecimento legal do direito que o legatário tem já sobre o seu legado por via da simples aceitação, independentemente da efectivação da partilha e sem prejuízo da eventual redução do legado por inoficiosidade (arts. 1118º e 1110º do NCPC) – no sentido de que a eventual inoficiosidade do legado não obsta à transmissão para o legatário dos direitos sobre os bens legados sem necessidade de partilha, consulte-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2017, proferido no processo 1372/17.3T8OAZ.P1.”
No caso do presente recurso, estando em causa o legado de “todo o dinheiro que se encontrar depositado nas contas bancárias de que é titular junto do Banco 1..., S.A.” – depósito bancário –, não se pode afirmar que estamos perante “coisa certa e determinada”.
Na realidade o depositante tem um direito de crédito sobre o banco que corresponderá a um saldo existente decorrente de operações de débito e de crédito – artigo 344.º do Código Comercial. O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artigos 408.º do Código Comercial e 1.º do Decreto Lei n.º 430/91, de 2 de Novembro).
Em sustento do afirmado podemos respigar a fundamento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 4482/20.6T8LSB.L1.S1, de 24.05.2022, relatado pelo Cons ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS: “Efetivamente, o depósito de dinheiro/valores num banco não passa de um mero contrato obrigacional, “pelo qual uma pessoa (depositante) confia dinheiro a uma instituição bancária (depositário), a qual, tornando-se proprietária dos fundos depositados, fica com direito de livremente dispor deles para as necessidades da sua atividade profissional e assume a obrigação de restituir outro tanto em conformidade com o estipulado pelas partes”[11], contrato de que, após ser validamente celebrado (isto é, após, o depositante haver entregue os fundos a depositar - contrato real), resulta a obrigação de restituir a cargo do banco, obrigação de restituir que, no chamado depósito ou conta coletiva solidária[12], vincula o banco a restituir a totalidade dos fundos depositados a qualquer um dos titulares da conta.”
No mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 447/09.7TJCBR.C1, de 12.07.2022, relatado pelo Des HENRIQUE ANTUNES: “A titularidade do depósito pertence àquele em nome do qual o depósito foi feito, sujeito a quem pertence, em termos jurídico-bancários, o crédito sobre o banqueiro, no caso, evidentemente, de o depósito apresentar um saldo positivo; a propriedade do dinheiro é, naturalmente, do banco, sendo o titular do depósito, quando muito, titular da moeda escritural, representada pela inscrição a crédito seu, na respectiva conta corrente; a propriedade económica do dinheiro depositado, objeto de lançamento a crédito, pode pertencer ao titular ou titulares da conta, ou só a alguns deles, em partes iguais ou desiguais, ou mesmo a nenhum deles, mas a terceiro, ponto que – como já se fez notar – assume particular relevância nos depósitos plurais solidários ou nos depósitos plurais mistos, que apresentem características típicas da solidariedade.”
Concluindo, estamos perante um legado obrigacional, porque tem como objecto um crédito – artigo 2261.º do Código Civil.
Assim sendo, de quem poderá a legatária, apelante, reclamar o cumprimento do legado?
A resposta a esta questão foi já atrás adiantada.
“3. Confrontando agora o artigo 1857.° do Código de 1867 com o texto do artigo 2279. do novo Código, fácil é concluir que neste se manteve a dupla solução consagrada na legislação anterior.
Por um lado, desde que a coisa legada, certa e determinada, se encontre na posse de terceiro, a lei continua a não exigir que, uma vez aceite a herança pelo herdeiro, o legatário exija deste o cumprimento do legado e a consequente entrega da coisa legada, admitindo que o legatário reivindique directamente do terceiro possuidor a coisa legada.
Não se exige, portanto, que o legado tenha sido já entregue ao herdeiro, pois nesse caso o direito de reivindicação resulta já do direito (geral) de propriedade.
E é líquido, naturalmente, que este direito de reivindicação directamente atribuído ao legatário (contra o terceiro possuidor da coisa certa legada) não prejudica o direito geral de reivindicação atribuído ao herdeiro (art. 2075.º, n.º 1), nem o direito funcional correspondente reconhecido ao cabeça-de-casal (art. 2088.°).
4. Por outro lado, depreende-se implicitamente do texto do artigo 2279.º que, mesmo tratando-se do legado de coisa certa e determinada, quando esta se não encontre na posse de terceiro nem do próprio legatário, é através da acção de cumprimento do legado, instaurado contra quem deva cumpri-lo (art. 2265.º, n.os 1 e 2), que a entrega do legado há-de ser obtida (Oliveira Ascensão, ob. cit., n.º 226, pág. 487).", Código Civil Anotado, Vol. IV, 1998, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, pág.439.
O legatário pode vir pedir a entrega do legado por via de acção comum. Assim, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 1372/17.3T8OAZ.P1, de 27.11.2017, relatado pelo Des CARLOS GIL, sumariado, “I - Em virtude do direito do legatário incidir sobre bens ou valores determinados, não lhe é reconhecido o direito de exigir a partilha, direito que é legalmente conferido a qualquer co-herdeiro ou ao cônjuge meeiro (artigo 2101º, nº 1, do Código Civil) e que se exerce mediante acordo ou por meio de inventário. II - Os legados dispositivos implicam uma diminuição do ativo da herança, enquanto os legados obrigacionais determinam o aumento do passivo da herança. III - No caso dos legados dispositivos, “o direito passa recta via do falecido para o legatário”, enquanto nos “legados obrigacionais a aquisição da propriedade a favor do legatário dá-se por efeito de acto do sucessor onerado que, em cumprimento da obrigação imposta, lha transmite ou contrata com terceiro transmitir-lha”. IV - Porque a posição jurídica de legatário tem pressuposta a determinação do bem ou valor a que é chamado a suceder, não sendo instaurado inventário, é processualmente adequada a defesa e o pleno reconhecimento de tal posição jurídica com recurso à ação declarativa comum.”
Por fim, importa decidir a quem pode o legatário pedir o seu cumprimento, ie, a quem recai a obrigação de cumprimento do legado, se ao(s) herdeiro(s), se a terceiro, aqui recorrido banco.
“III- No que respeita à reclamação do objecto do legado, devemos começar por distinguir consoante este se refere a:
- coisa certa e determinada;
- outro qualquer bem.
No primeiro caso, temos ainda de distinguir consoante o legatário, na altura da aceitação:
- detinha essa coisa.
- não a detinha.
Se detinha essa coisa, seja a que título for, nenhum problema de entrega se coloca subsequentemente. Concentram-se no legatário a propriedade, que aliás retroage ao momento da abertura da sucessão, e a posse. Conjugue-se todavia esta matéria com o que se disse atrás, sobre uma eventual devolução em benefício do legatário (1 – supra, n.º 199).
IV - Se o legatário não detinha a coisa, temos de novo de distinguir. Ou essa coisa está em poder:
- dum herdeiro, doutro legatário ou doutra pessoa a quem incumba o cumprimento do legado;
- de terceiro.
Se está em poder de terceiro, o legatário pode reivindicar a coisa legada (art. 2279.º).
No segundo caso, o legatário deve pedir o cumprimento do legado. Em princípio, o cumprimento incumbe aos herdeiros, mas o testador pode impor o cumprimento só a algum ou alguns dos herdeiros, ou a algum ou alguns dos legatários (art. 2265.º/1 e 2 e art. 2276.º).
Quanto à entrega do legado, estabelece o art. 2270.º que na falta de declaração do testador sobre a entrega do legado, esta deve ser feita no lugar onde a coisa legada se encontrava ao tempo da morte do testador e no prazo de um ano a contar dessa data, salvo se por facto não imputável ao onerado se tornar impossível o cumprimento dentro desse prazo.
Se o legado consistir em dinheiro ou coisa genérica que não exista na herança, a entrega deve ser feita de lugar da abertura da sucessão (1 Cfr. supra, n.º 64/II). “, Direito Civil Sucessões, 4.ª ed., OLIVEIRA ASCENÇÃO, págs.486 a 489.
Como vimos, não recai sobre o cabeça-de-casal a obrigação de cumprir os legados – artigo 2090.º do Código Civil, pois que tal não cabe nos seus poderes de administração da herança, uma vez que apenas tem poderes de administração ordinária da herança.
“I- Em tudo o que não respeita aos poderes do cabeça- -de-casal, exceptuando e o que a seguir diremos sobre o testamenteiro, vale a regra do art. 2091.º/1: fora dos casos especialmente previstos na lei, como o da reivindicação dos bens em poder de terceiro, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Processualmente, há litisconsórcio necessário.
II- Deixando sempre de parte o que especificamente se liga à situação resultante da pluralidade de herdeiros, temos aqui consagrada uma regra geral quanto à actuação sobre o património hereditário. Particularmente temos que só os herdeiros podem em geral praticar:
1) A disposição dos bens;
2) O pagamento do passivo hereditário;
3) A defesa judicial dos direitos contestados, nomeadamente a cobrança de dívidas activas.”, ob. cit, pág. 496.
Concluindo, no caso dos autos, não estamos perante uma coisa certa e determinada, antes um direito de crédito sobre a entidade bancária, aqui R., que está na posse da quantia depositada existente nas contas bancárias, o cumprimento do legado deverá exigido aos herdeiros do de cujus. Neste sentido, para além da jurisprudência citada supra, vide Acórdão Tribunal da Relação do Porto 6312/16.4T8MAI.P1, de 08.03.2019, relatado pelo Des CORREIA PINTO, sumariado, “II - Encontrando-se o legado na posse de terceiro, o legatário pode reivindicar directamente deste a coisa legada, contanto que esta seja coisa certa e determinada.”
Deste modo, a apelante, legatária, deveria ter respondido positivamente ao convite feito, e demandar todos os herdeiros, pois somente a estes ela pode vir pedir o cumprimento do legado, como se deixou atrás decidido. Não estando estes presentes na demanda, por ilegitimidade passiva, sendo caso de litisconsórcio passivo obrigatório, terá esta demanda que perecer, com a consequente absolvição da instância do R. banco – artigos 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º, do Código de Processo Civil.
Deste modo, discordamos da fundamentação incita na decisão objecto de recurso – que julgou a A. como parte ilegítima. Na realidade e na sequência do atrás firmado, os herdeiros deveriam estar presentes na demanda mas na parte passiva, como demandados, ie, distintamente do decidido pela primeira instância – litisconsórcio activo obrigatório – é caso de litisconsórcio passivo obrigatório. E nesta parte, não pode manter-se o decidido.
Como nota, não será caso de audição das partes quanto a este fundamento, pois que a questão foi expressamente suscitada e colocada pelas partes na primeira instância e bem como nesta instância de recurso e, portanto, não se dá cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, por fundamentos distintos dos indicados pela primeira instância.
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Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão que absolveu o Réu da instância, por violação de litisconsórcio obrigatório, por ausência dos herdeiros do de cujus na causa, no lado passivo.
Custas pela apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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