PROVA PERICIAL
FACTOS RELEVANTES
ACTO INÚTIL
Sumário

SUMÁRIO (art. 663º, n.º7, do CPC):
I. A prova pericial constitui um meio de prova a realizar nas situações em que, para o apuramento de um facto, seja necessário apelar ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, que assume a função de perito e que irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão desse conhecimento especial
II. A prova pericial deve recair sobre os “factos da causa” que se mostrem carecidos de demonstração no processo. Caso tais factos já se encontrem provados no processo, a perícia não deve ser realizada por não ser pertinente e não revestir utilidade para o processo.

Texto Integral

acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I.
Nestes autos de acção com a forma de processo comum intentados por A …, contra B …, Lda, aquele pediu que:
a) Seja declarada a anulação do negócio celebrado entre si e a ré através do qual vendeu à segunda metade do imóvel descrito em 4º e 5º, com as legais consequências;
b) Seja ordenado o cancelamento da Ap. … de 10/01/2023, através da qual a ré registou a aquisição do imóvel a seu favor.
Em síntese, alega que:
- em 15-11-2022, celebrou com a ré, pelo preço de € 60 000,00, contrato de compra e venda da quota de metade do direito de propriedade sobre o imóvel sito na Rua …, n.º …, Valbom, Carvoeira, com a área de implantação de 94,18 m2, composto por cave destinada a garagem, rés do chão e sótão
destinados à habitação, anexo para arrumos com a área de 12 m2 e logradouro com a área de 1893,82 m2, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o n.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob n.º …º, o qual foi precedido de contrato promessa;
- aceitou vender a sua parte no direito de propriedade pelo valor de €60.000,00 apenas porque foi convencido, por terceiro que identifica, de que esse era o seu valor de mercado e porque lhe foi incutido, pelo mesmo terceiro, que era a única forma de não o perder na totalidade ou receber quantia entre os €5 000, 00 e €10 000,00, na sequência de uma qualquer venda judicial, que não existia;
- caso soubesse que o valor do direito que alienou era superior a € 200 000,00, como ocorre, não teria assinado o contrato acima referido;
- o legal representante da ré sabia que os seus motivos para decidir vender provinham do que relatava o aludido terceiro, bem como sabia que o real valor do imóvel é substancialmente superior ao da compra e venda em causa na presente acção;
- o contrato de compra e venda é anulável com fundamento nos arts. 251º, 254º e 253º do CC.
Em sede de requerimento probatório, apresentado no termo do articulado inicial, indica-se prova pericial, a realizar por um único perito, com o seguinte objecto:
- Qual o valor de mercado de metade da casa de habitação sita na Rua …, n.º …, Valbom, freguesia da Carvoeira, concelho de Mafra, com a área de implantação de 94,18 m2, composta por cave destinada a garagem, rés do chão e sótão destinados à habitação, anexo para arrumos com a área de 12 m2 e logradouro com a área de 1893,82m2, inscrita na matriz predial urbana da referida freguesia sob o n.º … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob n.º ….
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A 08-09-2023, foi apresentada contestação onde, além de se impugnar o alegado pelo autor, designadamente quanto à ocorrência do erro provocado por dolo, incluindo quando ao valor do direito pelo mesmo alienado a favor da ré, se concluiu pela improcedência do pedido formulado pelo autor, de anulação do negócio, por o vício na formação da sua vontade carecer de fundamento e por não ser feita a menor menção à disponibilidade do autor para a  reembolsar do capital e despesas que suportou com o contrato de compra e venda, cuja anulação requer.
Na mesma peça processual, deduziu-se reconvenção onde se pede que:
a) Seja provido o pedido resolução do contrato de compra e venda do direito de compropriedade sobre o prédio descrito nos autos, celebrado pelo autor e a ré no dia 15 de Novembro de 2023, com o consequente reembolso da importância de € 77 376,97, correspondente ao preço e às despesas efetuadas, acrescida de juros comerciais à taxa legal, que neste momento somam € 5 268,73, a que acrescem os juros vincendos; bem como de uma compensação pela desvalorização monetária, causada pela inflação, que atualmente é de € 2 629,28 e deve prosseguir até ao total reembolso do preço e das despesas efetuadas, com cálculo pela taxa de inflação divulgada pelo INE;
b) Subsidiária e alternativamente, para o caso de o autor não proceder ao depósito das importâncias devidas, à ordem do processo, seja declarada a validade do contrato de compra e venda e a ré seja declarada legítima comproprietária do prédio descrito nos autos, na proporção de metade do prédio, sem determinação de parte ou direito.
c) O autor seja condenado em multa por litigância de má fé e uso indevido dos meios judiciais.
No articulado em referência, em sede de requerimento probatório, alega-se que a perícia requerida pelo autor é um expediente dilatório do mesmo para prolongar o tempo da presente acção e que, quer a resolução do contrato por si peticionada quer a anulação do mesmo pedida pelo autor, tornam inútil a avaliação do prédio.
Mais se alega que, a entender-se haver lugar à realização da perícia mencionada, é desejável que seja colegial ou, se for singular, que seja requisitada a um técnico do LNEC porque a mesma só pode fazer-se por método comparativo e contemplando a segurança do imóvel a avaliar.
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A 16-10-2023, foi apresentada réplica onde se pugnou pela improcedência do pedido reconvencional bem como da condenação a título de litigância de má-fé, além do mais.
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A 04-06-2024, realizou-se audiência prévia, onde se admitiu a reconvenção e se fixou o objecto do litígio nos seguintes termos:
- Apurar a verificação ou não de erro na formação da vontade quanto ao autor, no que respeita ao negócio celebrado a 15-11-2022.
- Determinar acerca da procedência ou não da resolução do aludido negócio celebrado.
Na mesma decisão, foram fixados os temas da prova nos seguintes termos:
a) Determinar os motivos concretos pelos quais o autor celebrou a 15-11-2022 o negócio em apreço.
b) Das motivações que levaram a sociedade ré a celebrar o negócio.
c) Determinar se algumas das partes actua processualmente de forma dolosa ou gravemente negligente contra o Direito.
Na mesma diligência, determinou-se a notificação das partes para declararem se aderem ao quesito único indicado na parte final da petição inicial (a que acima se fez referência) ou se acrescentam outros quesitos, nos termos do art. 476º do CPC, dispondo, para o efeito, de 10 dias.
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A 14-06-2024 (com junção a 15-06-2024), o autor declarou que mantinha o quesito único apresentado na petição inicial, que a qualidade construtiva do imóvel deverá ser um dos critérios a ponderar na avaliação a realizar, que a perícia deverá ser singular e que não encontra razão para que a mesma tenha de ser efectuada por perito do LNEC.
Mais alega que, face ao referido na contestação, o objecto da perícia deverá ser alargado de modo a conter os seguintes quesitos:
1) Qual o valor de mercado de metade da casa de habitação sita na Rua …, n.º …, Valbom, freguesia da Carvoeira, concelho de Mafra, descrita com a área de implantação de 94,18 m2, composta por cave destinada a garagem, rés do chão e sótão destinados à habitação, anexo para arrumos com a área de 12 m2 e logradouro com a área de 1893,82m2, inscrita na matriz predial urbana da referida freguesia sob o n.º … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob n.º … ?
2) Qual é a actual área total do imóvel?
3) A área de implantação da casa de habitação é de 94,18m2 e a área de implantação do anexo para arrumos é de 12m2?
4) Qual a capacidade edificativa do imóvel?
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A 17-06-2024, a ré declarou que não se opunha à realização da perícia requerida pelo autor, tendo alegado que:
- reitera o que já referiu na contestação quanto à pouca relevância da avaliação a realizar para a lide, não se opondo à sua realização;
- deixa de insistir na realização de perícia colectiva, sem prejuízo de, à cautela, indicar perito para o caso de a mesma ser determinada;
- indica os quesitos, a acrescer ao apresentado na petição inicial, que deverão constituir o objecto da perícia:
1º - A casa existente no prédio apresenta, sob o ponto de vista:
a) arquitectónico;
b) construtivo;
c) de acabamentos;
d) do conforto de utilização;
uma qualidade:
i. muito boa,
ii. boa,
iii. razoável,
iv. medíocre ou
v. má.
2º - Qual o valor de mercado do prédio, com a casa nele existente, em 15 de Outubro de 2023?
3º - Quanto valeria, na mesma data, o prédio, que é urbano e apto para edificação, sem a casa?
4º - Quanto custa a demolição da casa e a remoção dos detritos daí resultantes?
5º - Quanto pesa, na avaliação do prédio, a ausência de infra estruturas e equipamentos públicos, como a inexistência de transportes coletivos, de restauração, de cafés, de mercearia e de outros estabelecimentos comerciais nas redondezas?
6º - Qual o valor concreto, nessa data, da quota ideal de 50% do direito de propriedade, sem determinação de parte ou direito e sem posse, do prédio objecto dos autos, no caso de dois dos comproprietários, com a quota de 25% cada um, estarem em litígio entre si e ambos hostis ao comproprietário titular da quota ideal de 50%, com a consequente limitação da possibilidade de aprovação de projectos de construção para o local e da prática de actos de disposição pelo proprietário da quota (50%) avaliada?
7º - A moradia indicada pelo A. na PI é propriedade de um ou de vários proprietários e é adequada como termo de comparação para avaliar o prédio objecto dos autos e o direito à metade dele?
8º - Os terrenos indicados pela Ré na Constestação, mesmo que pertençam, cada um, a um único proprietário, são adequados como termo de comparação para avaliar o prédio objecto dos autos e o direito à metade dele?                                     
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A 27-06-2024, foi proferido despacho onde, além do mais, se decidiu nos seguintes termos, quanto ao pedido de realização de perícia formulado pelo autor na petição inicial e reiterado no requerimento junto a 15-06-2024:
Atendendo ao teor dos articulados, tendo presente os consequentes objectos do litígio e temas de prova, os quais foram fixados na audiência realizada a 4-6-2024, entendo que a realização de perícia ao imóvel não configura meio probatório essencial à boa Decisão da presente causa.
Com efeito, e sem jamais poder adiantar qualquer aspecto respeitante à Decisão final de mérito, quer seja procedente o pedido principal ou, ao invés, A procedência deva ser conferida ao peticionado na reconvenção, como efeito basilar teremos sempre que o imóvel regressará à esfera jurídica do autor e, concomitantemente, o mesmo autor terá devolver o valor monetário recebido a título de preço; pelo que – na esteira do expresso pela ré (R. de 17-6-2024) – a diligência pericial não alteraria substancialmente tais obrigações.
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 476.º, n.º 1 do Cpc, entendo que a realização de perícia no presente caso configura diligência impertinente e, em consequência, indefiro-a.
Notifique.”
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O autor, a 03-09-2024, interpôs recurso da decisão mencionada, que culminou com as seguintes conclusões (transcrição):
“1- Vem o presente recurso do despacho de não admissão da perícia por si requerida com vista a provar o valor de mercado da metade do imóvel em causa no presente processo.
2- Os fundamentos da decisão recorrida foram que o alegado nos articulados e os temas de prova fixados implicam que a requerida perícia não seja necessária à boa decisão da causa, sendo por isso, impertinente.
3- Sucede que, além do mais, foi fixado o seguinte tema de prova:
a) Determinar os motivos concretos pelos quais o autor celebrou a 15-11-2022 o negócio em apreço.
4- Acresce que a causa de pedir na presente Acção inclui factos que se relacionam com o valor do imóvel, mais concretamente, nos artigos 28º, 29º, 40º, 41º, 62º e 63º, alegando o Autor que foi convencido de que a sua propriedade tinha um valor substancialmente inferior ao real e que tal foi determinante na formação da sua vontade.
5- Por outro lado, afirmar que a consequência da procedência da Acção irá ter os exactos mesmos efeitos da procedência da reconvenção deduzida pela Ré é contraditório com o teor dos articulados, uma vez que o valor pedido na reconvenção é substancialmente superior ao preço pago pela Ré, que veio pedir, além da restituição desse montante, a quantia total de €17.376,97, acrescida de juros vincendos e da actualização do valor que pagou pelo imóvel à luz da desvalorização monetária.
6- A consequência da procedência do pedido de anulação do negócio em causa não é idêntica à que advirá da procedência do pedido reconvencional.
7- Como vem sendo opinião dominante na doutrina e jurisprudência, a perícia é impertinente quando é requerida relativamente a factos que não condicionam a decisão final ou cuja averiguação não carece de conhecimentos especiais.
8- Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Setembro de 2022, proferido no processo 739/22.0T8PDL-A.L1-2, publicado em www.dgsi.pt, e a doutrina e jurisprudência ali citada.
9- Salvo o devido respeito por opinião contrária, os factos a que respeita a perícia, ao contrário do referido no despacho recorrido, condicionam a decisão final, ainda que não houvesse reconvenção.
10- O Autor invoca a existência de erro nos motivos determinantes da sua vontade, quanto ao objecto do negócio, mais concretamente, quanto ao valor do imóvel, e alega factos que, a lograr provar, serão suficientes, por si só ou em conjugação com os restantes, para que possam ser enquadrados no disposto nos art.s. 247º, 251º, 253º n. 1 e 254º do Código Civil.
11- A causa de pedir do Autor não se cinge aos factos relacionados com o valor da metade do imóvel, no entanto, tal como estes, poderá ou não conseguir prová-los.
12- A não realização da perícia poderá comprometer a prova dos factos em que a posição do Autor se funda.
13- O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 388º do Código Civil e 476º n. 1 do CPC.
No termo da peça processual em referência, no pressuposto da procedência do recurso, pugna-se pela revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita a perícia e fixe o seu objecto.
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Não foi apresentada resposta ao recurso
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A 04-11-2024, o recurso foi admitido, com subida em separado e com efeito devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal.
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II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º4, 636º e 639º, n.º1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608º, n.º2, parte final, ex vi do art. 663º, n.º2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita à seguinte questão:
- Saber se a prova pericial requerida pelo autor deve ser admitida e, em caso positivo, qual o seu objecto.
*
2.
De acordo com o art. 388º do Cód. Civil, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Decorre do preceito mencionado que a prova pericial respeita a factos determinados e tem por fim esclarecer o Tribunal sobre o seu significado e alcance, “no pressuposto que a sua natureza e complexidade técnica exigem conhecimentos especiais que escapam ao juiz, sendo por esta razão que tem que ser produzida por pessoas dotadas de especiais conhecimentos no domínio científico, técnico, artístico, experimental e profissional e tem por objecto, à luz desse tipo de conhecimento, a perceção, apreciação e valoração desses factos (Ac. do TRL de 17-10-1996, processo n.º 0074676, acessível em dgsi.pt).
A prova pericial “traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos específicos ou técnicos especiais (…); ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 262-263)..
Na prova pericial, o perito não traz ao tribunal apenas a perspectiva de factos, tendo também o poder de trazer a apreciação ou valoração de factos, ou apenas esta (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 576).
O perito deve ser pessoa qualificada e exercer a sua actividade sobre dados técnicos e sobre matéria de índole especial, podendo afirmar-se que “maneja uma experiência especializada”, fornecendo ao “juiz critérios de valoração ou apreciação dos factos, juízo de valor, derivados da sua cultura especial e da sua experiência técnica”, sendo que a sua função é “mobilizar os seus conhecimentos especiais em ordem à apreciação dos factos observados” (Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, p. 168, 169 e 181).
A prova pericial constitui um meio de prova a realizar nas situações em que, para o apuramento de um facto, seja necessário apelar ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, que assume a função de perito e que irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão desse conhecimento especial, para expor as suas observações e as suas impressões sobre os factos presenciados, e retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, sendo que, desta forma, concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, atento o que julgador não detém esses conhecimentos especiais (cf., a propósito, a título de exemplo, os acórdãos do TRP de 15-09-2022, proc. nº739/22.0T8PDL-A.L1-2, e de 26-10-2020, proc. nº258/18.9T8PNF-A.P1, e do TRG de 14-09-2023, processo n.º 52/20.7T8PVL-A.G1, todos acessíveis em dgsi.pt).
Admitida a prova pericial, por força do disposto no art. 472º, n.º2, do CPC, incumbe ao juiz, no despacho que ordena a realização da perícia, determinar o seu objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
Decorre do preceito acabado de referir que a limitação do objecto da perícia, face ao proposto pelas partes, deve fundar-se na inadmissibilidade, designadamente, por serem insusceptíveis de prova em geral ou de prova pericial em particular, ou na irrelevância para a solução do caso concreto (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ªedição, Coimbra Editora, p. 326).
Importa, ainda, atentar em que a prova pericial pode reportar-se a factos passados ou futuros, competindo nestes casos ao perito tentar fazer uma reconstrução dos factos do passado e de estabelecer uma relação de causa-efeito ou, tentar fazer uma projeção dos efeitos futuros dos factos de acordo com a mesma relação causa-efeito, respetivamente, com os elementos que tiver ao seu dispor (cf. acórdão do TRL de 15-09-2022, processo n.º 739/22.0T8PDL-A.L1-2, e o acórdão do TRG de 14-09-2023, processo n.º 52/20.7T8PVL-A.G1 acima referido).
Por outro lado, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (CPC Anotado, vol. I, 3ª edição, 2024, Livraria Almedina, p. 582), a prova pericial deve recair sobre os “factos da causa”, “que são os factos essenciais alegados pelo autor para fundamentar a causa de pedir, os factos essenciais alegados pelo réu na contestação, para fundamentar as excepções, os factos essenciais alegados pelo autor na réplica, audiência prévia ou no início da audiência final (art. 584º, n.º 1, 3 e 4) para fundamentar as contra-exceções que invocou contra o réu e, bem assim, os factos complementares e instrumentais dos essenciais pertinentemente alegados”, sendo impertinente ou dilatória quando não respeita a tais factos.
Releva, também, que a perícia incide sobre factos que se mostrem carecidos de demonstração no processo. Caso tais factos já se encontrem provados no processo, a perícia não deve ser realizada por não ser pertinente e não revestir utilidade para o processo (arts. 476º, n.º1, e 6º, n.º1, do CPC).
Passando ao caso dos autos, importa atentar em que o autor funda a sua pretensão (de anulação do contrato de compra e venda que identifica e de consequente cancelamento da inscrição registal efectuada com base em tal negócio) na existência de erro, provocado por dolo de terceiro, sobre, além do mais, o valor de mercado da quota ideal do direito de propriedade que alienou a favor da ré, sendo tal erro determinante da formação da sua vontade em celebrar o negócio cuja invalidade invoca e que, se soubesse que tal valor era superior a € 200 000,00, como ocorre, não teria celebrado tal negócio (cf. arts. 62º a 64º da petição inicial).
A factualidade atinente à existência do erro acima mencionado, que se encontra alegada nos arts. 62º a 64º da petição inicial, mostra-se impugnada na contestação, como se afere do alegado nos seus arts. 96º e 97º.
O erro invocado pelo autor atinente ao valor de mercado do direito mencionado consiste numa falsa representação deste.
Do referido, bem como do disposto nos arts. 253º, n.º1 e 2, e 254º, n.º2, do CC, invocados pelo autor, resulta que o facto de o valor de mercado do direito que o autor transmitiu à ré no contrato de compra e venda cuja anulação peticiona ser superior a € 200 000,00 é um facto essencial alegado pelo autor para fundamentar a causa de pedir e que o mesmo se mostra controvertido na lide, pelo que carece de ser demonstrado no processo.
O apuramento de tal facto demanda, face à sua natureza e complexidade, conhecimento técnico referente ao mercado, que não está ao alcance do julgador, designadamente, por meio de consulta de prova documental.
Entende-se, pelo exposto, que a percepção da matéria em referência pode e deve ser efectuada por prova pericial.
Por outro lado, os quesitos propostos pelo autor e pela ré nos requerimentos juntos a 14-06-2024 e 17-06-2024, respectivamente, respeitam a elementos que, a verificarem-se, poderão ser ponderados no apuramento do facto objecto da perícia, que se reconduz ao valor da quota no direito transmitida pelo autor à ré.
Razão por que se entende que tais quesitos não deverão integrar o objecto da perícia.
Face ao referido, entende-se que a decisão recorrida deve ser revogada e determinar-se a realização da perícia requerida pelo autor, fixando-se o seu objecto, ao abrigo do art. 476º, n.º2, do CPC, nos seguintes termos:
- Em 15-11-2022, qual era o valor de mercado do direito a metade indivisa do imóvel sito na Rua …, n.º …, Valbom, Freguesia de Carvoeira, com a área de implantação de 94,18 m2, composto por cave destinada a garagem, rés do chão e sótão destinados à habitação, anexo para arrumos com a área de 12 m2 e logradouro com a área de 1893,82 m2, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o n.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob n.º …º ?
A perícia a realizar não reveste especial complexidade nem exige conhecimento de matérias distintas.
Face ao referido e à concordância das partes, ao abrigo do art. 468º, n.º1, do CPC, determina-se que a perícia seja singular, a realizar por pessoa a nomear pelo tribunal recorrido.
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Procede, assim, a apelação, impondo-se revogar a decisão recorrida e determinar a realização da perícia com o objecto e termos acima enunciados.
O recurso mostra-se, face ao exposto, procedente.
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3.
O autor/recorrente deverá suportar as custas do recurso uma vez que dele tirou proveito (art. 527º, n.º1, parte final, do CPC).
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III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso interposto pelo autor procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, proferida a 27-06-2024, e determina-se a realização da perícia peticionada pelo autor, que será singular e terá por objecto a questão de facto enunciada no ponto 2 da fundamentação, a realizar por pessoa a nomear pelo Tribunal recorrido.
Custas do recurso pelo recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 19-12-2024.
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Caetano Besteiro
João Paulo Raposo
Susana Maria Mesquita Gonçalves