O requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa acção cujo conhecimento é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( cfr. alínea o) do nº 1 do artigo 4º do ETAF).
(Sumário elaborado pela relatora)
Rematou as suas alegações com o seguinte acervo conclusivo:
a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do JUÍZO LOCAL CÍVEL Local 1, do Tribunal Judicial da Comarca Local 1, para decidir o pedido da Autora e requerente Data Rede SA., absolvendo consequentemente a Ré da Instância.
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal Local 1, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade.
c) No seguimento deste contrato de concessão, a Data Rede adquiriu e instalou em vários locais da cidade Local 1, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Nos locais de instalação das referidas máquinas, a Autora colocou, entre outra informação, avisos e informações sobre os tempos de utilização dos parques de estacionamento, preços, condições de utilização e modo de funcionamento da máquina.
e) A Ré, por sua vez, é proprietária e utilizadora do veículo ligeiro automóvel com a matrícula ..-XI-...
f) Enquanto utilizadora do referido veículo automóvel, a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade Local 1, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 2.623,60 que a requerida recusa pagar.
g) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
h) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
i) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, por outro lado, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública, mas sim no âmbito da gestão que lhe compete fazer enquanto entidade privada.
j) Por outras palavras, a Câmara Municipal Local 1 celebrou com a A., aqui recorrente, um contrato de fornecimento, instalação e exploração de parquímetros na cidade Local 1.
k) O contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida não se confunde com os contratos de natureza pública, celebrados entre uma entidade privada e uma entidade pública, munida de poderes de autoridade.
l) Com efeito, a recorrente ao atuar perante terceiros, neste caso o recorrido, não se encontra munida de poderes de uma entidade pública, e sim com poderes de uma entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre A. e R., relativo à utilização dos parqueamentos explorados pela requerente, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.
m) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
n) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
o) Que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, mas sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, merecedora de aceitação pura e simples do utente, mediante o pagamento de retribuição.
p) Assim, estabelecendo A. e R. uma relação contratual de facto, o Tribunal competente é o Tribunal Judicial e não o Tribunal Administrativo e Fiscal.
q) Não estando em causa a natureza do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, também, este primeiro contrato ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes.
r) Tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes atuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.
s) Os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas.
t) A jurisdição administrativa, por seu lado, é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses no âmbito das relações jurídicas administrativas.
u) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.
v) Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».
w) Mal andou, assim, o tribunal a quo, ao referir-se ao pedido de pagamento dos preços da atividade comercial da recorrente, como um pedido de pagamento de taxas, utilizando para tal referências à alínea e) do Nr.1 do artigo 4º do ETAF, na versão anterior à Lei 114/2019 de 12 de setembro, que fazia expressa referência aos contratos de concessão.
x) Ainda que fosse essa a versão do ETAF a ser utilizada, a verdade é que a norma erradamente referida, apenas incluía na competência dos tribunais administrativos, as relações de concessão em que as partes houvessem submetido a relação expressamente a um regime substantivo de direito público.
y) O que, mais uma vez não seria o caso, pois as partes não pretenderam submeter a concessão de exploração a qualquer regime substantivo de direito público, não conferindo à concessionária, prerrogativas de autoridade.
z) A Data Rede, ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados.
aa) Mesmo a putativa submissão das partes a Regulamento Municipal, não permite caracterizar a natureza da relação, uma vez que a atividade da recorrente não está vinculada às normas do mesmo, sejam preços, sejam critérios de exploração, nem se prevendo a aplicação supletiva.
bb) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente os valores que tiverem sido sonegados pelos utentes.
cc) De resto, a jurisprudência citada pela douta sentença, resulta manifestamente desatualizada por referente a normas que já não estão em vigor, fruto da revisão operada pela aludida Lei 114/2019.
dd) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos erradamente citados pela Sentença a quo, quer os artigos 96º, al. a), 97º Nr.1, 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al.e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, E EM CONSEQUÊNCIA, SER A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SUBSTITUIDA POR OUTRA, QUE JULGANDO COMPETENTE O JUÍZO LOCAL CÍVEL Local 1, ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS, CONFORME É DO DIREITO E DA J U S T I Ç A.”
3. Não houve contra-alegações.
4. Considerando que a questão a decidir é simples e já foi objecto de, pelo menos, um Acórdão do Tribunal de Conflitos passa-se a proferir, ao abrigo do disposto art.º 656º do CPC, decisão singular.
5. O recurso foi admitido com o efeito correcto e modo de subida adequado, sendo que o seu objecto se circunscreve à questão de saber se os Tribunais comuns são (in)competentes para conhecer da presente acção intentada pela ora recorrente/autora - a quem por contrato celebrado em 9 de Outubro de 2019 com a Câmara Municipal Local 1, foi concessionada a exploração do estacionamento tarifado de superfície - tendente a obter da ré /recorrida o pagamento das quantias pela mesma devidas pela utilização dos parqueamentos com o veículo com a matrícula ..-XI-.. de que é proprietária.
II- FUNDAMENTAÇÃO
a. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam do antecedente relatório e, bem assim, que é o seguinte o teor da decisão proferida neste conspecto pelo Tribunal “a quo”:
“Da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria:
Data Rede – Sistemas de Dados e Comunicações, SA deduziu procedimento injuntivo contra BB, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia global de €2.923,20.
Tendo sido deduzida oposição, o processo foi remetido à distribuição como acção declarativa especial para cobrança de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos do DL n.º 269/98 de 01/09.
A Autora alegou que se dedica à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, que colocou em vários locais da cidade Local 1 máquinas para pagamento da utilização dos parqueamentos e que a Ré, proprietário do veículo com a matrícula ..-XI-.., não procedeu aos pagamentos devidos pelo respectivo uso.
Em sede de oposição, a Ré invocou a excepção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, por entender que o litígio deve ser apreciado pela jurisdição administrativa e fiscal.
Cumpre apreciar.
A competência material determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pela respectiva causa de pedir, tal como se encontram configurados no articulado inicial.
Resulta do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 1º nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF – Lei n.º 13/2002 de 19/02) que compete à jurisdição administrativa julgar os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Uma relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares.
Sob um diferente prisma, uma relação jurídica administrativa será também aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração.
No presente caso, impõe atentar no disposto no artigo 4.º, n.º 1 e) do ETAF, segundo o qual compete à jurisdição administrativa conhecer de questões relativas à “validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
Ora, sendo a Autora concessionária de um serviço público, por via de contrato de concessão celebrado necessariamente com o Município Local 1, e assistindo-lhe o direito de cobrar um determinado montante pela utilização dos parques de estacionamento que explora, entendemos que está em causa uma questão de interesse público subjacente a um contrato de natureza administrativa.
Os montantes devidos pela utilização dos parqueamentos consubstanciam verdadeiras taxas municipais, como decorre do Regulamento de Trânsito do Município Local 1, aprovado em reunião de Câmara de 03.07.2013 e em reunião da Assembleia Municipal de 16.09.2013 (cfr. artigos 48.º, n.º 2 e 62.º).
A Autora exerce funções de carácter e interesse público que o Município Local 1 decidiu concessionar, pelo que a cobrança de créditos apenas é possível pelos poderes de autoridade em que aquela está investida, caso contrário nunca seria possível cobrar uma taxa pela ocupação de um espaço público.
Os actos da Autora são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas e no domínio de actos de gestão pública.
Por seu turno, o cidadão que utiliza o espaço de parqueamento sabe necessariamente que existe a concessão e aceita tacitamente as respectivas condições, as quais constam de um Regulamento Municipal.
Assim, o contrato subjacente à dívida peticionada insere-se no perímetro do disposto no artigo 4.º, n.º1 e) do ETAF.
Consequentemente, para conhecer do presente litígio é competente a jurisdição administrativa e fiscal.
Neste sentido, entre muitos outros, vide o acórdão do STJ de 12/10/2010, o acórdão do TRL de 24/06/2010 e acórdãos do Tribunal de Conflitos de 25/11/2010, 02/03/2011 e 15/05/2014, todos acessíveis in.www.dgsi.pt.
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina, nos termos do artigo 96.º a) do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta do tribunal, excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que implica a absolvição do Réu da instância (cfr. artigos 97.º n.º1 e 99.º do mesmo diploma).
Face ao exposto:
Declaro este tribunal materialmente incompetente para tramitar a presente acção e, consequentemente, absolvo a Ré da instância.
b. Do mérito do recurso
Como se assinalou na sentença recorrida, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a acção, definida esta pela causa de pedir , pelo pedido, pela natureza das partes , ou seja em função dos termos em que o autor estrutura a pretensão que quer ver reconhecida.
No caso dos autos, a recorrente intentou procedimento de injunção tendente ao pagamento pela recorrida de determinadas quantias respeitantes ao estacionamento do seu veículo em zonas em que se mostra concessionada a exploração do estacionamento tarifado de superfície pela C.M Local 1. à recorrente.
Não há quaisquer dúvidas que a Câmara Municipal Local 1 transferiu, através do contrato de concessão em causa, a actividade pública, por si titulada, melhor : o “direito de gerir essa actividade no seu próprio nome”[1].
A responsabilidade para definir o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos é de natureza pública, constituindo atribuição das Câmaras (cfr. art.º33º nº1, rr) da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro) podendo, em contrapartida, exigir dos utentes o pagamento de uma taxa previamente determinada.
Ora, o que sucede é que através do contrato de concessão, a Câmara Municipal Local 1 para levar a cabo determinados objectivos compreendidos no âmbito das suas atribuições atinentes ao estacionamento de veículos na via pública, passou a contar com a colaboração dos serviços da recorrente na prossecução daqueles interesses exclusivamente públicos ou colectivos postos por lei a seu cargo.
Por conseguinte e enquanto concessionária da exploração do estacionamento tarifado de superfície a recorrente prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, o que nos reconduz à conclusão de que estamos em presença de uma relação jurídica administrativa/tributária.
Aliás, o STA tem repetidamente afirmado ( cfr. entre outros, Acórdão de 25-10-2017 (Aragão Seia ) que “ o requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa acção cujo conhecimento é da competência dos TAFs.”.
De harmonia com o disposto no art.º 212/3 da C.R.P. compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Trata-se de matéria que cai na previsão da alínea o) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, cabendo, por isso, na esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais.
Em suma: Não há qualquer motivo para alterar a jurisprudência do Tribunal de Conflitos e que tem sido sufragada pela do STA.
III-DECISÃO
Termos em que se julga improcedente a apelação e se mantém a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 4.XI.2024
Maria João Sousa e Faro
Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto
Sónia Moura
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[1] Pedro Gonçalves in “ A concessão de Serviços Públicos (uma aplicação da técnica concessória)”, Almedina, 1999, pag.108.