LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INJÚRIA AGRAVADA
Sumário

I – Estamos no domínio de uma intervenção policial, que foi acudir a um socorro de violência doméstica, em nome da paz, ordem e da segurança pública, bem como da defesa do direito à dignidade da vítima.
II - As expressões do recorrente não têm respaldo na sua liberdade de expressão. A linguagem utilizada dirigida a agentes da autoridade, no exercício das suas funções, não pode ser tolerada nem relativizada. A liberdade de expressão cede perante a paz pública, a ordem, a segurança e o estado de direito.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz 4 do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
1) - Absolver o arguido AA da prática, em 27/10/2023, de um (1) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal;
2) - Absolver o arguido AA da prática, em 27/10/2023, de um (1) crime de injúria agravada, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 181.º, 184.º, alínea l) do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal;
3) - Condenar o arguido AA como autor material na forma consumada, em 27//10/2023, de dois (2) crimes de injúria agravada, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 181.º, 184.º, alínea l) do n.º 2, do artigo 132.º, nº1 artigos 14.º e 26.º do Código Penal, nas penas por cada um deles de trinta (30) dias de multa;
4) - Em cúmulo das penas, condenar o arguido AA, na pena única de cinquenta (50) dias multa, à razão diária de dez euros (€10,00), o que descontado um (1) dia por detenção, atento o disposto no n.º 2 do artigo 80.º do CP, perfaz a quantia global de quatrocentos e noventa euros (€490,00);
5) - Condenar o arguido AA no pagamento da taxa de justiça que se fixa em duas (2) UC, atento o disposto no artigo 513.º, do CPP ex vi artigo 8.º, n.º 9, do RCP.
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Inconformado, o arguido AA veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“ A) O presente recurso é interposto da decisão de facto e de direito proferida oralmente na Audiência de Julgamento, realizada no dia 26/06/2024, nos termos da qual se decidiu condenar o arguido AA como autor material na forma consumada de dois (2) crimes de injúria agravada;
B) Por não se conformar com a Sentença proferida, vem o Arguido dela recorrer quanto à matéria de facto e de direito;
C) Quanto à decisão sobre a matéria de facto, foram incorretamente julgados como provados os factos constantes dos pontos 3., 7. e 9. da Acusação.
D) Quanto à matéria de Direito, a título subsidiário e apenas caso o recurso em relação à matéria de facto não proceda, entende o Recorrente que não se encontra preenchido o tipo de crime de previsto nos artigos 181.º e 184.º ex vi 132.º n.º 2 al. l) do CP, incorrendo a decisão proferida numa violação do disposto em tais artigos.
E) Em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o presente recurso centra-se na análise crítica da matéria factual dada como provada em resultado das declarações prestadas pelo Arguido, e ainda dos depoimentos prestados pelos Exmos. Srs. Agentes BB, CC, DD e ainda pela Exma. Sra. EE.
F) A impugnação da matéria de facto tem por fundamento a audição integral das declarações do Arguido e ainda dos depoimentos das referidas testemunhas, porquanto apenas da avaliação global dos mesmos resultará uma avaliação cabal da sua valia probatória.
G) O Recorrente considera que os depoimentos prestados pelas referidas testemunhas implicavam uma decisão diferente no que respeita à matéria de facto dada como provada.
H) Do facto constante da acusação identificado com o número “3.”, foi dado como provado na sentença recorrida que “Nessa ocasião, o arguido dirigindo-se aos agentes da PSP DD e BB, proferiu as seguintes expressões “Foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends I don`t give a fuck pigs!” (isto é “meus amigos, estou-me a foder, porcos!”)” – Cfr. sentença oral proferida na Audiência de Julgamento realizada no dia 26/06/2024.
I) Foi em razão deste facto ter sido dado como provado que o douto Tribunal a quo, entendeu se encontrar preenchido o tipo de crime de injúrias na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º e 184.º, ex vi artigo 132.º n.º 2 al. l), todos do CP.
J) O douto Tribunal a quo deu como provado tal facto, atendendo somente à prova testemunhal produzida.
K) A prova produzida em sede de audiência de julgamento, impunha que fosse proferida decisão em sentido contrário, ou seja, no sentido de dar como não provado o facto constante de ponto “3.” da Acusação e em consequência absolver o Arguido também da prática dos crimes de injúrias agravadas em relação aos ofendidos DD e BB.
L) O Arguido/Recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento (22/05/2024), negou por completo que alguma vez tenha proferido tais palavras na direção dos referidos Agentes ofendidos (Passagem das declarações prestadas pelo Arguido no referido dia: 3m46s a 4m11s).
M) Segundo a testemunha BB, o Arguido terá chamado, apenas e unicamente, “porcos” aos três Agentes (BB, DD e CC), sendo que estes três agentes se iam revezando ficando dois a falar com o Arguido e apenas um com a vítima, tendo a referida expressão sido proferida logo após ter sido feita uma abordagem inicial ao Arguido/Recorrente (Passagens do depoimento prestado pela testemunha BB no dia 22/05/2024: aos 3m20s; aos 5m05s; dos 7m38s aos 7m52s; dos 8m42s aos 8m50s; aos 17m58s; e aos 23m36s).
N) Verificam-se contradições no depoimento prestado por esta testemunha, uma vez que a mesma refere que os três Agentes que se encontravam presentes no local se iam revezando, estando somente dois com o Arguido e um com a suposta vítima, mas ao mesmo tempo refere que quando alegadamente o Arguido chamou “porcos” aos Agentes, estavam os três com o Arguido, sem conseguir explicar a razão para tal.
O) A testemunha CC, refere que o Arguido terá chamado “porcos” aos três Agentes (BB, DD e CC), sendo que estes três agentes se iam revezando ficando dois a falar com o Arguido e apenas um com a vítima, tendo a referida expressão sido proferida logo após ter o Arguido/Recorrente ter alegadamente dado uma “cabeçada” ao Agente DD (Passagens do depoimento prestado pela testemunha CC no dia 22/05/2024: aos 5m51s; aos 11m03s; aos 15m14s; aos 16m39s; e aos 22m15s).
P) Questionado da razão pela qual se encontravam os três Agentes com o Arguido quando foi proferido o alegado “insulto”, uma vez que já tinha referido que os Srs. Agentes se iam revezando, referiu o Agente CC que estava com a vítima e se deslocou ao exterior em virtude dos “gritos” do Arguido (Passagem do depoimento prestado pela testemunha CC no dia 22/05/2024: aos 16m37s)
Q) Assim, verificam-se diversas incongruências entre os depoimentos prestados por estas testemunhas, nomeadamente quanto ao momento em que o Arguido terá chamado porcos aos referidos Agentes.
R) Os Agentes confirmam que se iam revezando encontrando-se sempre dois Agentes com o Arguido e um com a vítima, mas que no momento dos alegados insultos estavam os três com o Arguido, o que não se entende.
S) O Agente DD no seu depoimento refere que inicialmente apenas ele e o Agente BB abordaram o Arguido, e que no momento em que foi proferido o “insulto” só se encontravam presentes ele e este Agente, tendo o Arguido chamado “porcos” apenas se dirigindo a si (Passagens do depoimento prestado pela testemunha DD no dia 26/06/2024: aos 3m42s; aos 5m09s; aos 10m56s; e aos 12m16s).
T) O mesmo Agente vem referir que nunca se deslocou ao sítio onde se encontrava a vítima e apresenta uma versão completamente diferente dos factos em relação à circunstância que levou o Agente CC a deslocar-se para junto do Arguido (Passagens do depoimento prestado pela testemunha DD no dia 26/06/2024: aos 12m58s; e aos 14m35s).
U) Fazendo-se um exercício comparativo entre os três depoimentos prestados pelos três Agentes, verifica-se que existem divergências e incongruências em relação: a) Ao momento da ocorrência das supostas injúrias; b) Ao número de Agentes que se encontravam no local quando as mesmas foram proferidas; c) A quem e a quantos Agentes as mesmas injúrias foram dirigidas; d) à razão do Agente CC se ter deslocado para o exterior; e) Se o Agente DD esteve sempre, ou não, junto do Arguido durante todo o tempo factualmente relevante;
V) A Sra. EE (alegada “vítima”) veio referir que no momento a que se reportam os factos, estiveram sempre presentes com a mesma dois Agentes que nunca abandonaram o local, referindo ainda ter surgido uma Agente mulher no local dos factos para conversar consigo (Passagens do depoimento prestado pela testemunha EE no dia 26/06/2024: aos 4m10s; e aos 5m48s).
W) Assim, também o depoimento prestado por esta testemunha é incompatível com as versões dos factos apresentadas pelos três Agentes da PSP.
X) Levantam-se dúvidas no que respeita à prova de quem se encontrava realmente com o Arguido e se foram realmente proferidos quaisquer insultos e acima de tudo se as versões dos factos apresentada pelos Srs. Agentes merecem qualquer credibilidade.
Y) Verificam-se graves incongruências no que respeita ao tempo, espaço e pessoas presentes no momento em que alegadamente o Arguido chamou “porcos” aos referidos Agentes.
Z) Existem dúvidas inultrapassáveis e insupríveis quanto à veracidade e credibilidade dos factos relatados pelos Agentes, não só como um todo, mas especialmente no que respeita aos alegados insultos que dizem ter sido proferidos pelo Recorrente/Arguido.
AA) Não existindo qualquer outra prova produzida em julgamento que possa sustentar a verificação dos factos aduzidos na acusação e verificando-se, face à prova testemunhal produzida, dúvidas quanto à verificação dos mesmos, sempre teria de se considerar o facto constante da acusação identificado com o número “3.”, como não provado.
BB) Andou mal o douto Tribunal a quo ao considerar como provado que “Nessa ocasião, o arguido dirigindo-se aos agentes da PSP DD e BB, proferiu as seguintes expressões “Foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends I don`t give a fuck pigs!” (isto é “meus amigos, estou -me a foder, porcos!”)”.
CC) Deve por isso ser o mesmo facto dado como não provado e a decisão alterada em conformidade, absolvendo-se o Arguido da prática dos dois crimes de injúrias em relação aos Agentes DD e BB, pelos quais o mesmo foi condenado na sentença recorrida, tudo com os devidos efeitos legais.
DD) Dando-se como não provado o referido facto, em consequência terão obrigatoriamente de ser julgados como não provados por inerência os factos 7. e 9. constantes da douta Acusação do Ministério Público.
EE) No que concerne especificamente ao facto 7. constante da Acusação, não foi feita qualquer prova deste facto, pelo menos em relação ao Agente DD.
FF) Pode-se afirmar com certeza que é, pelo menos, difícil saber qual a verdadeira versão dos factos, pois temos três Agentes da PSP que dizem ter sido insultados, mas cujas versões dos factos são díspares, e um Arguido que nega que alguma vez tenha insultado os referidos Agentes.
GG) A sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, que condena o Arguido pela prática de dois crimes de injúrias, é violadora do princípio constitucional do in dubio pro reo.
HH) Tendo em conta tudo o que já foi referido quanto à produção de prova nos autos, no que respeita à alegada prática de dois crimes de Injúrias por parte do Arguido, tem de se concluir que existiam sérias dúvidas quanto à credibilidade da prova produzida e consequentemente quanto à alegada verificação destes crimes, na forma descrita no despacho de acusação, pelo que o princípio do in dubio pro reo impunha que o Mm.º Juiz proferisse Sentença no sentido da absolvição do Arguido pela prática destes dois crimes, o que se argui.
II) Ao considerar os referidos factos como provados e condenar o Arguido pela prática de dois crimes de injúria agravada, o Tribunal a quo procedeu a uma clara violação do princípio constitucional do in dúbio pro reo, previsto no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, sendo que deveria ter considerado não se encontrarem provados os factos expostos com os n.ºs 3., 7. e 9. na Acusação, absolvendo o Recorrente da prática dos dois crimes de injúria agravada.
Sem prescindir, caso o recurso sobre a matéria de facto não proceda, o que só se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá
JJ) O Tribunal a quo decidiu condenar o Arguido pela prática de dois crimes de injúrias agravadas, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 181.º, 184.º, alínea l) do n.º 2, do artigo 132.º, nº1 artigos 14.º e 26.º do Código Penal.
KK) Há que fazer um juízo valorativo no caso concreto, percebendo se a palavra “porcos” é suscetível de ser ofensiva da honra ou consideração dos Ofendidos, fazendo uma avaliação da palavra proferida num contexto concreto de forma a aferirmos da sua relevância para efeitos penais e de preenchimento do tipo de crime em causa.
LL) Mesmo que tenha sido praticada a conduta de chamar “porcos” aos referidos Agentes, o que não se aceita, a mesma sempre terá de ser tida como penalmente irrelevante, face aos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, inerentes ao direito Penal.
MM) Não foram estas alegadas palavras que levaram à detenção do Arguido no caso concreto, levando somente a um mero aviso no sentido de este parar com o seu comportamento, o que revela que os Agentes não se sentiram ofendidos ou a sua honra foi afetada com tal ato.
NN) Se fosse suscitada a intervenção do direito penal cada vez que um cidadão apelida outro de “porco”, os Tribunais não fariam outra coisa que não fosse julgar pessoas pela prática de crimes de injúrias.
OO) Foi a primeira e única vez em que o Arguido esteve na presença dos referidos Agentes, pelo que a palavra alegadamente proferida não tinha qualquer tipo de significado oculto, nem visava afetar a dignidade ou reputação dos referidos Agentes.
PP) O Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação das normas previstas no artigo 181.º n.º 1 e 184.º ex vi 132.º n.º 2 al. l) do CP, no caso concreto ao considerar se encontrar preenchido o tipo objetivo do crime em causa e em consequência condenar o Arguido pela prática de dois crimes de injúrias agravadas, incorrendo a Sentença recorrida em uma clara violação das referidas normas, sendo que deveria ter considerado não se encontrar preenchido o tipo objetivo do ilícito de injúrias no caso concreto, absolvendo o Arguido da prática deste crime.”
O Ministério Público veio responder, concluindo do seguinte modo:
“ 1ª – O erro do julgamento verifica-se sempre que o tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e que, como tal, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
2ª - Decorre da decisão recorrida que em sede de motivação de facto, o tribunal a quo assentou a formação da sua convicção em todas as provas produzidas em audiência de julgamento.
3ª - Não é o mero facto de o arguido oferecer uma versão diversa, que esta deve ser necessariamente tida em consideração, especialmente quando contrariada pelos restantes elementos de prova, como sucedeu no caso concreto.
4ª - Verifica-se, que a discordância do recorrente limita-se ao sentido da valoração da prova pelo Mm.º Juiz a quo, valoração essa livremente formada e adequadamente fundamentada.
5ª - A verdade é que o tribunal a quo decidiu segundo uma apreciação crítica e seletiva de toda a prova produzida, assente em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova e recorrendo ao uso de raciocínios lógicos e às regras da experiência.
6ª - O tribunal a quo cumpriu escrupulosamente os termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
7ª - Além do mais, também a decisão recorrida não violou o princípio in dubio pro reo, já que este princípio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas, nem serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas sim para controlar o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
8ª - No presente caso, a decisão acerca da matéria de facto encontra-se devidamente fundamentada, não resultando da sua análise, que o tribunal recorrido tenha ficado num estado de dúvida e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, violando o princípio em apreço.
9ª - A motivação constante da decisão do tribunal a quo, tem o suporte probatório adequado, tendo feito uma apreciação crítica da prova, pelo que, temos como certo que a decisão recorrida não violou nem o princípio da livre apreciação da prova, nem o princípio in dubio pro reo, razões pelas quais, não assiste razão ao arguido/recorrente.
10ª - A honra é um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua manifestação exterior - reputação ou consideração -, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos (probidade e lealdade de carácter).
11ª - Relativamente ao elemento subjetivo do crime de injúria a lei não exige como elemento do tipo criminal em análise qualquer dano ou lesão efetiva da honra ou da consideração, bastando, para a existência do crime, o perigo de que tal dano possa verificar-se.
12ª - A indiferença pelos valores jurídicos tutelados estão fortemente evidenciados no uso das expressões “my friends i don't give a fuck, pigs!», também, por via destas, foram lesadas a honra e a consideração dos dois agentes da P.S.P., DD e BB e, consequentemente, a autoridade do Estado.
13ª - Esta é uma conduta perante a qual a sociedade não fica indiferente, reclamando a tutela que a confiança nos agentes da autoridade sempre haverá de merecer.
14ª – Estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de injúria agravada, previsto e punido, pelas disposições conjugadas dos artigos 181º, nº 1, 184º, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), todos
do Código Penal.
15ª - O tribunal a quo não violou nenhum preceito legal.
16ª - A decisão recorrida é formal e materialmente válida, não merecendo qualquer censura e, por conseguinte, deverá ser confirmada, fazendo-se, assim, a tão costumada, JUSTIÇA
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os "vistos", teve lugar a conferência.
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II – A) Factos Provados (pela numeração da acusação)
1. No dia 27.10.2023 pelas 01h30, o arguido encontrava-se nas imediações da habitação sita na ..., quando ali se deslocou uma patrulha da Polícia de Segurança Pública (doravante PSP), constituída pelos agentes DD, BB e CC, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, por haver noticia da prática de violência doméstica.
2. No exercício de tais funções, os referidos agentes da PSP abordaram o arguido a fim de apurar o que havia ocorrido anteriormente.
3. Nessa ocasião, o arguido dirigindo-se aos agentes da PSP DD e BB, proferiu as seguintes expressões: “foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends, i don’t give a fuck, pigs!” (isto é, “meus amigos, eu estou-me a foder, porcos!”).
4. De seguida, sem que nada o fizesse prever, o arguido avançou na direção do agente da PSP DD, encostou a sua cabeça na testa deste agente da PSP.
5. Em simultâneo, o arguido dirigindo-se ao agente da PSP DD, proferiu a seguinte expressão: “vai-te foder”.
7. Em consequência direta e necessária das aludidas expressões proferidas pelo arguido, os agentes da PSP DD e BB sentiram-se ofendidos na sua honra e consideração pessoal e profissional.
8. DD, BB e CC eram, à data dos factos, agentes da PSP, e estavam, na data referida e no local acima mencionado, devidamente uniformizados e identificados, no exercício das suas funções, disso estando o arguido ciente, sendo as suas atitudes determinadas por causa de tais funções.
9. O arguido ao proferir as referidas expressões, atuou com o propósito, concretizado, de ofender a honra e a consideração dos mencionados agentes da PSP, bem sabendo que os mesmos eram agentes da autoridade e que se encontravam naquele local no exercício legítimo das suas funções.
11. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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II - B) Factos Não Provados
- que o arguido se encontrava no interior da habitação;
- que o arguido dirigindo-se ao agente da PSP CC, proferiu as seguintes expressões: “foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends, i don’t give a fuck, pigs!” (isto é, “meus amigos, eu estou-me a foder, porcos!”);
- que o arguido desferiu com a sua cabeça, uma pancada na testa do agente da PSP DD;
- que como consequência direta e necessária da referida conduta do arguido, o ofendido DD, agente da PSP, sentiu dores e mal-estar;
- que em consequência direta e necessária das aludidas expressões proferidas pelo arguido, o agente da PSP CC sentiu-se ofendido na sua honra e consideração pessoal e profissional.
- que ao praticar a conduta supra descrita, o arguido agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde de DD, o que representou e quis.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Fundamentos do recurso: (i) impugnação da matéria de facto; (ii) ofensa do princípio “in dubio pro reo”; (iii) qualificação jurídica – do crime de injúrias agravada.
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IV – Fundamentação
(da impugnação da matéria de facto)
O recorrente impugna os seguintes factos dados como provados:
“3. Nessa ocasião, o arguido dirigindo-se aos agentes da PSP DD e BB, proferiu as seguintes expressões: “foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends, i don’t give a fuck, pigs!” (isto é, “meus amigos, eu estou-me a foder, porcos!”).
(…)
7. Em consequência direta e necessária das aludidas expressões proferidas pelo arguido, os agentes da PSP DD e BB sentiram-se ofendidos na sua honra e consideração pessoal e profissional.
(…)
9. O arguido ao proferir as referidas expressões, atuou com o propósito, concretizado, de ofender a honra e a consideração dos mencionados agentes da PSP, bem sabendo que os mesmos eram agentes da autoridade e que se encontravam naquele local no exercício legítimo das suas funções.
O tribunal motivou do seguinte modo a sua convicção quanto a estes factos.
“ Na medida em que foram consentaneamente descritas tais expressões por parte do Sr. DD e BB, os quais abordaram o Arguido inicialmente, sendo que, pese embora algumas divergências quanto ao posicionamento deles, não há dúvida que foram estes dois agentes que intervieram com o arguido inicialmente, tendo sido somente estes dois que ouviram tais expressões. (…) Prova produzida e depoimentos das testemunhas”
A sentença foi lida, não se mostrando reduzida a escrito.
Sustenta o recorrente:
L) O Arguido/Recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento (22/05/2024), negou por completo que alguma vez tenha proferido tais palavras na direção dos referidos Agentes ofendidos (Passagem das declarações prestadas pelo Arguido no referido dia: 3m46s a 4m11s).
M) Segundo a testemunha BB, o Arguido terá chamado, apenas e unicamente, “porcos” aos três Agentes (BB, DD e CC), sendo que estes três agentes se iam revezando ficando dois a falar com o Arguido e apenas um com a vítima, tendo a referida expressão sido proferida logo após ter sido feita uma abordagem inicial ao Arguido/Recorrente (Passagens do depoimento prestado pela testemunha BB no dia 22/05/2024: aos 3m20s; aos 5m05s; dos 7m38s aos 7m52s; dos 8m42s aos 8m50s; aos 17m58s; e aos 23m36s).
N) Verificam-se contradições no depoimento prestado por esta testemunha, uma vez que a mesma refere que os três Agentes que se encontravam presentes no local se iam revezando, estando somente dois com o Arguido e um com a suposta vítima, mas ao mesmo tempo refere que quando alegadamente o Arguido chamou “porcos” aos Agentes, estavam os três com o Arguido, sem conseguir explicar a razão para tal.
O) A testemunha CC, refere que o Arguido terá chamado “porcos” aos três Agentes (BB, DD e CC), sendo que estes três agentes se iam revezando ficando dois a falar com o Arguido e apenas um com a vítima, tendo a referida expressão sido proferida logo após ter o Arguido/Recorrente ter alegadamente dado uma “cabeçada” ao Agente DD (Passagens do depoimento prestado pela testemunha CC no dia 22/05/2024: aos 5m51s; aos 11m03s; aos 15m14s; aos 16m39s; e aos 22m15s).
P) Questionado da razão pela qual se encontravam os três Agentes com o Arguido quando foi proferido o alegado “insulto”, uma vez que já tinha referido que os Srs. Agentes se iam revezando, referiu o Agente CC que estava com a vítima e se deslocou ao exterior em virtude dos “gritos” do Arguido (Passagem do depoimento prestado pela testemunha CC no dia 22/05/2024: aos 16m37s)
Q) Assim, verificam-se diversas incongruências entre os depoimentos prestados por estas testemunhas, nomeadamente quanto ao momento em que o Arguido terá chamado porcos aos referidos Agentes.
R) Os Agentes confirmam que se iam revezando encontrando-se sempre dois Agentes com o Arguido e um com a vítima, mas que no momento dos alegados insultos estavam os três com o Arguido, o que não se entende.
S) O Agente DD no seu depoimento refere que inicialmente apenas ele e o Agente BB abordaram o Arguido, e que no momento em que foi proferido o “insulto” só se encontravam presentes ele e este Agente, tendo o Arguido chamado “porcos” apenas se dirigindo a si (Passagens do depoimento prestado pela testemunha DD no dia 26/06/2024: aos 3m42s; aos 5m09s; aos 10m56s; e aos 12m16s).
T) O mesmo Agente vem referir que nunca se deslocou ao sítio onde se encontrava a vítima e apresenta uma versão completamente diferente dos factos em relação à circunstância que levou o Agente CC a deslocar-se para junto do Arguido (Passagens do depoimento prestado pela testemunha DD no dia 26/06/2024: aos 12m58s; e aos 14m35s).
U) Fazendo-se um exercício comparativo entre os três depoimentos prestados pelos três Agentes, verifica-se que existem divergências e incongruências em relação: a) Ao momento da ocorrência das supostas injúrias; b) Ao número de Agentes que se encontravam no local quando as mesmas foram proferidas; c) A quem e a quantos Agentes as mesmas injúrias foram dirigidas; d) à razão do Agente CC se ter deslocado para o exterior; e) Se o Agente DD esteve sempre, ou não, junto do Arguido durante todo o tempo factualmente relevante;
V) A Sra. EE (alegada “vítima”) veio referir que no momento a que se reportam os factos, estiveram sempre presentes com a mesma dois Agentes que nunca abandonaram o local, referindo ainda ter surgido uma Agente mulher no local dos factos para conversar consigo (Passagens do depoimento prestado pela testemunha EE no dia 26/06/2024: aos 4m10s; e aos 5m48s).
W) Assim, também o depoimento prestado por esta testemunha é incompatível com as versões dos factos apresentadas pelos três Agentes da PSP.
X) Levantam-se dúvidas no que respeita à prova de quem se encontrava realmente com o Arguido e se foram realmente proferidos quaisquer insultos e acima de tudo se as versões dos factos apresentada pelos Srs. Agentes merecem qualquer credibilidade.
Y) Verificam-se graves incongruências no que respeita ao tempo, espaço e pessoas presentes no momento em que alegadamente o Arguido chamou “porcos” aos referidos Agentes.
Z) Existem dúvidas inultrapassáveis e insupríveis quanto à veracidade e credibilidade dos factos relatados pelos Agentes, não só como um todo, mas especialmente no que respeita aos alegados insultos que dizem ter sido proferidos pelo Recorrente/Arguido.
AA) Não existindo qualquer outra prova produzida em julgamento que possa sustentar a verificação dos factos aduzidos na acusação e verificando-se, face à prova testemunhal produzida, dúvidas quanto à verificação dos mesmos, sempre teria de se considerar o facto constante da acusação identificado com o número “3.”, como não provado.
BB) Andou mal o douto Tribunal a quo ao considerar como provado que “Nessa ocasião, o arguido dirigindo-se aos agentes da PSP DD e BB, proferiu as seguintes expressões “Foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends I don`t give a fuck pigs!” (isto é “meus amigos, estou -me a foder, porcos!”)”.
Foi ouvida a prova gravada (como é nosso dever).
Da audição da prova é inquestionável que os agentes policiais foram credíveis, sem revelar qualquer animosidade contra o recorrente. E, independentemente, de alguma imprecisão – normal tendo em conta o tempo decorrido e a circunstância de a intervenção em desacatos ser o seu dia a dia – os seus depoimentos não deixaram de ser coerentes quanto ao essencial do que aqui se discute.
Todos os polícias confirmaram as expressões que foram dirigidas pelo recorrente. Os agentes DD, CC e BB confirmaram as expressões constantes do facto 3.º, embora este último só se referisse a “estou-me a foder” quando inquirido pelo tribunal. Também disseram os agentes DD e BB que se sentiram ofendidos.
Não se vislumbram substanciais incongruências nos depoimentos dos polícias. Como bem refere o tribunal a quo, “pese embora algumas divergências quanto ao posicionamento deles (policias)”, não há dúvida que foram os agentes BB e DD que inicialmente intervieram com o arguido e só a eles foram dirigidas as expressões, embora o agente CC também as tenha ouvido (foi o que disse em audiência).
A questão do recorrente é unicamente de discordância quanto à convicção do Tribunal. Como é evidente, quer no corpo, quer nas conclusões das motivações, o arguido limita-se a um exercício de comentário do acórdão, fazendo prevalecer a sua convicção, sustentando que deviam ter sido valorados as suas próprias declarações (de negação) e de EE. O que é manifestamente insuficiente face à livre apreciação do julgador.
Sobre esta questão (livre apreciação do julgador), o Supremo Tribunal de Justiça, na Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, processo nº 3 105/2000-5 secção, sumários de Acórdãos do STJ, Boletim nº 47, considerou: (...) II — O princípio contido no art.127°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente.(…)
O recorrente compreendeu a motivação probatória do tribunal, só não a aceita. Limita-se a colocar no lugar do julgador – que não é – e da sua livre apreciação.
Resulta claro que a discordância do recorrente de pouco vale, porque se impõe o estatuído no artº 127º, do CPP (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador). É uma apreciação subjectiva da prova, que resulta da imediação e da oralidade, que só seria afastada se o recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. O que não é o caso. Só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, teria fixado os factos de modo diferente, não credibilizando os depoimentos dos polícias.
O tribunal a quo fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artº 127º, do CPP. De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica). O tribunal “a quo” apreciou criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto. O recorrente não concorda. Porém, a fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, não revela que seja errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum. Podemos, pois, concluir, que o tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção – que também é a deste tribunal ad quem -, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçou uma convicção sobre a verdade dos factos. Acresce que, para além, na dúvida razoável, tal juízo há-de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
Andou bem o tribunal o quo na decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se inalterada a factualidade apurada.
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(da ofensa do princípio “in dubio pro reo”)
É manifesto que o tribunal a quo não violou a presunção de inocência da recorrente.
Dando como assente apenas o que fundada e justificadamente ficou provado, o tribunal a quo mais não fez do que garantir a presunção da inocência do arguido. Só se considerou provado o que resultou certo e seguro. O raciocínio do tribunal a quo foi lógico e coerente. Deste modo conseguiu certeza e segurança na decisão de facto.
Como refere esta Relação, no acórdão de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, dgsi.pt, “ o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica, traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”. Trata-se, assim, de uma questão relativa à matéria de facto, porém, como vimos, no caso concreto não se vislumbra dúvida na apreciação dos meios de prova e consequente factualidade apurada.
Do que trata o presente fundamento do recurso é de mera discordância da recorrente quanto aos meios de prova valorizados pelo tribunal a quo. Do que sabemos do recurso é que se o recorrente fosse o julgador teria credibilizado as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha EE.
A circunstância de haver versões opostas não significa que o tribunal, sem mais, decida pro reo, pois o aqui se exige é uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio – Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265, citado no Ac. do TRC de 09.03.2016, processo n.º 436/14.0GBFND. De cujo aresto, se retira ainda o seguinte: “Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta FF, Psicologia do Testemunho, in Scientia Juridica, p.337, advertindo para que «todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade», devendo antes ter-se sempre bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se”.
É claro que o tribunal a quo não incorreu em dúvida razoável. Disse e explicou-o, lógica e esclarecidamente, por que valorizou determinados meios de prova em detrimento de outros, e, nesta medida, por que decidiu quanto à matéria de facto.
Não houve qualquer violação do in dubio pro reo.
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(da qualificação jurídica – do crime de injúrias agravada)
Diz o recorrente:
JJ) O Tribunal a quo decidiu condenar o Arguido pela prática de dois crimes de injúrias agravadas, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 181.º, 184.º, alínea l) do n.º 2, do artigo 132.º, nº1 artigos 14.º e 26.º do Código Penal.
KK) Há que fazer um juízo valorativo no caso concreto, percebendo se a palavra “porcos” é suscetível de ser ofensiva da honra ou consideração dos Ofendidos, fazendo uma avaliação da palavra proferida num contexto concreto de forma a aferirmos da sua relevância para efeitos penais e de preenchimento do tipo de crime em causa.
LL) Mesmo que tenha sido praticada a conduta de chamar “porcos” aos referidos Agentes, o que não se aceita, a mesma sempre terá de ser tida como penalmente irrelevante, face aos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, inerentes ao direito Penal.
MM) Não foram estas alegadas palavras que levaram à detenção do Arguido no caso concreto, levando somente a um mero aviso no sentido de este parar com o seu comportamento, o que revela que os Agentes não se sentiram ofendidos ou a sua honra foi afetada com tal ato.
NN) Se fosse suscitada a intervenção do direito penal cada vez que um cidadão apelida outro de “porco”, os Tribunais não fariam outra coisa que não fosse julgar pessoas pela prática de crimes de injúrias.
OO) Foi a primeira e única vez em que o Arguido esteve na presença dos referidos Agentes, pelo que a palavra alegadamente proferida não tinha qualquer tipo de significado oculto, nem visava afetar a dignidade ou reputação dos referidos Agentes.
PP) O Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação das normas previstas no artigo 181.º n.º 1 e 184.º ex vi 132.º n.º 2 al. l) do CP, no caso concreto ao considerar se encontrar preenchido o tipo objetivo do crime em causa e em consequência condenar o Arguido pela prática de dois crimes de injúrias agravadas, incorrendo a Sentença recorrida em uma clara violação das referidas normas, sendo que deveria ter considerado não se encontrar preenchido o tipo objetivo do ilícito de injúrias no caso concreto, absolvendo o Arguido da prática deste crime.
Apreciando, cumpre referir que o recorrente não se limitou a apelidar os dois polícias de “porcos”, disse mais: “foda-se, com tanta droga no bairro alto vêm aqui foder-me a cabeça” e “my friends, i don’t give a fuck, pigs!” (isto é, “meus amigos, eu estou-me a foder, porcos!”).
É conhecida a discussão na doutrina e na jurisprudência sobre os crimes contra a honra e consideração.
Muito na linha do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vem-se entendendo que em algumas situações deve prevalecer a liberdade de expressão.
“Entre a publicitação de uma opinião – direito que integra a liberdade de expressão do Recorrente – e a protecção dos bens pessoais ao bom nome e reputação de terceiros, há que fazer uma ponderação quando estes direitos entrem em conflito, devendo-se aferir em que moldes aquela opinião, pelas expressões que usa e pelas imputações que faz, ataca desproporcionadamente a honra e consideração desses terceiros – Ac. do TCAS n.º18/19.0BCLSB, de 04/04/2019, dgsi.pt.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vem defendendo que quando estejam em causa assuntos relativos ao debate politico, ou de interesse geral, que se relacionem com políticos ou figuras públicas, os limites da crítica admissível são mais largos que aqueles que se admitem para um simples particular, para alguém relativamente anónimo. Para o TEDH os políticos ou as figuras públicas “expõem-se inevitavelmente e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, quer pelos jornalistas, quer pela massa de cidadãos” (in Ac. do TEDH, Ac. Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, n.º33287/10, de 23-10-2013, tradução nossa, a partir do original em francês; vide, no mesmo sentido, os Acs. ali citados e, em especial, os Ac. do TEDH Lopes Gomes da Silva c. Portugal, P. nº 37698/97, de 28-09-2000 e Laranjeira Marques da Silvac. Portugal, P. n.º 16983/06, de 19-01-2010) – citações no Acórdão do TCAS de 01.10.2020, processo n.º 62/20.2BCLSB, dgsi.pt.
Acórdão do TRL n.º 0315188, de 26.11.2003, dgsi.pt: “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que, por exemplo, se sente prejudicada por outra pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.”
Acórdão do TRE de 07.1.2016, processo n.º 756/13.0TATVR.E1: “ no domínio da «luta» desportiva há uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação, benéfica neste domínio. Daí que os juízos e imputações feitas, embora exageradas, não excedem o que, em geral, se considera tolerável no contexto da luta e disputa desportiva.”(…) No âmbito de um viver social desportivo, em contexto social específico de relações entre dirigentes desportivos, existe alguma tolerância social (que não aceitação social) em relação a uma certa margem de aspereza de linguagem e de confrontação de palavras e de ideias. Excessos de linguagem e de atitude que convivem com um correspondente “poder de encaixe” por parte de quem frequenta e se move nesses mesmos espaços e nesses mesmos meios, de “luta desportiva”.
Ac. do STJ de 13.07.2017, processo n.º 3017/11.6TBSTR.E1.S1, de 13-07-2017: “o TEDH vem entendendo que – particularmente no âmbito dos artigos que visam essencialmente a expressão da opinião e a crítica a aspectos ligados à vida pública e a temas de manifesto interesse público - está coberta pela liberdade de expressão, não apenas a discordância respeitosa, a crítica puramente objectiva emoldada pela elevação do debate – mas também a crítica contundente, sarcástica, mordaz, com uma carga exageradamente depreciativa ou caricatural da acção e capacidades do visado – justificando a necessidade de uma particular tolerância deste às opiniões adversas que criticam acerbamente, chocam, ofendem ou exageram , envolvendo porventura o uso de expressões agressivas ou virulentas”.
Ac. do TRL de 11.12.2019, processo n.º 4695/15.2T9PRT.L1, dgsi.pt: “ Nas ofensas à honra estão sempre em causa dois valores constitucionais de igual valor – a honra e a liberdade de expressão (art.ºs 26º e 37º da CRP ), sendo que a prevalência de um deles em cada caso tem sempre que resultar de uma ponderação das circunstâncias do caso concreto, encontrando um equilíbrio que preserve sempre a liberdade de expressão, indispensável à subsistência de uma sociedade democrática, limitada pela proibição do aniquilamento da honra. A honra é um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua manifestação exterior - reputação ou consideração -, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos, probidade e lealdade de carácter, protegendo-se a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal". Nesta perspectiva, como reiteradamente vêm decidindo os nossos tribunais e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aqueles que exercem cargos com relevância/expressão pública têm um qualificado dever de suportar as críticas inerentes à sua actividade, por muito duras - ou mesmo infundadas - que sejam. Salvo nos casos em que sejam notoriamente gratuitas ou infundadas, a eles cabe, na primeira linha, convencer do infundado das críticas, não podendo nunca subtrair-se ao debate público por via da ameaça - contra quem divulgue irregularidades no funcionamento das instituições - com o jus puniendi do Estado”.
São muitas as áreas da vida pública e social, sobretudo agora com o mundo digital, em que há confrontos de opiniões e ideias, conflituosos e intermináveis, muito mediatizados, sobretudo nas redes sociais, em que cada interveniente aproveitava para expressar o seu pensar e sentir. Claro, e paralelamente, tudo exposto em tempo real nos media. Sobretudo quando estão em causa figuras públicas.
Ora, é público e notório que em tais desavenças é muito utilizada a linguagem excessiva contra o oponente. Com uma linguagem exacerbada para vincar divergências, sendo que a repetida utilização desta linguagem é que vulgariza os termos utilizados, deixando de se lhes poder atribuir a gravidade que objectivamente poderiam ter, mas que subjectivamente deixam de o ter, ao tornar-se num modo de ataque caricatural, sem querer imputar nada a ninguém, sendo apenas armas de arremesso. Essa linguagem excessiva e inapropriada, não pode levar os intervenientes nessas contendas a se sentir especialmente atingidos na sua honra e consideração. É o campo de batalha verbal que hodiernamente se escolhe, socialmente censurável é certo, mas que já se tolera e até relativiza.
Mas o debate jurídico não se fica por aí. Há vozes, sobretudo na doutrina, a defender que a ofensa à honra e consideração deve ser descriminalizada, remetendo tais litígios para a jurisdição cível (responsabilidade civil por facto ilícito).
Citando Figueiredo Dias, para a criminalização ser legítima é necessário não só a existência de um bem jurídico dotado de dignidade penal como igualmente verificar-se uma efectiva necessidade ou carência de tutela penal, pelo que "a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária." - (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, 2004, pp. 121, citado em Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.3009, processo n.º 36/03.3GCTCS.C1). Ainda nas palavras do citado Professor "Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição do excesso (...) - (in id. lbid.).
E, em coerência, para quem assim entende, seria absolutamente desproporcional utilizar o ius puniendi mais grave – o direito penal – para sancionar comportamentos que utilizam a linguagem excessiva e caricatural no exercício da liberdade de expressão.
Como se refere no Ac. do TRL de 26.11.2003 (supra citado), o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. É como se houvesse uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação.
Indo agora ao caso concreto, estamos no domínio de uma intervenção policial, que foi acudir a um socorro de violência doméstica, em nome da paz, ordem e da segurança pública, bem como da defesa do direito à dignidade da vítima.
Ficou demonstrado que “o arguido ao proferir as referidas expressões, atuou com o propósito, concretizado, de ofender a honra e a consideração dos mencionados agentes da PSP, bem sabendo que os mesmos eram agentes da autoridade e que se encontravam naquele local no exercício legítimo das suas funções”. E que “agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Por isso é que é injúria agravada, por ser maior a ilicitude (desvalor da acção e do resultado): ofensas à honra e consideração de agentes da autoridade no exercício das suas funções.
Estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos deste ilícito penal.
As expressões do recorrente não têm respaldo na sua liberdade de expressão. A linguagem utilizada dirigida a agentes da autoridade, no exercício das suas funções, não pode ser tolerada nem relativizada. A liberdade de expressão cede perante a paz pública, a ordem, a segurança e o estado de direito.
Resta dizer que o juiz não é legislador. Se se entender descriminalizar as ofensas à honra e consideração, seja quem for o visado, então que o legislador aja e retire do Código Penal os ilícitos penais tipificados nos artigos 180.º, 181.º e 182.º.
Enquanto isso não ocorrer, os arguidos devem ser condenados, em situações como a dos autos, pela prática de crimes de injúria agravada.
E assim decai integralmente o recurso.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Paulo Barreto
Ester Pacheco dos Santos
Pedro José Esteves de Brito