LIQUIDAÇÃO DOS BENS DA MASSA INSOLVENTE
DIREITO DE REMIÇÃO
COMISSÃO DE VENDAS
LEILÃO
Sumário

I - O direito de remição é conferido a determinadas pessoas por deterem um vinculo familiar com o executado/insolvente, constituindo um direito qualificado de preferência.
II - Na lógica de substituição do comprador pelo remidor, que subjaz ao direito de remição, é-lhe exigido o pagamento da contrapartida (preço) acordada na venda/adjudicação e eventuais despesas decorrentes do acto jurídico, assumidas por aquele.
III - A comissão de venda acordada entre o administrador da insolvência e a leiloeira não vincula o remidor, por não a ter aceite mormente através da participação no leilão electrónico através do qual o bem foi vendido/adjudicado.

Texto Integral

Processo n.º 3077/23.T8STB-B.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Lina Castro Baptista

Adjunta: Alexandra Pelayo


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

No presente processo de insolvência de AA, os seus filhos, BB e CC, apresentaram requerimento alegando, em resumo, que no âmbito dos presentes autos foi apreendida metade indivisa do imóvel que constitui a habitação do insolvente e dos ora requerentes, sendo que o remanescente do imóvel, correspondente à outra metade indivisa, foi apreendida no âmbito do processo de insolvência que corre termos por este Tribunal com o nº 185/23.8T8STS– J7 e atinente à insolvente DD, sua mãe. Ao tomarem conhecimento das condições de adjudicação informaram o A.I. de pretenderem exercer o direito de remição e procederam ao depósito do valor correspondente aos 10% a título de caução efectuada pelo credor hipotecário. Tendo sido aceites as condições fundamentais para a adjudicação requerida pelo credor hipotecário:

1- Pagamento de 10% do valor da adjudicação a ser repartido em igual proporção pelos dois processos

2- Isenção de pagamento de IMT, I.S

3- Escritura a celebrar no prazo de 60 dias,

4- Sem pagamento de qualquer comissão a leiloeira

vem agora exigido aos remidores o pagamento da comissão à leiloeira bem como se pretende encurtar o prazo para a realização da escritura cuja realização se pretende ser efectuada em 10.09.2024.

O AI respondeu nos seguintes termos:

“Quanto ao requerimento apresentado pelo mandatário do insolvente, salvo melhor opinião, considera o Administrador Judicial que não existe erro no requerimento por si apresentado, reiterando o conteúdo do mesmo, nomeadamente:

No seguimento do Leilão Eletrónico que terminou a 21/06/2024, veio o credor hipotecário apresentar proposta de adjudicação no montante de 500.000€, a dividir proporcionalmente pelos dois processos de insolvência.

Notificado o proponente que apresentou a maior proposta no Leilão Eletrónico de 21/06/2024, não foi apresentada proposta de valor superior.

Foi o credor hipotecário notificado por email para proceder ao depósito de 10% à ordem das massas insolventes e marcação da escritura de compra e venda, conforme histórico de emails trocados, oportunamente juntos ao processo em requerimento anterior.

O valor de 10% já foi depositado, encontrando-se disponível na conta da massa insolvente.

A escritura está agendada para o próximo dia 10/09/2024, às 11:00 horas (Entretanto dada sem efeito), respeitando o prazo fixado nas condições de venda de 60 dias (Prazo limite), atendendo que a adjudicação final ao credor hipotecário foi feita a 02/08/2024.

Com a adjudicação final ao credor hipotecário a 02/08/2024, no mesmo dia, foi o ilustre mandatário dos insolventes notificado por email, para que os insolventes procedessem à entrega do imóvel em 30 dias livre de pessoas e bens, prazo que termina a 02/09/2024.

A 07/08/2024, o ilustre mandatário dos insolventes remeteu email para o Administrador Judicial a informar que os filhos dos insolventes pretendiam exercer o direito de remição, no que tange à venda do imóvel habitacional e nas mesmas condições, de referir que, no email recebido não foi feita a identificação dos filhos nem foi junta a respetiva procuração.

No seguimento do email recebido, foi o ilustre mandatário dos insolventes informado que até à escritura agendada para o dia 10/09/2024, os remidores deveriam cumprir as condições de adjudicação previstas, nomeadamente:

- Nos termos do n.º 2 do artigo 843º do Código do Processo Civil, depositar a totalidade do valor de adjudicação, com o acréscimo de 5% para indemnização ao credor hipotecário do valor já pago;

- Pagar a comissão de venda à encarregada de venda – A... Lda.;

Dos valores devidos pelos remidores, apenas foram depositados na conta da massa insolvente 10% do valor de adjudicação, sem qualquer enquadramento nas obrigações legais dos remidores.

Por conseguinte, até à data da escritura (Nova data a definir), não sendo cumprido pelos remidores os pagamentos devidos à massa insolvente, credor hipotecário e encarregada de venda, será realizada a competente escritura de compra e venda a favor do credor hipotecário.(…)”


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O Credor hipotecário também se pronunciou afirmando, em síntese, que ao contrário do alegado pelos Requerentes em momento algum o Senhor Administrador de Insolvência colocou condições mais onerosas aos Requerentes porquanto o preço informado para aquele exercício corresponde ao valor de adjudicação ao Credor Hipotecário de € 500.000,00 (quinhentos mil euros). Sendo que, a comissão à leiloeira correspondem às disposições contratuais estabelecidas com a leiloeira, juntas ao presente apenso, as quais foram aceites nos termos do Douto Despacho de 01.03.2024, por falta de oposição do devedor insolvente e dos credores, sendo que das mesmas consta: 4.ª (REMUNERAÇÃO PELOS SERVIÇOS PRESTADOS): (…) 3. Na eventualidade da adjudicação dos bens em venda a credor hipotecário, serão apenas cobradas à Massa Insolvente as despesas inerentes à promoção, divulgação e publicidade dos bens em venda. Pelo que a comissão à leiloeira não decorre da decisão do Senhor Administrador de Insolvência mas antes do contrato estabelecido nos autos com leiloeira, das quais não consta qualquer isenção aos filhos do insolvente. Quanto à isenção de IMT e IS a mesma não consta da decisão de adjudicação do Senhor Administrador de Insolvência, nem tão pouco se aplica nos presentes autos, tendo o credor hipotecário já procedido à liquidação das mesmas, tão pouco o Senhor Administrador de Insolvência poderia isentar os Requerentes uma vez que as obrigações fiscais decorrem daquelas leis fiscais.

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Entre “A..., Unipessoal, Lda.” e a Massa Insolvente de AA, representada pelo(a) Sr.(a) Dr.(a) EE, na qualidade de Administrador(a) Judicial nomeado(a) no âmbito do processo de insolvência que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 5, sob o n.º 3077/23.7T8STS, com poderes para o acto, ficou estabelecido, no contrato de prestação de serviços, (ponto 4) que os bens a liquidar, respectivas verbas, identificação, valores, modalidade, dia e local de venda, serão discriminados em brochura de venda, que passará a fazer parte integrante do presente contrato e que terá de ser, previamente, autorizada pelo(a) Sr.(a)Administrador(a) Judicial; (ponto 5)No caso de venda na modalidade de leilão eletrónico o mesmo será realizado através da plataforma informática www.A...- leiloeiros.pt; A A... obriga-se a prestar a sua actividade de Leiloeira, disponibilizando também os seus serviços com vista à venda extrajudiacial de bens - móveis, imóveis e direitos - nas diversas modalidades de venda previstas no Código do Processo Civil (CPC), apreendidos ou a apreender no âmbito do processo de insolvência aqui em causa, em regime de exclusividade; (Cláusula 3.ª)As condições de venda a anunciar para a venda dos bens serão definidas em função da modalidade de venda definida pela MASSA INSOLVENTE – em cumprimento com as normas do CPC – as quais virão vertidas em brochura de venda, que passará a fazer parte integrante do presente contrato e que será, previamente, autorizada pelo(a) Sr.(a) Administrador(a) Judicial. (cláusula 4.ª) A A... e a MASSA INSOLVENTE acordam que, salvo estipulação expressa em contrário, o pagamento da remuneração da A..., a título de comissão de venda, é da responsabilidade do adquirente dos bens vendidos, conforme estipulado nas condições de venda. O preço dos serviços prestados pela A..., devido a título de comissão de venda, corresponde a:

• 5%, do valor da adjudicação/venda acrescido de IVA à taxa em vigor, para os bens imóveis;

• 10% do valor da adjudicação/venda, acrescido de IVA à taxa em vigor (sempre que a ele haja lugar), para os bens móveis.

3. Na eventualidade da adjudicação dos bens em venda a credor hipotecário, serão apenas cobradas à Massa Insolvente as despesas inerentes à promoção, divulgação e publicidade dos bens em venda, como sejam, arrombamentos e trocas de fechaduras, serviços de manutenção e limpeza, segurança, despesas com anúncios, elaboração de placas e/ou lonas de venda e colocação das mesmas, deslocações com potenciais interessados aos imóveis, entre outras, sempre com o prévio conhecimento e aprovação do(a) Administrador(a) Judicial.


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Proferiu-se decisão que aderiu à argumentação do AI e do Credor Hipotecário, concluindo “E o facto de o insolvente e os remidores não terem respondido à exposição do Sr. AI, decido que até à data da escritura (em nova data a definir), não sendo cumprido pelos remidores os pagamentos devidos à massa insolvente, credor hipotecário e encarregada de venda, não tendo sido validamente exercido o direito de remição pelos requerentes, nos termos dos arts. 842.º e 843.º do CPC, sendo levantada a suspensão da realização da escritura, determinada no despacho proferido em 04.09.2024 (referência 462960619), será realizada a competente escritura de compra e venda a favor do credor hipotecário.

No mais, atendendo à falta de colaboração dos insolventes em agendar data para a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, prazo que terminou a 02/09/2024, notifique o insolvente para proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de dez dias, sob cominação de se autorizar a presença policial, com vista à tomada da posse do imóvel, procedendo à abertura de porta e troca da fechadura se necessário, devendo a força policial que acompanhar a diligência, garantir que o imóvel seja entregue ao Sr. Administrador Judicial devidamente livre de pessoas.”


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Inconformados com a decisão, os Requerentes interpuseram recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

A – Apresenta-se o despacho recorrido carente do mais elementar sustento jurídico;

B – Resumindo, considerou o despacho recorrido que os recorrentes não exerceram, validamente, o direito de remissão que titulam, nos termos do consignado nos artigos 842.º e 843.º do Código de Processo Civil e, nessa medida (embora sem o proclamar expressamente) considerou-o extinto e de nenhum efeito;

C – Sendo que, de entre as condições que os remidores não teriam cumprido, avultava a obrigação de pagamento da comissão à encarregada de venda;

D – Donde resulta que, independentemente do mais, o não cumprimento dessa alegada obrigação, sempre determinaria a decisão que ora se contesta;

E – Circunscrevendo a questão em apreço ao seu núcleo essencial, importa dilucidar se, no preço previsto no artigo 842° do Código de Processo Civil, deve ser incluída a comissão de venda acordada entre uma leiloeira e o administrador da insolvência;

F - Segundo Alberto Reis, in Processo de Execução, 2º volume, pág. 478, o direito de remição não se confunde com o direito de preferência, embora se comporte coma tal;

G - Como refere o insigne Mestre diferem no fundamento: "ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial, o direito de remição tem por base uma relação de caracter familiar" e diferem também no fim: "enquanto o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita, o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas.”.

H - A respeito do caso em apreço, dispõe o n.º 1, do artigo 164° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que: "O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente. ".

I - A venda em estabelecimento de leilão, tal como a venda em leilão eletrónico, é uma das modalidades de venda admitidas em processo executivo - cf. artigo 811° do Código de Processo Civil - e a decisão sobre qual a modalidade da venda mais adequada ao ativo concreto é sempre do Administrador da Insolvência impondo a lei uma exigência acrescida de justificação sempre que a modalidade não seja a venda em leilão eletrónico.

J - Por sua vez, prescreve o artigo 51.º n.º 1, alínea c) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que "Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código: c) As dividas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente. ".

K - Afigura-se-nos, assim, que se o administrador contrata uma dada leiloeira, porque desta forma conseguirá vender melhor o bem, em benefício dos credores, a remuneração por aqueles combinada (a comissão) é um encargo da atividade de liquidação.

L - Na realidade, os atos da leiloeira inserem-se no âmbito duma relação de comissão e, por isso, são imputáveis ao comitente administrador.

M - Em regra, a leiloeira cobrará do administrador uma vez que o serviço foi prestado a este, em representação da massa, sendo certo que se os credores são os beneficiários, naturalmente terão de suportar os respetivos custos, e daí que a lei defina que são dividas da massa insolvente as emergentes dos atos de liquidação da massa insolvente.

N - Como é sabido, a comissão de venda não está previamente definida na lei como encargo obrigatório da compra e venda a liquidar pelo comprador.

O - Ora, sem imposição legal, o normal é que seja o vendedor a suportar o custo dela porque é o beneficiário da atividade de procura de interessados na compra, sendo que a referida comissão, remuneração de uma específica atividade, distingue-se dos legais e obrigatórios encargos da compra, como, por exemplo, as despesas da escritura e dos registos.

P - Afigura-se-nos, assim, que a referida comissão acordada no contexto referido, não pode ser repercutida na esfera jurídica-patrimonial de terceiros, alheios a tal intervenção, como sejam os remidores, ora recorrentes.

SEM PRESCINDIR

Q – Mesmo que, em abstrato, se defenda posição diversa à que agora se assevera, tal opção seria, no caso dos autos, totalmente inócua;

R – Porquanto resulta evidente que a opinião contrária à que agora se assevera, assenta num princípio basilar (totalmente defensável e respeitável), a saber: o exercício do direito de remição impõe ao remidor o cumprimento escrupuloso das condições de venda impostas ao remido;

S – Acontece que, no caso dos autos, ocorre, a este propósito, uma singularidade verdadeiramente inaudita;

T – Com efeito, pretendem o A.I. e, malogradamente, o despacho recorrido, impor aos remidores, um encargo – precisamente, a obrigação de pagamento da comissão à encarregada de venda - de que a entidade remida (o credor hipotecário) havia sido dispensada;

U – Na verdade, de forma cristalina e incontornável, foram as seguintes as condições em que o Sr. A.I. aceitou a adjudicação do imóvel à entidade remida (requerimento, com referência citius 39785988):

- PRECO: € 500.000,00

- PAGAMENTO DE CAUÇÃO DE 10%

- ISENÇÃO DE COMISSÃO À LEILOEIRA

- ISENÇÃO DE IMT e I. SELO

- 60 DIAS PARA A OUTORGA DA ESCRITURA

V – Ora, como bem se percebe se, em abstrato, se afigura aceitável defender que os remidores têm que pagar a comissão da encarregada de venda quando o mesmo tenha sido exigido à entidade remida;

w – Desborda, totalmente, de sentido pretender impor aos remidores a dita exigência, quando o remido foi isento da mesma;

X – Com o devido respeito, não há construção teórica que possa sustentar tão desatinado entendimento.

Y – Resultando, pois, evidente que a decisão recorrida viola, entre outros, os artigos 842.º e 843.º do CPC e o artigo 20.º da CRP.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se no preço a pagar pelo remidor, em substituição do remido, deve ser incluída a “comissão de venda” acordada entre a leiloeira e o Administrador da Insolvência.


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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos processuais acima descritos)

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IV-DIREITO

A questão suscitada no recurso, como decorre do acima exposto, consiste essencialmente em saber se, no exercício do direito de remição, o preço inclui a “comissão de venda”, estabelecida entre a leiloeira e o Administrador da Insolvência.

Do quadro legal

O direito de remição, segundo o disposto no art. 842.º do C.P.Civil, compete ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado.

A estas pessoas a lei reconhece, no citado preceito legal, o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.

Nesta matéria, a doutrina e jurisprudência, de forma unânime, tem reconhecido que o direito de remição atribuído aos interessados que detêm um vinculo familiar com o executado constitui um direito qualificado[1] ou especial[2] de preferência porque tem prevalência em caso de concurso com os direitos de preferência.

Quanto à natureza deste direito, A. dos Reis[3] entendia, face ao artigo legal em causa, que “é nitidamente um benefício de carácter familiar. Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda.”[4]

Acrescentando, com interesse, que “Na sua actuação prática o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos.”

A ratio legis tem como objectivo a protecção do património familiar; “quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família.”.[5]

No mesmo sentido pronunciava-se Lopes Cardoso[6]: “O direito de remição tem grande semelhança com o de preferência, havendo mesmo quem o considere simples modalidade deste.”

O direito de preferência, nas palavras de Henrique Mesquita,[7] “atribui ao respectivo titular prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro.”

Acrescentando[8], reportando-se à fase judicial, que “(…)o direito que assiste ao preferente, conforme parte da doutrina e algumas decisões judiciais têm sublinhado, é o de se subrogar ou substituir ao terceiro adquirente, na posição que este ocupa no contrato celebrado com o obrigado à preferência, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente.”

O elemento literal do art. 843.º do CPC apenas refere o pagamento do preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda, omitindo quaisquer encargos ou comissões de venda.

Com fundamento no art. 904.º do CPC, vigente à data, A. dos Reis entendia que o remidor devia também depositar a quantia correspondente às despesas prováveis da aquisição.[9]

Relativamente à controvérsia, na doutrina e na jurisprudência, sobre a interpretação do “preço devido” que competia ao titular do direito de preferência satisfazer, foi seguida, desde há muito pelo STJ, uma orientação segura, como se dá nota no Ac. do STJ de 10/01/2008[10]: “(…)como se escreve no Acórdão de 22.02.2005 Col. Jur. – Acs. do STJ, ano XIII, tomo I/2005, pág. 92. – um dos mais recentes na abordagem da questão – “o «preço devido», a que se refere o art. 1410º do CC diz apenas respeito à contraprestação que deve ser paga ao vendedor, não abrangendo quaisquer outras despesas deste (ou, acrescentamos nós, do adquirente), nomeadamente a sisa, despesas de registo ou de escritura.”

Tal entendimento, que aqui e agora se reafirma, tem sido assim justificado: O depósito do preço visa apenas garantir o vendedor contra o perigo de, finda a acção, o preferente se desinteressar da compra ou não ter possibilidades financeiras para a concretizar, perdendo aquele também o contrato com o primeiro comprador. Para remover tal perigo, é bastante o depósito da mencionada contraprestação.

Isso não significa que o preferente, no caso de procedência da acção, não tenha de satisfazer essas despesas acessórias: o que se afirma é apenas que, para prevenir aquele aludido perigo, basta o depósito da indicada contraprestação.

Por outro lado, resulta do disposto nos arts. 874º e 878º do CC que, no contrato de compra e venda, são realidades diversas o preço e “as despesas do contrato e outras acessórias”; e, noutras disposições do CPC – maxime, nos arts. 909º/2 e 1465º/1. b) – relativas à acção de preferência ou ao direito de preferência, faz-se clara distinção entre o preço, a sisa e as despesas da compra.

Ademais, é o sentido estrito – de contraprestação a pagar ao vendedor – aquele que corresponde ao significado que a palavra preço tem na linguagem vulgar, corrente. (…)”

Assim, considerando que o preço corresponde à contrapartida de valor pecuniário acordada entre as partes no contrato de compra e venda (874.ºCC), dúvidas não restam que, aplicando mutatis mutandis a posição assumida pelo Supremo sobre o preço devido no direito de preferência, deve ser admitido como válido o exercício do direito de remição com o depósito do preço da adjudicação ou da venda e a eventual indemnização ao comprador.

Diferente é a questão de saber se o remidor também está obrigado ao pagamento dos encargos da venda (despesas do acto) que se distinguem da comissão estabelecida no âmbito de um contrato de prestação de serviços firmado entre uma leiloeira e o vendedor do imóvel, no caso concreto com o administrador da insolvência.

No que tange às despesas decorrentes do acto da compra e venda, especificamente os encargos com a escritura e registo ou judiciais, provando-se que o comprador assumiu o compromisso de proceder ao respectivo pagamento, afigura-se-nos que o remidor deve substitui-lo na satisfação dessas despesas.

Como se referiu no Ac. desta Relação do Porto, de 21/11/2006[11] “(…) é hoje opinião francamente dominante que o preço devido, abrangendo apenas a contraprestação que deve ser paga ao vendedor, não incluindo outras despesas, v.g. tributárias, de registo ou de escritura, não significa que o preferente não deva pagar tais outras quantias ao comprador, desde que pedidas no processo, designadamente por reconvenção (cf. Ol. Ascensão Bol.219/217ss., S.T.J. 22/2/05 Col.I/92, S.T.J. 26/4/95 Col.I/153 ou Ac.R.L. 6/11/01 Col.V/72).”

Tal posição parece-nos ser inteiramente de sufragar, para o caso dos autos. Neste caso, não era de exigir à remidora, no momento do depósito do preço ou do exercício do direito, que conhecesse todas as despesas efectuadas pelo futuro comprador, em vista da compra (e daí que nunca se pudesse dizer que precludira o respectivo direito de remir, como pretende o Agravante).

Todavia, do lado desse adquirente e Agravante, parece elementar compensá-lo ou reembolsá-lo de todos os encargos da aquisição, dessa forma o libertando do ónus eventual do procedimento executivo, do qual sempre poderia, em todo o caso, lançar mão.”

Em suma, importa distinguir entre o depósito da contrapartida pecuniária devida pela adjudicação ou pela venda do bem para validar o direito do remidor, as despesas que resultam desse acto, que constituem uma obrigação para o (proponente) comprador e a eventual comissão de venda.

No processo de insolvência, o art.164.º, n.º 1 do CIRE estabelece que “O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão electrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.”.

A venda em leilão electrónico, como sucedeu no caso sub judice, é uma das modalidades de venda previstas no art. 811º, n.º 1, al. g) do C.P.C., sendo que, para esse efeito, pode ser auxiliado por terceiros, remunerados ou não, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão, como estatui o art. 55.º, n.º 3 do CIRE.

Face ao disposto no art. 51.º, n.º 1, al. c) do CIRE são consideradas dívidas da massa insolvente as emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente.

Nos presentes autos de insolvência, o AI contratou uma leiloeira para publicitar e vender o bem apreendido, através de leilão electrónico, tendo ficado acordado que a comissão seria paga pelo comprador, condição que foi divulgada através da brochura que consta do processo.

Ou seja, a comissão devida pela prestação desses serviços de publicitação e venda, que seria, em princípio, um custo da liquidação, passou a ser um encargo que deveria ser assumido pelo potencial comprador, uma vez que, conhecedor das condições de venda divulgadas antes do leilão, as aceitou, participando no leilão.

Como se declarou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/10/2021,[12] “(…)quem participa no leilão só o pode fazer aderindo às condições do leilão, as quais se encontram previamente publicitadas, expostas, na respetiva plataforma, sendo obrigação do participante, ao querer participar do leilão, inteirar-se do seu conteúdo.

Deste modo, objetivamente, quem se inscreve e participa no leilão está a dar o seu acordo às respetivas condições, ainda que subjetivamente não tome conhecimento dessas condições.”

O credor hipotecário ao apresentar a sua proposta aceitou as condições de venda, as quais, no que lhe diziam respeito, o isentavam desse pagamento, o que também era do conhecimento geral.

Por conseguinte, numa lógica de substituição (tanto por tanto) que impera no exercício de um direito de preferência, os remidores, no caso concreto, não estão obrigados a pagar a comissão de venda à leiloeira atendendo a que o credor hipotecário estava dela isenta.

E mesmo que assim não se entendesse, importa realçar que os remidores não participaram no leilão electrónico, e, por esse motivo, não ficaram obrigados a pagar a comissão acordada com a leiloeira.

Na verdade, ao contrário dos que participaram na plataforma digital do leilão, os remidores não ficaram vinculados juridicamente ao pagamento de quaisquer condições de venda que resultem de um acordo que lhes é alheio, celebrado entre o Administrador da Insolvência e o auxiliar por ele contratado, a leiloeira.

Por não terem participado no leilão electrónico, os remidores não estabeleceram qualquer acordo com a leiloeira nos termos do qual ficariam obrigados a pagar-lhe a comissão de venda.

Como se explicita no Acórdão do TRC, de 02/12/2014,[13]”A comissão acordada entre a mediadora e o AI não pode ser imposta à remidora do bem, por não ser um encargo próprio da aquisição, constituindo antes uma remuneração aciete por aqueles e uma dívida da massa insolvente.

Por outro lado, como já observámos, a substituição dos remidores pelo comprador impede que lhes seja exigida a comissão que este estava dispensado de pagar, sob pena de desrespeito da regra do tanto por tanto que subjaz ao exercício do direito de preferência.

Por todas as razões aduzidas, procede o recurso interposto pelos remidores, os quais não estão obrigados a pagar à leiloeira a respectiva comissão de venda.


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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, declara-se que no exercício do direito de remição os Recorrentes não estão obrigados a pagar a comissão à encarregada da venda.

Custas pelos Recorridos.

Notifique.

Porto, 11/12/2024

Anabela Miranda

Lina Baptista

Alexandra Pelayo

_______________________
[1] Pinto, Rui, A Acção Executiva, 2018, pág. 886.
[2] Freitas, José Lebre de,A Acção Executiva, 6.ª edição, pág. 385.
[3] Processo de Execução, Coimbra Editora, vol. 2.º, pág. 477.
[4] Na jurisprudência sobre a natureza deste direito como um verdadeiro direito de preferência, v. entre outros Ac. STJ de 13/04/2010 (Rel Urbano Dias)
[5] Reis, Alberto dos, ob. cit. pág. 478.
[6] Manual da Acção Executiva, 3.º edição, pág. 615.
[7] Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina , 1990, pág. 189.
[8] Ob. cit., pág. 220.
[9] Ob. cit. Pág. 485.
[10] Rel. Santos Bernardino, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Rel. Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt
[12] Relator Alberto Ruço, Disponível em www.dgsi.pt
[13] Rel. Fernando Monteiro e no mesmo sentido v. Ac. do TRP (Rel. Paulo Dias da Silva) de 11/03/2021, disponíveis em www.dgsi.pt; em sentido contrário, cfr. Acs. do TRG de 18/06/2020 (Rel. Alexandra Viana Lopes) e de 19/09/2024 (Rel. Fernando Barroso Cabanelas).