TRIBUNAL COMPETENTE
OPOSIÇÃO
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário

1. Para os efeitos da parte final do artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, podem justificar a oposição à remessa do processo ao tribunal competente, as seguintes situações:
a) Quando determina uma restrição das garantias do réu;
b) A defesa já deduzida não tenha contemplado a alegação de questões próprias e específicas da jurisdição do tribunal competente ou de outras questões que só nesta assumam pertinência;
c) O réu não tenha utilizado todos os meios de defesa que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente;
d) A defesa se tenha centrado na invocação da excepção de incompetência absoluta, atenta a evidência desta, com um justificável menor desenvolvimento das demais questões;
e) A defesa apresentada careça de ser ampliada no novo tribunal.
2. Para que a oposição à remessa ao tribunal competente seja justificada, exige-se a alegação dos motivos concretos que justificam a oposição, devendo o tribunal verificar se os mesmos são verosímeis.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Abrantes, (…) apresentou providência cautelar não especificada contra (…) – Associação Florestal do Concelho de (…) e (…) – Gestão (…), S.A., peticionando que estas sejam notificadas para se absterem de praticar quaisquer actos relativamente à (…) «(…)» a partir da reunião de 12.01.2024 e enquanto não juntarem aos autos a acta e/ou outro documento escrito de aprovação da proposta de (…) de (…), conforme o artigo 21.º do DL 28-A/2020, de 26.06.
Após contestação das Requeridas, foi proferido despacho para as partes exercerem o seu contraditório quanto à competência material do tribunal.
Apenas o Requerente respondeu, argumentando que a competência para o julgamento da causa assistia aos tribunais comuns.
Seguiu-se despacho entendendo que era competente a jurisdição administrativa, motivo pelo qual se julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria e se absolveram as Requeridas da instância.
Notificadas, as partes não interpuseram recurso desta decisão.
Mas o Requerente atravessou requerimento, para remessa dos autos ao TAF de Leiria, nos termos do artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
As Requeridas opuseram-se a este requerimento, argumentando o seguinte:
1º. A forma processual utilizada para demandar as RR. nos presentes autos não tem correspondência na jurisdição processual administrativa, dela se afastando. Com efeito,
2º. Se por um lado, a providência intentada ao abrigo da Jurisdição Civil poderia ter cabimento,
3º. Na Jurisdição Administrativa não encontra paralelo, atenta a legitimidade e capacidade das partes, a causa de pedir e o pedido formulado pelo Requerente. Doutr’arte,
4º. Na Jurisdição Administrativa é imprescindível que a providência cautelar vise acautelar o perigo ou a ameaça de ocorrerem factos consumados ou prejuízos irreparáveis para os direitos ou interesses legalmente protegidos do requerente da providência.
5º. Factos consumados ou prejuízos irreparáveis para os direitos ou interesses legalmente protegidos do requerente que, se se verificassem na pendência da acção principal, tornaria difícil ou impossível a reparação desses mesmos direitos ou interesses ou até mesmo a reconstituição da situação fáctica em caso de procedência das pretensões formuladas no processo principal.
6º. Na Jurisdição Administrativa, as providências cautelares são medidas instrumentais e provisórias que não, em si mesmas, o equivalente ao pedido principal.
7º. Que, in casu acontece, ex vide a causa de pedir e o pedido formulado pelo Requerente, resultando da sua simples leitura que os pedidos formulados na presente Jurisdição Cível se esgotam neles mesmos.
8º. Assim e por violação dos normativos 113.º e 114.º do CPTA, as Requeridas opõem-se ao envio dos presentes autos para a Jurisdição Administrativa. E ainda,
9º. A verificar-se tal envio para a Jurisdição Administrativa, as Requeridas serão colocadas na posição de se suscitarem questões que só naquela Jurisdição assumam a pertinente relevância, nomeadamente a nível da aplicação legislativa e cuja defesa já deduzida não as contempla, lesando desse modo o seu direito à defesa.
10º. Pelo que, tal remessa nos termos requeridos pelo Requerente não só prejudica o direito de defesa das Requeridas, como põe em perigo o direito a um processo equitativo em prazo razoável. Finalmente,
11º. Considerando-se admissível, o que salvo o devido respeito não se concede, a remessa dos presentes autos para a Jurisdição Administrativa sempre se dirá que tal corresponderia a nova instância, embora com o aproveitamento dos articulados.
12º. Mas, atentando-se ao pedido formulado pelo Requerente (in casu) sempre terá de se concluir que o mesmo não está em prazo para “iniciar a nova instância” por decorrido o prazo que alude o artigo 21.º do DL 28-A/2020, de 26/06.
13º. É que o aludido prazo legal de 15 dias, ponderada a data de 12/01/2024 em que terá ocorrido a indicada reunião mencionada pelo Requerente na sua causa de pedir, terá de se concluir estar há muito presumivelmente ultrapassado.
14º. Verificando-se, deste modo uma caducidade da pretensão do Requerente e, que a simples remessa impedirá as Requeridas de a impugnar.
15º. Pois que, as Requeridas beneficiarão de defesa diferente em relação a esta questão da caducidade do direito do Requerente, dado que a acção deixa de ter dado entrada em juízo em 23/01/2024 e passando a dar entrada em Agosto 2024.
16º. Donde, a contagem do prazo de caducidade pode ter uma nova perspectiva nos direitos de defesa das Requeridas.
17º. Pelo que, verificando-se a apreciação da caducidade do direito do Requerente que pugna pela junção de documento às Requeridas, deverá ser indeferida a remessa para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
18º. Legalmente a remessa para o tribunal competente é uma vantagem concedida ao Requerente, mas que não pode prejudicar as Requeridas e, in casu, sendo deferida, estas impedidas estariam de poder alegar a caducidade da acção o que deverá ser considerada oposição justificada ao pedido de remessa”.

O despacho recorrido determinou a remessa dos autos ao TAF de Leiria, pelo que as Requeridas interpuseram recurso, concluindo:
1. Vem a presente apelação interposta da decisão que julgou improcedente a oposição à remessa dos presentes autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leira por falta de fundamento legal.
2. As Recorrentes alegaram que a forma processual utilizada na presente providência cautelar não tem correspondência na jurisdição administrativa, atenta a legitimidade, capacidade das partes, a causa de pedir e o pedido formulado pelo requerente da providência cautelar, resultando violados os artigos 113.º e 114.º do CPTA com tal remessa para o TAF de Leiria.
3. A verificar-se a remessa para a Jurisdição Administrativa, as Recorrentes serão colocadas na posição de questões que só naquela Jurisdição assumam a pertinente relevância, nomeadamente a nível da aplicação legislativa e cuja defesa já deduzida não as contempla, lesando desse modo o seu direito à defesa colocando em perigo o direito a um processo equitativo em prazo razoável.
4. As Recorrentes fundamentaram a oposição à remessa para a Jurisdição Administrativa, invocando expressa e evidenciadamente questões jurídicas impeditivas do exercício do direito do Recorrido.
5. Da leitura da Decisão resulta que o Tribunal a quo entendeu que as Recorrentes apenas tinham concretizado um único argumento na sua oposição à remessa dos presentes autos para o TAF de Leiria.
6. Os actuais articulados, nomeadamente o requerimento inicial não cumpre os requisitos formais que a Jurisdição Administrativa exige aquando da sua interposição.
7. Os pressupostos para intentar uma providência cautelar na Jurisdição Administrativa diferem em muito dos exigidos para as providências cautelares na Jurisdição Cível.
8. O requerimento inicial não cumpre com as formalidades elencadas no n.º 2 do artigo 114.º do CPTA.
9. Patente é o incumprimento do disposto no artigo 113.º do CPTA.
10. O aproveitamento dos articulados impedirá as Recorrentes de invocarem tais excepções, coarctando o direito à defesa.
11. Na Decisão Recorrida não consta qualquer fundamentação ou pronúncia sobre esta concreta questão invocada pelas Recorrentes.
12. A Decisão enferma de um erro de actividade ou de construção que forçosamente terá de acarretar a sua nulidade (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC), por violação do preceituado no sancionando no estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
13. A falta de requisitos essenciais da presente providência por referência à providência cautelar administrativa invocada pelas Recorrentes, não se subsume a um mero apoio jurídico esgrimido por estas.
14. É questão jurídica atinente ao thema decidendum que o Tribunal a quo não abordou, não resolveu. Questão essencial e imprescindível para aferir da justificação da oposição das Recorrentes à não remessa àquela Jurisdição.
15. Caso assim não se entenda que se verifica uma omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo, sempre se dirá que a fundamentação da Decisão, a existir é ambígua e obscura (no mínimo insuficiente) não permitindo às Recorrentes alcançar a solução de facto e de direito dada às questões por si invocada.
16. Verificando-se falta de fundamentação de facto e de direito por esta se revelar gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção daquelas razões de facto e de direito da decisão judicial.
17. Concluindo-se que a Decisão padece, em consequência, de nulidade nos termos das alíneas b) e c) do artigo 615.º do CPC.
18. A oposição à remessa para a Jurisdição competente não obriga o Réu a elencar a totalidade das excepções/impugnação que pretenda vir a apresentar na “nova acção”, mas tão só a expor o que na sua vertente considera ser de tal forma prejudicial à sua defesa que tem de impedir a remessa.
19. O preceituado no n.º 2 do artigo 99.º do CPC apenas exige que seja invocada alguma razão plausível para se opor à remessa, sem carecer de especificação pormenorizada, demonstrando-se de forma inequívoca que tais fundamentos não se mostram meramente arbitrários. O que de facto ocorreu.
20. Não compete ao Tribunal a quo apreciar o mérito do fundamento, ou seja, se este é ou não procedente junto do Tribunal competente, competindo àquele meramente apreciar se o motivo apresentado basta para fundamentar a oposição.
21. Está vedado ao Tribunal a quo apreciar se o motivo/questão alegada poderá ou não ter provimento junto daquele Tribunal competente.
22. A não ser assim entendido, cair-se-ia no cúmulo de as Recorrentes terem revelado toda a sua estratégia de defesa antes do Recorrido ser obrigado a intentar nova providência na Jurisdição competente.
23. Verifica-se, no requerimento de oposição, a alegação de questões concretas que não foram colocadas perante a jurisdição cível e que colocaria na jurisdição administrativa se porventura a acção aí tivesse sido instaurada ab initio.
24. Devendo concluir-se que a oposição à remessa dos autos ao TAF de Leiria elaborada pelas Recorrentes se encontra plenamente justificada devendo revogar-se a Decisão ora recorrida e substituída que indefira o requerimento de remessa.

Não foi oferecida resposta.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
Os factos a ponderar são os constantes do relatório.

Da arguição de nulidade da decisão recorrida
Argumentam as Recorrentes que o despacho recorrido incorreu em nulidade, sob múltiplas perspectivas, maxime, a sua insuficiente fundamentação; a sua ambiguidade; e a não apreciação de todas as questões que deveriam ter sido apreciadas, tudo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do Código de Processo Civil.
No que respeita à invocação de falta de fundamentação – alínea b) daquela norma – diremos que apenas ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso, mas não a respectiva nulidade.
Citando Alberto dos Reis[1], “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Também Teixeira de Sousa[2] afirma que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (…). O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.
Não sendo exigível que a fundamentação seja longa nem exaustiva, bastando que o Tribunal justifique a sua posição, ainda que se forma concisa ou pouco persuasiva, faz-se notar, de todo o modo, que o despacho recorrido especificou os fundamentos de direito que justificaram a decisão.
As Recorrentes alegam que o despacho recorrido efectuou uma fundamentação insuficiente, mas certo é que este preocupou-se em analisar, de forma aprofundada, os requisitos de “oposição justificada” à remessa do processo ao tribunal competente, para os fins do artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, concluindo que “é indispensável que tal oposição seja justificada, não bastando uma oposição pura e simples, ou seja, imotivada e as requeridas apenas teriam fundadas razões para se opor à remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta sempre que a defesa já deduzida possa ser ampliada no novo tribunal, suscitando questões que só naquela jurisdição assumem pertinência. O que, na contextura articular assumida pelas partes, designadamente pelas requeridas, assinalada nos presentes autos, não se almeja ou se revela, em absoluto, indispensável, sequer, necessária, uma vez que as Requeridas alegaram toda a matéria de facto e de direito que entenderam pertinentes aduzir, acrescendo que a alegada caducidade ainda que em tese se verifique, as requeridas podem, ainda que o processo seja remetido para o Tribunal Administrativo, arguir a caducidade em qualquer fase do processo ainda que este já se encontre no tribunal competente e a caducidade também pode ser apreciada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 333.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que não colhem os argumentos das Requeridas a sustentar a sua oposição à remessa destes autos para o Tribunal Administrativo, não havendo violação de qualquer norma legal com a remessa do processo ao tribunal competente”.
O que se passa é que as Recorrentes discordam da análise jurídica realizada, mas tal não configura falta de fundamentação, poderá tão só traduzir-se em erro de direito e determinar a alteração da decisão recorrida, mas dessa análise iremos ocupar-nos mais adiante.
Assim, porque a fundamentação de facto e de direito constam do despacho recorrido, fica afastada esta arguição de nulidade.
Quanto à alegação de ambiguidade ou obscuridade da decisão – alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º – diremos que esta nulidade ocorre quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Alberto dos Reis[3] escrevia que esta nulidade verifica-se “quando a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)”, quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
E também se escreveu[4] que a lei refere-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) (Nestes) casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
No caso dos autos, o despacho recorrido justificou os fundamentos pelos quais considerou não estar devidamente justificada a oposição à remessa ao tribunal competente, e tomou a decisão consequente.
A fundamentação existe, está expressa de forma clara e traduz o exercício pelo tribunal recorrido do seu poder de livre apreciação da prova e de aplicação do direito correspondente, pelo que de modo algum se pode dizer que ocorre alguma nulidade nesse exercício.
Se as Recorrentes discordam da conclusão obtida no despacho recorrido, o seu fundamento de recurso não é a invocação de nulidade, mas a identificação dos argumentos de facto e de direito que permitam estabelecer a ocorrência de oposição justificada, relevante para efeitos do disposto no artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Logo, também esta linha de arguição de nulidade não merece atendimento.
Quanto ao fundamento de nulidade por omissão de pronúncia – alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º – diremos que esta nulidade apenas ocorre quando o juiz não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, ou conheça de outras questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso das mesmas.
Referia o Prof. Alberto dos Reis[5], que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (…), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (…) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.
No caso, as Recorrentes alegam que o despacho recorrido não apreciou todas os argumentos por si suscitados para se oporem à remessa ao tribunal competente, nomeadamente o argumento relativo ao não cumprimento das formalidades exigidas pelos artigos 113.º e 114.º, n.º 2, do CPTA.
Ora, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – artigo 608.º, n.º 2, primeira parte, do Código de Processo Civil. E foi esse o dever que o despacho recorrido cumpriu, identificando quais os requisitos de “oposição justificada” previstos no preceito legal em discussão, e concluindo que tais requisitos não estavam reunidos.
Importando notar que, para efeitos de nulidade de sentença há que não confundir “questões” com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada[6], a questão a decidir – a “oposição justificada” – foi longamente escalpelizada no despacho recorrido.
E mesmo o argumento acerca da adequação na jurisdição administrativa do meio processual utilizado pelo Requerente da providência, está analisado no despacho recorrido, embora de forma implícita: “o réu terá fundadas razões para se opor à remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta sempre que a defesa já deduzida possa ser ampliada no novo tribunal, suscitando questões que só naquela jurisdição assumem pertinência. O que, na contextura articular já assumida pelas partes, designadamente pelas requeridas, assinalada nos presentes autos, não se almeja ou se revela, em absoluto, indispensável, sequer, necessária, na medida em que as Requeridas alegaram toda a matéria de facto e de direito que entenderam pertinentes aduzir…”.
Ou seja, é explicado qual o fundamento de oposição justificada – possibilidade de a defesa ser ampliada no tribunal competente, suscitando questões que só naquela jurisdição assumem pertinência – e respondido que esse particular fundamento, de todo o modo, não ocorre.
Lendo bem o despacho recorrido, este aprecia a questão que tinha para apreciação, de forma longa e exaustiva, não se podendo ali surpreender qualquer omissão de pronúncia.
Podem as Recorrentes não concordar com os argumentos e conclusões ali expostos, mas tal juízo apenas poderá fundar a revogação do despacho recorrido por erro de direito, mas não a sua anulação.
Julgam-se, pois, improcedentes todas as arguições de nulidade invocadas pelas Recorrentes.

Da oposição justificada à remessa dos autos ao tribunal competente
Está em discussão no recurso a verificação do conceito de “oposição justificada” a que se refere o artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – sendo certo que os outros requisitos de operacionalidade da norma estão verificados: incompetência decretada findos os articulados, trânsito em julgado da decisão e requerimento do autor, no prazo de 10 dias, de remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta.
Na doutrina, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação a este artigo, afirmam o seguinte: “Essa oposição tem de ser justificada, o que se harmoniza com o direito de defesa e o princípio da economia processual; será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente; é discutível se continuará a sê-lo se o réu não utilizou todos esses meios, embora os pudesse utilizar.”[7]
Por seu turno, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, anotam o seguinte: “Ocorre fundamento bastante para a oposição à remessa do processo para o tribunal competente quando, por exemplo, o Réu não deduziu reconvenção pelo facto do tribunal também ser materialmente incompetente para a apreciação do pedido reconvencional (…). Neste caso, a eventual remessa do processo, com o referido aproveitamento dos articulados, determinaria uma restrição nas garantias do réu, assim se justificando a recusa. Noutros casos os motivos poderão não ser relevantes (…) ou menos evidentes, devendo ser feita uma apreciação global da defesa que foi ou poderia ter sido apresentada (…). Pode ocorrer que o tribunal que for declarado competente para a apreciação do litígio esteja sujeito a regras que não coincidam com as que foram observadas no outro tribunal. Tal será mais frequente no caso de se tratar de tribunal administrativo e fiscal, mas não está afastada a diversidade de requisitos formais ou de tramitação, em face das regras aplicáveis, por exemplo, à resolução de casos do foro laboral (sendo significativa a diferença no que respeita ao processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento). Nestes casos, poderá justificar-se o exercício dos poderes de adequação formal, nos termos do arts. 6.º e 547.º”.[8]
Escreveu-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 10.10.2017, a propósito, o seguinte: “Esta oposição justificada dá guarida ao direito de defesa do Réu que não pode ser restringido por via do aproveitamento dos articulados. O início de uma nova instância no tribunal competente, com aproveitamento dos articulados e dos actos processuais que eles impliquem (citação do réu, notificações, eventual despacho liminar ou pré-saneador), feita ao abrigo do princípio da economia processual, não podem bulir com o direito de defesa do R., caso em que lhe assiste a possibilidade de deduzir oposição justificada. Não basta, todavia, ao R. opor-se. Esta oposição tem que ser justificada, ao abrigo, ainda, do princípio da cooperação e da boa-fé processual, que convocam uma intervenção no processo pelas partes concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (artigos 7.º, n.º 1, e 8.º do CPC).”[9]
Na jurisprudência[10] têm sido identificadas as seguintes situações que podem justificar a oposição à remessa:
a) Quando determina uma restrição das garantias do réu;
b) A defesa já deduzida não tenha contemplado a alegação de questões próprias e específicas da jurisdição do tribunal competente ou de outras questões que só nesta assumam pertinência;
c) O réu não tenha utilizado todos os meios de defesa que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente;
d) A defesa se tenha centrado na invocação da excepção de incompetência absoluta, atenta a evidência desta, com um justificável menor desenvolvimento das demais questões;
e) A defesa apresentada careça de ser ampliada no novo tribunal.
No caso, as Recorrentes invocaram dois fundamentos para se oporem à remessa do processo: 1.º - inadequação da forma processual utilizada pelo Requerente da providência, pois na jurisdição administrativa as providências cautelares são medidas instrumentais e provisórias, não sendo em si mesmas equivalentes ao pedido principal, não tendo sido observado o disposto no artigos 113.º e 114.º do CPTA; 2.º - possibilidade de as Recorrentes invocarem a excepção de caducidade da pretensão do Requerente, que a simples remessa dos autos impedirá as Recorrentes de a invocar.
Nas alegações de recurso – e nas conclusões – já não é invocado o argumento relativo à possibilidade de invocação na jurisdição administrativa da excepção de caducidade do direito de acção do Requerente, talvez porque as Recorrentes se aperceberam das consequências adversas de tal argumento.
No fundo, sob a invocação da não restrição dos seus direitos de defesa, estavam a provocar uma restrição inaceitável do direito de acção da contraparte.
O Requerente da providência perderia o direito por si invocado – a presente causa foi proposta em 23.01.2024, i.e., no prazo de 15 dias aludido no artigo 21.º do DL 28-A/2020, de 26 de Junho – e mesmo que invocasse o disposto nos artigos 332.º, n.º 1 e 327.º, n.º 3, do Código Civil, a possibilidade de sucesso seria problemática, pois a absolvição da instância decorre de motivo processual imputável ao titular do direito.
Quanto ao primeiro argumento apresentado – erro na forma de processo e violação do carácter instrumental da providência – não é um meio de defesa exclusivo da jurisdição administrativa.
Também na jurisdição comum, estas questões são tratadas e têm o devido enquadramento nos artigos 193.º e 364.º do Código de Processo Civil, pelo que as Recorrentes não podem afirmar que foram impossibilitadas de invocar uma questão específica da jurisdição administrativa.
Aliás, lendo a contestação que ofereceram nestes autos, as Recorrentes alegaram que o Requerente da providência não havia demonstrado estar em perigo o direito que arrogava, e que a providência cautelar não era o meio legal para a obtenção da sua pretensão (artigos 41º e 42º daquele articulado).
Escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 27.03.2023, supra citado, que “ainda que não se requeira uma comprovação segura e cabal das razões ou dos motivos invocados para justificar a oposição à remessa do processo ao tribunal materialmente competente, a nosso ver, devem ser invocados motivos concretos para justificar a oposição e os mesmos devem ser verosímeis”.
Nesta mesma linha, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.04.2024 escreveu-se o seguinte: “Coloca-se a questão de saber se para a justificação da oposição da remessa é suficiente a mera alegação genérica, em abstracto, dos fundamentos ou se é necessário a alegação concreta dos fundamentos, ou seja, do dano causado ao direito de defesa. Dado que, perante a oposição, o tribunal terá de fazer um juízo de ponderação, em face dos interesses em confronto, o réu deve concretizar as razões pelas quais se opõe, o que ressalta tanto da interpretação literal (“oposição justificada”), como da ratio legis. Por isso, não bastando a mera oposição, exige-se que seja “justificada”, logo incide sobre o réu o ónus de alegação das razões concretas, pois só assim se pode aferir, ainda que perfunctoriamente, da diminuição das garantias de defesa.”[11]
E precisamente este é o requisito que as Recorrentes não lograram cumprir.
Os argumentos que apresentaram não são verosímeis ou consistentes, pois não demonstraram que a remessa dos autos provocaria uma restrição das suas garantias, ou que a sua defesa não contemplou questões específicas da jurisdição administrativa, ou que não utilizaram todos os meios de defesa que lhes seriam proporcionados naquela jurisdição.
Como se escreve também no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, perante “uma alegação genérica, não concretizada, e sem a indispensável concretização não é possível a formulação do juízo de ponderação. Se as simples diferenças de tramitação processual e a natureza das normas de direito público relevassem em abstracto, então sempre que a competência material fosse deferida à jurisdição administrativa nunca se poderia aplicar a remessa ou a oposição seria sempre justificada, o que contraria a finalidade do regime do novo Código de Processo Civil sobre os efeitos da incompetência”.
O recurso não merece, pois, provimento.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelas Recorrentes.
Évora, 21 de Novembro de 2024
Mário Branco Coelho (relator)
Cristina Dá Mesquita
José Saruga Martins


__________________________________________________
[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140.
[2] In Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1.ª ed., pág. 689.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
[6] Neste sentido, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2014 (Proc. n.º 810/04.0TBTVD.L1.S1) e de 29.03.2022 (Proc. n.º 19655/15.5T8PRT.P3.S1), ambos em www.dgsi.pt.
[7] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág. 230.
[8] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., em anotação ao referido artigo 99.º.
[9] Acórdão proferido no Proc. n.º 16/10.9TBPST.L2-7 e publicado em www.dgsi.pt.
[10] Em especial, nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 08.07.2020 (Proc. n.º 1250/19.1T8BRG.G1), de 19.05.2022 (Proc. n.º 704/21.4T8FAF-A.G1), de 09.11.2023 (Proc. n.º 9554/23.2YIPRT.G1), e no Acórdão da Relação do Porto de 27.03.2023 (Proc. n.º 30/22.1T8PVZ.P1), todos publicados em www.dgsi.pt.
[11] Proferido no Proc. n.º 51012/18.6YIPRT-E.P1.S1 e publicado em www.dgsi.pt.