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CONTRATO DE MÚTUO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
Sumário
(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil) I - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022, publicado no Diário da República, I série, n.º 184, de 22.09.2022 fixou jurisprudência, designadamente, no sentido de que “No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.” II - Para exercer a faculdade que o art.º 781º do CC confere, exige-se que o credor interpele o devedor para lhe comunicar a perda do benefício do prazo e exigir o pagamento da totalidade das prestações, ou seja, o seu funcionamento exige que o credor manifeste junto do devedor a vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribui. III - A circunstância de o direito de crédito da Ré se vencer antecipadamente na sua totalidade em consequência da declaração de insolvência do devedor, nos termos do art.º 91º, n.º 1, do CIRE, não altera o seu enquadramento em termos de prescrição, continuando a ser-lhe aplicável o prazo de prescrição previsto no art.º 310º, e), do CC.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
A (…) veio intentar a presente ação declarativa de processo comum contra C (…), S.A., pedindo:
a) que seja declarada a prescrição de todas as obrigações de pagamento decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca outorgado entre Autor e Ré em 14.10.2008, pelo valor de 150.000,00 €; e,
b) a condenação da Ré a reconhecer a invocada prescrição do crédito, nos temos do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, referente a todas as obrigações de pagamento decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca outorgado entre Autor e Ré em 14.10.2008, pelo valor de 150.000,00 €.
Alega para o efeito que no dia 14.10.2008 foi celebrado entre o Autor e a Ré um contrato de mútuo com hipoteca, no valor de 150.000,00 €, com capital máximo assegurado de 211.107,00 €, taxa de juro de 8,246%, acrescida de uma sobretaxa de 4% em caso de mora, e despesas de 6.000,00 €, a ser reembolsado no prazo de 30 anos, sendo o capital do empréstimo amortizado em prestações mensais constantes, de capital e juros, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao do final do período de carência e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.
Sucede que desde o dia 14.03.2014 que o Autor não procedeu ao pagamento das prestações a que ficou obrigado através da outorga do referido contrato. No entanto, independentemente desse incumprimento, a Ré não interpelou o Autor para pagamento das prestações vencidas, nem tão pouco instaurou qualquer ação para cobrança de dívida, capital e juros. Daí que o Autor, a 17.12.2021, tenha enviado carta registada com aviso de receção à Ré, comunicando-lhe que atendendo às circunstâncias alegadas supra e considerando aplicável o prazo prescricional de cinco anos previsto no art.º 310º, alínea e), do CC, deveria a Ré reconhecer a prescrição da obrigação de pagamento do contrato de mútuo e emitir o documento de distrate da hipoteca voluntaria registada. Essa missiva foi rececionada pela Ré no dia 21.12.2021, sem que a mesma se tenha ainda pronunciado quanto à alegada prescrição de créditos.
Citada, a Ré contestou.
Alega que o Autor deixou de cumprir com os termos e obrigações contratualizadas.
Assim, quanto ao referido empréstimo, encontrava-se em dívida, à data de 08.02.2022, a quantia de 176.535,96 €, constituída por capital vencido no montante de 140.623,55 €, juros no valor de 19.408,12 €, juros de mora no valor de 14.978,02 € e comissões no valor de 1.526,27 €.
Discorda que o crédito se encontre prescrito, porquanto as prestações não perdem a sua individualidade, estando subordinadas, cada uma delas, ao prazo de prescrição de 5 anos. Não existindo interpelação da Ré, não ocorreu o vencimento de todas as prestações vincendas, mantendo-se o prazo previsto no contrato e o respetivo plano prestacional, pelo que será em relação a este que deverá aplicar-se o prazo prescricional.
Conclui que as prestações que se venceram nos cinco anos anteriores à reclamação de créditos apresentada pela Ré junto do Administrador Judicial Provisório em 17.02.2022, bem como as que se venceram depois dessa data, não podem considerar-se prescritas, designadamente, as prestações vencidas e não pagas desde 14.03.2017 até 14.09.2038.
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Foi realizada audiência prévia, na qual se fixou o objeto do litígio, se elencaram os factos provados por documento ou confissão e se selecionaram os temas da prova.
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Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença cujo segmento decisório se reproduz:
“4. Decisão Em face do exposto, na acção declarativa sob a forma de processo comum que A (…) instaurou contra a C (…), SA, na parcial procedência da pretensão do autor, declaram-se prescrito o direito de crédito da ré, quanto às prestações relativas ao período de 14.03.2014 até 22.02.2019. Custas na proporção de 2/3 para o autor e 1/3 para a ré. Registe e notifique.”
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Não se conformando com essa decisão, o Autor dela veio recorrer, reproduzem-se aqui as respetivas conclusões recursivas:
“IV. CONCLUSÕES 63. A questão nuclear em causa neste recurso, o seu thema decidendum, é a de se saber se no caso sub judice, está, ou não, verificada a invocada excepção peremptória da prescrição dos créditos peticionados pela autora, ora recorrida, nesta acção. 64. Como decorre da contestação apresentada pelo recorrente, que aqui se reproduz para todos os efeitos legais, foi invocou a prescrição desses créditos, face ao disposto na alínea e), do artº 310º, do Código Civil, estando sempre a obrigação de juros, na parte que excedesse o prazo de cinco anos estaria extinta por prescrição, face ao preceituado na alínea d), do artº 310º, do Código Civil. 65. Da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, os valores dos financiamentos efectuados pela recorrida ao recorrente deviam ser feitos em prestações – cfr. pontos 2.1.2 dessa matéria de facto. 66. O recorrente deixou de cumprir esses planos de pagamento em, respectivamente, desde o dia 14/03/2014 que ficou obrigado, através da outorga do referido contrato, 2.1.9 da matéria de facto, antes do transito em julgado da sentença que declarou a insolvência proferida em 05.08.2022 nos autos de insolvência de pessoa singular que corre termos sob o nº (…) no Juízo Cível Local de Ponta Delgada, foi declarada a insolvência do Recorrente. 67. pelo que se conclui que a declaração de insolvência não teve efeito algum sobre os créditos em causa nesta acção, porquanto os mesmos já se encontravam vencidos, por incumprimento, muito antes da data dessa mesma declaração de insolvência. 68. Nessa perspetiva, sempre tais créditos estariam extintos por prescrição, uma vez que, sendo os mesmos, por via de contrato a tal dirigido celebrado pelas partes, liquidáveis em prestações, decorreram muito mais de cinco anos entre o seu vencimento e a citação do recorrente para esta acção. 69. Assente está que, no contrato identificado nesse ponto em 2.1.3 da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, o reembolso de todos esses créditos seria pago em prestações mensais, que englobavam capital, juros, despesas e impostos. 70. Essas prestações consubstanciam ou têm a natureza das “quotas” a que alude a alínea e), do artº 310º, do Código Civil, as quais extinguem-se por prescrição decorrido que seja o prazo de cinco anos após o seu vencimento, tal como está previsto no artº 310º desse Código, como é o caso em apreço em relação aos referidos três contratos, já que, como resulta dos autos já passaram muito mais de cinco anos desde o seu vencimento e a citação do recorrente para esta acção. 71. Todas as obrigações emergentes desses acordos de pagamento dos créditos invocados pela recorrida nesta acção acham-se extintos por prescrição, a qual é extintiva, isto é, opera os seus efeitos pelo simples decurso do prazo, contrariamente às prescrições ditas de curto prazo ou presuntivas, previstas nos artigos 312º, 316º e 317º, todos do Código Civil, que se baseiam na presunção do cumprimento pelo decurso do prazo. Neste sentido o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-12-2003, procº nº 03B3894, in www.dgsi.pt. 72. Que as obrigações emergentes de quotas ou prestações de amortização mensal prescrevem no prazo de cinco anos a contar do seu vencimento, tem sido defendido pela jurisprudência citada na sentença recorrida como sendo a primeira das correntes jurisprudenciais nela citadas e, ainda, os Acórdãos citados na contestação, orientação jurisprudencial esta que é maioritária. 73. Os factos dados como provados no ponto 2.1.11 e 2.1.12 . da matéria de facto da sentença recorrida determinaram o vencimento de todas as prestações acordadas pelas partes nos planos de pagamentos aludidos em 2.1.1 a 2.1.4 dessa matéria, face ao disposto no artº 781º do Código Civil, vencimento esse que ocorreu muito antes do transito em julgado da sentença de declarou a insolvência do recorrente. 74. Desta forma, por um lado, a sentença recorrida fez uma errada aplicação e interpretação das supracitadas normas legais aplicáveis, violando, entre outras, as dos artigos 310º e 781º, do Código Civil e artigos 576º, 579º e 615º do Código de Processo Civil, pois devia ter considerado procedente a invocada excepção peremptória da prescrição dos créditos peticionados e, dessa forma, em face do disposto no artº 310º, alínea e), do Código Civil, declarado a extinção desses créditos, com as legais consequências, mormente a da absolvição do ora recorrente dos pedido formulados pela recorrida nesta acção, 75. E, por outro lado, a sentença recorrida fez uma errada aplicação e interpretação das supracitadas normas legais aplicáveis, a violando, entre outras as normas do art.º 310º/e) do Código Civil conjugado com o artigo 91.º do CIRE uma vez qua circunstância de o direito de crédito se vencer antecipadamente na sua totalidade, em consequência de patologias no plano do incumprimento do contrato, nomeadamente em consequência da declaração de insolvência do devedor (art. 91.º do CIRE), não altera o seu enquadramento em termos de prescrição, continuando a merecer aplicação o prazo de prescrição quinquenal de cinco anos, previsto no art. 310.º, al. e), incidindo o seu termo ‘a quo’ na data desse vencimento e em relação à totalidade do montante assim vencido”.
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A Ré contra-alegou, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES: 1. Dos factos provados, nomeadamente dos 2.1.9., 2.1.10., 2.1.11., 2.1.12., contrariamente ao que pretende fazer crer o Recorrente, não resulta a verificação da prescrição de todas as obrigações de pagamento decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca outorgado entre si e a ora Recorrida, em 14.10.2008. 2. A interpretação efetuada pela Sentença Recorrida mostra-se conforme com a jurisprudência existente acerca do assunto, mais concretamente no que diz respeito à forma de interpretação do disposto no artigo 781º do Código Civil. 3. A este propósito como refere o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, datado de 30.06.2022, proferido no âmbito do Processo nº 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1, cujo Relator foi Vieira da Cunha e que se encontra disponível em www.dgsi.pt, “Como é doutrina comum e maioritária, este preceito legal não prevê um vencimento imediato, apelidado por alguns “em sentido forte”, das prestações previstas para liquidação da obrigação, designadamente da obrigação de restituição inerente a um contrato de mútuo com hipoteca, acrescido de um outro contrato de mútuo, como no caso dos autos – constitui antes um benefício que a lei concede ao credor, que não prescinde da interpelação, na pessoa do devedor, para que cumpra de imediato toda a obrigação, em consequência manifestando o credor a vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribui – assim Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., 1997, pg.54, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 2009, pgs. 1017 a 1019, Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, I (75/76), pg. 317, e Menezes Cordeiro, Tratado, Direito das Obrigações, IV (2010), pg. 39. 4. No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo nº 4288/21.5T8VNF-B.G1.S1, datado de 21.03.2023, cujo Relator foi Sousa Pinto e que se encontra disponível e www.dgsi.pt, cujo Sumário em parte refere que “Apesar da redacção equívoca do referido artigo 781.º, a mesma deve ser interpretada no sentido de que o vencimento antecipado das demais prestações, tendo por causa a falta de pagamento de uma delas, não ocorre automaticamente, sendo apenas concedida ao credor a faculdade de exigir, antecipadamente, o cumprimento de todas as prestações.” 5. A verificação do incumprimento, que ocorreu em 14.03.2024, não implicou o vencimento antecipado que nos termos daquele preceito dependia da interpelação na pessoa do devedor, para que cumpra de imediato toda a obrigação, o que não ocorreu in casu, como resulta do facto 2.1.10. dos factos provados. 6. Conforme salienta a Sentença Recorrida, na senda do “entendimento expresso no AUJ de 30.06.2022, publicado no DR nº184, de 22.09.2022, o crédito emergente de um contrato de mútuo, nos termos do qual foi acordado entre mutuante e mutuário que a amortização do capital e juros remuneratórios seria efectuada em prestações periódicas que incluam esse Página 10 mesmo capital e juros, está sujeito ao prazo de prescrição da al. e) do art.º 310º do Código Civil. 7.Não se altera o enquadramento da prescrição nesta norma pelo facto de o direito de crédito se ter vencido por força da declaração de insolvência do credor ou outra causa. 8. Como destaca o tribunal a quo, decorre “ainda do citado AUJ que, ‘’Para efeitos de prescrição, o vencimento ou exigibilidade imediata das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas, isto é, se altera o momento da exigibilidade das quotas, não altera o acordo inicial, o escalonamento inicial, relativo à devolução do capital e juros em quotas de capital e juros.” (sublinhado e bold nossos). 9. O vencimento antecipado que se verificou com a declaração de insolvência do Recorrente, ocorrida em 05.08.2022 (vide facto 2.1.12. dois factos provados), não tem a virtualidade de alterar “o acordo inicial, o escalonamento inicial, relativo à devolução do capital e juros em quotas de capital e juros”. 10. Não tem, igualmente, tal virtualidade a apresentação de reclamação deste crédito pela ora Recorrida, em 17.02.2022, nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento (CIRE), que sob o nº (…), correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada. 11. O prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo ‘'a quo'’ na data desse vencimento, isto é, em 05.08.2022, e em relação a todas as quotas assim vencidas. 12. Decidiu e bem o tribunal a quo ao considerar que a pretensão do Autor ora Recorrente, não poderia proceder integralmente, em termos de ver declarada a prescrição integral do crédito em causa, contabilizando o prazo de 5 anos desde o dia 14.03.2014, data em que cessou o pagamento das prestações acordadas no âmbito do contrato de mútuo (cfr. facto 2.1.9. dos factos provados). 13. O Recorrente, não toma em consideração o facto que veio a provar-se, elencado sob o ponto 2.1.11, relativa à apresentação reclamação pela ora Recorrida, em 17.02.2022, nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento, que interrompeu o prazo de prescrição em curso (17.02.2022+5 dias). 14. Isto significa que como decidiu e bem a Sentença Recorrida, “apenas se encontram prescritas as prestações anteriores a 22.02.2019 (atenta a data em que a ré reclamou o seu crédito no Processo Especial para Acordo de Pagamento (17.02.2022) e em que o prazo prescricional em curso se interrompeu mercê da interrupção promovida pelo titular do crédito – art.º 323º/4 do Código Civil.”
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O recurso foi corretamente admitido.
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Os autos foram remetidos a este Tribunal e colhidos os vistos legais.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas designado de CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a seguinte:
- Saber se o crédito da Ré, emergente do contrato de mútuo celebrado entre o Autor e a Ré, se encontra prescrito na sua totalidade.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
“2.1. Factos provados 2.1.1. No dia 14/10/2008 entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de mútuo com hipoteca, no valor de 150.000,00€, com capital máximo assegurado de 211.107,00€, taxa de juro de 8,246%, acrescido de uma sobretaxa de 4% em caso de mora e despesas de 6.000,00€, com início de pagamento nessa mesma data, isto é, dia 14/10/2008. 2.1.2. De acordo com as cláusulas 2º e 3º do documento complementar junto como documento nº2 com a petição inicial consta que a finalidade do empréstimo se destinava à conclusão da construção do imóvel atrás hipotecado para habitação própria permanente do autor, sendo que o prazo para utilização da quantia retida (e devidamente identificada nesse Documento Complementar) não poderia exceder trinta meses, a contar da data da celebração do presente contrato. 2.1.3. O identificado empréstimo foi concedido por um prazo de 30 anos a contar da data do contrato, quatrocentos e dois meses, amortizado em prestações mensais constantes, de capital e juros, vencendo- se a primeira prestação no correspondente dia do mês seguinte ao do final do período de carência, no dia correspondente ao do contrato, e as seguintes em igual dia dos meses seguintes - nos termos das cláusulas 9.º, 10ª e 11ª do documento complementar ANEXO I. 2.1.4. E venceria juros à taxa correspondente à média aritmética simples das taxas EURIBOR a seis meses, apurada com referência ao mês imediatamente anterior ao do início de cada período de vigência do contrato (indexante), acrescido de um diferencial com arredondamento para um dezasseis avos por cento imediatamente superior, à data traduzido inicialmente uma taxa de juros efectiva de 3,815% ao ano – nos termos das cláusulas 5ª a 9ª do documento complementar anexo à escritura. 2.1.5. Em garantia do capital emprestado no montante supra mencionado, dos respectivos juros e das despesas emergentes do contrato, o autor constituiu uma segunda hipoteca, a fim de assegurar o montante máximo de 211.107,00€, sobre um prédio rústico, (…). 2.1.6. Da presente hipoteca foi efectuado o registo provisório pela inscrição de 04/06/2008 a que correspondia a AP n.º 9, convertida em definitiva conforme AP 7 de 2008/10/23. 2.1.7. O imóvel hipotecado encontrava-se já registada a favor do autor pela inscrição de 08/06/2004 a que corresponde a AP n.º 5. 2.1.8. Sobre o indicado prédio encontra-se registada uma hipoteca a favor da ré, através da inscrição de 08/06/2004 a que corresponde a AP n.º 6. 2.1.9. Desde o dia 14/03/2014 que o autor não procedeu ao pagamento das prestações a que ficou obrigado, através da outorga do referido contrato. 2.1.10. A ré, até ao momento, não interpelou o autor para pagamento. 2.1.11. Em 17/02/2022, nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento (CIRE), que sob o nº (…), correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada, a ré (…) apresentou nesses autos, reclamação do seguinte crédito sobre o autor (título de mútuo com hipoteca PT 00 …), que em, 08 de Fevereiro de 2022, atingia o valor de 176.535,96 € do qual o autor era devedor, sendo de capital vencido o montante de 140.623,55 €, juros de 19.408,12€, juros de mora de 14.978,02€ e comissões no valor de 1.526,27€. (TEMAS DA PROVA 1 e 2) Factos provados de acordo com o disposto no art.º 607º/4 do nCPC 2.1.12. Por sentença proferida em 05.08.2022 nos autos de insolvência de pessoa singular que corre termos sob o nº (…) no Juízo Cível Local de Ponta Delgada, foi declarada a insolvência de A (…).”
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IV. Mérito do Recurso:
Conforme acima já se assinalou, a questão que aqui se coloca é a de saber se o crédito da Ré, emergente do contrato de mútuo celebrado entre o Autor e a Ré, se encontra prescrito na sua totalidade.
É pacífico entre as partes que, conforme decidido na sentença objeto de recurso, à presente situação é aplicável o prazo de prescrição previsto no art.º 310º, e), do Código Civil (doravante apenas CC), nos termos do qual “Prescrevem no prazo de cinco anos (…) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros”.
Diga-se que essa posição está em conformidade com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022, publicado no Diário da República, I série, n.º 184, de 22.09.2022 (proferido pelo STJ a 30.06.2022 no processo n.º 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), o qual fixou jurisprudência no seguinte sentido: “I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas” – sublinhado nosso.
A divergência surge no que concerne à definição do momento em que esse crédito se deve considerar vencido.
Defende o Autor/Recorrente que, contrariamente ao decidido na sentença proferida pelo Tribunal a quo, esse vencimento não ocorreu com a declaração de insolvência do devedor, por força do disposto no art.º 91º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante apenas CIRE), mas em momento anterior, por força do disposto no art.º 871º do CPC, uma vez que o Autor desde 14.03.2014 que não procede ao pagamento das prestações acordadas no contrato de mútuo celebrado com a Ré, sendo que a Ré, desde então, não o interpelou para o pagamento de tais prestações, mostrando-se decorridos mais de 5 anos sobre aquela data de 14.03.2014.
Neste enquadramento, facilmente se conclui que a resolução da questão suscitada pelo Autor/Recorrente passa pela interpretação do art.º 871º do CPC, nos termos do qual, “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.”
A propósito da interpretação do art.º 871º do CC, escreveu-se no Acórdão de Fixação de Jurisprudência acima assinalado o seguinte: “Como é doutrina comum e maioritária, este preceito legal não prevê um vencimento imediato, apelidado por alguns “em sentido forte”, das prestações previstas para liquidação da obrigação, designadamente da obrigação de restituição inerente a um contrato de mútuo com hipoteca, acrescido de um outro contrato de mútuo, como no caso dos autos – constitui antes um benefício que a lei concede ao credor, que não prescinde da interpelação, na pessoa do devedor, para que cumpra de imediato toda a obrigação, em consequência manifestando o credor a vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribui – assim Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., 1997, pg.54, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 2009, pgs. 1017 a 1019, Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, I (75/76), pg. 317, e Menezes Cordeiro, Tratado, Direito das Obrigações, IV (2010), pg. 39. A obrigação fica assim apenas exigível, ou, como alguns entendem, exigível “em sentido fraco”.”
No mesmo sentido vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 06.12.2018, proferido no processo n.º 4739/16.0T8LOU-A.P1.S1, de 11.07.2019, proferido no processo n.º 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1 e 21.03.2023, proferido no processo n.º 4288/21.5T8VNF-B.G1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Ou seja, o art.º 781º do CC, com a epígrafe “Dívida liquidável em prestações”, não prevê, para o caso de falta de pagamento de uma das prestações, o vencimento automático de todas as demais prestações previstas para a liquidação da obrigação, o que nele se prevê é apenas a imediata exigibilidade das mesmas.
Esse normativo apenas estabelece uma faculdade concedida ao credor e não um automatismo de vencimento, alheio à vontade do credor e que faz cessar o benefício do prazo (resultante das prestações) que se encontrava estabelecido. Trata-se de um dispositivo excecional, conferido ao credor com fundamento na quebra da relação de confiança entre credor e devedor. Por isso, em respeito ao princípio da liberdade contratual e da autonomia da vontade, o exercício dessa faculdade cabe ao credor, dependendo da avaliação que ele faça da capacidade económica do devedor para retomar o pagamento regular das prestações acordadas, permitindo-lhe escolher se e quando deve interpelar o devedor.
Para exercer a faculdade que o art.º 781º do CC confere, exige-se que o credor interpele o devedor para lhe comunicar a perda do benefício do prazo e exigir o pagamento da totalidade das prestações, ou seja, o seu funcionamento exige que o credor manifeste junto do devedor a vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribui.
Segundo Pedro Romano Martinez, in “Código Civil Comentado”, Vol. II - “Das Obrigações em Geral”, pág. 986, (…) a expressão “importa o vencimento de todas” pode ser interpretada como mais uma hipótese de exigibilidade antecipada, que acresce às previstas no 780º; sendo qualificada como exigibilidade antecipada (…) tendo o devedor faltado ao pagamento de uma prestação, o credor pode interpelá-lo, reclamando o cumprimento das demais prestações. Na falta de interpelação, pese embora o incumprimento de uma prestação, as prestações seguintes vencem-se na data prevista.”
Na situação dos autos, com interesse para a apreciação da concreta questão que se nos coloca, resultaram provados os seguintes factos: “2.1.1. No dia 14/10/2008 entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de mútuo com hipoteca, no valor de 150.000,00€ (…) 2.1.3. O identificado empréstimo foi concedido por um prazo de 30 anos a contar da data do contrato, quatrocentos e dois meses, amortizado em prestações mensais constantes, de capital e juros, vencendo- se a primeira prestação no correspondente dia do mês seguinte ao do final do período de carência, no dia correspondente ao do contrato, e as seguintes em igual dia dos meses seguintes (…) 2.1.9. Desde o dia 14/03/2014 que o autor não procedeu ao pagamento das prestações a que ficou obrigado, através da outorga do referido contrato. 2.1.10. A ré, até ao momento, não interpelou o autor para pagamento. 2.1.11. Em 17/02/2022, nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento (CIRE), que sob o nº (…), correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada, a ré (…) apresentou nesses autos, reclamação do seguinte crédito sobre o autor (título de mútuo com hipoteca PT 00…), que em, 08 de Fevereiro de 2022, atingia o valor de 176.535,96 € do qual o autor era devedor, sendo de capital vencido o montante de 140.623,55 €, juros de 19.408,12€, juros de mora de 14.978,02€ e comissões no valor de 1.526,27€. (…) 2.1.12. Por sentença proferida em 05.08.2022 nos autos de insolvência de pessoa singular que corre termos sob o nº (…) no Juízo Cível Local de Ponta Delgada, foi declarada a insolvência de A (…).”
Ora, no caso dos autos, temos por seguro que da factualidade provada e acima assinalada não resulta qualquer interpelação dirigida pela Ré ao Autor/Recorrente, no sentido de converter o incumprimento das prestações vencidas em vencimento antecipado de todas as prestações, nos termos do art.º 781º do CC, o que significa que se manteve o plano de pagamento das prestações acordadas, ainda que elas fossem sistematicamente não pagas.
Note-se que, lida a reclamação de créditos identificada no ponto 2.1.11. do elenco de factos provados, constata-se que da mesma não decorre que a Ré considerou vencidas nessa data a totalidade das prestações decorrentes do contrato de mútuo celebrado com o Autor, o que significa que essa reclamação de créditos, na medida em que da mesma tenha sido dado conhecimento ao Autor, apenas poderá ter como efeito a interrupção do prazo de prescrição em curso, nos termos do art.º 323º, n.º 4, do CC.
Neste enquadramento, não colhe o entendimento defendido pelo Autor/Recorrente de que na data em que foi declarada a sua insolvência o crédito em causa nos autos já se encontrava vencido.
Releva então aqui o disposto no art.º 91º, n.º 1, do CIRE, nos termos do qual “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.”
Ou seja, apenas com a declaração de insolvência do Autor/Recorrente em 05.08.2022 ocorreu o vencimento imediato de todas as obrigações do Autor/Recorrente emergentes do contrato de mútuo celebrado com a Ré, designadamente, o vencimento das quotas de amortização do capital mutuado pagável com os juros, conforme se decidiu na sentença recorrida.
Defende ainda o Autor/Recorrente que a circunstância de o direito de crédito da Ré se vencer antecipadamente na sua totalidade em consequência da declaração de insolvência do devedor, nos termos do art.º 91º do CIRE, não altera o seu enquadramento em termos de prescrição, continuando a ser-lhe aplicável o prazo de prescrição previsto no art.º 310º, e), do CC.
De facto, assim é. E assim foi entendido na sentença proferida pelo Tribunal a quo, na qual, no segmento dedicado à apreciação “3.Do Direito”, a propósito do prazo de prescrição previsto no art.º 310º, e), do CC, se escreveu: “Não se alterando o enquadramento da prescrição nesta norma pelo facto de o direito de crédito se ter vencido por força da declaração de insolvência do credor ou outra causa.”
Mas tal não permite a conclusão, pretendida pelo Autor/Recorrente, de que se encontra prescrita a totalidade do crédito da Ré, seja porque não ficou demonstrado que esse crédito se venceu em 14.03.2014; seja porque o seu vencimento, operado pela declaração insolvência a 05.08.2022, não retroage à data de 14.03.2014 e, sobre a data de 05.08.2022, não decorreram 5 anos.
Atento o exposto, terá o recurso interposto pelo Autor que improceder.
Aqui chegados, cumpre esclarecer que a sentença recorrida, perante o facto dado como provado sob o ponto 2.1.11. - “Em 17/02/2022, nos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento (CIRE), que sob o nº (…), correu termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada, a ré (…) apresentou nesses autos, reclamação do seguinte crédito sobre o autor (título de mútuo com hipoteca PT 00…), que em, 08 de Fevereiro de 2022, atingia o valor de 176.535,96 € do qual o autor era devedor, sendo de capital vencido o montante de 140.623,55 €, juros de 19.408,12€, juros de mora de 14.978,02€ e comissões no valor de 1.526,27€ (…)” - considerou que “o prazo de prescrição em curso foi interrompido (17.02.2022+5 dias), pelo que apenas se encontram prescritas as prestações anteriores a 22.02.2019 ( atenta a data em que a ré reclamou o seu crédito no Processo Especial para Acordo de Pagamento (17.02.2022) e em que o prazo prescricional em curso se interrompeu mercê da interrupção promovida pelo titular do crédito – art.º 323º/4 do Código Civil.”
Esse segmento da sentença, designadamente no que concerne à data em que se considerou interrompido o prazo de prescrição - “(17.02.2022+5 dias)” - e à data que delimita as prestações prescritas - “22.02.2019” - não foi objeto de recurso, o que significa que a este Tribunal está vedado o conhecimento de tal matéria.
Em tais circunstâncias, na improcedência do recurso, decide-se pela manutenção da sentença recorrida.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificados em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Autor/Apelante, sem prejuízo da proteção jurídica de que beneficia.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 05.12.2024,
Susana Mesquita Gonçalves
Vaz Gomes
Rute Sobral