REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Sumário

SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Na presente ação com processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira (que decretou o divórcio entre as partes) é aplicável, na aferição da competência territorial do tribunal, o disposto nos artigos 979.º e 80.º, ambos do CPC, regras cuja violação determina a incompetência relativa do tribunal (cf. art. 102.º do CPC).
II – Tratando-se de exceção dilatória que não encontra abrangida pela previsão do art. 104.º, n.º 1, do CPC, não pode o tribunal conhecer oficiosamente da mesma quando não tenha sido arguida pelas partes, no caso pela Ré, nos termos do art. 103.º do CPC, não bastando que a questão da incompetência territorial haja sido suscitada pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 982.º, n.º 1, do CPC, pois, não sendo parte principal na ação, a sua intervenção encontra-se limitada nos termos da lei, tal como a atividade oficiosa do tribunal (cf. artigos 980.º a 985.º do CPC).
III – Ante a proveniência da sentença (de um Tribunal da Suíça num processo de divórcio por mútuo consentimento), é aplicável a Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas, concluída na Haia em 01-06-1970 (cf. Resolução da Assembleia da República n.º 23/84), com especial relevância para o seu art. 10.º, em que se prevê como fundamento de recusa do reconhecimento de um divórcio a manifesta incompatibilidade com a ordem pública nacional, bem como para o art. 17.º, nos termos do qual a Convenção não impede a aplicação num Estado contratante das regras de direito mais favoráveis ao reconhecimento de divórcios obtidos no estrangeiro.
IV - Não se estabelecendo nessa Convenção um processo de reconhecimento autónomo, relevam ainda, quanto aos requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença estrangeira em apreço, os preceitos do Código de Processo Civil, em particular no art. 980.º do CPC, sendo de concluir, ante a verificação de todos os requisitos a considerar, pela procedência da ação, com a confirmação da sentença em análise, por via da qual foi decretado o divórcio do Requerente e da Requerida.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
“A”, de nacionalidade portuguesa, residente na Rua (…), concelho de Santo Tirso, intentou contra “B”, de nacionalidade portuguesa, residente em (…), Suíça, a presente ação, com processo especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo a revisão e confirmação da sentença proferida por um Tribunal da Suíça que decretou o divórcio entre ambos.
Pessoalmente citada, a Requerida não deduziu oposição.
O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do art. 982.º do Código de Processo Civil, elaborou promoção em que conclui nos seguintes termos: “Verifica-se, pois, a exceção dilatória de incompetência territorial, a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa, devendo este Tribunal da Relação de Lisboa ser declarado incompetente e o processo remetido para o tribunal territorialmente competente, que é o Tribunal da Relação do Porto (cfr. artigos 102.º, 103.º, 104.º, 105.º, 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea a) e 578.º, todos do CPC), o que promovemos.”
Notificada a Requerente para se pronunciar, querendo, a este respeito, nada veio dizer.
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Questão prévia:
Na sua douta promoção, o Ministério Público referiu o seguinte:
“O Ministério Público neste Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 982.º do Código de Processo Civil, diz o seguinte:
“A” vem intentar contra “B” ação de revisão e confirmação de sentença de divórcio proferida pelo tribunal de Zofingen, Cantão de Aargau, Suiça.
O art.º. 978.º, n.º 1 do Código de Processo Civil dispõe que “sem prejuízo do que se acha estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada”.
O requerente tem domicílio em Santo Tirso, Portugal, e a requerida reside na Suíça.
De acordo com o disposto no artigo 979.º do CPC, é competente para a ação o Tribunal da Relação da área em que esteja domiciliada a pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, observando-se com as necessárias adaptações, as regras dos artigos 80.º, a 82.
Tendo a requerida domicílio em país estrangeiro, deverá ser demandada no tribunal do domicílio do requerente (artigos 979.º e 80.º, n.º 1 e 3 do CPC).
Consequentemente, residindo o requerente em Santo Tirso, será competente para a presente ação o Tribunal da Relação do Porto -cfr artigo 32.º da LOSJ (Lei 62/2013 de 26.8) e anexos I e II, bem como art.º 4.º, n.º 2 do DL n.º 49/2014, de 27.3, e Mapas I e II anexos.”
Vejamos.
Conforme decorre, no que ora importa, do disposto no art. 102.º do CPC, a infração das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
Trata-se de exceção dilatória que apenas é de conhecimento oficioso nos casos previstos no art. 104.º, n.º 1, do CPC - cf. ainda artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), e 578.º do CPC.
Sendo aplicável na aferição da competência territorial, na presente ação, o disposto nos artigos 979.º e 80.º, ambos do CPC, é claro que a mesma não se encontra abrangida pela previsão do art. 104.º, n.º 1, do CPC, pelo que o tribunal não pode oficiosamente conhecer da exceção em causa, a qual não foi suscitada pelas partes.
O Ministério Público, na presente ação, não é parte principal, estando, assim, a sua intervenção limitada nos termos da lei, tal como a atividade oficiosa do tribunal – cf. artigos 980.º a 985.º do CPC.
Logo, não pode este Tribunal da Relação conhecer da exceção de incompetência relativa, por não ter sido arguida pela Ré nos termos do art. 103.º do CPC.
Neste sentido, veja-se:
- o acórdão da Relação do Porto de 27-04-1992, proferido no proc. n.º 9140292, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do seguinte ponto do respetivo sumário: “I - Não tem o Ministério Público legitimidade para arguir a incompetência territorial de um Tribunal da Relação para a revisão de sentença estrangeira.
- o acórdão da Relação de Évora de 01-10-2022, proferido no proc. n.º 1622/02-3, também disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere precisamente que: “I - Na acção para revisão e confirmação de sentença estrangeira, o Tribunal não pode, oficiosamente, ou a requerimento do MºPº, julgar-se territorialmente incompetente.”
Pelo exposto, não se conhece da exceção de incompetência relativa suscitada.
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O Tribunal é competente, o processo é o próprio, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, não ocorrendo nulidades, exceções ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Cumpre decidir se estão verificados os requisitos necessários para que a sentença constante do documento junto com a Petição Inicial possa ser revista e confirmada ou se, ao invés, ocorre algum motivo que obste a que possa ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Atento o teor dos documentos juntos aos autos, está provado que:
1. O Requerente e a Requerida contraíram casamento católico no dia 3 de agosto de 1985, em Portugal, tendo o casamento sido registado na Conservatória do Registo Civil de Santo Tirso, conforme assento de casamento n.º (…) de 2014.
2. Por sentença proferida a 13 de outubro de 2010, transitada em julgado a 03-11-2010, no âmbito do processo n.º (…)39, do Tribunal de Zofingen do Cantão de Aargau, Suíça, foi decretado o divórcio consensual daquele casal, que estão residia nesse país.
Enquadramento jurídico
Ante a proveniência da sentença, de um Tribunal suíço, num processo divórcio por mútuo consentimento, e tendo em atenção o disposto no art. 978.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC, é aplicável a Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas, concluída na Haia em 01-06-1970, com início de vigência na ordem internacional a 24-08-1975 e no nosso país a 09-07-1985 (cf. Resolução da Assembleia da República n.º 23/84) e já antes disso na Suíça, com especial relevância para o seu art. 10.º, em que se prevê como fundamento de recusa do reconhecimento de um divórcio a manifesta incompatibilidade com a ordem pública nacional, bem como para o art. 17.º, nos termos do qual a Convenção não impede a aplicação num Estado contratante das regras de direito mais favoráveis ao reconhecimento de divórcios obtidos no estrangeiro.
Contudo, não se estabelece nessa Convenção um processo de reconhecimento autónomo, pelo que, quanto aos requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença estrangeira em apreço, releva o disposto nos artigos 980.º, 983.º e 984.º do CPC. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 21-10-2021, no proc. n.º 2066/21.0YRLSB-6, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma designadamente que: “estando prima facieem confronto-em matéria de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras cujo objecto tenha incidido v.g. sobre a dissolução de vinculo matrimonial por divórcio das partes e sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais em relação aos filhos menores dos progenitores - instrumentos internacionais vigentes na ordem jurídica Portuguesa e Suíça, certo é que nenhum dos existentes estabelece um processo de reconhecimento autónomo e, portanto, não excluem genericamente a aplicação das regras de direito interno mais favoráveis ao reconhecimento ( cfr. artigo 17.º da Convenção de Haia sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas e artigo 13.º da Convenção de Haia de 1973 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares). (6)
Importa, portanto, e sobretudo, aferir dos requisitos necessários para a confirmação e revisão da sentença revidenda, o que tudo se mostra regulado nos artigos 980.º, alíneas a) a f), 983.º e 984.º, todos CPC, sendo que, no tocante à verificação das condições indicadas nas alíneas a) e f), do primeiro normativo indicado ( artº 980), deve o tribunal conhecer/apreciar oficiosamente – cfr artº 984º, do CPC).
Preceitua o art. 980.º do CPC (a que pertencem os demais artigos adiante indicados) que:
“Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”
Atento o disposto no art. 983.º, n.º 1, o pedido de confirmação só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do art. 696.º.
Relativamente às condições indicadas nas alíneas a) e f) do citado art. 980.º, impõe o art. 984.º que o tribunal verifique oficiosamente se as mesmas ocorrem e que também recuse a confirmação se dos autos concluir que não estão preenchidos os requisitos das demais alíneas daquele artigo.
De salientar que a alínea a) respeita à autenticidade do documento de que conste a sentença e à inteligência da decisão; a alínea f) à compatibilidade do seu conteúdo com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Estamos, assim, perante uma atividade de controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.
Da análise da documentação junta aos autos, que serviu de suporte à factualidade considerada provada, não resultam dúvidas acerca da autenticidade e inteligibilidade da sentença a confirmar.
Não tendo sido suscitada nem resultando do exame do processo a sua falta, é de concluir pela verificação dos demais requisitos enunciados nas alíneas b) a e) do art. 980.º do CPC.
Finalmente, a decisão a confirmar, de divórcio, é sem dúvida compatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, cuja legislação também consagra a sua admissibilidade (divórcio por mútuo consentimento ou sem consentimento de um dos cônjuges – cf. artigos 1773.º e ss. do CC, 931.º, 932.º e 994.º a 999.º do CPC).
Conclui-se, assim, pela confirmação da sentença em análise, por via da qual foi decretado o divórcio do Requerente e da Requerida, para que a mesma passe a ter plena eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Atento o proveito que da procedência da ação resulta para o Requerente e uma vez que a Requerida não contestou, é aquele o responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º a 529.º e 535.º do CPC).

III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente ação e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a sentença proferida a 13 de outubro de 2010 pelo Tribunal de Zofingen do Cantão de Aargau, Suíça, que decretou o divórcio do Requerente “A” e da Requerida ”B”, a qual assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Mais se decide condenar o Requerente no pagamento das custas processuais e fixar o valor da causa em 30.000,01 €.
D.N.

Lisboa, 05-12-2024
Laurinda Gemas
Paulo Fernandes da Silva
Susana Mesquita Gonçalves