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MEDIDAS DE COACÇÃO
REQUERIMENTO DE SUBSTITUIÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Sumário
I - Ao proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, na sequência de um requerimento formulado pelo arguido, ao abrigo do disposto no art.º 212º nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, o juiz profere um acto judicial decisório que tem de ser fundamentado. II - Padece do vício de falta de fundamentação o despacho que não tomou posição definida sobre o pedido de audição expressamente formulado pelo arguido nesse requerimento. III - Não culminando a lei essa omissão de forma diferente, a sua ocorrência constitui uma irregularidade, nos termos dos artigos 118º nº 2 e 123º, todos do C P Penal (cfr. à contrário dos artºs 194º, nº 6 e 212º, ambos do C. P. Penal). IV-Não podendo ser considerada suprida ou ultrapassada essa irregularidade, e sendo a mesma de conhecimento oficioso, por ser susceptível de afectar o valor do acto praticado, impõe-se ordenar a sua reparação pelo tribunal recorrido (art.º 123º n.º 2 do Código de Processo Penal).
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
I.1. Nos autos de inquérito n.º 58/22.1GAMDL do Tribunal de Competência Genérica de Vila Flor, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança,o arguido AA, entre outros, foi submetido, a primeiro interrogatório judicial, nos termos do art.º 141º C. P. Penal, no âmbito do qual foi proferido despacho que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, por se ter considerado que havia fortes indícios da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e Tabela I-A, I-B e I, anexas ao mesmo Dec.-Lei.
I.2. Posteriormente, na sequência de requerimento para esse efeito formulado pelo arguido, nos termos do artigo 212º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Mmº Juiz a quo, por despacho proferido no dia 31-07-2024, decidiu manter a medida de coacção de prisão preventiva.
1.3. Inconformado com este despacho, dele veio o arguido interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem:
“1º
O arguido foi presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido tendo-lhe sido imposta a medida de coacção de prisão preventiva, que está a ser executada no E.P. ....
2º
Por douto Despacho proferido no presente processo e datado de 1 de Agosto de 2024, foi mantida a medida coactiva de prisão preventiva.
3º
Após a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido AA, ocorreram circunstâncias supervenientes que, ainda que de forma não acentuada, atenuam as exigências cautelares que determinaram aquela medida de coacção.
4º
O arguido exercendo um direito que lhe assiste, pediu para prestar declarações nos autos, perante autoridade judiciária, disponibilizando-se para responder às questões que pudessem ser colocadas e colaborando na investigação e na descoberta da verdade material, designadamente no que se refere à factualidade pela qual se encontra indiciado, mas não aceitaram ouvi-lo.
5º
O despacho sob recurso não contém factos nem razões de direito para manter a prisão preventiva, porque nesta data não existem em concreto os perigos de fuga, de perturbação do inquérito ou de aquisição de prova, ou o perigo de continuação da actividade criminosa, não são indicados factos concretos pelo que, sob o artº 204 CPP, o despacho é nulo artºs 204º e 205º CRP e 97º-5CPP.
6º
Antes de ingressar no E.P., o arguido vivia em ..., numa casa arrendada com os seus 5 filhos menores (um com 1 ano e poucos meses e a mais velhinha com apenas 12 anos) e a sua mulher. Sendo que os seus parentes e familiares mais próximos também vivem nesta cidade.
7º
A sujeição do arguido à medida de coacção da prisão preventiva tem tido consequências nefastas e trágicas na sua vida e dos seus filhos, que têm estado aos cuidados da avó materna e muito sentem a falta do pai.
8º
No nosso entendimento, a prisão preventiva deve ser a última medida a aplicar porque colide de forma absoluta com a liberdade das pessoas, com tudo o que isso pode implicar e as consequências trágicas e irreversíveis muitas vezes que é passível de gerar, quer a nível pessoal, familiar, social ou profissional.
9º
No caso vertente entendemos que não foram respeitados os princípios da proporcionalidade e da adequação, nos despachos que determinaram a prisão preventiva (nem o despacho de 1 de Agosto, nem o de 12 de Agosto).
10º
Sem mais considerações, achamos que no que concerne ao recorrente, podem muito bem as exigências cautelares que o caso demanda, ser alcançadas de forma mais adequada e proporcional e sobretudo justa, através da aplicação ao arguido da medida de permanência na habitação com pulseira electrónica.
11º
Deve, pois, a prisão preventiva ser revogada nos presentes autos e substituída por outra, nomeadamente a de obrigação de permanência na habitação com pulseira electrónica.
12º
Foram violados os artigos 191º, 193º 202º, 213º nº1 e 204º do Cód. Proc. Penal.”
1.4. O Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida, realçando que importa concluir que a medida de prisão preventiva apresenta-se como a única medida de coacção que aparece como eficaz para assegurar as exigências cautelares que o caso requer relativamente ao Recorrente AA.
1.5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, sufragando a resposta dada pelo M. º P. º na 1ª instância e aditando fundamentos sustentados em jurisprudência que cita.
1.6. Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi dada resposta ao sobredito parecer.
1.7. Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado.
II- FUNDAMENTAÇÃO:
1 – OBJECTO DO RECURSO:
A jurisprudência do STJ[1] firmou-se há muito no sentido de que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[2].
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes: a) Da falta de pronúncia sobre a requerida audição do arguido; b) Substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de obrigação de permanência na habitação, com recurso a vigilância electrónica ou de controlo à distância.
2- DA DECISÃO RECORRIDA
O despacho que reexaminou os pressupostos da medida de coacção da prisão preventiva tem o seguinte teor (transcrição da fundamentação):
«Nos termos do artigo 212º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “as medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar: a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação”, acrescentando o n.º 3 do mesmo artigo que “quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução”.
Como bem salienta o Tribunal da Relação de Guimarães, “o despacho judicial que aplique a prisão preventiva não é definitivo, mas a decisão deve permanecer imutável enquanto “tudo se mantenha igual”, isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justifiquem a revogação ou a alteração da medida de coacção”[3].
Acrescenta, ainda, o mesmo Venerando Tribunal que, no que toca à substituição/revogação de medida e coacção aplicada, “em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão na medida em que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objecto”[4].
Revertendo aos presentes autos, verificamos que, por despacho proferido em 19-02-2024 foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coacção de termo de identidade e residência e prisão preventiva.
Não obstante, os argumentos invocados não são idóneos à procedência da pretensão manifestada no requerimento sob análise.
Na verdade, nenhuma das razões invocadas consubstancia uma alteração superveniente (isto é, posterior 19-02-2024) das razões de facto (ou de direito), em que assentou a decisão de aplicação de medidas de coacção.
A decisão proferida por este Tribunal em 19-02-2024 fundou-se única e exclusivamente em circunstâncias fácticas directamente relacionadas com as exigências cautelares que o presente caso impõe.
Como tal, apenas a alegação e comprovação de factos intrinsecamente associados a tais exigências cautelares teria a virtualidade de promover a alteração do estado de coisas necessário para a eventual alteração do estatuto coactivo do arguido.
As razões aduzidas, referentes à condição sócio-familiar do arguido, nada indicam sobre a atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção mais gravosa.
Assim, não se encontrando reunidos os pressupostos previstos no artigo 212º do Código de Processo Penal, impõe que se decida em conformidade. »
3.1.a) Da falta de pronúncia sobre a requerida audição do arguido.
Alega a este respeito o recorrente que, após a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, ocorreram circunstâncias supervenientes que atenuam as exigências cautelares que determinaram aquela medida de coacção e, exercendo um direito que lhe assiste, pediu para prestar declarações nos autos, perante autoridade judiciária, disponibilizando-se para responder às questões que pudessem ser colocadas e colaborando na investigação e na descoberta da verdade material, designadamente no que se refere à factualidade pela qual se encontra indiciado, mas não aceitaram ouvi-lo (conclusões 3 e 4).
Vejamos.
Resulta dos autos que o recorrente, em 15-07-2024 (referência citius 2514812), formulou um requerimento em que, ao abrigo do disposto nos artºs 213º e 212º nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, invocando circunstâncias de ordem familiar e de saúde, entende que se mostra justificada, nesta fase, a substituição da medida de coacção aplicada por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e pede expressamente a sua audição (cf. art.º 13 do mesmo requerimento).
Um dos princípios que norteia o processo penal e consequentemente a aplicação de medidas de coacção é o princípio do contraditório, pretendendo-se garantir ao arguido oportunidade de apresentar a sua versão sobre os factos e de se pronunciar sobre a medida de coacção a aplicar ou alterar, designadamente contestando a necessidade da sua aplicação ou colocando em causa a sua adequação ou proporcionalidade.
O princípio do contraditório está contemplado no n.º 5, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser observado relativamente a todos os actos susceptíveis de afectarem a pessoa ou a posição do arguido ao longo do processo, de modo a que este tenha a possibilidade de se pronunciar sobre as decisões a tomar com essas características.
Por outro lado, o art.º 61º n.º 1 al. b) do mesmo código, atribui ao arguido o direito a ser ouvido pelo tribunal sempre que esteja em causa uma decisão que o afecte, onde se enquadra inquestionavelmente a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ou a decisão sobre a sua manutenção e/ou alteração.
Ora, da análise do despacho recorrido, verifica-se que o tribunal a quo não tomou posição definida sobre o mencionado pedido de audição formulado pelo recorrente, sendo quanto a ele completamente omisso.
Essa lacuna é susceptível de consubstanciar, embora o recorrente não o enquadre juridicamente como tal, uma insuficientemente fundamentação, por ser omisso relativamente a um pedido concretamente formulado pelo arguido.
A fundamentação dos actos decisórios é uma exigência constitucional prevista no art.º 205º da CRP, que prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Este imperativo constitucional densifica-se em várias disposições legais, desde logo, no princípio geral consagrado no art.º 97º nº 5 do Código de Processo Penal.
É inquestionável que, ao proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o juiz profere um acto judicial decisório que, como tal, tem de ser fundamentado.
Como escreve Germano Marques da Silva[5] “A fundamentação do despacho permite o controlo da actividade jurisdicional, por uma parte, e serve para convencer da sua correcção e justiça, por outra parte.”
Todavia, como bem se salienta no acórdão deste Tribunal da Relação Guimarães[6]de 21-01-2013,“As exigências do cumprimento do dever de fundamentaçãoe as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Código de Processo Penal) e regimes específicos para a sentença (artigos 374.º e 379.º), para os despachos que aplicam medidas de coacção e de garantia patrimonial (artigo 194.º), para a acusação pelo Ministério Público, pelo assistente e acusação particular (artigos 283.º, n.º3, 284, n.º2 e 285.º, n.º3, respectivamente), para o despacho de pronúncia ou de não pronúncia e decisão instrutória (artigos 308.º, n.º2 e 309.º).”
No caso, independentemente da audição do arguido ser facultativa- uma vez que se trata de manutenção da medida de coacção imposta- perante um pedido do recorrente formulado nesse sentido, impunha-se sempre a apreciação judicial dessa necessidade para a finalidade a prosseguir e uma justificação da opção pela qual se enveredou, nomeadamente a de não ouvir o arguido.
Assim, independente do acerto ou não da decisão tomada quanto à manutenção daquela medida de coacção, o certo é que o despacho recorrido não apreciou nem justificou, como se impunha, por que razão não procedeu à audição do arguido, como ele pediu, padecendo, por isso, neste concreto segmento de falta de fundamentação.
Como é consabido vigora em processo penal, nesta matéria, o princípio da tipicidade ou da legalidade, desde logo afirmado no artigo 118º nº 1 do C. P. Penal, do qual resulta que a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
No caso vertente, está em causa um despacho judicial pelo qual foi decidida a manutenção de aplicação ao arguido, aqui recorrente, da medida de coacção de prisão preventiva.
Ora, não consta do respectivo regime que a falta de apreciação do pedido de audição formulado pelo recorrente e, a consequente, falta de fundamentação, constitua vício gerador de nulidade insanável, artigo 119º ou de nulidade dependente de arguição, artigo 120º, ficando, deste modo, a sua eventual ocorrência relegada para o plano das irregularidades nos termos dos artigos 118º nº 2 e 123º, todos do Código de Processo Penal (cfr. à contrário dos artºs 194º, nº 6 e 212º, ambos do C. P. Penal).
Neste sentido também Vinício Ribeiro[7] defende que a falta de fundamentação de despachos tem como efeito a irregularidade, se a lei não a cominar de forma diferente.
Não podendo ser considerada suprida ou ultrapassada essa irregularidade, consistente em omissão de fundamentação e sendo a mesma de conhecimento oficioso, por ser susceptível de afectar o valor do acto praticado, impõe-se ordenar a sua reparação pelo tribunal recorrido (art.º 123º n.º 2 do Código de Processo Penal).
Por conseguinte, mostra-se prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada.
*
III- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, declarar o despacho recorrido irregular, por omissão de fundamentação, e ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para ser devidamente observado o disposto nos artigos art.º 205º n.º 1 da Constituição e 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, com o enquadramento referido.
Sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários art, º. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 19 de Novembro de 2024
Anabela Varizo Martins (relatora)
Armando Azevedo (1º adjunto)
Carlos Cunha Coutinho (2º adjunto)
[1] Cfr.arts. 412.º e 417.º do C P Penal e Ac.do STJ de 27-10-2016, processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 06-06-2018, processo nº 4691/16. 2 T8 LSB.L1.S1 e da Relação de Guimarães de 11-06-2019, processo nº 314/17.0GAPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pag. 335. [2] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de Outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”. [3] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03-04-2017, Proc. 21/14.6GBBGC-A - G1, Rel. Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt. [4]Idem. [5] Curso de Processo Penal, II Vol., 1993, pág.224. [6] processo 146/11.0JABRG, relator Cruz Bucho. [7] In Código de Processo Penal-Notas e Comentários, 2ªed., Coimbra, 2011, pág.277 e jurisprudência ali mencionada.