REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DESPACHO PRELIMINAR
NULIDADE
LEGITIMIDADE
Sumário

I - O despacho preliminar proferido pelo Tribunal de Instrução Criminal não é proferido contra os Arguidos, apenas verificando se foi regularmente formulado e apresentado por quem tem legitimidade para tanto.
II - O desrespeito pelas exigências legais sobre o Requerimento de Abertura de Instrução não cabe no domínio da nulidade dos actos, mas sim na procedência do pedido que, sendo flagrante a falta de fundamento, justifica a sua rejeição sem necessidade de percorrer a via dos actos de instrução.
III - Se aos Recorrentes nem sequer assiste legitimidade para suscitar a apontada “nulidade” do Requerimento de Abertura de Instrução, carecem igualmente de legitimidade para impugnar o despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal que, em rigor, nem era exigido.
IV - Aos Recorrentes, Arguidos, cabe reagir contra a decisão final da instrução, nos termos da lei processual, se esta lhes for desfavorável, posto que apenas tal decisão será proferida contra si.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foi proferida decisão sumária com o seguinte teor: « Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão sumária, rejeitar o presente recurso nos termos dos art.º 417.º/6 al. b) e 414.º/2 do Código de Processo Penal.»
Inconformado, reclamaram para a Conferência os Recorrentes pedindo que «Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. Venerandos Senhores Desembargadores mui doutamente suprirão requer-se seja a presente reclamação para a conferência admitida e deferida e, em consequência, seja reapreciada a decisão sumária, por incorrecta e errada que é, e (conhecendo-se que a pretensão dos Recorrentes não se encontra ferida de qualquer ilegitimidade), seja revogada a decisão de rejeição do recurso e decidido o recurso dos Recorrentes. »
Apontam o facto de não ter sido tida em consideração, para a decisão sumária, a resposta ao parecer que oportunamente juntaram aos autos. Reiteram o entendimento defendido nas suas motivações de que o despacho do Tribunal a quo deverá ser substituído por outro que determine a nulidade do Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo GG, Assistente nos autos.
Ministério Público e Assistente mantiveram as posições anteriormente assumidas quanto ao recurso.
- da decisão recorrida -
No Tribunal Central de Instrução Criminal – J1 da Comarca de Lisboa foi proferida despacho liminar de admissão de Requerimento de Abertura de Instrução com a consequente abertura daquela fase processual, com o seguinte texto:
«Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo GG — Por tempestiva e legalmente requerida, admito a abertura de instrução - ex vi art. 287.° n. ° 1 al. b) e n° 3 do CPP».
Perante tal despacho, os ora Recorrentes vieram suscitar a falta de fundamentação do despacho. E ainda vieram arguir a nulidade do próprio Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo GG, Assistente nos autos.
Foi então proferido o despacho recorrido, de seguinte teor:
«No que concerne ao requerimento apresentado por AA e BB ( fls. 11953 e seguintes) e resposta do M.P. de fls. 12074, CC de fls. 12076, de DD de fls. 12085 e GG de fls. 12090.
As questões aqui colocadas em termos de invocação de nulidades associadas ao requerimento de instrução da GG já foram objecto de análise, análise que foi feita acerca de outro requerimento apresentado e que, em substância, aborda os mesmos termos .
Damos aqui por reproduzida a posição tomada, concluindo que a acusação apresentada respeitou os requisitos aludidos e que deve ser escrutinada.
Indeferem-se as nulidades arguidas.
Notifique.»
Porque a decisão remete para outra, previamente proferida, foi esta a fundamentação reiterada:
«Fls. 11879 a 11887 — No tocante ao requerimento do arguido senhor EE, com referência ao pedido de declaração de nulidade do RAI do Assistente GG e, consequentemente do despacho que declarou aberta a instrução, com referência a tal RAI e que aquele despacho seja substituído por outro que rejeite liminarmente o dito RAI por virtude de enfermar da nulidade a que alude o art.º 283.º n.º 3 al. b) do CPP.
Convocados a exercer o contraditório dão-se por reproduzidas as respostas oferecidas, neste tocante, pelo Ministério Público ( cfr. fls. 12070), pelo arguido Sr. CC ( fls. 12076 e seguintes) e pelo GG ( fls. 12090 a 1 2121 ).
Cumpre apreciar e decidir: sendo presentes RAI's pelos arguidos ou por assistente ao JIC cabe aquilatar se aqueles são extemporâneos, se o JIC é incompetente para os apreciar ou se são inadmissíveis — cfr. Art.º 287-º n.º 3 do CPP.
Também o RAI apresentado pelo assistente deve observar o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do art.º 283.º do CPP
Em síntese, alega o arguido que o RAI do assistente viola o disposto na al. b) do n.º 3 do Art.º 283.º do CPP, porquanto: não opera uma imputação objectiva e subjectiva fáctica individualizada, para cada um dos arguidos e não procede à necessária articulação dos factos com as normas consideradas infringidas pela sua prática, não contém a descrição dos factos que, concreta e individualizadamente, são imputados e que de per si preencham os tipos de crime pelos quais o arguido se encontra acusado.
O RAI seria omisso na descrição de lugar, do tempo e da motivação da prática desses crimes.
Analisemos:
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 3 do Art.º 283.º do CPP: "A acusação contém, sob pena de nulidade:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada"
É dupla a função da norma contida neste preceito: ela caracteriza a estrutura acusatória do processo, uma vez que é a acusação que delimita o respectivo objecto .com as consequentes limitações impostas ao juiz de instrução e de julgamento quanto à alteração, substancial ou não substancial, dos factos levados para a acusação); assegura as garantias de defesa do arguido, o qual deve encontrar no texto da acusação, uma dimensão real do seu objecto.
Indispensável, necessário e suficiente para que uma acusação cumpra o requisito previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, é que:
- esta indique os factos que fundamentam a aplicação da sanção — uma vez que estes constituem o objecto do processo daí em diante e serão eles o objecto da eventual instrução e do julgamento — isto é a enunciação dos factos deve permitir a subsunção à descrição típica de um crime; e, ainda, que:
- perante o teor da acusação o arguido possa ter conhecimento dos factos jurídicos que lhe são imputados, de forma que garanta a plenitude da defesa, para o exercício do contraditório.
Ao nível da descrição fáctica, o que o preceito exige é, pois, uma narração sintética, a partir da qual seja definido o objecto do processo, por forma a que o(s) arguido(s) saiba(m) do que deve(m) defender-se, publicitando-se os limites materiais da acusação.
A acusação deve conter esta descrição, sob pena de nulidade relativa (sanável pelo regime previsto nos artigos 120.º e 121.º do CPP).
Perante os elementos narrados entendemos no despacho de Abertura de Instrução admitir o RAI, o que inculca que ajuizamos da não verificação de desrespeito pelo n.2 do art.º 283 do CPP.
E essa posição que mantemos, indeferindo a nulidade arguida
Notifique. »
- do recurso -
Inconformados, recorreram os Arguidos FF e BB formulando as seguintes conclusões:
« A) O recurso tem por objecto a decisão de fls. 12224 (com referência, e incluindo, fls. 12218- 12220 para onde o primeiro remete) que incide parcialmente sobre o requerimento dos Recorrentes de fls. 11953-11965.
B) A decisão recorrida aprecia e decide somente que o RAI do GG (fls. 10969-11253) cumpria os requisitos previstos no art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP (cf. trechos destacados nos arts. 5.° e 6.° das motivações), tendo sido isso que, segundo a decisão recorrida, o Arguido EE invocou e a decisão do requerimento de fls. 11953-11965 dos Recorrentes foi remetida para o decidido quanto àquele arguido EE.
C) A decisão recorrida - e o presente recurso - não têm por objecto a apreciação das demais questões suscitadas naquele requerimento dos Recorrentes de fls. 11953-11965 ou mesmo do requerimento de fls. 11901-11904 pois sobre essas questões, demarcáveis e autonomizáveis, não foi ainda prolatada qualquer decisão pela 1.a instância (cfr. requerimento dos Recorrentes de 29.06.2023 de fls..), justificando-se ainda o presente recurso pelo referido no art. 10.° das motivações.
D) A acusação vertida no RAI do assistente que se apresenta omissa relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao Arguido, é nula nos termos do art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP ex vi art. 287.° n.° 2 do CPP.
E) Tais exigências derivam da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa que dimanam dos princípios do Estado de Direito Democrático e do princípio da dignidade humana, impondo aqueles princípios e valores que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão.
F) A jurisprudência é unanime ao exigir que o RAI do assistente deve definir os factos concretos que constituem os elementos do tipo de crime, o grau de participação, os elementos relativos à culpa, devendo a narração dos factos e das suas concretas circunstâncias conformadoras e consubstanciadoras dos ilícito penal em causa, ser narradas de forma precisa clara e rigorosa, (cf. Ac. STJ 15.03.2023 e TRC 22.05.2023).
G) A decisão recorrida considerou que o RAI do assistente indica os factos que permitem a subsunção á descrição do crime (portanto, os factos que fundamentam a aplicação da sanção) considerando ainda que, perante aquele RAI, o arguido consegue exercer os seus direitos e garantias de defesa, razão pela qual, erradamente, não declarou a invocada nulidade do RAI.
H) Ainda que se conceda que da decisão recorrida resultam devidamente identificados, em abstracto, os requisitos do art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP. do confronto dos mesmos, com o teor do RAI. é forçoso concluir, contrariamente ao decidido, que o RAI não cumpre tais requisitos, sendo por isso nulo. o que deveria ter sido declarado pela decisão recorrida (ao invés do que decidiu).
I) Os únicos elementos do RAI que concorrem para o preenchimento dos requisitos contidos no art. 283.° n.° 2 al. b) do CPP, naquele RAI, relativamente aos aqui Recorrentes são aqueles que estão transcritos no art. 24.° das motivações (e que aqui por economia processual se dão por integralmente reproduzidos).
J) Os referidos elementos são insuficientes para preencher a plenitude dos elementos típicos (objectivo e subjectivo) dos crimes imputados aos Recorrentes, de participação económica em negócio (p. e p. pelo art. 377.° CP e 23.° da L34/87 de 16.07) e de corrupção (p. e p. pelo art. 16.° da L34/87 de 16.07).
K) O RAI em causa omite a narração (i) das funções dos Arguidos, aqui Recorrentes (indicando somente o cargo), (ii) dos interesses que, por força das funções lhes caberia administrar, fiscalizar, defender ou realizar, e (iii) da relação causal entre qualquer vantagem obtida ou pretendida obter e a função do agente.
L) Porém, as apontadas circunstâncias que o RAI omite, são essenciais para preenchimento do tipo previsto no art. 377.° do CP e 23° da L34/87 de 16.07 (na redacção aplicável), exigindo aquela incriminação, para verificação do tipo legal “uma infidelidade do agente às funções ou utilização indevida daquelas para fins desnecessários às atribuições legais e funcionais ”, sendo por isso necessário descrever que concretas funções os Recorrentes tinham ao seu cuidado e interesses que, por força daqueles, estavam encarregados.
M) No que concerne à imputação do tipo previsto no art. 16.° da L34/87 (na redacção aplicável), constata-se uma absoluta ausência de narração de qualquer conduta subsumível àquele tipo, nada sendo, relativamente aos Recorrentes que possa ser subsumido a uma solicitação ou aceitação de vantagem patrimonial, ou respectiva promessa, a actos ou omissões contrárias aos deveres do cargo e/ou respectivo sinalagma entre uns e outros.
N) Também não se encontra narrado no RAI, de forma individualizada, a participação dos Recorrentes e respectiva actuação conjunta que daria execução a um acordo, o que sempre se imporia que estivesse narrado no RAI (o sentido da decisão para a realização da acção típica) mesmo nos casos em que a imputação é feita na forma de coautoria.
O) A factualidade vertida nos arts. 303.° e 306.° do RAI. na ausência de narração de qualquer acordo (prévio) para prática daquele acto (de factualidade da qual fosse extraível a existência da necessária consciência e vontade de colaboração com os demais agentes na realização conjunta), é também ela insuficiente para preenchimento de qualquer tipo, dali resultando apenas que os Recorrentes se limitaram a cumprir uma ordem provinda de um superior a quem deviam
obediência.
P) Ora, mesmo que todos os factos vertidos no RAI viessem a ser julgados provados, nem assim, resultaria possível dar por preenchida qualquer conduta criminal ou condenar os arguidos aqui Recorrentes a qualquer pena.
Q) Diferentemente (e divergentemente) do decidido pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, resulta demonstrado que o RAI do Assistente GG não contém descrita qualquer conduta típica narrada de forma concretizada e determinada, ou determinável.
R) A decisão recorrida, viola o art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP (aplicável ex vi art. 287.° n.° 2 do CPP), com referência aos arts. 286.° e 308.° n.° 1. ambos do CPP, ao admitir para valer como acusação (suscetível de pronúncia e subsequente julgamento e condenação) uma peça processual da qual os Arguidos não se conseguem defender, por ausência de descrição fáctica concreta susceptível de integrar os elementos típicos (objectivo e subjectivo) daquelas incriminações que o RAI imputa aos Arguidos aqui Recorrentes (e por isso, também com referência aos arts. 377.° do CP, 23.° da Lei 34/87 de 16.07 e art. 16.° da mesma Lei 34/87 de 16.07).
S) Diz-se ainda, por referência ao critério normativo decisório, que a interpretação normativa extraída do art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP (aplicável ex vi art. 287.° n.° 2 do CPP) isolada ou conjugadamente com referência aos arts. 286.° e 308.° n.° 1 do CPP (e no caso concreto, arts. 377.° do CP e 23.° e 16.° da Lei 34/87 de 16.07), que se encontra acolhida pelo despacho recorrido no sentido da não invalidade do RAI desprovido de factos susceptíveis de integrar o tipo incriminatório em causa, é materialmente inconstitucional, por violação dos arts. 2.°, 20.° n.° 5, 32.° n.°s 1 e 5, todos da CRP.
E por todo o exposto. 
T) Entendem os Arguidos que. diferentemente do decidido, é de concluir que o RAI do GG não realiza a condição prevista no art. 283.° n.° 3 al. b) do CPP (aplicável ex vi art. 287.° n.° 2 do CPP). razão pela qual. se requer seja revogado o despacho recorrido, por errado e ilegal que é, e substituído por outro, em sentido diverso que conheça e declara a invocada nulidade daquele RAI por violação do disposto no art. 283 n.° 3 al. b) do CPP (ex vi art. 287.° n.° 2 do CPP).»
- da resposta -
Notificados para tanto, responderam:
a. o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
« Nos termos das normas conjugadas dos arts. 399.º e seguintes, do Código de Processo Penal, o despacho aqui em crise é recorrível. Por isso, foi bem decidida a sua admissão.
O abuso do direito decorre disso mesmo, porém, no caso em análise: o que aqui se verifica é exercício do direito, sim, mas abusando deste. Não está em causa a ausência de direito, não é a conduta contra o direito, neste caso do arguido EE, que aqui se contraria, mas sim, o uso excessivo, abusivo, logo ilegítimo do direito de recurso. Não está em causa a ilegalidade do pedido, mas sim a sua ilegitimidade (atente-se na redação do art. 334.º, do Código Civil) (A. e ob. cit., pág. 109-1 10).
Por isso, não nos parece que tenha sido para os fins aqui pretendidos pelos arguidos FF e BB que o legislador tenha previsto a garantia de recurso a quem se sinta prejudicado por uma decisão judicial.
Por tudo o que aqui se diz, a decisão de recurso a proferir neste caso em apreço não pode sê-lo no sentido de atender a pretensão dos recorrentes.»
b. O Assistente GG, concluindo nos seguintes termos:
« A. Os Recorrentes interpuseram recurso do despacho que indeferiu a nulidade do despacho de abertura de instrução, por entenderem que o RAI apresentado pelo Recorrido, não contém as menções previstas nas alíneas b) e d) do no 3 do artigo 283º, por remissão do no 2 do artigo 287º do CPP;
B. O Recorrido, por uma questão de economia processual, vem apresentar uma só resposta a tais recursos, porque, essencialmente, versam sobre a mesma matéria;
C. Somente, o Recorrente EE, veio, para além do referido em A., requerer que fosse declarada a irregularidade, por falta de fundamentação, do despacho recorrido e a apreciação do recurso interposto a 22/02/2023;
D. Em primeiro lugar, o prazo para suscitar qualquer irregularidade é de 3 dias, conforme prevê o no 1 do artigo 123º do CPP, pelo que, ao faze-lo em sede de recurso, esse eventual vício estaria já sanado;
E. Por outro lado, o conhecimento de um recurso, está delimitado no seu objecto, não podendo se conhecer um anteriormente apresentado;
F. Os Recorrentes para sustentarem tal entendimento, chamaram à colação a promoção do Ministério Público, datada de 22/11/2022, fls. 11.676 a 11.681;
G. Ora, o Ministério Público, na qualidade de detentor da acção penal, nestes autos que correm termos desde 2011, tem menosprezado a intervenção do Recorrido;
H. Desde logo, porque o Recorrido na participação que apresentou em Março de 2012, indicou e identificou os principais denunciados e estes só foram constituídos arguidos, após o decurso do prazo que o Ministério Publico, considerou que já haveria prescrição;
I. E, uma vez que o Recorrido teve que requerer a abertura de instrução, por não ter concordado com o despacho de encerramento de inquérito, o Ministério Publico, esperou cerca de 6 meses para remeter os autos para instrução e, somente, após se ter pronunciado sobre o RAI daquele;
J. E entendimento do Recorrido, que o RAI é o exercício do contraditório, ao despacho de encerramento do inquérito e que, por isso, o Ministério Público, salvo se fossem suscitadas nulidades, só se deveria pronunciar sobre o teor do mesmo, em sede de instrução;
K. Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, a mera leitura do RAI, quer da parte introdutória, quer da parte final, basta para se verificar que este cumpre os requisitos constantes das alíneas b) e d) do no 3 do artigo 283º, por remissão do no 2 do artigo 287º, ambos do CPP;
L. Quanto à invocada falta de menção de quaisquer actos de instrução, o ne 2 do artigo 287º do CPP, é bem claro: "bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo"; - sublinhado nosso;
M. E entendimento do Recorrido, que os autos contêm os elementos necessários, para que, após a sua análise, seja proferido despacho de pronúncia, como mencionou no artigo 111 do RAI;
N. A alínea b) do no 3 do artigo 283º do CPP, refere a obrigatoriedade de o RAI conter a narração sintética dos factos que fundamento a aplicação de uma pena aos Recorrentes e demais Arguidos, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, a motivação da prática do facto e o grau de participação dos agentes;
O. Os pontos 47 a 51, 76, 95 a 97 do RAI, fazem um enquadramento abrangente dos factos cometidos, que causaram e causam grave prejuízo ao Estado Português;
P. Para além das responsabilidades ministeriais, o estatuto de funcionário, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 3860 do CP, consta, nomeadamente, no ponto 111, nos seus subpontos 2, 6, 21, 22, 43 a 56 do RAI;
Q. Para além da descrição da legislação que antecedeu a renegociação dos contratos e das consent letters, do ponto 111, subpontos 68 a 71, tendo estes últimos o seguinte teor: (…)
S. Não há, por isso, fundamento legal, para ser considerado nulo o RAI, uma vez que este cumpre as exigências previstas nas alíneas b) e d) do no 3 do artigo 283º, por remissão do nº 2 do artigo 287º, ambos do CPP;
T. A jurisprudência tem defendido que, mesmo em caso de descrição mais parca ou deficiente do RAI do Assistente, deve ser admitida a abertura de instrução, como se pode ver nos seguintes arestos:
Ac. TRG de 6/11/2017 - Ac. TRE de 24/10/2017 - Ac. TRG de 19/06/2017
- Ac. TRP de 10/12/2022
- AC. TRL de 8/11/2023, todos consultáveis em www.dgsi.pt
U. O Recorrido, já consignou nos autos, que tinha sido cometido um lapso, na transcrição das disposições legais mencionadas no subponto 362 do ponto 111, pese embora estas constarem dos pontos 4, 32, 33, 35 e 45 do RAI, quando o que se pretendeu escrever foi: 362 — Os Arguidos cometeram em co-autoria e concurso real cinco crimes de participação económica em negócio p. e p. pelo artigo 377º nº 1 do CP e artigos 23º da Lei 34/87 de 16 de Julho e cinco crimes de corrupção para acto ilícito previsto no artigo 373º nº 1 do CP e artigo 16º da Lei 34/87 de 16/07, na versão dada pela Lei 108/2001 de 28/11, agora previsto no artigo 17º do mesmo dispositivo legal;
V. É, pelo exposto, evidente que o RAI do Recorrido cumpriu as exigências previstas nas alíneas b) e d) do no 3 do artigo 283º, por remissão do artigo 287º do CPP, não havendo fundamento para a sua rejeição, por inadmissibilidade legal;
W. Por fim, ao contrário do invocado pelos Recorridos FF e BB, será a revogação do despacho recorrido — o que não se concede -, que só seria possível mediante uma interpretação restritiva do teor do artigo 283º nº3 ex vi pelo artigo 287º nº 2, ambos do CPP, seria inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 20º e 32º da CRP;
X. Nestes termos, o despacho recorrido fez uma correcta análise e aplicação do direito, pelo que não merece qualquer censura, devendo ser mantido, nos seus precisos termos, sob pena se violar, nomeadamente, o disposto nos: Artigos 2º, 18º, 20º, 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa
Artigos 283º e 287º do Código de Processo Penal»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer, invocando os Recorrentes a falta de notificação da resposta para a qual tal parecer remeteu.
Foi ordenada a notificação da resposta e concedido novo prazo para, querendo, responder ao parecer. Apresentado o mesmo, argumentaram os Recorrentes tal como consta das suas motivações, por entenderem que, enquanto visados por um Requerimento de Abertura de Instrução, são titulares de um direito a contraditar a verificação do preenchimento dos requisitos de admissibilidade deste, sempre que entendam que não cumpre os devidos ónus processuais.
Pugnam pela improcedência da questão da ilegitimidade para recorrer suscitada pelo Ministério Público e que seja revogado o despacho recorrido como pedido nas motivações.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a questão a decidir prende-se apenas com saber se aos Arguidos assiste legitimidade para se pronunciarem quanto à admissibilidade liminar do Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente e que contra si pretende um juízo de pronúncia.
FUNDAMENTAÇÃO
- Da legitimidade dos Recorrentes -
No caso que nos ocupa, a questão sob litígio prende-se com o entendimento dos Recorrentes quanto à perfeição dos termos do Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente GG, pois de acordo com a sua posição será tal peça nula.
Diferente foi o entendimento do Tribunal, concluindo pela perfeição suficiente para justificar a sua admissão liminar e declarar aberta a instrução. Em momento algum o Tribunal se pronunciou sobre o mérito dessa instrução, nada impedindo que, a final, venha a concluir pela impossibilidade de pronúncia. Contudo, tal juízo é o objecto da instrução e não tem lugar a sua ponderação em sede de despacho liminar com a profundidade exigida pelos Recorrentes. Entendendo o Tribunal que o Requerimento de Abertura de Instrução se encontra em condições para merecer uma apreciação jurisdicional, será na fase da instrução que serão discutidas todas as questões inerentes a tal requerimento, então sendo garantido aos Arguidos requeridos a oportunidade de se defenderem, exercendo o oportuno contraditório.
Ao Tribunal de Instrução Criminal exige-se uma análise preambular que lhe permita verificar se o Assistente requerente da instrução explanou de forma bastante o objecto daquela fase processual, permitindo ao Tribunal ter matéria sobre a qual trabalhar. É, como o nome indica, um despacho preliminar e, nessa medida, o entendimento já expresso por este Tribunal da Relação de Lisboa neste mesmo processo, que tal despacho não é proferido contra os Arguidos (vd. decisão sumária do. Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.05.2024, proferida no Apenso B).
Nos termos do art.º 120.º do Código de Processo Penal, as nulidades dependentes de arguição deverão ser arguidas pelos interessados. Mas mais vejamos. Reportando-se o elenco de nulidades aos actos processuais, neste caso os Recorrentes aludem à existência de uma nulidade praticada por um sujeito processual (o Assistente), por entenderem que a remissão para o art.º 283.º/3 als. b) e d) do Código de Processo Penal, pelo art.º 287.º/2 do mesmo código, implica a sujeição do Requerimento de Abertura de Instrução ao mesmo regime de nulidade.
Não cremos que seja essa a solução da lei, posto que o n.º 3 seguinte expressamente prevê que «3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução».
Como tal, o desrespeito pelas exigências legais sobre o Requerimento de Abertura de Instrução não cabe no domínio da nulidade dos actos, mas sim na procedência do pedido que, sendo flagrante a falta de fundamento, justifica a sua rejeição sem necessidade de percorrer a via dos actos de instrução.
Assim, aos Recorrentes nem sequer assiste legitimidade para suscitar a apontada “nulidade” do Requerimento de Abertura de Instrução, razão pela qual carecem igualmente de legitimidade para impugnar o despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal que, em rigor, nem era exigido.
Com efeito, nos termos do art.º 401.º/1 al. b) do Código de Processo Penal, o Arguido apenas tem legitimidade para recorrer de decisões contra si proferidas. Concluindo-se que não poderiam os Arguidos suscitar a questão da nulidade, pois não é uma questão de nulidade aquela que se coloca perante os termos da questão definidos no requerimento, nenhuma decisão foi proferida contra si. Logo, carecem os Recorrentes de legitimidade no presente recurso.
Aos Recorrentes, Arguidos, cabe reagir contra a decisão final da instrução, nos termos da lei processual, se esta lhes for desfavorável, posto que apenas tal decisão será proferida contra si. Por ora, a pretendida decisão do Tribunal da Relação de Lisboa iria corresponder a uma antecipação de um juízo sobre o conteúdo da instrução que o Tribunal Central de Instrução Criminal apenas irá proferir chegado ao fim daquela fase processual.
Consequentemente, é manifesta a improcedência do presente recurso, estando a pretensão dos Recorrentes ferida de ilegitimidade, razão pela qual, se rejeita o recurso apresentado.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa rejeitar o presente recurso nos termos dos art.º 417.º/6 al. b) e 414.º/2 do Código de Processo Penal.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se em 4 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 19.Novembro.2024

Rui Coelho
João Ferreira
João Simões Grilo do Amaral