RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
REINCIDÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário


I. Do limite mínimo legal para o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º nº 1 do Dec-Lei 15/93 de 22.1, praticado em reincidência resulta a impossibilidade legal de se cogitar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, porquanto o art. 50º nº 1 do Código Penal apenas admite a possibilidade de suspensão quanto a penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos.
II. A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar.
III. A pena de seis anos de prisão, apenas oito meses acima do limite mínimo, em 1/10 da moldura penal, aplicável ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º nº 1 do Dec-Lei 15/93 de 22.1 praticado por reincidente, denota moderação na determinação da medida da pena, num quadro de tráfico internacional de cocaína em que o arguido se serviu de um correio de droga que ingeriu a cocaína para fazer o transporte.

Texto Integral

Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, os arguidos AA, filho de BB e de CC, natural da ..., de nacionalidade guineense, nascido a ........1974, solteiro, ..., residente na Rua ..., ..., em prisão preventiva desde 11.03.2023 e DD foram julgados e a final o arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º nº 1 do Dec-Lei 15/93 de 22.1, por referência à tabela I-B, anexa àquele diploma legal, na pena de seis anos de prisão.


*


Inconformado, o arguido AA recorreu per saltum para este Tribunal, apresentando a seguinte síntese conclusiva:

A) O arguido AA foi condenado, por acórdão proferido no dia 5 de Setembro de 2024, na pena de 6 anos de prisão;

B) O Tribunal deu como provados factos constantes na decisão que não iremos reproduzir, pois o objecto do presente recurso respeita apenas a discordância que temos relativamente a medida da pena e pena aplicada.

B) Em nosso entender a pena aplicada é deveres exagerada.

C) Se analisarmos o artº 21º do DL.15/93, de 22 de janeiro,, sob a epígrafe “Tráfico e outras actividades ilícitas” temos que:

Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

D) Se atendermos ao previsto no artº 40º que dispõe sobre as finalidades das penas: ”a aplicação de penas e das medidas de segurança, visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o artº 71º do mesmo diploma.

E) A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artº 27º, nº2 da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou de proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo a qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados.

F) A projecção destes princípios na medida de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial) em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artºs 40º e 71 do C.P.

G) Ora, para a graduação da culpa de acordo com o nº 2 do Artº 71º há que considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, ou seja factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente”, bem como os factores atinentes ao agente, que tem que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente, na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto e na alínea f) (falta preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto).

H) O comportamento do agente, a que se refere as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para a determinação da medida da pena com vista das exigências de prevenção geral especial-

H) O Artº 77º, nº 1 do CP – estabelece que o critério específico a usar na fixação da medida da pena única é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

I) É nosso entendimento que atendendo a todo este conjunto de imposições de onde relevam a intensidade do dolo directo e persistente, a culpa mediana, o facto deste ter experienciado a situação de reclusão, o que pode constituir um marco determinante para inflexão num percurso disruptivo face às normas que vigoram na ordem jurídica, o apoio familiar que tem, o que releva que, uma vez em liberdade, encontramos fundamento bastante que justifique a redução das penas aplicadas, o que permite que a pena se fixe e, patamar situado junto do limite mínimo da moldura penal, ou seja 4 anos, ou mesmo 4 anos e 6 meses.

J) Depois de explanadas estes considerandos é nosso entendimento que não era necessário aa aplicação de uma pena tão elevada, uma vez que o arguido não tinha em seu poder nenhum produto estupefaciente.

K) Não basta dizer que foi o arguido AA que mandou o falecido EE ir buscar produto à Guiné, nada disto foi provado.

L) Em situação alguma foi visto o falecido entregar produto estupefaciente ao arguido AA.

M) Relativamente às exigências de prevenção geral e especial, elas são médias.

N) O grau de ilicitude é baixo, pois a crer que haja alguma ligação entre o arguido AA e o falecido EE, estamos na base da pirâmide do tráfico.

O) O dolo sendo directo, não é particularmente intenso;

P) O arguido não faz parte de nenhuma organização;

Q) A condição sócio económica do arguido é muito modesta.

R) A pena concreta aplicada, peca por excessiva, pelos fundamentos supra explanados e espelha, essencialmente, a vertente punitiva repressiva das penas, quando o acento tónico deve ser colocado na vertente preventiva ressocializadora, sobretudo ao nível da prevenção especial positiva.

S) E tal como se referiu e como explanado no nº 2 do Artº 40º do Código Penal: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

T) Tudo ponderado, e, sem escamotear os antecedentes criminais do arguido, a pena concreta a aplicar-lhe não deverá, em cúmulo jurídico ultrapassar os 5 anos.

U) Depois de explanarmos que o Recorrente deveria ser condenado numa pena não superior aos 5 anos de prisão, há que ponderar se a mesma deverá ser suspensa na sua execução.

V) A decisão recorrida, ao optar pela aplicação de uma pena efectiva, em detrimento de pena não privativa da liberdade, fê-lo, além do mais, ao arrepio das modernas correntes doutrinais.

W) Atentas as circunstâncias do caso concreto mencionadas no número anterior, a propósito do quantum da pena, designadamente, ao facto do arguido alegadamente pertencer “pertencer” à base da pirâmide do tráfico de estupefacientes, às quantidades cedidas, aos valores apreendidos e a facto do arguido viver de forma modesta , apesar do arguido já ter cumprido uma pena pelo mesmo tipo de crime.

X) O tribunal a quo afastou a aplicação da pena suspensa até pela condenação na pena de 6 anos, superior aos 5 anos, por considerar que só assim se visam acautelar de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.

Y) Mais manter o arguido numa prisão é muito mau para efeitos de ressocialização, até porque como todos sabemos as prisões são verdadeiras escolas do crime.

Z) Motivos pelos quais, entendemos e pugnamos, seja determinada a suspensão da respectiva execução, pois constitui um dever primário dos Tribunais contribuir para a respectiva reinserção social dos condenados.

AA) A correcta interpretação do estipulado pelo legislador (Artº 71º do Cód. Penal), deve conduzir à prevalência de considerações de prevenção especial de socialização, sobre outras, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.

BB) O recorrente reúne os pressupostos básicos da aplicação da pena de substituição e o tribunal ainda assim dispunha de elementos que lhe permitem formular um juízo de prognose positivo logo favorável.

CC) E não nos pudemos esquecer que a pena suspensa é sempre uma “espada” apontada à cabeça do arguido.

DD) Aliás não existe qualquer obstáculo legal a que, um arguido, que volte a delinquir por factos da mesma natureza, possa beneficiar duma pena suspensa.

Tudo ponderado e pese embora as exigências de prevenção, entendemos que deve ser decretada a suspensão da execução de tal pena (Artº 50º do Cód. Penal) e, atentos os antecedentes criminais do arguido, tal suspensão deverá ficar sujeita, cumulativamente

- A regime de prova (nº 1 do artº 53º e nº 2 do Artº 50º), pelo período máximo, ou seja 5 anos (nº 5 do artº 50º), todos do Código penal.

O Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou, entre outros os Artºs 18º e 32º da CRP, o Art 127º do CPP, os artºs 70º, 71º, 72º, 73º, 77º, nº 2 do Cp e ainda os artºs 410º, nº 2, al. a), b) e c) do CPP e 412º al. a), b) CPP e ainda o artº 340º, CPP e ainda ao artigo 50º do C.P.

Nestes termos e nos mais de direito, que V.Exas doutamente suprirão, deve o presente acórdão ser revogado e proferido outro que condene o arguido numa pena única não superior a 5 anos e suspensa na sua execução.

Assim decidindo, V. Exas farão a costumada JUSTIÇA

Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, concluindo:

1. No presente caso, tendo o arguido sido condenado, como reincidente, pela prática de um crime de estupefacientes, previsto pelo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o crime é punido com pena de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão, nos termos do disposto no artigo 76º, nº1, do Código Penal.

2. De harmonia com o disposto no artigo 71º, nº1, do Código Penal «a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

3. As exigências de prevenção geral fazem-se sentir de forma elevada, face ao peso estatístico das condenações por este tipo de crimes e às consequências que acarretam para a saúde pública

4. Já as necessidades de prevenção especial são igualmente elevadas, dado que o arguido tem antecedentes criminais por crime de idêntica natureza.

5. Importa, ainda, atender, para efeitos de determinação da medida da pena, ao grau de ilicitude, o qual é elevado atentas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos, tendo existido recurso a transporte internacional e a um terceiro que trazia produto estupefaciente no interior do organismo.

6. Atento o supra indicado, entende-se que a medida da pena aplicada não é excessiva, sendo antes adequada e suficiente e devendo mantida.

7. Por último, não se olvida que, nos termos do artigo 50º, nº1, do Código Penal, a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos deverá ser suspensa na sua execução quando, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, se se concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

8. Contudo, no caso em apreço, tendo sido aplicada pena de prisão de seis anos, falece desde logo um dos pressupostos da suspensão da pena de prisão aplicada.

Pelo exposto, julgando improcedente o recurso interposto pelo arguido, V. Ex.as farão a costumada e habitual justiça.


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O recurso foi admitido.

Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 417º nº 1 do Código de Processo Penal.

A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer do seguinte teor:

« (…)

II Mérito do Recurso.

A) - Medida das pena;

B) - Suspensão da execução da pena de prisão.

1 Sem pôr em causa a reincidência, o recorrente pugna pela aplicação de uma pena de prisão entre os 04 anos e os 04 anos e 06 meses, suspensa na sua execução, com regime de prova.

2 Trata-se, contudo, de uma dupla impossibilidade lógico-jurídica:

O arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material e em reincidência, de um crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. na disposição do art. 21º/1 do DL-15/93 de 22/1, por referência à Tabela I-B, anexa, na pena de 06 anos de prisão, adentro de uma moldura penal abstracta de 05 anos e 04 meses a 12 anos de prisão (cfr, os arts. 75º e 76º do Código Penal).

3 Com todo o respeito, impõe-se-nos tão-somente dizer que a peticionada redução da pena de prisão e a sua suspensão na sua execução são questões liminarmente prejudicadas, em face da referida concreta moldura penal abstracta (cfr, os arts. 50º/1 e 71º/1 do Código Penal).

III. Em síntese:

Não é legalmente viável reduzir a uma pena de prisão entre os 04 anos e os 04 anos e 06 meses a condenação em 06 anos de prisão ditada por uma moldura penal abstracta de 05 anos e 04 meses a 12 anos de prisão;

Do mesmo modo, também não é, então, de equacionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ora recorrente.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

O presente recurso não pode ter provimento legal, sendo de manter os termos da decisão recorrida.


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Não foi apresentada resposta ao parecer.

Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).

II – FUNDAMENTAÇÃO

Quando conhece de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal), estando fixada jurisprudência no sentido de que: «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»1

Verificam-se as condições para o conhecimento do recurso directamente pelo Supremo Tribunal de Justiça porquanto a pena aplicada pelo crime pelo qual foi condenado é superior a 5 anos e a pretensão do Recorrente, claramente expressa no início da motivação, foi a limitação do seu recurso “à medida da pena e à pena propriamente dita”.

É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.s 379º nº 2 e 410º nº 2 do Código de Processo Penal).


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A questão a decidir é a medida da pena e a possibilidade de suspensão da sua execução, não existindo questões de conhecimento oficioso que obstem à apreciação da pretensão do Recorrente.

***


Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada (na parte pertinente, referente ao Recorrente):

A) – Factos Provados.

Resultou provado o seguinte factualismo:

(…)

6. Em data anterior a ........2023, ficou acordado entre o arguido AA e EE (arguido falecido no decurso do inquérito), que este último efectuaria o transporte de cocaína da Guiné-Bissau para Lisboa, por via aérea e a troco de contrapartida económica.

7. Ainda de acordo com esse plano, EE, chegado a Portugal, devia entregar o estupefaciente ao arguido AA.

8. EE aderiu ao sobredito projecto.

9. Nessa sequência, terceiros localizados na Guiné-Bissau entregaram ao arguido EE trinta e uma embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 304,171g.

10. No dia ........2023 EE embarcou, na Guiné-Bissau, no voo YU.52.

11. EE levou consigo as sobreditas embalagens de cocaína, que antes ingerira, no interior do organismo.

12. A aeronave aterrou no Aeroporto de Lisboa no dia ........2023, cerca das 20h00.

13. Após o desembarque, EE dirigiu-se de transportes públicos à ..., a fim de se encontrar com o arguido AA.

14. O arguido AA residia no ..., na Rua ..., na .... 15. Pelas 22h09m o arguido AA telefonou ao arguido EE e questionou-o sobre o seu paradeiro.

16. EE retorquiu que já estava na estação da ... e que seguia para a ....

17. Posteriormente, o arguido AA realizou duas chamadas telefónicas, pelas 22h16m e 22h24m, para um indivíduo, cuja identidade se desconhece (INI), perguntando-lhe pelo paradeiro de EE.

18. No decurso da última chamada, o arguido AA respondeu ao INI que já tinha visto o arguido EE.

19. Logo depois, pelas 22h25m o arguido AA e EE encontraram-se na Praça ..., na ....

20. O arguido EE entregou ao arguido AA a mala de tipo trolley e a mochila que levava consigo.

21. Seguidamente o arguido AA e EE seguiram na direcção da residência do primeiro, tendo sido interceptados pela PSP na esquina da Rua ... com a Avenida ....

22. O arguido AA tinha consigo três telemóveis e a quantia de € 82,15.

23. EE tinha consigo, no interior do organismo, as mencionadas trinta e uma embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 304,171g.

24. EE tinha também consigo dois telemóveis e a quantia de €10.

25. Posteriormente EE foi transportado para o Hospital de ..., em ..., onde expeliu do interior do organismo as trinta e uma embalagens com cocaína.

26. O arguido AA agiu no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de introduzir em Portugal as mencionadas trinta e uma embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 304,171g., cujas características, natureza e quantidades conhecia, com o fito de os entregar a terceiros, mediante contrapartida económica.

27. O arguido AA actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

28. O arguido AA foi condenado, no processo n.º 1344/17.8..., na pena de cinco anos de prisão, pela prática, entre Março de 2017 e 26.06.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93.

29. O acórdão transitou em julgado, relativamente ao arguido AA, em 09.11.2018.

30. O arguido AA cumpriu a sobredita pena de prisão e esteve privado da liberdade de 26.06.2017 até 04.05.2020, data em que foi colocado em liberdade condicional.

31. O arguido AA não interiorizou o significado da referida condenação.

32. Após a sua libertação, o arguido AA decidiu continuar a fazer ingressar em território nacional, receber e ter consigo produtos estupefacientes, a fim de os entregar a terceiros a troco de quantias monetárias.


*


(…)

(mais se provou quanto ao arguido AA)

41. O certificado de registo criminal do arguido AA averba as seguintes condenações:

a. No âmbito do processo Sumário n.º 874/10.7..., do 1º Juízo de Pequena Instância Criminal de ..., por sentença 06/09/2010, transitada em julgado em 30/09/2010, foi condenado pela prática em 13/07/2010, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo disposto no artigo 347.º, do Código Penal, na pena única de 90 dias de prisão, substituída por 90 dias de multa à taxa diária de € 5,00. Por despacho de 09/01/2017 a pena foi declarada extinta, por prescrição.

b. No âmbito do processo Comum (Tribunal Colectivo) n.º 1344/17.8..., do Central Criminal de ... - Juiz ..., por acórdão de 06/06/2018, transitado em julgado em 09/11/2018, foi condenado pela prática em 26/06/2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, na pena de 5 anos de prisão. Por despacho datado de 10/11/2022 foi concedida a liberdade definitiva e consequentemente declarada extinta a pena, por referência à data de 26/06/2022.

42. À data dos factos o arguido AA residia com o agregado familiar composto pela companheira, de 49 anos de idade e duas sobrinhas do arguido, respetivamente de 27 e 30 anos de idade, vindas da Guiné.

43. O agregado familiar residia num fogo arrendado particularmente pelo valor de 400 euros mensais, de tipologia T2, apresentando condições condignas de habitabilidade e sito em zona urbana da ..., num meio socioeconómico descrito como estruturado, isento de problemática criminal relevante.

44. Emigrado em Portugal desde os vinte e dois anos de idade, AA mantém esta relação afetiva com a atual companheira desde 2021, assumindo uma vivência em união de facto desde essa data, aparentando pautar a dinâmica intrafamiliar como afetuosa, equilibrada e harmoniosa, isentas de conflitualidade.

45. O arguido tem três filhos, respetivamente de 28, 24 e 7 anos de idade, resultantes de três relações afetivas anteriores.

46. Em termos profissionais, à data dos factos, AA encontrava-se inserido profissionalmente, a trabalhar na área da construção civil na empresa S..., Unipessoal, Lda.

47. O arguido desenvolve esta atividade desde 13-08-2020, após ter formalizado contrato a termo certo, renovando a partir de 12-02-2021.

48. O arguido apresenta um percurso laboral pautado por trabalhos continuados na área da construção civil, constatando-se que desde agosto de 2020 apresenta vínculo laboral, detentor de hábitos e rotinas de trabalho, desde essa data.

49. Ao nível económico, à data dos factos, a subsistência do agregado AA pautava-se por ser equilibrada, sendo os rendimentos do casal suficientes para fazer face às despesas, auferindo cerca de 950€ mensais que conjuntamente com os 800€ auferidos pelo desempenho profissional da companheira na área das limpezas do Hospital ..., suficientes face os encargos/despesas fixas do agregado nomeadamente os 400€ de arrendamento do fogo onde residiam e cerca de 100€ de encargos de consumos domésticos.

50. Atualmente e desde a data de entrada do arguido no contexto prisional, a situação económica deste agregado alterou-se, encontrando-se a situação económica deficitária para fazer face às despesas atendendo à reclusão do arguido e ao facto da companheira deste se encontrar em situação de baixa medica, tendo uma redução de 70% sob o valor do seu rendimento, transmitindo necessidade de realizar uma gestão criteriosa para fazer face às despesas.

51. Ao nível de habilitações literárias, AA apresenta-se como um individuo com baixa escolaridade, sendo detentor do 5.º ano de escolaridade, tendo abandonado a frequência escolar a fim de ajudar economicamente a família de origem, dedicando-se a trabalhos agrícolas e criação de animais até iniciar e inserir-se na área da construção civil.

52. Em termos de saúde, não são verbalizadas pelo condenado quais quer problemáticas, nem comportamentos aditivos.

53. Ao nível de relações interpessoais AA apresenta-se como um individuo algo “boémio”, extrovertido e sociável que valoriza o estabelecimento de relações variadas com elementos do género oposto e relações interpessoais de amizade com pares decorrentes da atividade profissional na área da construção civil e com alguns conterrâneos do seu país de origem, transmitindo desconhecer o modo de vida dos mesmos, contudo considera-se que parecer mostrar uma tendência para a ligação a indivíduos com comportamentos pró-criminais.

54. Em termos de perspetivas futuras, AA transmitiu pretender regressar para o agregado familiar, perspetivando a manutenção dos laços afetivos e relacionais da sua situação conjugal bem como continuar a atividade profissional que vinha a desenvolver na área da construção civil, referindo continuar com vínculo com a entidade patronal onde se encontrava.

55. AA encontra-se em situação de prisão preventiva desde 11-03-2023, à ordem do presente processo no Estabelecimento Prisional de ... (EP:..).

56. No contexto prisional, o arguido tem mantido um comportamento de acordo com as regras institucionais, não existindo qualquer registo de infrações disciplinares e encontrando-se integrado laboralmente no Estabelecimento Prisional, desde 24-11-2023 como ....

57. Durante a reclusão, AA tem dispondo de apoio do exterior por parte da companheira, quer ao nível de visitas quer ao nível de ajuda pecuniária.

(mais se provou quanto ao arguido DD)

(…)

Quanto à pena e à determinação da sua medida concreta, o acórdão recorrido ponderou quanto ao ora Recorrente:

No que tange ao arguido AA, em face da factualidade provada, dúvidas não existem de que a conduta deste, dolosa que foi [dolo direto – art. 14.º n.º 1 do Código Penal (CP)], mostra-se contemplada pelo artigo 21.º, na medida em que agiu no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de, através de EE, em 10.03.2023, introduzir em Portugal trinta e uma embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 304,171g., cujas características, natureza e quantidades conhecia, com o fito de os entregar a terceiros, mediante contrapartida económica.

Ademais, em face do acervo fáctico apurado, ponderando de forma conjugada as quantidades de produto estupefaciente envolvidas, a sua natureza – cocaína -, uma das denominadas “drogas duras” que mais nefastas consequências acarreta para a saúde dos consumidores, a utilização de um “correio de droga”, estando em causa o transporte intercontinental de cocaína, por via aérea, concretamente, da Guiné Bissau para Portugal, o grau de organização revelado, resulta inequívoco um modus operandi que não nos transporta para uma conduta de ilicitude diminuída e, como tal, não subsumível à figura penal do tráfico de menor gravidade.

Em face do expendido, não restam dúvidas da verificação, pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico de estupefacientes e pela inexistência de qualquer causa de justificação ou de exculpação, concluindo-se que a conduta do arguido AA, para além de típica, é ilícita e culposa, devendo o mesmo ser condenado, pela prática, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B (cocaína), anexa ao aludido diploma legal, em autoria (art. 26.º, do CP).

(…)

Medida concreta da pena

Feito desta forma o enquadramento jurídico-penal do comportamento dos arguidos, cabe agora valorá-lo no que respeita à determinação da medida da pena.

A moldura penal abstracta prevista na lei para o crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, corresponde a pena de prisão entre 4 a 12 anos.

Importa, agora, proceder à fixação da respectiva medida concreta da pena, o que se fará nos termos equacionados no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja, em função da culpa do agente – que constitui limite máximo inultrapassável -, tendo ainda em conta as necessidades de prevenção geral, necessárias para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar da norma violada em reacção aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem – determinativas do limite mínimo -, acabando a pena concreta por ser encontrada, dentro destes limites, de acordo com as exigências de prevenção especial de ressocialização manifestadas pelo agente, que vão determinar, assim, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de futuros crimes – desenvolvidamente, Anabela Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra, 1995, págs. 545-570.

As necessidades de prevenção geral são prementes, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, atendendo à frequência com que crimes desta natureza vêm ocorrendo e aos grandes malefícios que os mesmos provocam na comunidade.

Na dosimetria da pena atender-se-ão a uma série de factores do caso concreto que não integrem o tipo legal (factores relativos à execução do facto, factores relativos à personalidade do agente e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do Crime, págs. 245-254), nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

No que respeita agora à fixação concreta da medida da pena, a culpa e a prevenção, são os dois vectores em que há que jogar.

Efectivamente, a pena, em caso algum, poderá, como dispõe o artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, ultrapassar a medida da culpa. A culpa funcionará, nesta perspectiva, não exactamente como finalidade das penas mas como limite inultrapassável das mesmas.

Assim sendo, serão as considerações de prevenção que deverão abaixo da medida da culpa determinar a pena (artigo 71º do Código Penal).

O artigo 71.º do Código Penal, enumera de forma exemplificativa os factores a considerar na dosimetria penal, e que hão-de dar satisfação às exigências de prevenção, tendo sempre como ponto de referência a culpa do agente.

Assim, há que ponderar as seguintes circunstâncias:

Grau de ilicitude do facto: que é elevado relativamente ao arguido AA, atentas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos e a razão da sua prática – os lucros fáceis – tendo recorrido ao transporte individual por via aérea, que possibilita a rápida introdução dos estupefacientes nos mercados de consumo.

(…)

Intensidade do dolo: os arguidos agiram sempre com dolo directo e intenso.

Modo de execução e gravidade das suas consequências: o modo de execução do facto, no que tange ao arguido AA, apresenta-se de relevante ilicitude, tendo recorrido ao transporte internacional, em que um terceiro traz cocaína no interior do seu organismo e viaja como se de mero passageiro se tratasse, com o intuito de iludir as autoridades alfandegárias, sendo que as consequências do crime reportam-se ao perigo subjacente e que faz parte dos elementos do tipo de crime em causa, sendo gravosas para a comunidade, especialmente, ao nível da saúde pública.

Condições pessoais do agente e situação económica: são as apuradas, sendo que ambos os arguidos encontram-se presos preventivamente à ordem dos presentes autos.

Passado criminal: ambos os arguidos têm passado criminal, sendo manifestamente o mais expressivo o do arguido AA, pois já foi condenado na pena de 5 anos de prisão por um crime de tráfico de estupefacientes.

Assim sendo, atenta a moldura penal aplicável ponderando, então, todo o circunstancialismo descrito, sopesando as atenuantes e, globalmente, a culpa do arguido AA, sendo esta reconduzível a um juízo valorativo que atende a todos os elementos aduzidos, entende o Tribunal como justa, adequada a fixação de uma pena de prisão, a qual terá de ser necessáriamente efectiva e superior a 4 anos, atendendo, designadamente à medida abstracta mínima do crime de tráfico de estupefacientes, que cometeu nos presentes autos (que é de 4 anos) e ao seu passado criminal, tendo sido anteriormente condenado por crime de tráfico de estupefacientes, o que não terá sido aviso bastante para o afastar da prática de novos crimes.


*


Da reincidência:

Como já se disse, vem imputada ao arguido AA a prática dos factos com a circunstância modificativa comum, que altera a medida abstracta da pena, agravando-a, por funcionamento da reincidência, p. e p. nos artigos. 75.º e 76.º do Código Penal.

Esta agravação alicerça-se no elevado grau de censura de que o delinquente se mostrou passível, uma vez que o novo facto demonstra que a anterior condenação não lhe serviu de prevenção contra a prática de crimes.

Nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal, “é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”.

Acrescenta o n.º 2 do referido normativo que “o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte, tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança, privativas da liberdade”.

Tal como escreveu Figueiredo Dias “é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. É nele, por conseguinte, que reside o lídimo pressuposto material – no sentido de «substancial», mas também no sentido de pressuposto de funcionamento «não automático» - da reincidência” (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p. 268).

Compulsados os factos provados verifica-se estarem reunidos todos os pressupostos para o funcionamento da instituto da reincidência na pessoa do arguido no que se reporta ao crime de tráfico de estupefacientes, já que o pressuposto formal da ocorrência de uma anterior condenação transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso se mostra verificado (tendo ocorrido uma condenação do arguido em 5 anos de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes no processo comum Colectivo n.º 1344/17.8..., tendo o acórdão transitado em julgado em 09.11.2018.), o mesmo ocorrendo quanto ao requisito de que o crime anterior tenha sido cometido há menos de 5 anos, por se ter de descontar neste período o tempo que o agente cumpriu de pena privativa da liberdade - pois que o crime anterior foi por factos praticados entre entre Março de 2017 e 26.06.2017, os factos praticados nestes autos ocorreram na data de 10.03.2023 e o arguido esteve em situação de reclusão de 26.06.2017 até 04.05.2020, data em que foi colocado em liberdade condicional.

Acresce que, conforme já se referiu, se concluiu ainda pela aplicação ao arguido de uma pena de prisão efectiva, pois a moldura abstracta mínima do crime em causa é punido com 4 anos de prisão, pelo que se encontra também preenchido o pressuposto formal da punição por reincidência, quando impõe que o arguido deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses.

Acresce que a pena de prisão em que o arguido foi condenado no âmbito do processo n.º 1344/17.8..., reporta-se não apenas a factos anteriores aos em apreciação nestes autos, como a condenação foi proferida e transitou em julgado em data anterior aos factos aqui em apreciação, sendo ainda de notar que o arguido ali foi condenado também pelo crime de tráfico de estupefacientes, verificando-se assim igualmente que a condenação anterior não serviu ao arguido como suficiente advertência relativamente à prática de novos crimes.

Assim, dúvidas não restam, em face do raciocínio jurídico que já se deixou exposto, que a acção do arguido AA nestes autos no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes preenche o pressuposto formal aludido para a sua punição como reincidente, pelo que se condena o mesmo nestes termos, quanto a tal crime.

Outrossim, face às circunstâncias do caso dos presentes autos e do anterior crime por que foi condenado manifestamente, pode-se concluir que a condenação anterior não lhe serviram de suficiente advertência contra o crime, pelo que, verificados que estão os demais requisitos a que alude o artigo 75º do Código Penal e tal como o Ministério Público o acusa, entende-se que o deve ser condenado como reincidente.

Em caso de reincidência – prescreve o n.º 1 do art. 76.º do Código Penal –, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado.

Destarte, sendo, o crime concretamente imputado ao arguido passa a ser punido com pena de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão.

Isto posto, em face dos critérios supra expendidos, sopesando, globalmente, a culpa do arguido AA, sendo esta reconduzível a um juízo valorativo que atende a todos os elementos aduzidos, entende-se como justa, adequada e necessária a condenação, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, com a circunstância agravante da reincidência, na pena 6 anos de prisão.


***


1. Impossibilidade de suspensão da execução da pena

Decorre das conclusões que o Recorrente não questiona a qualificação do crime pelo qual foi condenado - a autoria material e como reincidente de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º nº 1 do Dec-Lei 15/93 de 22.1, por referência à tabela I-B, anexa àquele diploma legal – nem a sua condenação como reincidente, sendo certo que esta circunstância qualificativa tem o efeito de elevar em um terço do limite mínimo da pena (art. 76º nº 1 do Código Penal).

Do exposto resulta linearmente que com o enquadramento legal assim definido e não questionado em recurso, a pena mínima aplicável ao Recorrente se fixa, como o acórdão recorrido afirma, em cinco anos e quatro meses.

Deste limite mínimo legal para o crime de tráfico de estupefacientes praticado em reincidência resulta imediatamente a impossibilidade legal de se cogitar sequer a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao Recorrente, porquanto o art. 50º nº 1 do Código Penal apenas admite a possibilidade de suspensão quanto a penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos.

2. Medida da pena

Vejamos então a medida da pena porquanto o Recorrente deixa claro na motivação e conclusões que, para além da suspensão da execução da pena, pretende a redução da medida da pena.

(i)

O Recorrente questiona a factualidade assente, apresentando uma versão alternativa ao dizer que o arguido não tinha em seu poder nenhum produto estupefaciente, nem foi visto o falecido a entregar produto estupefaciente ao arguido, invocando ainda que não basta dizer que foi o arguido AA que mandou o falecido EE ir buscar produto à Guiné, é preciso prová-lo o que não aconteceu.

Tendo o Recorrente limitado o seu recurso à questão da pena e não tendo impugnado a matéria de facto, não podem tais questões ser consideradas nesta instância recursiva.

Apenas não seria assim se ocorresse um dos vícios do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal o que, analisada a decisão recorrida, não se verifica:

Efectivamente, a decisão da matéria de facto provada, aparece fundamentada em elementos probatórios bastantes, permitindo a correcta formação de um juízo fundamentador da decisão de direito, não se vislumbrando qualquer contradição entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a factualidade e a motivação, nem ocorrendo qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas. Dito de outro modo, da análise da sentença recorrida resulta uma apreciação livre da prova, “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”2, não se vislumbrando qualquer ilogicidade na convicção do tribunal a quo nem qualquer violação das regras da experiência: Os factos provados e não provados não conflituam entre si, nem com a motivação e com a decisão e são bastantes para fundamentar a qualificação jurídica dos factos e a decisão e a motivação aparece na sequência lógica da factualidade provada e não provada, clarificando e esclarecendo a convicção do tribunal de acordo com as regras da experiência.

As dúvidas sobre a factualidade assente que o Recorrente suscita não têm qualquer suporte probatório, sendo certo que dos factos provados resultam evidentes os contornos da sua conduta.

(ii)

Apesar de algumas incongruências na sua argumentação – tanto afirma que releva “a intensidade do dolo directo e persistente” (I), como refere que “o dolo sendo directo, não é particularmente intenso” (O), como se refere a pena única (H) – os fundamentos apresentados para a redução da pena concreta são o grau de ilicitude baixo, o dolo directo não particularmente intenso, a culpa mediana, a não pertença a uma organização, estar na base da pirâmide do tráfico, a situação de reclusão como marco determinante para inflexão num percurso disruptivo, o apoio familiar e a condição sócio-económica muito modesta.

Nos termos supra transcritos, o acórdão recorrido coloca a ilicitude do facto no patamar do elevado, atendendo à forma de execução e aos motivos determinantes, qualifica o dolo como intenso, o que bem se compreende atendendo à persistência necessária no objectivo de transporte internacional da substância estupefaciente no interior do corpo de outra pessoa e define os parâmetros para definir a sua culpa. Quanto ao posicionamento do Recorrente no seio da actividade de tráfico de estupefacientes, o acórdão recorrido afasta-o claramente da base da pirâmide porquanto o arguido é aquele que recorre ao transporte internacional, em que um terceiro traz cocaína no interior do seu organismo, numa viagem destinada ao tráfico internacional de cocaína; ao considerar assente, como requisito da reincidência que o arguido não interiorizou o significado da anterior condenação por crime da mesma natureza e continuou essa actividade ilícita (factos 31 e 32) é manifesto que não se pode ponderar que desta vez a reclusão seja ou possa ser um marco determinante para inflexão do seu percurso. Também o apoio familiar e as condições sócio-económicas constantes dos factos provados 42 a 57 são circunstâncias expressamente ponderadas nos termos do art. 71º nº 2 do Código Penal, conforme se verifica no referido acórdão.

(iii)

O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias3 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”4 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar5.

Vejamos então:

Como se alcança da fundamentação do acórdão recorrido o tribunal observou os ditames dos art.s 40º e 71º do Código Penal na determinação da medida da pena:

Em função da culpa do agente nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal – que constitui limite máximo inultrapassável (art. 40º nº 2 do Código Penal) - tendo ainda em conta as necessidades de prevenção geral, necessárias para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar da norma violada em reacção aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem – determinativas do limite mínimo, acabando a pena concreta por ser encontrada, dentro destes limites, de acordo com as exigências de prevenção especial de ressocialização manifestadas pelo agente, que vão determinar, assim, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de futuros crimes6.

Considerou devidamente a premência das necessidades de prevenção geral e na dosimetria da pena, os factores do caso concreto que não integrem o tipo legal (factores relativos à execução do facto, factores relativos à personalidade do agente e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto7, nos termos do artigo 71º nº 2 do Código Penal, nos termos supra expostos.

Conclui-se, assim, pelo respeito dos princípios gerais que presidem à determinação da medida da pena e pelas operações de determinação impostas por lei, com a indicação e consideração dos factores de medida da pena, tendo sido sopesadas todas as circunstâncias atendíveis.

Resta, então apreciar se a pena definida pelo tribunal a quo é excessiva, como sustenta o Recorrente, ou se, ao invés, se mostra justa, adequada e proporcional, sendo certo que não sendo caso de manifesta desproporcionalidade8, não se justifica qualquer compressão.

A pena foi fixada em seis anos de prisão, apenas oito meses acima do limite mínimo aplicável ao crime praticado por reincidente (em 1/10 da moldura penal), sendo particularmente impressivo que a conduta do arguido ocorreu num quadro de tráfico internacional de cocaína em que o arguido se serviu de um correio de droga que ingeriu a cocaína para fazer o transporte, o que denota moderação na determinação da medida da pena9.

Está assim plenamente fundamentada, mostrando-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados no art. 71º do Código Penal, não merecendo qualquer censura, a condenação na pena fixada.

III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2024

Jorge Raposo (relator)

Carlos Campos Lobo

António Augusto Manso

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1. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 5/2017, publicado no Diário da República n.º 120/2017, Série I de 23.6.2017.

2. Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1° vol., pg. 211.

3. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197.

4. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1.

5. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639.

6. Anabela Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra, 1995, pg.s 545-570.

7. Figueiredo Dias, ob. cit., pg.s. 245-255.

8. “A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.12.2020, proc. 565/19.3PBTMR.E1.S1)↩︎

9. Em situação com contornos semelhantes, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2013, proc. 156/07.1JAPDL.L2.S1 considerou “inteiramente adequada a pena de 7 anos e 6 meses de prisão”