1. A circunstância de a Requerida ocupar o imóvel com fundamento no contrato de arrendamento celebrado com o Requerido, igualmente comproprietário, não se apresenta como um comportamento violento direcionado à Requerente, ainda que a prive da disponibilidade absoluta do bem de que é comproprietária.
2. Se a situação que a Requerente expõe exclui a possibilidade de se considerar verificada uma situação de esbulho violento, de nada serviria convidar a ora Requerente a alegar factos que o concretizem, pois a mesma apenas faltando à verdade poderia fazê-lo.
3. Não se vislumbrando que a situação permita concluir pela verificação de lesão seja grave e dificilmente reparável do direito da Requerente, não se mostra possível a convolação em procedimento cautelar comum
4. Mostra-se, assim, justificado o despacho de indeferimento liminar da providência cautelar de restituição provisória de posse.
(Sumário elaborado pela relatora)
I. Relatório
AA intentou procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, contra os Requeridos BB e CC, pedindo que, sem citação nem audiência dos Requeridos:
a) seja ordenada a restituição provisória da posse à Requerente da fração autónoma identificada no artigo 2º da petição, determinando-se a desocupação imediata da fração pela 2ª Requerida; e
b) para assegurar o cumprimento do procedimento cautelar, serem os requeridos condenados solidariamente no pagamento da quanta diária de € 300,00, a tulo de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento da decisão que vier a ser proferida no âmbito da presente providência.
Mais pediu, a Requerente, que seja deferido o pedido de inversão do contencioso.
Alegou, em resumo, que a Requerente e o 1º Requerido adquiriram, no ano de 2000, ainda no estado de, respetivamente, solteira e divorciado, a fração autónoma em causa nos autos, sendo, portanto, comproprietários da referida fração autónoma, a qual desde que a adquiriram sempre usaram e fruíram tanto em conjunto como individualmente, mantendo na sua esfera jurídica a posse da mesma de forma pública e pacífica, sem qualquer oposição.
Acrescentou que em 20 de Outubro de 2023, ainda quando Requerente e 1º Requerido partilhavam a mesma habitação, veio aquela a ter conhecimento de que, sem o seu consentimento, a fração identificada no artigo 2º do presente requerimento estava a ser ocupada por pessoas desconhecidas, após o que veio a descobrir que o ora 1º Requerido, também sem o seu conhecimento e o seu consentimento, tinha procedido ao arrendamento da fração supra identificada a favor da 2ª Requerida, tendo, mais uma vez o 1º Requerido sem o seu consentimento, efetuado o registo do respetivo contrato de arrendamento no portal das finanças, na página da ora requerente, que tentou proceder à cessação, também através da sua página no portal das finanças, do contrato de arrendamento em questão mas, por razões que desconhece, não o conseguiu fazer pelo que teve de, em duas ocasiões distintas, proceder a agendamento presencial junto do serviço de Finanças, por forma a fazer cessar o referido contrato de arrendamento que, também em duas ocasiões distintas, foi celebrado pelo 1º Requerido com a 2ª Requerida, sempre sem o consentimento e conhecimento da Requerente, tudo conforme melhor resulta dos docs. 3 e 4, que juntou.
Mais referiu que o 1º Requerido procedeu à transferência para a conta bancária da Requerente de quantias monetárias que, alegadamente, respeitariam a metade das rendas do contrato em questão, tendo, no entanto, a mesma procedida sempre à devolução de tais quantias àquele Requerido, pois não aceita nem reconhece o referido contrato de arrendamento e que em 25 de Janeiro de 2024 deslocou-se ao Algarve e, dirigindo-se aquela sua fração, constatou que se encontravam pessoas no seu interior e que a fechadura da mesma tinha sido mudada, sem que lhe tivesse sido comunicado ou pedido autorização para tal evento, o que impediu/impede a sua entrada na mesma, situação que se mantém até hoje.
Concluiu que o arrendamento de um bem indiviso, como é o caso, apenas se considera válido quando todos os comproprietários manifestem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento, requisito esse que, conforme já alegado, não se verificou nem verifica, pois a Requerente nunca deu o seu assentimento, expresso ou tácito, para a referida celebração, pelo que sendo inválido não havendo, por conseguinte, qualquer título válido que legitime a ocupação da, referida fração, vendo-se a Requerente privada da sua posse, se verificam os requisitos de procedência do procedimento cautelar de que lançou mão.
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Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a providência requerida, nos termos do artigo 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, com fundamento na sua manifesta improcedência.
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Inconformada a Requerente interpôs recurso, pedindo a revogação da decisão e a substituição por outra que formule convite para proceder ao aperfeiçoamento da sua petição inicial e determine o prosseguimento dos autos, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A - Efetuada a análise circunstanciada e pormenorizada da decisão ora recorrida nos termos supra descritos e no que ao objeto do recurso respeita, padece a douta sentença de um vício que resulta na sua nulidade, por aplicação do nº 1 al. d) do art. 615º do C.P.C., porquanto,
B - nos termos do referido preceito legal, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
C – A ora recorrente intentou o procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse contra os requeridos, porquanto, sendo comproprietária da fração autónoma designada pela ... correspondente ao Rés do Chão – Apartamento ...64, para habitação, do prédio urbano em propriedade horizontal sito no Empreendimento ..., Lote ..., no lugar de ..., na freguesia ..., concelho ... e distrito ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo ...30 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...30/...,
D – veio a constatar que os requeridos celebraram entre si, sem o seu conhecimento e sem o seu consentimento, contrato de arrendamento respeitante à referida fração autónoma,
E – através do qual o requerido BB arrendou a fração em questão à requerida CC.
F – Os requeridos mudaram a fechadura da fração aludida, impedindo a requerente de aceder à mesma.
G – Na sequência dos atos praticados pelos requeridos, a ora recorrente está desapossada daquele seu bem;
H – Verifica-se haver esbulho por parte dos requeridos, uma vez que a recorrente está privada do exercício de retenção ou fruição do referido bem, dado ter sido efetuada por aqueles a mudança da fechadura da fração autónoma de que é comproprietária, que a impede de aceder à sua fração autónoma,
I – esbulho esse que, segundo a jurisprudência dominante, é caracterizado como violento, porquanto
J - o acto de mudança de uma fechadura constitui um ato violento.
K – O douto Tribunal a quo, entendendo que “… na petição inicial não chegaram a ser alegados factos bastantes para o preenchimento do requisito “esbulho violento” por banda dos Requeridos, de verificação indispensável para a viabilidade do procedimento cautelar especificado de restituição da posse”, indeferiu-a liminarmente.
L – Impunha-se, contudo, ao douto Tribunal a quo atuar de maneira diferente, porquanto se os factos alegados pela recorrente não eram “bastantes” para o requisito esbulho violento, deveria ter convidado a recorrente a aperfeiçoar a sua petição inicial e não a indeferir liminarmente.
M – A recorrente invocou factos que preenchiam os três pressupostos exigidos para o decretamento do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, isto é, a posse, o esbulho e a violência, cfr. artºs 1279º do Código Civil e 377º do Código do Processo Civil, designadamente:
N – a recorrente é legítima comproprietária da fração autónoma em questão e, desde 2000, ano em que a adquiriu em conjunto com o primeiro requerido, sempre a usou e fruiu, em conjunto com aquele, mantendo na sua esfera jurídica a posse da mesma;
O – a fração autónoma de que é comproprietária está a ser ocupada/utilizada pela segunda requerida, com permissão do primeiro requerido, e sem autorização e consentimento da recorrente, a qual se encontra impedida de aceder ou utilizar a mesma;
P – Os requeridos, diretamente ou por interposta pessoa, procederam à mudança da fechadura da referida fração autónoma,
Q – sendo tais factos insuficientes e tendo o douto Tribunal a quo indeferido logo liminarmente a petição inicial, em vez de convidar a recorrente a aperfeiçoar aquela sua peça processual, cometeu “…uma nulidade que se reflete na própria sentença e que acarreta a nulidade da mesma” (Ac. de 14/09/2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo nº 8032/21.9T8LSB.L1.6, disponível em www.dgsi.pt).
R – O convite para o aperfeiçoamento dos articulados não é um ato discricionário, mas antes um poder-dever, tal como resulta do artº 590º, nº 2 al. b) e nº 4 do Código de Processo Civil.
S - Por todo o exposto, deverá ao presente recurso ser concedido provimento e, consequentemente, ser a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo considerada nula, por violação do estatuído na alínea d) do nº 1 do artº 615º do Código de Processo Civil,
T – devendo, consequentemente, ser a mesma substituída por convite endereçado à recorrente para proceder ao aperfeiçoamento da sua petição inicial apresentada no âmbito do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse apresentado, prosseguindo os seus legais termos, como é de inteira Justiça.
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II. Questões a decidir.
São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões – artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil - salvo questões de conhecimento oficioso - artigo 608.º n.º 2 do mesmo diploma:
- da falta de alegação de esbulho violento enquanto pressuposto da restituição provisória da posse e da invocada nulidade da decisão por omissão de despacho de aperfeiçoamento.
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III. Fundamentos de Facto
Os factos provados com interesse para a decisão são os que constam do relatório elaborado, onde se faz menção à alegação que consta do requerimento inicial.
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IV. Fundamentação jurídica.
Estamos no âmbito de um procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, a propósito do qual se dispõe, no artigo 377.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (adjetivando-se o que consta dos artigos 1278.º e 1279.º do C. Civil) que “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”
Por seu turno o artigo 379.º do Código de Processo Civil permite, mesmo que não tenha havido violência, que o possuidor perturbado no exercício do seu direito possa lançar mão, nos termos gerais, do procedimento cautelar comum, isto é, desde que se verifiquem os requisitos deste.
São assim requisitos para a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse, a alegação e prova de factos que constituem a posse, a ofensa dessa posse denominada de esbulho e a violência.
No que se refere à posse, diz-nos o art.º 1251.º do Código Civil que a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, sendo que, nos termos do artigo 1252.º n.º 2 do mesmo diploma, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa.
Há esbulho sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, do exercício de retenção ou fruição do objeto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício.
O artigo 1279.º do Código Civil, com a epígrafe “esbulho violento” estabelece: “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à posse, sem audiência do esbulhador.”
Acresce o disposto no artigo 1261.º do Código Civil que no seu n.º 2, considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física ou de coação moral, nos termos do artigo 255º do Código Civil.
De acordo com o estabelecido neste último artigo, a coação moral representa a ameaça de um mal causador de receio, podendo a ameaça respeitar à pessoa, à honra ou à fazenda, do possuidor ou de terceiro.
A violência tanto pode dirigir-se a pessoas como a coisas. Contudo, a violência dirigida às coisas apenas será relevante para efeitos de restituição provisória de posse, a partir do momento em que, ainda assim, visa o possuidor, colocando-o numa situação de intimidação ou constrangimento (coação).
A este respeito, escreveu-se no recente Acórdão do STJ de 9 de novembro de 2022, proferido no proc. 150/22.2T8PTG.E1.S1 in www.dgsi.pt:
“É conhecida a divergência, na doutrina e na jurisprudência, sobre o exato sentido do conceito de “violência” (no esbulho) e as duas respostas (divergentes) referidas pelas Instâncias: a que considera que para haver violência tem a mesma que ser exercida sobre a pessoa do possuidor; e a que considera que basta a violência exercida sobre a coisa, quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. E também alinhamos pela resposta menos exigente e restritiva, ou seja, que igualmente preenche o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa. A tal propósito – para justificar em que termos a violência seria relevante – escrevia o Prof. Manuel Rodrigues (in a posse, pág. 365 e ss):
“(…) pode perguntar-se se, em face do direito português, só é de atender à violência contra as pessoas ou também à violência contra as coisas; se só à violência física, ou também à violência moral.
A violência tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas. A história do art. 494.º do CPC de 1876, permite-nos fazer esta afirmação.
O projeto de Seabra não definia violência nem indicava os seus elementos; mas no primeiro projeto da Comissão Revisora, art. 366.º: «quer fosse exercida contra as coisas quer contra as pessoas». (…)
O pensamento que dominava os redatores do Código era, pois, o que podia haver violência em qualquer dos casos. É certo que aquelas declarações foram depois suprimidas, mas a supressão foi apenas provocada pelo temor das definições.
Também o novo CPC nada diz, sendo de manter o pensamento tradicional. A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras. (…)
A violência tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças.
Efetivamente, embora o Código não o diga expressamente, não parece poder duvidar-se que a violência moral é suficiente para dar direito à ação de esbulho violento.
Em primeiro lugar, desde muito cedo se considerou a ameaça como suficiente para a violência; em segundo lugar, é o próprio Código Civil que ao definir coação no art. 666.º diz que esta pode consistir em fortes receios (de danos)”.
Em função de tais ensinamentos, passou a considerar-se na jurisprudência que mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência.
E é neste ponto da discussão/divergência que o critério proposto pelo Prof. Lebre de Freitas – segundo o qual “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (in CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed., pág. 78) – se nos afigura inteiramente pertinente; e consentâneo com a ideia de que também a coação moral – tendo presente que também é posse violenta a que foi obtida com coação moral (cfr. 1261.º/2 e 255.º do C. Civil) – preenche a violência, ou seja, integrará atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda” – cfr. art. 255.º/2 do C. Civil).”.
Feitas estas considerações e reportando agora ao caso concreto, já se vê, tal como entendeu a decisão recorrida que os factos alegados não são suficientes para que possa dizer-se que houve um esbulho violento por parte de qualquer dos Requeridos, através do qual privou o Requerente da sua posse sobre o imóvel de que é comproprietária.
A circunstância de a Requerida ocupar o imóvel com fundamento no contrato de arrendamento celebrado com o Requerido, igualmente comproprietário, não se apresenta como um comportamento violento direcionado à Requerente, ainda que a prive da disponibilidade absoluta do bem de que é comproprietária.
Note-se que a alegação da Requerente consubstancia a transmissão da detenção do imóvel por um dos comproprietários com base num contrato de arrendamento, pelo que nenhum ato de esbulho violento tal alegação traduz. E no contexto de celebração de contrato de arrendamento, a mudança de fechadura constitui um ato normal no tráfego jurídico, não consubstanciando ele próprio qualquer esbulho violento, mesmo na hipótese de invalidade do contrato de arrendamento.
Tal como se entendeu na decisão recorrida, não se vislumbra nos factos alegados, na situação exposta pela Requerente, a existência de uma qualquer ameaça ou coação de qualquer dos Requeridos, pois a privação da fruição da habitação em causa não ocorreu num contexto de exercício de violência física ou psíquica contra a pessoa ou bens do Requerente.
Pode até ponderar-se que acreditando a Requerida deter a qualidade de legítima locatária do imóvel (v.g. por força de qualquer das situações previstas no artigo 1024º do Código Civil), o gozo da coisa poderá surgir-lhe como o exercício dos direitos referidos no artigo 1031º do Código Civil.
Assim, se pode ser ajustado considerar que o Requerente se encontra desapossada por ato atribuível aos Requeridos, o certo é que tal parece ocorrer no contexto da celebração de um contrato de arrendamento, ao qual é alheio qualquer conceito de esbulho violento, sendo certo que só este pode fundamentar a restituição provisória da posse nos termos do artigo 377 do Código de Processo Civil, o que se compreende, até porque o decretamento da providência tem lugar sem a audiência do esbulhador.
Na verdade, a diminuição das garantias de defesa da parte contrária traduzida na omissão da observância prévia do princípio do contraditório e a não exigência de prejuízo – que constitui requisito para as restantes providências cautelares – encontra fundamento na circunstância de ter existido a prática de violência, a que urge pôr termo, e no sentido de desencorajar tais atos.
E não se diga que por assim se concluir se impunha ao Tribunal Recorrido a prolação de despacho de aperfeiçoamento, pois a própria natureza da situação relatada pela Requerente exclui a existência de qualquer esbulho violento.
Não se ignora que o comando do artigo 590º nº4 do Código de Processo Civil, sendo uma incumbência do juiz, traduz um seu dever funcional, estando assim afastada quanto a ele qualquer discricionariedade do tribunal, ou seja, qualquer ponderação do seu exercício ou não exercício segundo critérios de oportunidade ou de conveniência e que a consequência da omissão daquele despacho de aperfeiçoamento, só materializada na sentença por via de nesta se considerar decisiva para a decisão de improcedência a omissão ou incompletude de factualidade que podia através dele vir a ser introduzida, não integra uma nulidade processual de per si, mas uma nulidade da decisão resultante da omissão daquele despacho, na medida em que nela foi dada relevância à deficiência do articulado e se julgou improcedente o pedido nele formulado precisamente com fundamento naquela deficiência, nulidade de decisão que ocorre por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil), pois o tribunal conhece de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não pode conhecer.
Porém, certo é que o despacho de aperfeiçoamento só se justifica ou impõe quando se vislumbra a possibilidade de a factualidade não alegada o vir a ser na sequência de convite nesse sentido; já não quando a situação relatada, em si, exclui a verificação dos pressupostos de procedência da pretensão, como é o caso.
Por outras palavras, se a decisão que a Requerente expõe exclui, como se viu, a possibilidade de se considerar verificada uma situação de esbulho violento, de nada serviria convidar a ora Requerente a alegar factos que o concretizem, pois a mesma apenas faltando à verdade poderia fazê-lo.
Nessas circunstâncias estaríamos perante um claro ato inútil, desde logo proibido pelo artigo 130.ᵒ do Código de Processo Civil.
De resto, a ora Recorrente não faz referência a quaisquer factos que, tendo ficado por alegar inicialmente, pudessem vir agora a ser alegados para integrar o pressuposto em falta.
Por outro lado, para que pudesse ponderar-se a convolação para um procedimento cautelar comum, necessário seria que os factos alegados pela Requerente revelassem uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, como resulta do disposto no artigo 362.º n.º 1 do Código de Processo Civil - o “periculum in mora”, requisito primordial das chamadas providências cautelares não especificadas que tem de ser alegado e provado, em termos de convencer o tribunal de que a demora de uma decisão - a obter através da acção competente - acarreta um prejuízo a que se pretende obviar com o procedimento cautelar.
Ora, se é certo que na situação em apreço e em face dos factos alegados, se verifica que o comportamento dos Requeridos é suscetível de causar prejuízo à Requerente, quando lhe impede a total disponibilidade do imóvel de que é comproprietária certo é que, como supra se referiu, a lei não se contenta com o mero perigo de lesão do direito, antes exige, por um lado, que tal lesão seja grave e, por outro lado, que seja dificilmente reparável.
E no caso, os factos alegados não permitem concluir pela verificação de tal requisito, o que sempre constituiria um obstáculo à convolação pretendida - dos mesmos não resulta a existência de um perigo iminente que importe remover desde já, e que não se compadeça com o decurso da ação principal, ou que do decurso do tempo podem resultar danos graves e de difícil reparação para a Requerente.
Em suma, a decisão recorrida não merece qualquer censura.
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V. Decisão:
Em face do exposto, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pela Requerente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Évora, 2024-06-06
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
José António Moita