IMPEDIMENTO
ADVOGADO CONSTITUÍDO
TESTEMUNHA
Sumário

I - Apesar da lei não consagrar expressamente a existência de tal impedimento, é implícito e decorre da regulamentação do Estatuto dos Advogados, a impossibilidade de a mesma pessoa assumir, simultaneamente o estatuto de advogado de uma das partes e de testemunha.
II - Na situação em que a pessoa que é indicada como testemunha na petição inicial, vem a ser mandatada como advogada para patrocinar a parte contrária na contestação, ocorre um conflito entre dois direitos - o direito à prova, designadamente através de testemunhas e o direito à livre escolha de mandatário, consagrado no artigo 67º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
III - Tratam-se de dois direitos que radicam no mesmo direito constitucional, o direito à tutela jurisdicional efetiva contido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, devendo o conflito ser resolvido recorrendo-se às regras estabelecidas no art. 335º do C.Civil, ponderando-se as situações concretas do caso.
IV - Aquela situação, porém, não é suscetível de configurar irregularidade de mandato, com os efeitos do art. 48º do CPC, não devendo por isso ser afastada do processo a advogada que, apesar de ter sido indicada como testemunha, aceitou o patrocínio dos réus.

Texto Integral

Proc. n.º 5771/23.3T8MAI-A.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível da Maia - Juiz 3

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízas Desembargadoras Adjuntas:

Maria da Luz Seabra

Lina Castro Baptista

SUMÁRIO:

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Acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:

Nesta ação declarativa de condenação com processo comum em que são autores AA, divorciada, contribuinte fiscal ...91, residente na Estrada ..., ... ... ..., ... e BB, divorciado, contribuinte fiscal ...50, residente na Alameda ..., ... ... e Rés CC, divorciada, contribuinte fiscal ...15, residente na Rua ..., ..., ... ... e DD, solteira, maior, contribuinte fiscal ...15, residente na Rua ..., ..., ... ..., viram os Autores, apresentar resposta à contestação, tendo arguido a IRREGULARIDADE DO MANDATO, dizendo em suma que a Dra. EE, foi quem procedeu ao registo da cessão de quotas entre as RR., contrato cuja validade se discute nesta ação, tendo os AA, por isso apresentado aquela senhora advogada como testemunha, na p.i.

As RR., não obstante, apresentaram contestação subscrita por aquela advogada, que é testemunha arrolada pelos AA. e que praticou um ato de registo, que se mostra essencial para a boa decisão da causa.

Do mesmo modo que quem for mandatário judicial num processo está impedido de nele ser também testemunha, quem for testemunha num processo está impedido de nele poder ser em simultâneo mandatário judicial.

Pedem que seja reconhecida a irregularidade da Contestação apresentada, porquanto subscrita por Advogada/ testemunha, arrolada na PI, devendo, as RR. ser notificadas para, em prazo a definir pelo Tribunal, sanarem a irregularidade, sob pena de, não o fazendo, ficar sem efeito a defesa apresentada.

Notificadas para se pronunciarem sobre esta questão, vieram as Rés alegar que o facto de ter sido indicada como testemunha a sua mandatária, tal não a impede, enquanto advogada, de aceitar o patrocínio das RR. nesta causa.

Acresce que, a mandatária é advogada das RR. em data muito anterior a propositura desta ação.

Que um advogado constituído nos termos do artigo 92º. nº 2 e 3 do EOA tem o dever de sigilo profissional e porque tem o dever de sigilo profissional, não pode ser indicado como testemunha no processo judicial.

Que o que as AA pretendem comprovar através de depoimento testemunhal da advogada e que está descrito no artigo 4º da réplica como sendo “(…)nomeadamente quem procedeu à celebração do contrato àquele registo e os termos do mesmo” é absolutamente ineficaz, pois a celebração de um contrato é feita pelas partes contratantes, e o registo deste contrato é um ato meramente formal e o seu conteúdo revestido da forma legal é a própria materialização da prova.

Logo, a advogada das RR sempre pôde assumir o patrocínio desta ação e os AA nunca poderiam ter indicado a advogada das RR como testemunha, pelo que, concluem, não há irregularidade no mandato.

Veio a ser proferido despacho, datado de 23.4.2024, que decidiu a questão da seguinte forma: “(…) Pelo exposto, consideramos que não poderia a Il Mandatária Dr.ª EE assumir o mandato das Rés, por estar impedida em virtude de ter sido arrolada primeiramente como testemunha na petição inicial, pelo que se determina a notificação das Rés para, em 10 dias, constituírem novo mandatário sob pena de ficar sem efeito a defesa.”

Inconformadas, as RR CC, e DD, interpuseram o presente recurso de APELAÇÃO, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. O despacho em crise determinou a substituição da mandatária das Apelantes, sob o fundamento de que o mandato iniciou-se em data posterior a data em que foi a mesma arrolada como testemunha na PI dos autores, ora Apelados.

2. O despacho não cita a data do início do mandato, de forma que as Apelantes não sabem qual a data que a Exma. Sra. Juíza entendeu como sendo a data do início do mandato.

3. A ação foi proposta em 07 de Novembro de 2023.

4. As Apelantes, em sede de contestação, juntaram as procurações forenses, com a data de 28 de Agosto de 2023, o que comprova o mandato de acordo com o artigo 43º, alínea a), do CPC.

5. Não houve qualquer alegação de falsidade das procurações que foram juntas.

6. Os Apelados insistem na tese de que uma vez tendo sido arrolada como testemunha na PI, a advogada não poderia ter assumido o patrocínio desta ação.

7. As Apelantes informaram no processo que a advogada estava mandatada em data bem anterior ao início desta ação e que já tinha entrado diversas vezes em tratativas com os Apelados no exercício de seu mandato forense, inclusivamente sobre a questão da cessão de quotas objeto desta ação.

8. Era, pois, de conhecimento dos Apelados e de seu mandatário que as Apelantes eram clientes da advogada desde 28 de Agosto de 2023 para os assuntos que se opõem nesta ação, bem como em outros.

9. Que quem é advogado da parte não pode ser testemunha, principalmente em favor da parte contrária, em assuntos que ambos se contrapõem.

10. Que o despacho provocou a cessação do mandato e a admissão da advogada como testemunha da parte contrária, com efeitos extra-processuais prejudiciais às Apelantes.

11. Que por força do despacho, agora: A advogada da parte agora deverá depor contra a parte. A advogada da parte, porque agora é testemunha da parte contrária, ou seja, deporá contra a parte em favor de quem estava mandatada, obviamente terá que renunciar ao mandato em todos os processos judiciais e extrajudiciais em que atua até o momento em favor de suas clientes, pois quem é testemunha não pode ser mandatário.

12. Que o despacho se traduz num abuso de direito, pois fere o artigo 67º nº 2, do EOA, quando condiciona a escolha de quem poderia ser a advogada das Apelantes.

13. A ausência da data para o início do mandato no despacho, bem como a norma legal em que se baseia a decisão para referir que o mandato é posterior ao oferecimento da testemunha gera a nulidade da decisão, pois faltam-lhe fundamentos de facto e de direito, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea b), do CPC.

14. Que, uma vez tendo sido surpreendidas pelo teor do despacho, juntam ao recurso uma prova de que Apelante e Apelado já litigam em data anterior a data da propositura desta ação, sendo uma das Apelantes representada por sua mandatária e um dos Apelados representado por seu mandatário que substabeleceu na pessoa do mandatário atual, conforme documentos 01 e 02.

15. Concluindo, as Apelantes discordam do despacho que suspendeu a instância para que constituam novo mandatário, sob o argumento de que a mandatária das mesmas somente assumiu o mandato após ser arrolada como testemunha da parte contrária, sem qualquer fundamentação de facto e de direito.

16. Entendemos que os Apelados nunca poderiam ter arrolado a mandatária das Apelantes como testemunha, provocando o seu afastamento enquanto advogada da outra parte, o que constitui uma ilegalidade e um procedimento anti-ético dentro da advocacia, merecendo repulsa e vedação, nos termos do artigo 67º, nº 2, do EOA.

17. Por todo o exposto, o douto despacho recorrido fez uma incorreta apreciação e aplicação da lei, nomeadamente do disposto nos artigos 43º, alínea a), 44º e 45º nº 1 do CPC e artigo 67º, nº 2 do EOA, além de estarem em falta os fundamentos de facto e de direito, sendo nulo nos termos do artigo 615º, nº1, alínea b), do CPC.

Nestes termos, e nos mais de direito, sempre do douto suprimento de V. Ex.as, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso e ser declarado nulo o despacho recorrido, substituindo-se por outro com as legais consequências, como é de inteira JUSTIÇA!”

Não foram juntas contra-alegações.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata em separado e efeito suspensivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

As questões decidendas delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se a decisão recorrida é nula e aferir a regularidade do patrocínio judiciário.

III-FUNDAMEN TAÇÃO:

Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais mencionados supra do relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

4.1 Da Nulidade

Alegam as Apelantes que a ausência da data para o início do mandato no despacho, bem como a norma legal em que se baseia a decisão para referir que o mandato é posterior ao oferecimento da testemunha gera a nulidade da decisão, pois faltam-lhe fundamentos de facto e de direito, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea b), do CPC.

Vejamos.

Como é sabido, os vícios determinantes da nulidade da sentença (decisão) correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c) CPC. que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Esta nulidade remete para o princípio da coerência lógica da decisão uma vez que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, i.e., a decisão proferida não pode seguir um caminho diverso daquele que apontava a linha de raciocínio plasmado nos fundamentos. Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º nº 3 do CPC e, por outro, pelo facto da decisão dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor).

Não há porém, que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, já as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal).

Neste sentido, o Prof. Antunes Varela[1] salienta que “…não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário …”.

Ora no despacho recorrido, parte-se do seguinte pressuposto:“A questão que se coloca é a de saber se a Il. Mandatária Dr.ª EE poderia assumir o mandato das Ré depois de ter sido oferecida como testemunha.”

E mais à frente “No caso dos autos, a Il. Mandatária foi constituída depois de ter sido arrolada como testemunha”.

Constata-se, porém que as procurações em que as Rés conferem poderes forenses à Dr.ª EE que foram juntas com a contestação, para esta as patrocinar, mostram-se datadas de 28.8.2023, ou seja foram outorgadas em data anterior à data da propositura desta ação, que ocorreu em 7.11.2023.

Dispõe o artigo 67.º do Estatuto da Ordem dos Advogados o seguinte:

“1 - Sem prejuízo do disposto no Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores, considera-se mandato forense:

a) O mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz;

b) O exercício do mandato com representação, com poderes para negociar a constituição, alteração ou extinção de relações jurídicas (…)”

O contrato existente entre o advogado e o cliente é o de mandato com representação, quer haja ou não procuração constante de instrumento, o qual só é indispensável nos termos do artigo 262.º nº. 2, do Código Civil, quando tenha de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador tenha de realizar.

O mandato é um contrato, a procuração é um ato unilateral. O primeiro impõe a obrigação de celebrar atos jurídicos por conta de outrem. O segundo confere o poder de os celebrar em nome de outrem.

O que, efetivamente, origina os poderes existentes no mandatário não é a procuração; a procuração mais não é que o meio adequado para exercer o mandato.

Ora, compulsados os autos, constata-se que as Rés constituíram a Dr.ª EE como sua mandatária forense, através das procurações outorgada a 28.8.2023, como das mesmas consta.

Do exposto resulta que, ao contrário do que ficou a constar no despacho recorrido, o contrato de mandato, conferido através da procuração forense é anterior à presente ação judicial.

Porém, não deixa de ser verdade que, no âmbito do processo judicial instaurado pelos AA, o patrocínio das Rés pela Dr.ª EE, que naquela qualidade subscreve a contestação só surge, naturalmente, após a entrada em juízo da petição inicial, onde aquela foi previamente indicada como testemunhas pelos Autores.

Daí não ser o critério da anterioridade, o critério decisivo para responder à questão que se coloca, que é a de saber se as Rés podiam ou não estar patrocinadas nesta ação, por aquela advogada.

De qualquer forma, inexiste o vício apontado, já que os fundamentos da decisão não estão em oposição com a decisão, nem ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

A constatação do apontado “erro”, quanto à data do início do contrato de mandato forense não se mostra assim suscetível de conduzir à nulidade do despacho como pretendem as apelantes, podendo quando muito, conduzir a eventual “ilegalidade” da decisão, o que terá de ser apreciado no contexto do pedido de revogação da decisão feita pelas apelantes, apreciação que faremos de seguida.

4.2 Direito à prova versus o direito à livre escolha de mandatário

Não existindo norma expressa que consagre o impedimento de advogado constituído por uma das partes poder ser indicado como testemunha, com impedimento a depoimento, Augusto Lopes Cardoso, na obra intitulada “Do Segredo Profissional na Advocacia”,[2] a este respeito foi defendeu o seguinte: “Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.

Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a ação, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a ação e antes deve ser aferida objetivamente. Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos.

Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara. Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da ação principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.).”.

Na ausência de norma expressa, defende-se a incompatibilidade estatutária do advogado poder prestar depoimento enquanto testemunha no processo no qual esteja constituído como advogado.

Aliás esta incompatibilidade de estatutos processuais tem também um afloramento na prova pericial, quando se prevê o impedimento de intervir como perito de quem haja de depor como testemunha (vejam-se os artigos 470º, nº 1 e 115º, nº 1, alínea h), ambos do Código de Processo Civil).

Nesse pressuposto, o tribunal recorrido, entendeu ser de afastar a advogada constituída pelas RR do patrocínio das mesmas, por aquela ter sido anteriormente indicada no processo como testemunha, concluindo que aquela incompatibilidade estatutária configura uma situação de irregularidade de mandato.

Pode ler-se na decisão recorrida o seguinte: “Ora, no caso dos autos, consideramos que seria posto em causa o direito à prova se admitíssemos que as Rés constituíssem como mandatária uma pessoa anteriormente arrolada como testemunha pelos Autores, na medida em que por essa via impediriam a prestação de depoimento.” E nessa medida consideramos que não poderia a Il Mandatária Dr.ª EE assumir o mandato das Rés, por estar impedida em virtude de ter sido arrolada primeiramente como testemunha na petição inicial, pelo que se determina a notificação das Rés para, em 10 dias, constituírem novo mandatário sob pena de ficar sem efeito a defesa.”

Resulta assim deste despacho que o tribunal atendeu a pretensão dos AA de ver afastado o patrocínio da advogada das RR, com fundamento no “direito à prova” dos AA, que doutra forma seria violado.

Constata-se porém do teor do despacho que, aquele “direito á prova” dos AA, foi considerado genericamente, já que não foi aferida a eventual essencialidade daquele meio de prova para a demonstração do direito indicado pelos autores e também naquele despacho não se atentou no direito conflituante das RR à livre escolha de advogado, sendo que ambos os direitos (direito à prova e direito à livre escolha de mandatário), bebem da mesma “fonte” constitucional - o direito à tutela jurisdicional efetiva contido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, evidenciam-se na situação em apreço, dois direitos em conflito, - direito à prova versus o direito à livre escolha de mandatário - ambos se inserindo no âmbito do direito constitucional plasmado no art. 20º da CRP, que garante a todos os cidadãos, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente legítimos (n.º 1), determinando ainda que esse direito fundamental possa ser efetivamente exercido através de um processo equitativo (n.º 4).

Internacionalmente encontra-se, igualmente, consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem relativo ao direito a um processo equitativo, nomeadamente na alínea d) do nº3 que estabelece que o acusado tem direito a “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação”.

Embora esta norma se encontre pensada para efetivar as garantias dos acusados em processo penal, no âmbito do qual devem existir maiores garantias contra abusos das autoridades, deve ser transposto para o processo civil, pois sem a possibilidade de se fazer prova dos factos alegados, nunca existiria efetiva aplicação do direito, nem a garantia de um processo equitativo.

Os Autores, em cumprimento do disposto no art. 552.º nº. 2 do CPC, pretendendo fazer prova do direito que se arrogam em juízo, apresentaram o rol de testemunhas, na petição inicial. Está assim em causa o direito à prova, designadamente através de testemunhas.

No sentido em que o direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova”, ver Nuno Lemos Jorge, que escreve: “Que a garantia do direito à prova é outra face da garantia do direito subjetivo é por demais evidente. Sem a possibilidade de provar os factos constitutivos de um direito, a previsão deste não passará de uma boa intenção do legislador.”[3]

“No processo civil deve ser admitido como prova todo o meio que for capaz de demonstrar, através d aperceção, raciocínio ou intuição, a veracidade de determinado facto, de modo a formar a convicção do julgador, devendo ele apreciá-las livremente (nº 5 do art.º 607º do CPC) – exceção aos casos em que a lei estabelece que determinados factos só podem ser provados através de determinados meios de prova (como por exemplo, a proibição de utilização da prova testemunhal do art.º 393º do C.C. e para os contratos que careçam de determinada forma”.[4]

O artigo 413ºdo CPC consagra o chamado princípio da aquisição processual ao indicar que “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas”.

Em processo civil, as partes podem usar de meios de prova que não sejam vedados pela lei, nem por convenção sobre a prova.[5]

O direito à prova não é um direito absoluto, estando sujeito a limites e à possibilidade de ser derrogado no confronto com outros direitos entendidos como superiores, baseado na necessidade da proteção de direitos de terceiros.

Assim, conclui Lemos Jorge que: “Da jurisprudência relatada resulta, em apertada síntese, um direito à prova que, enquanto parte do direito à tutela jurisdicional efetiva, admite alguma compressão face a outros direitos ou interesses preponderantes, designadamente aqueles que se ligam à certeza e segurança jurídicas. Porém, não se admitirá a total ablação da possibilidade de fazer uso de um meio de prova por uma pessoa, quando de tal restrição resultar a impossibilidade prática da prova de factos constitutivos do seu direito. Na necessária ponderação de interesses, em face do caso concreto, o papel do julgador será decisivo.”

Ora, por parte das Rés[6] existe um direito, que tem consagração expressa no Estatuto da Ordem dos Advogados, - o direito à livre escolha do mandatário judicial – o qual, de igual maneira radica no mesmo direito constitucional, pois que, no artigo 20.° da Constituição consagra-se o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça e o Estatuto da Ordem dos Advogados considera o advogado um servidor da justiça e do direito.

Estabelece, com efeito, o artigo 67 º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados que:

“2 - O mandato forense não pode ser objeto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante”.

É pois no confronto entre estes dois direitos conflituantes que, em face da situação concreta deverá ser resolvida a questão de saber se ocorre ou não irregularidade do mandato, tal como foi entendido no despacho sob recurso.

O artigo 48.º do CPC, sob a epigrafe, “falta, insuficiência e irregularidade do mandato”, dispõe o seguinte:

1 - A falta de procuração e a sua insuficiência ou irregularidade podem, em qualquer altura, ser arguidas pela parte contrária e suscitadas oficiosamente pelo tribunal.

2 - O juiz fixa o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado, findo o qual, sem que esteja regularizada a situação, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respetivas e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa.(…)”

Como vimos, o contrato existente entre o advogado e o cliente é o de mandato com representação, quer haja ou não procuração constante de instrumento, o qual só é indispensável nos termos do artigo 262.º, nº. 2, do Código Civil, quando tenha de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador tenha de realizar.

Entre as Rés e a Dr.ª EE, constituiu-se uma relação contratual de mandato, tendo o mandato forense sido conferido através de procuração válida e regular.

Os advogados estão sujeitos às regras deontológicas previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2020, de 6 de julho, que no seu artº 99º regulamenta a matéria respeitante ao conflito de interesses, prevendo as situações em que o advogado deve abster-se do patrocínio.

Assim, só indiretamente podendo ter efeito na posição do advogado no processo, já que se trata de questão de natureza corporativa, onde se entrecruzam interesses profissionais e o interesse público na existência de patamares de ética e deontologia, preceitua o artigo 99.º da EOA sob a epígrafe “Conflito de interesses”:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 – O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 – O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 – Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

Não tendo a senhora advogada das Rés, patrocinado anteriormente os autores, não se vê que esta norma estatutária, que tem por objetivo acautelar a violação de deveres deontológicos atinentes aos princípios que devem pautar a conduta dos advogados como sejam a tutela dos princípios da independência, do segredo profissional, da dignidade, da lealdade, confiança e ética, tenha sido violada.

Este preceito tem ínsito o conceito que o advogado, nas relações com o seu cliente, tem o dever de recusar o patrocínio em ação referente a questões em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

Não é esta a situação em apreço, pelo que, daqui não ocorre irregularidade do mandato aceite pela advogada, irregularidade que podia ser suscitada pelas partes ou conhecida oficiosamente pelo tribunal conforme dispõe o artigo 48º nº1 do CPC.

Inexistindo irregularidade de mandato, subsiste porém, a questão a questão da incompatibilidade de estatutos processuais entre ser testemunha e ser simultaneamente advogado duma das partes.

Ora, tal como Luís Filipe Pires de Sousa [7] refere, “O que está arredada é a hipótese de o advogado prestar depoimento em processo no qual esteja ainda constituído como advogado.”

Admitindo-se o impedimento para depor, de advogado que patrocina uma das partes, que é implícito e decorre da regulamentação dos estatutos do advogado da parte e da testemunha que são em si mesmos incompatíveis, implicando a impossibilidade de a mesma pessoa assumir, simultaneamente o estatuto de advogado de uma das partes e de testemunha oferecida pela parte contrária, essa questão apenas poderá ser colocada e apreciada no início do depoimento da pessoa indicada como testemunha, momento em que o tribunal é chamado a aferir a capacidade da testemunha e a ocorrência de algum impedimento ou restrição, impeditivo da produção daquele meio de prova -cfr. 513º e 514º do CPC

Já não se mostra, porém admissível, que no confronto deste “conflito estatutário”, que se antecipa com a indicação da mandatária das rés, como testemunha, na petição inicial, (testemunha versus mandatária), prevaleça aquela indicação, tal como se entendeu no despacho recorrido.

Existindo dois (ou mais) direitos conflituantes, a questão deverá ser solucionada, ponderando os direitos em face da situação concreta, aliás de acordo com o disposto no art. 335º do Código Civil, nos termos do qual, “havendo direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário, para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”

No caso em apreço, pondera-se que a indicação de uma pessoa como testemunha na p.i., não é sequer definitiva, pelo que não poderá desde logo legitimar o afastamento do mandatário constituído para patrocinar a parte ao longo do processo.

Os autores têm o ónus de integrar na petição inicial o requerimento probatório, mas podem vir a alterá-lo, na réplica 552º nº 2, ou na audiência prévia 598º nº 1 do CPC.

O rol de testemunhas pode ainda ser aditado ou alterado ate 20 dias antes da audiência final (art. 598º nº 2 do CPC).

Basta imaginar a possibilidade dos autores virem, em momento ulterior à apresentação da p.i, alterar o requerimento probatório, abrindo mão daquela testemunha, para se perceber que a solução acolhida do afastamento da mandatária das RR, ademais com a cominação de ficar sem efeito tudo o que foi praticado pela mandatária não poder subsistir.

Aliás se assim fosse, estaria achada a forma expedita de afastar quem se quisesse do patrocínio da parte contrária, assim interferindo no direito de livre escolha que cada parte tem do Advogado que a patrocina.

Depois, em face do extenso elenco de provas ao alcance das partes e do tribunal, o meio de prova em causa deverá ser relevante para o processo em questão, ou seja, não existe o direito à prova que não tenha qualquer tipo de interesse para a causa, o que se compreende fazer ao princípio de economia processual.

Os Autores, porém não alegaram a necessidade e a imprescindibilidade daquele concreto depoimento testemunhal que indicaram para a desmonstração do direito a que se arrogam, isto é que, sem aquele depoimento ficarem numa situação de impossibilidade de prova do seu direito, pelo que, no confronto de ambos os direitos deverá prevalecer o direito à livre escolha de mandatário.

Acresce que está ainda em causa o depoimento duma advogada, depoimento que pela sua natureza mostra-se à partida condicionado pelo segredo profissional (cfr. art. 92º do EOA).

Do exposto resulta não poder subsistir a decisão recorrida, que determinou às Rés a escolha obrigatória de outro mandatário, (que não o por aquelas livremente escolhido para patrocinar a sua defesa nesta ação), sob pena da cominação de ficar sem efeito tudo o que foi praticado pela mandatária, a nosso ver, em clara violação do direito de defesa das rés, na vertente de livre escolha do mandatário.

Não se pode, pelas razões apontadas, no confronto dos dois direitos em conflito, dar acolhimento à solução preconizada de que logo que o advogado de uma parte seja indicada como testemunha, cessa a sua intervenção como advogado, que nos parece ter sido acolhida no despacho sob recurso.

Assim e porque, não vislumbramos a existência de qualquer irregularidade do mandato, determinante da ineficácia dos atos praticados pela senhora advogada que patrocina os RR, impõe-se a revogação da decisão recorrida.

V - DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida, julgando-se improcedente a irregularidade do mandato conferido à mandatária das Rés.

Custas pelos autores.

Porto, 19 de novembro de 2024.

Alexandra Pelayo

Maria da Luz Seabra

Lina Castro Baptista

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[1] In “Manual de Processo Civil”, pg. 686;
[2] Editada pelo Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, páginas 82 e 83, (1998), citada por Luís Filipe de Sousa in Prova Testemunhal, Almedina 2013, página 259 e 260..
[3] Nuno Lemos Jorge, in Direito à prova: Brevíssimo Roteiro Jurisprudencial, Revista Julgar nº 6 – 2008.
[4] Pedro Trigo Morgado, in “A admissibilidade da prova ilícita em processo civil”, livraria Petrony, pg. 95.
[5] Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o novo processo civil”, p. 56.
[6] Naturalmente também reconhecido aos Autores.
[7] In Prova Testemunhal, Almedina 2013, página 259