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SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
PRECLUSÃO DE DEFESA
Sumário
I - Não deve ser suspensa a instância numa ação em que a autora pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado prédio e a respetiva entrega [estando o mesmo ocupado ilegalmente pela ré, na sua ótica], por entretanto, esta, já depois de ali ter sido citada e ter decorrido o prazo para apresentar contestação, sem que o tivesse feito, ter instaurado uma outra ação em que alega a existência, a seu favor, de um contrato de arrendamento relativo ao mesmo prédio, celebrado em data anterior à da aquisição deste pela demandante, e que, na sua versão, legitima a respetiva ocupação, e pede o reconhecimento de tal contrato e da sua qualidade de arrendatária, bem como que a aqui ré, ali autora, se abstenha da prática de atos que perturbem o gozo que vem exercendo sobre o mesmo. II - Nesta situação [não contestação da primeira ação e não apresentação, aí, de toda a sua defesa, por impugnação e por exceção], a ré da primeira ação estava impedida de instaurar a segunda nos termos e com o pedido que nela deduziu, por força do princípio da preclusão. III - Estando precludido tal direito de ação, é legítimo concluir que a instauração da segunda ação visou unicamente a obtenção da suspensão da instância na primeira.
Texto Integral
Apelação em Separado nº 1203/22.2T8PVZ-C.P1 – 2ª Secção Relator: Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Rui Moreira
Des. Anabela Dias da Silva
Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório:
Nesta ação declarativa com processo comum intentada, em 13.09.2022, por A..., L.DA contra AA e BB, B..., S.A. – EM LIQUIDAÇÃO e C..., L.DA, todos com os sinais dos autos, em que aquela, arrogando-se proprietária do prédio que indica na p. i., pediu a condenação destes a reconhecerem e respeitarem o seu direito de propriedade sobre esse imóvel [al. a) do pedido] e a entregarem-lhe o mesmo livre de ónus ou encargos e de pessoas, coisas e animais [al. b)] e, bem assim, a pagarem-lhe, por conta dos prejuízos causados, o que vier a ser liquidado em momento posterior à sentença [por tal liquidação não ser ainda possível]. Os réusB..., SA e BB, contestaram, separadamente, a ação, tendo o segundo pugnado pela respetiva improcedência, invocando a existência de um contrato de arrendamento que, na sua ótica, legitima a ocupação do imóvel por parte da ré C..., LDA., de que é sócio e gerente. Os restantes réus, incluindo a C..., LDA., não apresentaram contestação.
Posteriormente, por falta de pagamento da taxa de justiça, não obstante a notificação feita para o efeito pelo tribunal, foi proferido despacho, em 10.07.2023, que ordenou o desentranhamento da contestação do réu BB.
Em 27.05.2024, o mesmo réu, alegando que a aqui ré C..., L.DA tinha instaurado, em 30.04.2024, “uma ação declarativa a pedir o reconhecimento da vigência de um contrato de arrendamento celebrado a 01 de julho de 2008 onde aquela é a arrendatária tendo tal contrato como objeto, entre outros, precisamente o prédio em causa aqui nos autos”, que tal ação “corre termos no Tribunal Judicial Comarca do Porto, Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2, processo nº 644/24.5T8PVZ” e que “a procedência do pedido formulado nesta nova ação quanto ao reconhecimento da manutenção da vigência do contrato de arrendamento legitima a atuação dos RR. descrita na PI e determina a improcedência dos pedidos formulados nestes autos pela A.”, veio requerer que, “nos termos do art. 272º nº 1 do CPC” fosse ordenada a “suspensão da instância dos presentes autos até decisão com trânsito em julgado da causa prejudicial”.
A autora respondeu, pugnando pelo desatendimento do requerimento.
O tribunal a quo, em 03.09.2024, proferiu o seguinte despacho: “Da causa prejudicial: Vem o R BB, requerer a suspensão da instância por causa prejudicial, alegando, em síntese, que foi interposta em 30.04.2024, pela Ré C..., Lda., contra a aqui A, ação declarativa a pedir o reconhecimento da vigência de um contrato de arrendamento celebrado a 1.07.2008, onde aquela é a arrendatária do prédio em causa nos presentes autos. Mais refere que tal ação corre termos pelo J2 do Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim, sob o nº644/24.5T8PVZ, juntando certidão comprovativa. Conclui invocando que a questão levantada na segunda ação é essencial para a decisão dos presentes autos, pelo que devem os presentes autos ser suspensos até decisão proferida naquela. A A. veio pronunciar-se, alegando, em síntese, que na presente ação a Ré, C..., Lda., teve a oportunidade de invocar o suposto contrato de arrendamento rural sobre o prédio reclamado pela A e não o fez, pelo que é a procedência da presente ação que prejudica a nova ação instaurada. Pugna pela improcedência da suspensão requerida. Cumpre apreciar. Dispõe o art. 272º, nº 1, que: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”. Conforme decorre deste normativo legal, desde logo apenas podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa – nesse sentido vide CPC Anotado Vol. I, 3ª Ed. de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, pág.349. Acresce que, conforme referido pela A, a Ré teve oportunidade de invocar nos presentes autos a existência do agora alegado contrato de arrendamento relativo ao imóvel reclamado pela A, e não fez, não tendo sequer contestado os presentes autos. Apenas agora foi instaurada ação, pela referida Ré, em 30.04.2024, onde é pedido o reconhecimento de um alegado contrato de arrendamento relativo ao prédio em causa nos presentes autos. Ora salvo melhor opinião, a presente ação poderá sim ser causa prejudicial da nova ação instaurada em abril do corrente ano e não o contrário. Com efeito, como ensina Alberto dos Reis, «[o] nexo de prejudicialidade ou de dependência define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão duma poder afetar o julgamento a proferir na outra. Aquela ação terá o carácter (d)e prejudicial em relação a esta» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., p. 384). Acrescenta o mesmo autor que «uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou razão de ser da segunda», esclarecendo que tal ocorre quando «na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental». Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia. Assim, assiste razão à A quando refere que esta ação é que constitui causa prejudicial daqueloutra. Com efeito, a proceder a presente ação, estamos em crer que a nova ação instaurada perde a sua utilidade prática, porquanto na presente discute-se a propriedade do prédio identificado nos autos, que a demonstrar-se implicará a não manutenção do agora invocado contrato de arrendamento, alegado naquela. Refira-se ainda que parece resultar que a nova ação terá sido instaurada com vista a obter a suspensão da presente, pois poderia a referida Ré, conforme referido, ter invocado em sede de contestação a existência do agora alegado contrato de arrendamento, o que não foi feito. Entendo assim que não existe qualquer relação de prejudicialidade que determine a suspensão desta instância, pelo que se indefere a pretensão do R. Custas do incidente pelo R, fixando-se a taxa de justiça em ½ Uc. Notifique.”
O réu BB, inconformado com esta decisão, interpôs o presente recurso de apelação [que foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões: “1. O presente recurso vem interposto do despacho, datado de 03.09.2024, com a ref.ª n.º 462921627, no qual o douto Tribunal “a quo”, entendeu que “(…) não existe qualquer relação de prejudicialidade que determine a suspensão desta instância, pelo que se indefere a pretensão do R.”, porém, não concordando com os termos daquela douta decisão, interpõe o presente recurso, o qual, nos termos e fundamentos infra apresentados, deverá ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, os presentes autos serem suspensos atenta a causa prejudicial em que se consubstancia a ação n.º 644/24.5T8PVZ, que corre termos no Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim. 2. De facto, a ação n.º 644/24.5T8PVZ foi instaurada em momento posterior à petição inicial que deu origem aos presentes autos, porém, esta foi a única forma do R. fazer valer o seu direito, tendo em conta o desentranhamento da contestação que o recorrente apresentou nos presentes autos. 3. Com efeito, no dia 01.02.2024, o ora recorrente, apresentou um requerimento nos presentes autos (ref.ª 38024549), no qual veio invocar nulidade por falta de notificação da decisão de indeferimento de apoio judiciário e de notificação para pagamento da taxa de justiça respetiva, omissões que determinaram o desentranhamento da contestação que havia apresentado. 4. Não obstante, a verdade é que, tal nulidade não foi reconhecida, porém, também é verdade que, o desentranhamento da contestação apresentada pelo ora recorrente não se deveu a causa que lhe possa ser imputável, pois, o R., na sua pessoa, à data, não teve conhecimento da decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de apoio judiciário, nem das sucessivas notificações de que o seu mandatário, naquela data constituído, havia sido objeto, nomeadamente, para pagamento da taxa de justiça acrescida das respetivas multas. 5. Pelo que, a proposição da ação n.º 644/24.5T8PVZ é o meio processual necessário para que o ora recorrente veja o seu direito assegurado, isto é, o reconhecimento da vigência de um contrato de arrendamento celebrado a 01 de julho de 2008 onde a Ré C..., Lda. é a arrendatária tendo tal contrato como objeto, entre outros, precisamente o prédio em causa aqui nos autos. 6. Ora, necessariamente que, a decisão que ali vier a ser proferida, sempre terá influência direta na matéria em discussão nos presentes autos, porquanto, a procedência do pedido formulado nesta nova ação quanto ao reconhecimento da manutenção da vigência do contrato de arrendamento legitima a atuação dos RR. descrita na PI e determina a improcedência dos pedidos formulados nestes autos pela A.. 7. A reconhecer-se a existência e manutenção de tal contrato de arrendamento sobre o referido prédio – como se alega, fica demonstrada a legitimidade e a licitude da atuação dos RR perante os factos que lhe são aqui imputados impondo-se a absolvição dos pedidos nos presentes autos, isto é, a decisão do tema principal daquela segunda ação – o reconhecimento da aqui Ré C... como arrendatária do referido prédio - é essencial para uma acertada e justa decisão nestes autos. 8. Esta questão do reconhecimento da validade, existência e manutenção do contrato de arrendamento sobre o referido prédio onde a Ré C... surge como arrendatária é assim uma questão prejudicial às dos presentes autos. 9. Destarte, em face do exposto, mal andou o douto Tribunal “a quo” ao indeferir o peticionado pelo ora recorrente, requerendo-se, nessa conformidade, que o despacho objeto do presente recurso seja revogado e substituído por outro que preveja o deferimento da pretensão do ora recorrente. Nestes termos e nos melhores de Direito, que V.Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência o despacho objeto do presente recurso ser revogado e substituído por outro que preveja o deferimento da pretensão do ora recorrente”.
A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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2. Questão a apreciar e decidir:
Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] –, as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
- Se ocorre a situação de prejudicialidade invocada pelo recorrente; - E se devia ter sido ordenada a suspensão da instância por este requerida.
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3. Apreciação jurídica:
Antes de apreciarmos o recurso, impõe-se uma nota prévia acerca da admissão do mesmo com subida imediata a esta 2ª instância, ao abrigo do disposto no art. 644º nº 2 al. h) do CPC, como se entendeu no despacho de admissão do recurso na 1ª instância e no despacho inicial que proferimos neste apenso, nesta fase recursória.
O art. 644º nº 2 al. c) do CPC prevê expressamente a possibilidade de recurso de apelação “da decisão que decrete a suspensão da instância”. Mas o mesmo artigo nada diz, nos seus números e alíneas, quanto à admissibilidade de recurso de apelação do despacho que indefira pedido de suspensão da instância.
Por via disso, considera-se que, em regra, “a decisão que indefira a suspensão requerida por alguma das partes apenas é impugnável nos termos do nº 3” daquele art. 644º, ou seja, só pode ser impugnada “no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no nº 1” do mesmo preceito. Mas esta regra comporta uma exceção quando “a impugnação diferida de revele absolutamente inútil”, caso em que a decisão de indeferimento da suspensão da instância admite recurso de apelação com subida imediata, em separado, à 2ª instância, nos termos da al. h) do nº 2 daquele art. 644º e do art. 645º nº 2 do mesmo corpo de normas [assim, Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., pg. 249].
Em situação em que estava em causa a existência (ou não) de causa prejudicial [constante de outro processo pendente] e em que a 1ª instância havia desatendido o pedido de suspensão da instância por ter considerado inexistir a invocada causa prejudicial, o Tribunal da Relação de Lisboa [Acórdão de 10.11.2022, proferido no processo 822/21.9T8CSC-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt/jtrl] admitiu a subida imediata, em separado, do recurso interposto daquela decisão com o fundamento de que “não teria sentido, só depois de ter havido uma decisão final depois do julgamento (por força do art. 644º nº 3 do CPC), estar a revogar aquela decisão para se vir a fazer só então e pela primeira vez um juízo da conveniência ou não de suspender a instância (…)”.
Foi com base nesta argumentação e apesar de não ser pacífica a questão [veja-se, por ex., o Acórdão da Relação do Porto de 04.06.2024, proc. 18835/22.1T8PRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp], que, prevenindo a hipótese de eventual provimento do recurso, se aceitou nesta 2ª instância [no despacho liminar] o entendimento do tribunal a quo de admissão do mesmo com subida imediata, em separado.
Feita esta breve nota prévia, apreciemos então o recurso.
Está em causa aferir se o despacho recorrido é merecedor de censura, como defende o recorrente.
Nele se concluiu pela inexistência da causa prejudicial que havia sido invocada pelo ora recorrente e, por via disso e porque também se entendeu que “a nova ação terá sido instaurada com vista a obter a suspensão da presente”, indeferiu o pedido de suspensão da instância.
Vejamos o que está em causa no processo de que este apenso é dependência e no processo que, segundo o aqui recorrente, constitui causa prejudicial.
Neste processo [reportamo-nos ao processo de que este apenso é dependência] a autora alegou, em síntese, que, em 14.04.2021, adquiriu, por escritura pública, à ré B..., SA – em liquidação, o prédio rústico denominado “...”, melhor identificado na p. i. [inscrito e descrito nas competentes matriz e registo predial], que a venda foi efetuada livre de quaisquer ónus ou encargos, que procedeu ao registo do prédio a seu favor na competente CRP, que o mesmo prédio, por escritura de compra e venda com renúncia de hipoteca, celebrada em 13.06.2016, havia sido vendido pelos réus AA e BB, aquele por si e os dois também em representação da mulher e mãe CC, à ré B..., SA, livre de ónus ou encargos e que, não obstante, não conseguiu tomar posse do imóvel, apesar das diligências que fez para tal, em virtude da oposição feita pelos réus AA e BB [pai e filho], os quais, na qualidade de únicos sócios e gerentes da ré C..., LDA., invocaram a existência de um, forjado, contrato de arrendamento a favor desta sociedade, datado de 01.07.2008, que legitimaria, segundo eles, a ocupação que esta ré, por intermédio deles, vem exercendo sobre o prédio. Com base nestes fundamentos e alegando, ainda, a existência de danos decorrentes de tal ocupação, para ela considerada ilegítima, a autora pediu a condenação dos réus a reconhecerem e respeitarem o seu direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a entregarem-lhe o mesmo livre de ónus ou encargos e de pessoas, coisas e animais e a pagarem-lhe, por conta dos prejuízos causados, o que vier a ser liquidado em momento posterior à sentença.
Da certidão da ação comum nº 644/24.5T8PVZ, junta com o requerimento de 27.05.2024 supra referido, resulta que a aqui ré C..., LDA., através da petição inicial que deu entrada em Juízo em 30.04.2024, demanda a aqui autora, alegando a existência de um contrato de arrendamento válido que, na sua ótica, legitima a ocupação que vem exercendo sobre o referido prédio e a recursa em entregá-lo à ali demandada [aqui autora]. E pede que se reconheça a existência/vigência daquele contrato de arrendamento e que ela, autora, seja reconhecida como arrendatária do imóvel e que a ré seja condenada a abster-se da prática de atos que perturbem o gozo que vem exercendo sobre o mesmo e a pagar-lhe uma sanção pecuniária compulsória por cada infração que vier a cometer.
Estas as causas de pedir e pedidos nas duas ações.
Haverá prejudicialidade de alguma em relação à outra?
A decisão recorrida entendeu que não, mas que, a havê-la, a causa prejudicial é a da presente ação [de que este apenso é dependência] e não a da ação 644/24.5T8PVZ.
Dispõe o nº 1 do art. 272º do CPC que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Citando Teixeira de Sousa [in As Partes, o objeto e a prova na ação declarativa, 1995, pg. 135], diz-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 07.11.2023 [proc. 8309/21.3T8LSB.L1-7, disponível in www.dgsi.pt/jtrl] que a relação de prejudicialidade se verifica “quando o julgamento de um objeto processual depende da apreciação de um outro objeto. Esta relação de prejudicialidade pressupõe que não opera a exceção de litispendência entre as ações pendentes, apesar de dentre elas se verificar uma identidade parcial nos respetivos objetos”. Logo acrescenta, citando Alberto dos Reis [in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pgs. 268 e segs.] e um Acórdão do STJ de 09.05.2023, que “O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda - Alberto Dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, III Vol., pp. 268 a 285. «Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão na primeira pode afetar ou destruir o fundamento ou razão de ser da segunda, quando a decisão naquela pode prejudicar a decisão nesta» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.5.2023, Jorge Dias, 826/21)”. E conclui, de seguida, citando autores e jurisprudência, que “A situação de prejudicialidade pressupõe que as partes de ambas as ações (a prejudicial e a dependente) são as mesmas ou, pelo menos, que a eficácia da decisão proferida na causa prejudicial é extensível às partes na causa dependente. É indiferente que a causa prejudicial tenha sido instaurada antes ou depois da ação dependente (cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª. Ed., 2014, p. 535), salvo se entre as ações ocorrer uma situação de litispendência - t. de sousa, Op. Cit., p. 137. Não é pressuposto da possibilidade de suspensão que a ação prejudicial tenha sido instaurada em primeiro lugar (Acórdãos do Tribunal da Relação de (...) de 14.7.2022, Jorge Leal, 803/21, de 10.11.2022, Pedro Martins, 822/21)”.
Também no Acórdão da Relação do Porto de 11.01.2024 [proc. 1273/23.6YLPRT.P1, disponível in www.dgs.pt/jtrp] se afirma que: “Causa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir com a decisão da causa dependente, influenciando essa decisão através da destruição ou modificação dos fundamentos em que esta se baseia. Haverá essa relação quando na ação prejudicial se discute em via principal uma questão essencial para a decisão da ação dependente. (…) a prejudicialidade pressupõe a coincidência parcial de objetos processuais simultaneamente pendentes em causas diversas. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.02.1993, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 424, pág. 587, citando Teixeira de Sousa, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, a prejudicialidade a que se refere o citado art. 279º, nº 1, verifica-se quando a dependência entre objetos processuais é acidental e parcialmente consumptiva e pode definir-se como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objeto processual (o objeto processual dependente) sem interferir na análise de um outro (o objeto processual prejudicial)”. In casu, há coincidência parcial quanto às partes nas duas ações [a autora desta ação é a ré na ação 644/24.5T8PVZ e a autora desta última é uma das rés daquela] e a existência, validade e eficácia do contrato de arrendamento a favor da C..., LDA. é também questão suscitada em ambas – na primeira, a autora invoca-o sustentando ser forjado, inválido e ineficaz e que, por isso, não pode legitimar a ocupação do prédio por tal ré [e seus gerentes, entre eles o aqui recorrente], pugnando, consequentemente, além do reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, pela sua entrega livre de ónus, encargos, pessoas e bens; na segunda, a respetiva autora, defendendo a autenticidade, validade e eficácia de tal contrato de arrendamento, pugna pelo seu reconhecimento e pela legitimidade da ocupação que exerce sobre o prédio.
A existência de relação de prejudicialidade parece evidente. Mas qual a ação prejudicial?
Nesta primeira [de que este apenso é dependência], não cabe à autora fazer prova de que a ocupação do imóvel pela referida ré é ilegal, não lhe competindo, por isso, a prova de que o aludido contrato de arrendamento é forjado, inválido ou ineficaz. Compete-lhe apenas provar que é legítima proprietária do imóvel e que este está ocupado pela ré, não conseguindo tomar posse do mesmo. A esta ré [ou a outros réus com interesse igual ao dela, nomeadamente os seus gerentes] é que cabia, em sede de contestação, alegar, para depois provar [em julgamento], a existência, validade e eficácia do referido contrato de arrendamento como fundamento da sua ocupação do imóvel, de modo a demonstrar que esta é legítima. É o que resulta das regras sobre o ónus da prova estabelecidas no art. 342º nºs 1 e 2 do CCiv..
Só que, a referida Ré [C...] não contestou a ação e o mesmo aconteceu com o seu [alegado] gerente AA. Apenas o réu BB apresentou contestação [também o fez a ré B..., SA – em liquidação, mas sem relevância para esta questão, na medida em que negou a existência do indicado contrato de arrendamento], mas a mesma não foi admitida porque foi mandada desentranhar por despacho de 10.07.2023 [atrás mencionado].
Significa isto que nesta ação os referidos réus [a ré C... e os seus indicados gerentes, também réus] ficaram impossibilitados de vir a demonstrar a existência, validade e eficácia do mencionado contrato de arrendamento e, por via disso, a licitude da ocupação do aludido prédio por parte daquela ré.
Tal prova só passou a ser possível na ação nº 644/24.5T8PVZ.
Assim, com esta configuração e face às apontadas vicissitudes, esta última ação parece apresentar-se como prejudicial relativamente àqueloutra, na medida em que a sua procedência levaria à improcedência de parte da pretensão formulada na p. i. da primeira ação, mais concretamente dos segmentos em que a aí autora pede a condenação dos réus a entregarem-lhe o imóvel livre de ónus, encargos, pessoas e bens e a pagarem-lhe uma indemnização pelos prejuízos causados.
Nesta parte, não acompanhamos o decidido no despacho recorrido, que considerou que a segunda ação não constitui causa prejudicial relativamente à primeira.
Mas, chegados aqui, outra questão se coloca: tal situação de prejudicialidade devia ter levado o Julgador a quo a deferir o pedido de suspensão da instância?
Adiantamos já que não.
Importa começar por chamar à colação o que dispõe o nº 2 do já citado art. 272º, segundo o qual “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.”
Ora, do que ficou exposto e que o próprio recorrente reconhece nas conclusões das alegações [cfr. conclusão 2, em que diz que “De facto, a ação n.º 644/24.5T8PVZ foi instaurada em momento posterior à petição inicial que deu origem aos presentes autos, porém, esta foi a única forma do R. fazer valer o seu direito, tendo em conta o desentranhamento da contestação que o recorrente apresentou nos presentes autos”], resulta que a segunda ação foi claramente intentada para obter a suspensão da instância na primeira, tanto mais que o direito que a autora pretende fazer valer na segunda ação – a existência, validade e eficácia do apontado contrato de arrendamento, como forma de legitimar a ocupação do dito imóvel e impedir a sua entrega à proprietária [autora da primeira ação] –, já se encontra precludido, estando, por isso, impedida de vir discutir na nova ação o que podia e devia ter levado à discussão na primeira, apresentando atempada contestação com alegação da factualidade integradora daquela circunstância impeditiva da procedência do pedido de entrega do imóvel [e da sua condenação em indemnização pelos prejuízos decorrentes da ocupação deste].
Sobre o princípio da preclusão, Teixeira de Sousa [in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1996, pg. 349] ensina que: “(…) quanto ao âmbito da preclusão que afeta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (artigo 489º nº 1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ser invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada (…)”. E noutro estudo [Preclusão e Caso Julgado, paper do blog do IPPC], o mesmo Autor explica que: “quando referida à alegação de factos pelas partes, a preclusão é correlativa de um ónus de concentração ou de exaustividade: de molde a evitar a preclusão da alegação posterior do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. Por exemplo: no processo civil português, o réu tem o ónus de alegar na contestação que apresente toda a defesa que queira deduzir contra o pedido formulado pelo autor (cf. art. 573.º, n.º 1); logo, o réu tem o ónus de concentração da sua defesa no articulado de contestação, pelo que não pode alegar posteriormente nenhum meio de defesa que já pudesse ter alegado na contestação”. E acrescenta: “A preclusão (temporal) obsta a que, num processo pendente, um ato possa ser praticado depois do seu momento de realização definido pela lei ou pelo juiz: é a preclusão intraprocessual (…). A preclusão intraprocessual torna-se uma preclusão extraprocessual quando o que não foi praticado num processo anterior também não pode ser realizado num processo posterior. Importa salientar um aspeto essencial: a preclusão intraprocessual e a preclusão extraprocessual não são duas modalidades alternativas da preclusão (no sentido de que a preclusão é intraprocessual ou extraprocessual), mas duas manifestações sucessivas de uma mesma preclusão: primeiro, verifica-se a preclusão da prática do ato num processo pendente; depois, exatamente porque a prática do ato está precludida nesse processo, torna-se inadmissível a prática do ato num processo posterior. Portanto, a preclusão começa por ser intraprocessual e transforma-se em extraprocessual quando se pretende realizar o ato num processo posterior”
No caso, está em causa uma situação de preclusão extraprocessual.
A alegação e o pedido que a C... agora formula na segunda ação deviam ter sido deduzidos na primeira ação, mediante a apresentação da devida e fundamentada contestação, já que ali é pedido, além do mais, a entrega do imóvel, por aquela, ali ré [e os seus gerentes], estar[em] a ocupá-lo ilegalmente [segundo a autora da ação]. Tal exigência decorre do que dispõem os arts. 571º nºs 1 e 2, 572º als. a) a c) e, principalmente, 573º do CPC, estatuindo este último que “1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. 2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
Como aquela ré não contestou a primeira ação e porque a contestação do co-réu BB foi mandada desentranhar dos autos, ficou precludido o direito de, quer nesse processo [preclusão intraprocessual], quer noutro [ou seja, no que ora se considera como segunda ação – preclusão extraprocessual], a referida ré [ou os seus gerentes, também ali réus] invocar[em] a existência [validade e eficácia] do mencionado contrato de arrendamento para evitar que o imóvel seja entregue à autora da [e na] primeira ação, por reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o mesmo.
E, estando precludido tal direito, é legítimo concluir que a referida C... instaurou a segunda ação com o único propósito de obter a suspensão da instância na primeira [em sentido idêntico, embora reportado a causas de pedir e pedidos não coincidentes com os das duas ações aqui em questão, decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 08.01.2009 (proc. 8760/2008-6, disponível in www.dgsi.pt/jtrl] que: “(…) 4. Sob pena de preclusão, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado, e as exceções incidentes ou meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente. 5. Não tendo a parte arguido a simulação do contrato donde emerge a sua responsabilidade na contestação, não pode obter a suspensão da ação por prejudicialidade de uma outra ação, intentada posteriormente, em que invoca a simulação daquele contrato, sob pena de se permitir a apresentação extemporânea da contestação, com alteração da estratégia processual, já que a contestação foi deduzida no pressuposto da validade do contrato. 6. Neste contexto é legítimo inferir que a segunda ação foi intentada com o único propósito de obter a suspensão desta ação, o que igualmente obstaria a que se decretasse a suspensão da instância].
Por conseguinte, bem andou a decisão recorrida ao ter indeferido a requerida suspensão da instância.
Há, por isso, que julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Pelo decaimento, incorre o recorrente nas custas desta fase recursória – arts. 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.
Perante o que fica exposto, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em: 1º. Julgar improcedente o recurso e confirmar, embora com fundamentação não integralmente coincidente, a decisão recorrida. 2º. Condenar o recorrente nas custas deste recurso, pelo decaimento [sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que, eventualmente, venha a ser-lhe concedido, atento o anúncio feito pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso].
Porto, 19/11/2024
Pinto dos Santos
Rui Moreira
Anabela Dias da Silva