COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL NO INQUÉRITO
DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Sumário

O Juiz de Instrução Criminal tem a competência para apreciar requerimentos onde se procure sindicar atos do Ministério Público, durante o inquérito, que possam traduzir uma violação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como é o caso da constituição de uma pessoa como arguida.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No Proc. 137/20.0GCSTB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, Juiz 1, os arguidos A S.A., M, L, V e C, após terem sido constituídos como tal, arguiram junto do MP e do Juiz de Instrução Criminal irregularidades relativas a essa constituição, por terem sido realizadas fora dos casos previstos nos Artsº 57 e 58, ambos do CPP, com violação de tais preceitos e ainda dos Artsº 2, 20 nº4 e 32 nº1 da CRP e de os seus interrogatórios, nessa qualidade, terem sido realizados em incumprimento do disposto nas disposições combinadas dos Artsº 61 nº1 al. c), 141 nº4 als. d) e e) e 144 nº1, todos do CPP, por não lhes terem sido comunicados os factos concretos com relevância criminal que lhes eram imputados.

Por se ter considerado competente para apreciar tal requerimento, o MP, por despacho de 11/04/24, lavrou o respectivo indeferimento, nos seguintes termos (transcrição):
Vêm os arguidos A, S.A., M, L, V e C, reagir ao acto de constituição de arguido, tendo em vista a declaração de irregularidade de tal acto, e dos demais subsequentes, por violação do disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea c) e artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Os requerimentos juntos aos autos são dirigidos, também, ao Juiz de Instrução Criminal.
Ora, a apreciação das irregularidades arguidas não compete ao Juiz de Instrução Criminal, uma vez que a determinação da constituição como arguido e a sua validação, em sede de inquérito, são actos da competência exclusiva do Ministério Público, de acordo com o disposto no artigo 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Com efeito, a intervenção provocada do Juiz de Instrução, na fase pré-acusatória, está limitada pelo Código de Processo Penal, não constando, das competências aí atribuídas, a apreciação das invalidades em sede inquérito.
Assim, apreciando os requerimentos apresentados, constata-se que a constituição dos arguidos — a qual foi validada no dia 22-02-2024 — não padece de qualquer vício susceptível de gerar a nulidade do acto processual. Vejamos:
Os presentes autos tiveram origem no auto de notícia de referência 5138957, do qual consta, em suma, que, no dia 07-06-2020, cerca das 03h00m deflagrou um incêndio nas instalações da empresa A S.A., na zona industrial da Mitrena, em Setúbal.
Mais consta que foi possível identificar C, responsável de Segurança e Ambiente, que declarou ter-se deslocado ao local quando tomou conhecimento dos factos, informando que «(…) a zona da fábrica que produz enxofre é altamente propícia a esse tipo de acidente, tendo deixado a hipótese de o mesmo ter ocorrido devido a gases de enxofre e uma ignição provocada por electricidade estática.».
É ainda referido, no auto de notícia, que as vítimas do incêndio foram identificadas como P e S, tendo sido, no local, inquirido J — cujas declarações se encontram anexas ao referido auto.
Nessa sequência foi dado início à investigação, a qual se mostra, ainda, em curso, tendo sido realizadas as respectivas diligências, designadamente e com maior relevância para a presente apreciação:
Foram inquiridas as vítimas, P e S — referências 5614574, 95469913, 95470998.
Foi inquirido J — referência 95471587.
Foi inquirida C — referência 5722835.
Foi junto aos autos os inquéritos de acidente de trabalho referentes a P e S — referência 6077648.
Foram inquiridos, como testemunhas, V (referência 964406839) e L (referência 96406843).
Posto isto, foi determinado, por despacho datado de 14-07-2023 (referência 97482286), a constituição como arguido de A, S.A., L, V, C e M.
Do que vem de ser exposto resulta que a constituição como arguidos teve por base, não só os factos noticiados e constantes do auto de notícia com referência 5138957, como também dos elementos probatórios, entretanto, carreados para os autos por meio das várias diligências realizadas.
Considerando o supra referido se do auto notícia já resulta uma suspeita de crime por banda da sociedade A S.A., tal suspeita tornou-se fundada com a realização das diligências que compõem o presente inquérito, não só relativamente à sociedade propriamente dita, na pessoa do seu legal representante, como também relativamente a L, V, C e M, atentas as funções exercidas em nome e por conta de A S.A., motivo pelo qual foram constituídos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Assim, entende o Ministério Público que não foram preteridos os requisitos legalmente previstos no artigo 58, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No que concerne à não comunicação dos factos em momento prévio à prestação de declarações por parte dos arguidos e seguindo o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-05-2022 — proferido no âmbito do processo 114/19.3PTOER.L1-9 e relatado por Simone Abrantes de Almeida Pereira —: «I. O acto de constituição de arguido não exige a comunicação circunstanciada dos factos que lhe são imputados e a indicação precisa do (s) ilícito (s) criminal (ais) que lhe correspondem, bem como não impõe a indicação nesse momento dos elementos de prova que comprovem as suspeitas invocadas para a atribuição desse estatuto de arguido, operando-se por simples comunicação verbal ou escrita de que a partir desse momento deve considerar-se arguido num processo penal e de que lhe assistem os direitos e deveres processuais descritos no artigo 61º do Código de Processo Penal;
II. Face à necessidade de concordância prática de finalidades conflituantes que caracterizam o processo penal, a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada, o direito de contraditório não apresenta a mesma extensão em todas as fases processuais, apresentando-se limitado nas fases iniciais do processo, em especial no inquérito [no qual ocorre nos momentos legalmente definidos], ganhando densificação e plenitude na fase de julgamento (artigo 327º do CPP);
III. A realização do interrogatório a que alude o artigo 272º do Código de Processo Penal não tem uma função delimitadora do objecto do processo, que continua em aberto até à acusação, nem exige a fixação do enquadramento jurídico dos factos [que obviamente não compete ao órgão de policia criminal que, no caso dos autos, presidiu ao mesmo] mas tão só dar a conhecer o (s) comportamento (s) relativamente ao (s) qual (ais) está em curso uma investigação;…».
Volvendo ao presente inquérito, conclui-se, pois, que o objectivo do referido interrogatório não foi o de delimitar o objecto do inquérito, nem, tampouco, fixar o enquadramento jurídico dos factos — o que não competia ao órgão de polícia criminal que, (também) nos presentes autos, presidiu ao mesmo —, visando, outrossim, dar a conhecer os factos relativamente aos quais está em curso uma investigação.
Contudo, das várias diligências realizadas no presente inquérito, resulta, de forma explícita, que os arguidos já conheciam, embora em outras vestes, os factos relativamente aos quais decorre investigação. Note-se que a A S.A. foi colaborando com a investigação sempre que solicitado, como decorre das informações prestadas e juntas com as referências 6123462, 6617576, 7078067.
Por outro lado, também os ora arguidos L, V, C foram inquiridos, enquanto testemunhas, encontrando-se, de resto, os dois últimos, acompanhados por Advogados, tal como resulta dos autos de inquirição já supra referidos.
De resto, as refutações apresentadas no âmbito do requerimento apresentado pela sociedade arguida A, S.A., designadamente no ponto 4, são sobejamente reveladoras do conhecimento dos factos em investigação.
Assim, e contrariamente ao alegado, os arguidos foram informados dos factos em investigação no âmbito do interrogatório realizado, tendo o Ministério Público reservado para momento conveniente, no âmbito do inquérito ainda em curso, o interrogatório presidido, o qual será, oportunamente, agendado.
Notifique.

Inconformados com o assim decidido, os arguidos arguiram, junto do JIC, a irregularidade do transcrito despacho do MP, alegando a incompetência deste para decidir sobre o requerimento atrás mencionado.

Sobre tal arguição, pronunciou-se o Mmº Juiz de Instrução Criminal do seguinte modo (transcrição):

A apreciação dos requerimentos com as referências 7983460 e 7986390 é da exclusiva responsabilidade do titular do inquérito. Concorda-se, pois, com igual entendimento expresso sobre esta matéria pelo Ministério Público no despacho que se antecede, dando-se por reproduzidos os seus fundamentos.
Devolvam-se os autos.

Referia-se o Mmº Juiz de Instrução criminal ao despacho proferido pelo MP do seguinte teor (transcrição):

Remeta os autos ao/à M.mo/a Juiz de Instrução para apreciação do requerimento, consignando-se que se mantém a posição adoptada no despacho datado de 11-04-2024, com referência 99001912.
Com efeito, apreciando os requerimentos juntos aos autos com a referência 7821355, entendo que compete ao Ministério Público conhecer e decidir sobre a invalidade processual invocada, uma vez que os presentes autos se encontram em fase de inquérito e que não está em causa um acto da competência exclusiva do Juiz de Instrução, nos termos dos artigo 17.º, 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, nem, contrariamente ao alegado, a violação de direitos, liberdades e garantias dos arguidos A, S.A., M, L, V e C.
Em suma, acompanhando o entendimento vertido, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-09-2025 (relatado por João Amaro, no âmbito do processo 300/13.OT3STC-A.E1): «Na verdade, a competência do Juiz de Instrução na fase de inquérito (…) está delimitada por lei, nos arts. 17º, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal.
Tais actos encontram-se enumerados, de forma geral, nos citados artigos. Para além dos actos aí enumerados (de onde não consta a declaração de nulidade) há outros previstos no CPP, como sejam a título exemplificativo, a admissão da intervenção como assistente (art. 68º, nº 4), a concordância da suspensão provisória do processo (art. 281º, nº 1) ou a condenação em falta de pessoa regularmente notificada para comparecer em acto processual ou convocada para diligência.
(…) nas funções atribuídas ao Juiz de Instrução pelo legislador, não se compreende a de apreciação, em sede de inquérito, da nulidade de actos levados a cabo pelo Ministério Público. Assim, o juiz de instrução é competente para conhecer e declarar a nulidade, naturalmente, dos actos que são da sua competência e por si determinados nesse âmbito.
No âmbito do inquérito, o Ministério Público tem competência para decidir sobre os pressupostos processuais e, portanto, também competência para conhecer de nulidades e irregularidades processuais cometidas no âmbito do inquérito.»
No mesmo sentido, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-03-2021 (relatado por Filipa Costa Lourenço, no âmbito do processo 2413/11.3TAFAR-A.L1-9): «Durante a fase de inquérito compete ao Ministério Público a decisão sobre a arguição de irregularidades praticadas por si durante o inquérito, desde que estas não estejam compreendidas nos actos cuja competência esteja reservada ao JIC nessa mesma fase».
Pelo exposto, e dando-se por integralmente reproduzida a posição já adoptada no despacho de 11-04-2024, com referência 99001912, entendo que deverá ser indeferida a pretensão apresentada pelos arguidos A, S.A., M, L, V e C.

B – Recurso

Ainda inconformados, recorreram os arguidos, em peça única, com as seguintes conclusões (transcrição):

A. O presente recurso vem interposto do despacho do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal de 17.05.2024 (“Decisão Recorrida”), pelo qual o mesmo manteve o Despacho do MP de 11.04.2024, cuja irregularidade foi oportunamente invocada pelos Arguidos, e decidiu não conhecer dos requerimentos de arguição de irregularidade apresentados pelos Recorrentes em 14.02.2024 e 19.02.2024, aquando da sua constituição e interrogatório na qualidade de arguidos.
B. A Decisão Recorrida assenta num erro de Direito no que respeita à competência, aos poderes e às funções do juiz de instrução criminal em fase de inquérito.
C. Com efeito, ao entender que o juiz de instrução criminal não tem competência para conhecer de irregularidades no decurso da fase de inquérito, porquanto tal não resulta diretamente do disposto nos artigos 267.º a 269.º do CPP, o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente as referidas normas legais.
D. A autonomia do Ministério Público, consagrada no artigo 219.º n.º 2 da CRP, determina que o Ministério Público toma decisões sem interferência externas a essa magistratura, não sendo impedimento à intervenção provocada do juiz de instrução criminal na fase de inquérito, sempre que em causa estejam violações ou afetações de direitos fundamentais dos cidadãos, matéria que está reservada à competência jurisdicional.
E. Ao contrário do que parece resultar da Decisão Recorrida, da correta interpretação do disposto no artigo 219.º, n.º 2 da CRP não se retira que a direção do inquérito é feita pelo Ministério Público sem controlo jurisdicional, porquanto tal violaria o disposto nos artigos 202.º, 20.º, n.º 1 da CRP, nos termos dos quais é aos tribunais, a que todos têm direito de acesso, que cabe assegurar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
F. Não tem razão o Tribunal a quo ao sustentar que o juiz de instrução criminal não tem competência para conhecer de invalidades ocorridas em sede de inquérito.
G. Com efeito:
(i) o juiz de instrução criminal é o juiz das liberdades, cabendo-lhe assegurar que os direitos, liberdades e garantias de todos os envolvidos no processo são respeitados;
(ii) ao contrário do que resulta do Despacho Recorrido, dos artigos 267.º a 269.º do CPP não resulta um numerus clausus de situações em que o juiz de instrução criminal intervém em sede de inquérito;
(iii) os artigos 267.º a 269.º do CPP têm de ser conjugados com o disposto no artigo 17.º do CPP que impõe que o juiz de instrução criminal exerce todas as funções jurisdicionais até o processo ser remetido para julgamento;
(iv) conjugando o artigo 17.º do CPP com o disposto nos artigos 202.º e 20.º n.º 1 da CRP, resulta que o juiz de instrução criminal tem competência para a apreciação de nulidades e irregularidades cometidas em sede de inquérito em tudo o que respeite a direitos, liberdades e garantias, cujo conhecimento está, constitucionalmente, reservado a juiz;
(v) esse conhecimento não pode ser feito apenas quando o processo alcançar fase ulterior presidida por juiz, dado que (a) não se suspende o prazo para arguição de qualquer nulidade ou irregularidade cometida em sede de inquérito até a fase processual presidida por juiz, (b) as invalidades, se não forem arguidas em tempo, ter-se-ão por sanadas e, sendo arguidas no decurso do inquérito, sendo decididas pelo Ministério Público, não poderão ser impugnadas e (c) a Constituição não se coaduna com a suspensão do direito de arguição de nulidades ou irregularidades até à fase processual presidida por juiz.
H. No caso presente, está em causa o conhecimento pelo juiz de instrução criminal de requerimentos de arguição de irregularidade apresentados por cada um dos Arguidos em relação (i) à respetiva constituição como Arguidos fora dos casos previstos nos artigos 57.º e 58.º do CPP, com violação destes preceitos e dos artigos 2.º, 20.º n.º 4, 26.º, 32.º n.º 1 e 202.º da CRP; e (ii) aos respetivos interrogatórios, na qualidade de arguidos, por terem sido realizados em incumprimento do disposto no artigo 61.º n.º 1 alínea c) e 141.º n.º 4 alíneas d) e e) por remissão do disposto no artigo 144.º n.º 1 todos do CPP, por não lhes terem sido comunicados: (a) os factos que concretamente teriam praticado ou que lhes seriam imputados com relevância criminal (b) nem os elementos específicos do processo que indiciariam esses factos omissão de comunicação de factos previamente aos seus interrogatórios.
I. Dúvidas não existem de que estão em causa direitos fundamentais dos (agora) Arguidos, nomeadamente, os decorrentes dos artigos 2.º, 20.º, n.º 1, 26.º, 32.º n.º 1, 44.º e 202.º, n.º 1 da CRP.
J. Com efeito, a constituição de alguém como arguido é um ato sujeito a critérios legais, exatamente porque contende com direitos fundamentais, desde logo com a imagem, a reputação e a credibilidade da pessoa em causa, pela associação da mesma à suspeita da prática de um crime, mas também decorrentes da sujeição a um conjunto de deveres próprios e ao termo de identidade e residência.
K. Nessa medida, a constituição de alguém como arguido sem razão para tal sem a existência de uma suspeita fundada e o seu interrogatório nessa qualidade, sem que lhe sejam assegurados todos os meios para a sua defesa contendem com direitos fundamentais, sendo, consequentemente, a irregularidade dessa constituição e desse interrogatório, mesmo que arguidas em sede de inquérito, da competência do juiz de instrução criminal.
L. A norma que resulta da interpretação a contrario dos artigos 267.º a 269.º do CPP, no sentido de o juiz de instrução criminal não ter competência no inquérito para decidir de irregularidades de atos do Ministério Público, é materialmente inconstitucional, por violar: (i) o direito dos arguidos de acesso ao direito e aos tribunais para fazer valer os seus direitos fundamentais, previsto no artigo 20.º da CRP, (ii) o disposto no artigo 32.º da CRP, na medida em que poria em causa as garantias de defesa e a estrutura acusatória do processo criminal e (iii) a reserva de competência jurisdicional prevista no artigo 202.º da CRP.
M. Deve, consequentemente, a Decisão Recorrida ser revogada e ser ordenada a sua substituição por outra que conheça dos requerimentos de arguição de irregularidade submetidos em 14.02.2024 e 19.02.2024 pelos Arguidos.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o Despacho recorrido e substituído por outro que conheça das nuludades/irregularidades suscitadas pelos Arguidos, ora Recorrentes, ocorridas na diligência de constituição de Arguidos.

C – Resposta ao Recurso

O MP respondeu ao recurso, deduzindo as seguintes conclusões (transcrição):

1. O Ministério Público é competente para decidir sobre os pressupostos processuais e para conhecer de nulidades e irregularidades processuais invocadas pelos arguidos, porquanto os autos se encontram na fase de inquérito, não se tratando, por um lado, de um acto da competência reservada Juiz de Instrução Criminal, nos termos dos artigos 17.º, 268.º e 269.º, todos do Código de Processo Penal, nem, por outro lado, potencialmente lesivo dos direitos, liberdades ou garantias da arguida que imponha a intervenção jurisdicional, nos termos do artigo 20.º § 5, da Constituição da República Portuguesa.
2. A decisão proferida pelo Tribunal a quo, ao declarar-se incompetente para conhecer da nulidade processual invocada pelos arguidos, não assenta em qualquer erro de Direito, no que respeita à competência, aos poderes e às funções do Juiz de Instrução Criminal em fase de inquérito, e tampouco se mostra violadora de quaisquer normas ou princípios, designadamente «(…) o direito dos arguidos ao acesso ao direito e aos tribunais para fazer valer os seus direitos fundamentais, previsto no artigo 20.º da CRP…»; «(…)o disposto no artigo 32.º da CRP, na medida em que poria em causa as garantias de defesa e a estrutura acusatória do processo criminal…»; e «(…) a reserva de competência jurisdicional prevista no artigo 202.º da CRP.».
3.A decisão recorrida não merece qualquer reparo, de facto ou de direito, devendo ser integralmente mantido o despacho proferido pelo Tribunal a quo.
4.Assim, pelo exposto, é forçoso concluir que o recurso apresentado pelos arguidos A, S.A., M, L, V e C não merece qualquer provimento.

D – Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que emitiu o seguinte parecer (transcrição):

Retornando à tese formulada pelo(s) arguido(s) pela pena do(s) seu(s) Ilustres mandatários temos, por identificado o “nó górdio” da questão levada ao alto conhecimento de Vossas Excelências, Distintos Desembargadores e que se resume, da seguinte forma:
(i) conjugando o artigo 17.º do CPP com o disposto nos artigos 202.º e 20.º n.º 1 da CRP, resulta que o juiz de instrução criminal tem competência para a apreciação de nulidades e irregularidades cometidas em sede de inquérito em tudo o que respeite a direitos, liberdades e garantias, cujo conhecimento está, constitucionalmente, reservado a juiz;
(ii) No caso presente, está em causa o conhecimento pelo juiz de instrução criminal de requerimentos de arguição de irregularidade apresentados por cada um dos Arguidos em relação (i) à respetiva constituição como Arguidos fora dos casos previstos nos artigos 57.º e 58.º do CPP, com violação destes preceitos e dos artigos 2.º, 20.º n.º 4, 26.º, 32.º n.º 1 e 202.º da CRP; e (ii) aos respetivos interrogatórios, na qualidade de arguidos, por terem sido realizados em incumprimento do disposto no artigo 61.º n.º 1 alínea c) e 141.º n.º 4 alíneas d) e e) por remissão do disposto no artigo 144.º n.º 1 todos do CPP, por não lhes terem sido comunicados: (a) os factos que concretamente teriam praticado ou que lhes seriam imputados com relevância criminal (b) nem os elementos específicos do processo que indiciariam esses factos omissão de comunicação de factos previamente aos seus interrogatórios.
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Como atrás se deixou enunciado a questão em apreço prende-se em saber se a tese defendida pelos arguidos de que o juiz de instrução criminal tem competência para a apreciação de nulidades e irregularidades cometidas em sede de inquérito em tudo o que respeite a direitos, liberdades e garantias, cujo conhecimento está, constitucionalmente, reservado a juiz é a mais consentânea com a estrutura do nosso processo penal.
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No nosso modesto parecer e pese embora a valia dos argumentos esgrimidos pela nossa Ex.ma Colega na 1ª instância, a razão estará, de facto, com os arguidos / recorrentes.
É, consabido que a estrutura basicamente acusatória do processo penal confere ao MºPº, a titularidade do inquérito e a direcção da investigação criminal conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 32.º, § 5.º e 219.º CRP e 53.º, 262.º, 263.º, 277.º e 283.º CPP).
Porém, importa atender à matriz constitucional relativamente a esta matéria e que se mostra plasmada no artº 20 da CRP.
Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
*
Importa, deste modo, no nosso modesto parecer, conjugar as disposições legais processuais penais à luz da Constituição.
Porém, no caso em apreço, a decisão recorrida – em linha com a posição sustentada pela nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância, “arrima-se” (perdoe-se-nos a expressão) na tese segundo a qual na fase de inquérito é ao MP – e só ao MP - que cabe apreciar nulidades e irregularidades de quaisquer atos, cingindo-se a tutela jurisdicional ao catálogo (taxativo) dos artigos 268.º e 269.º CPP ou à possibilidade de as sindicar em sede de instrução.
Isto é, a intervenção do JIC no inquérito tem caráter absolutamente excecional e cinge-se aos atos lesivos de direitos fundamentais que o legislador elegeu e vazou naqueles retábulos normativos e noutros especialmente previstos, nos termos da remissão feita na al. f) do § 1.º do artigo 269.º.
Porém e apesar de se reconhecer abalizada jurisprudência neste sentido (Ac. Relação de Lisboa de 15.03.2021, Filipa Costa Lourenço, no âmbito do processo 2413/11.3TAFAR-A.L1 -9), entende-se ser mais curial atender a uma visão mais alargada e uma conjugação mais densificada das normas constitucionais ou não fosse o direito processual penal um verdadeiro direito constitucional aplicado (H. Henkel) (Vide Jorge Miranda, Processo Penal de direito à palavra, disponível em 11017-Artigo-19658-1-10-202202.03.pdf)
Mais adiante, o Ilustre Processor refere: “…sem uma rigorosa interpretação sistemática da Constituição – da Constituição material do país num determinado tempo – não se consegue chegar aos critérios e aos valores que conformam (ou hão-de conformar) as leis de processo e fazer a sua correcta transposição para as situações da vida (Pag. 46).
Neste sentido, saliência para o Ac. Relação de Évora de 23.03.2021, relator Moreira das Neves, no âmbito do processo nº 3/16.3AELSB-B.E1 donde se transcreve, com a devida e merecida vénia, onde se refere: “… Em retas contas, como é sabido, havendo várias possibilidades de interpretação de uma norma, umas conformes e outras desconformes à Constituição, só dentre as primeiras se pode eleger a que melhor se ajusta aos valores nela impregnados, pois que o comando normativo da interpretação conforme à Constituição (artigo 3.º CRP) tem a estrutura de uma regra (e não de um princípio ), daí derivando a recusa das interpretações inconstitucionais.
E, mais adiante, prossegue: Seria, pois, contraditório, a mais de juridicamente insuportável, que a Constituição consagrasse um catálogo de direitos fundamentais e erigisse uma ampla tutela dos mesmos, atribuindo-lhes garantia jurisdicional direta (artigo 20.º, § 5.º e 32.º, § 4.º CRP) e depois permitisse ao legislador ordinário a liberdade de restringir tal catálogo, ou, no que redundaria em espécie do mesmo género, atribuir a qualquer outra autoridade a competência para aferir da lesividade dos atos que relevantemente afetem os direitos ou liberdades fundamentais dos cidadãos (por mor disso também dos cidadãos arguidos).
Nesta matéria importa também atender ao referido no Ac. do Tribunal Constitucional nº 387/20194 (Relatora Maria de Fátima Mata-Mouros), onde a dado passo se refere: “… Numa visão de conjunto dos critérios dogmáticos que explicam, em geral, a intervenção do juiz no inquérito ressalta a pertinência na imposição de uma reserva de apreciação judicial nos casos de grave ingerência nos direitos fundamentais ou de impossibilidade (ou possibilidade meramente tardia) de estabelecimento do contraditório em ordem a evitar o perigo de ocorrência de prejuízos irreparáveis.
Efetivamente, «a gravidade de uma medida restritiva de direitos justifica a necessidade de a sua autorização ser atribuída a um órgão independente, tal como os imperativos de eficácia da realização em sigilo da investigação exigem uma compensação de garantias jurídicas pela impossibilidade do prévio estabelecimento do contraditório. Nesta perspetiva, a reserva de juiz representa uma medida de cautela que assegura a tutela possível dos direitos fundamentais num primeiro momento, isto é, uma tutela jurídica preventiva» (MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, Juiz das Liberdades. Desconstrução de um mito do processo penal, 2011, Almedina, p. 100). Trata-se de assegurar a tutela possível na autorização ou validação de medidas de investigação que configuram ingerências graves em direitos fundamentais. É neste quadro que se impõe reconhecer na reserva de juiz uma função preventiva da proteção dos direitos.
Traduzindo uma função de proteção de direitos fundamentais, a referida competência do juiz no inquérito constitui, portanto, a regra. Em conformidade, a intervenção reservada ao juiz no inquérito deverá, tanto quanto possível, consistir numa intervenção prévia, devendo ser vista como excecional a intervenção do juiz que surge apenas após o início da execução da medida (neste sentido, vide MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, Juiz das Liberdades, ob. cit., p. 185).
Assim, pode afirmar-se que quanto mais grave se afigurar a ingerência, ou mesmo quanto maior se afigurar poder vir a ser a dificuldade de reparação do dano ou reposição do direito, mais prematura deve ser a intervenção do juiz.
Alerta, com total aplicabilidade ao caso em apreço, no acima referido acórdão, o Ilustre Desembargador da Relação de Évora: “… Não por acaso mas por consequência, é este exatamente o caminho trilhado pela doutrina mais qualificada, como é o caso de Jorge de Figueiredo Dias, Nuno Brandão, Maria João Antunes e José Mouraz Lopes, expressando os primeiros, com proficiente clareza que:
«No nosso sistema legal, a participação do juiz de instrução no inquérito não se cinge à prática dos atos referidos no n.º 1 do art. 268.º do CPP e à ordenação ou autorização dos atos referidos no n.º 1 do art. 269.º do CPP.
(…) Um exemplo de atos legalmente atribuídos ao juiz de instrução que extravasam o elenco de competências previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP é o das decisões de validação que ao juiz de instrução são confiadas em vários domínios: v.g., a validação da aplicação do segredo de justiça decidido pelo Ministério Público (art. 86.º, n.º 3, do CPP); ou a validação de buscas, não domiciliárias e domiciliárias, efetuadas por órgão de polícia criminal sem prévia autorização de autoridade judiciária nos casos de terrorismo e de criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa (artigos 174.º, n.º 6, e 177.º, n.º 4, do CPP).
A consagração legal destas intervenções judiciais a posteriori, com a natureza de atos de validação, é demonstrativa de que o Código reserva ao juiz de instrução um papel que vai para além da esfera de competência delimitada pelos artigos 268.º e 269.º do CPP.
Aqui chegados podemos concluir, com o respaldo de tão ilustres contribuições que o juiz de instrução detém competência para, durante o inquérito, conhecer e decidir pedidos que lhe sejam dirigidos pelo arguido ou por outras pessoas com interesse em agir para sindicar atos, do Ministério Público ou de órgãos de polícia criminal, que possam contrariar normas consagradoras de proibições de prova ou a apreciação de nulidade ou invalidades relativas à constituição de uma pessoa como arguida e à subsequente prestação de termo de identidade e residência. Poder decisório que não se encontra limitado ao elenco de atos previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP e no qual vai implicada a possibilidade de o juiz de instrução decretar a proibição de utilização ou valoração das provas maculadas em virtude de inobservância dessas normas.
Nesta esteira e à guiza de conclusão e com a necessária e devida vénia merece referência a seguinte passagem no já citado acórdão desta Veneranda Relação de Évora: “… Será do mesmo modo esta a conclusão, substancialmente pelas mesmas razões, a tirar relativamente aos atos processuais restritivos de direitos fundamentais dos visados aos quais sejam opostas arguições de invalidade: também em relação a eles deve ser reconhecida a competência do juiz de instrução para, na pendência da fase de inquérito, proceder ao controlo da sua legalidade…”.
Vale isto tudo para afirmar e concluir que a Constituição e a lei deferem ao JIC a competência para dirimir os conflitos entre os órgãos encarregados da perseguição criminal e os titulares desses direitos, “… emergentes da aflição de direitos, liberdades ou garantias fundamentais…” (Como é referido no Ac. Relação de Évora de 23.03.21).
Retornando, às circunstâncias do caso em apreço, vemos que o que foi requerido pelos arguidos ao JIC de Setúbal foi justamente que este sindicasse a validade de ato do Ministério Público e as consequências eventualmente lesivas decorrentes da sua(s) constituição(ões) como arguido(s) e prestação do TIR (artº 196 CPP).
Concluindo e no nosso modesto parecer, o juiz de instrução de Setúbal é a entidade competente para aferir se o ato determinado pelo Ministério Público (constituição como arguidos dos visados) respeitou as normas legais aplicáveis no caso concreto.
*
Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto, deve ser concedido provimento ao recurso apresentado pelos arguidos A, S.A., M, L, V e C e, nessa conformidade, declarar que o juiz de instrução é materialmente competente para apreciar e decidir o requerimento apresentado pelos arguidos.

Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 d CPP, não houve resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão aos recorrentes quando entendem que o juiz de instrução criminal tem competência para a apreciação de nulidades e irregularidades cometidas em sede de inquérito em tudo o que respeite a direitos, liberdades e garantias.

B – Apreciação

Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica e com distintas posições acolhidas na jurisprudência, afigura-se-nos que a razão assiste aos recorrentes.
A questão essencial que se coloca no presente recurso respeita, como se disse, ao papel do juiz de instrução criminal na fase de inquérito, designadamente, se tem, ou não, competência para conhecer da nulidade e/ou irregularidade da constituição de alguém como arguido levada a cabo pelo MP e da arguição da irregularidade/nulidade de um interrogatório nessa qualidade.
In casu, entendeu o JIC, subscrevendo os fundamentos do MP, que só este tem competência para apreciar eventuais irregularidades por si cometidas aquando do acto de constituição de arguidos, já que a sua intervenção, na fase de inquérito, está limitada por lei, nada nesta se referindo quanto à apreciação de invalidades ocorridas em sede de inquérito.
Com o devido respeito por opinião contrária, defende-se a tese que tal entendimento não se coaduna com a matriz constitucional que para o caso releva e com a necessária densificação das normas processuais penais por via do imperativo resultante da norma fundamental.
É, consabido que o nosso processo penal assenta numa estrutura basicamente acusatória, onde é conferida ao MP a titularidade do inquérito e a direcção da investigação criminal (Artsº 32 nº5 e 219, ambos da CRP e 53, 262, 263, 277 e 283, todos do CPP).
Todavia, a autonomia do MP, consagrada no Artº 219 nº2 do CRP e de onde resulta que o titular da acção penal toma decisões sem interferências externas, não é posta em causa pela intervenção provocada do juiz de instrução criminal na fase de inquérito, sempre que em causa estejam violações ou afectações de direitos fundamentais dos cidadãos, matéria que está, constitucionalmente reservada, à competência jurisdicional.
Daqui decorre, inelutavelmente, que a direcção do inquérito e da investigação criminal, da exclusiva competência do MP, não é feita sem qualquer controlo jurisdicional, pois isso implicaria uma grosseira violação do estatuído no nº1 do Artº 20 da CRP, que postula a verificação judicial dos direitos, liberdades e garantias e a necessidade de os tribunais assegurarem os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
O juiz de instrução criminal é, como se sabe, o garante dos direitos, liberdades e garantias dos intervenientes processuais, papel que, necessariamente, terá de desenhar a leitura dos Artsº 268 e 269, ambos do CPP, os quais, todavia, não prevêem expressamente a apreciação pelo juiz de instrução criminal das invalidades em sede de inquérito.
Porém, é pacífico na lei, na doutrina e na jurisprudência que o legislador, naqueles normativos, não estabeleceu um numerus clausus no que respeita às competências do juiz de instrução, nomeadamente, no que toca à sua intervenção no inquérito.
Daí que se diga, com propriedade, que os poderes e as competências do juiz de instrução criminal não se resumem aos actos expressamente previstos nos Artsº 268 e 269, ambos do CPP, havendo que convocar o estatuído no seu Artº17, onde se diz que“compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos previstos neste Código”.
Conforme se disse no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/09/15 (Proc. 208/13.9TELSB.L1-9):
“…[s]e o legislador tivesse pretendido que a intervenção do juiz de instrução se cingisse apenas aos casos expressamente previstos na lei, não teria lançado mão de normas em branco em matéria de competência mesmo, ainda que de forma ambígua, nas normas em que especificadamente a consagra como são os artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal.
É tendo na base esta opção legislativa, a qual se compreende dado o melindre das matérias em causa, que o legislador, em matéria de apreciação de nulidades cometidas em sede de inquérito, parece apontar para uma competência do juiz de instrução, em tudo que se prenda com direitos liberdades e garantias.
Esta mesma percepção pode ser retirada das disposições do Código de Processo Penal em matéria de nulidades. Na verdade, ainda que o legislador não diga expressamente a quem compete apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito, o mesmo, no inciso 122º nº 3 do Código de Processo Penal, relativo aos efeitos da declaração de nulidade, estatui que, “Ao declarar a nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”. Em todo o articulado referente às nulidades, com excepção deste preceito, nunca se faz qualquer referência à competência do juiz ou do Ministério Público, nem se distinguem as várias fases do processo criminal, para além do que resulta da tipificação das várias nulidades expressamente cominadas.
(…)
O princípio do acusatório não implica, nem exige estanquicidade nas várias fases do processo no que respeita à intervenção dos vários órgãos com competência em sede processo criminal. O que exige, por força do julgamento justo e equitativo que resulta das várias normas constitucionais em matéria de processo criminal e de direitos liberdades e garantias, é que a apreciação de todas as questões em que os mesmos estejam em causa, seja feita por um órgão jurisdicional, neste caso o juiz de instrução, atenta as suas garantias de independência e imparcialidade.”
Ainda no sentido de que as invalidades – nulidades ou irregularidades –, ainda que cometidas em sede de inquérito, devem ser conhecidas pelo juiz de instrução criminal, sempre que estiverem em causa direitos, liberdades e garantias, pronunciou-se a mesma Relação, em 07/12/16, no Proc. 333/14.9TELSB-3, em termos que se subscrevem por inteiro:
“Ainda que o MP seja quem dirige o Inquérito, o JIC é o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias. Sempre que lhe pareça estarem a ser postos em causa Direitos, Liberdades ou Garantias, é da competência do JIC pronunciar-se sobre tal questão mesmo que a matéria em causa, seja o da competência do MP.
Na verdade é ao MP que cabe exclusivamente a direção do inquérito – artº 263º CPP - devendo dirigir a investigação, ordenar a recolha de meios de prova necessários à recolha de indícios, determinar os agentes de um crime e as respectivas responsabilidades tudo com vista à formulação do libelo acusatório ou ao arquivamento da investigação/ inquérito.
No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos/observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205 º, 268º e 269º do CPP e sem esquecer o artº 17º do CPP e a nossa Lei Fundamental.
O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades.
Ora, entendendo que existem aqui duas situações que devem ser tidas em conta, uma que se prende com a conduta do MP e que só pode ser atacada por via hierárquica enquanto for ele o Dominus do Inquérito e outra, em que, nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se pronunciar, há que tomar posição quanto ao recurso em causa.
É uma das garantias de direitos que a lei confere a cada cidadão, saber do que vem acusado, porquê e de que forma – artº 61º nº 1 c) para que se possa defender devidamente.
Ao JIC cabe pronunciar-se pela violação ou não desse direito de defesa, ou garantia do mesmo.
É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões – artº 202.º CRP, porque compete aos tribunais assegurar a “defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” - artigo 32.º da CRP, nº 1 do artigo 20º CRP.
Assim, entende este Tribunal que é o Mmº JIC o competente para se pronunciar sobre o que lhe foi requerido se, como Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias entender que estão a ser postos em causa.”
Ora, se o juiz de instrução criminal é, como se sabe, o juiz das liberdades, e se do plasmado nos Artsº 267 a 269, ambos do CPP, não resulta – ao contrário do que parece indiciar o despacho recorrido - um numerus clausus de situações em que o juiz de instrução criminal intervém em sede de inquérito, parece ser necessário conjugar estas normas com o disposto no Artº 17 do mesmo Código, que impõe a intervenção de o juiz de instrução criminal, até o processo ser remetido para julgamento, sempre que dele se reclame o exercício de uma função jurisdicional.
Nesta medida, da conjugação destas três normas, resulta que o juiz de instrução criminal tem competência para a apreciação de nulidades e irregularidades cometidas em sede de inquérito em tudo o que respeite a direitos, liberdades e garantias, desde logo, por tal conhecimento lhe estar, constitucionalmente reservado.
Com efeito, como bem dizem os recorrentes “…esse conhecimento não pode ser feito apenas quando o processo alcançar fase ulterior presidida por juiz, dado que (a) não se suspende o prazo para arguição de qualquer nulidade ou irregularidade cometida em sede de inquérito até a fase processual presidida por juiz, (b) as invalidades, se não forem arguidas em tempo, ter-se-ão por sanadas e, sendo arguidas no decurso do inquérito, sendo decididas pelo Ministério Público, não poderão ser impugnadas e (c) a Constituição não se coaduna com a suspensão do direito de arguição de nulidades ou irregularidades até à fase processual presidida por juiz.”
Ora, na situação concreta, dúvidas não podem existir que estão em causa direitos fundamentais dos arguidos e ora recorrentes, nomeadamente, os decorrentes dos Artsº 2, 20 nº1, 26, 32 nº1 e 202 nº1, todos da CRP, pelo que outro não pode ser o entendimento sob pena de se violar o tecido constitucional nesta malha apertada dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Como lapidarmente se escreveu em aresto desta Relação de 23/03/21, no Proc. nº 3/16.3AELSB-B.E1:
“Em retas contas, como é sabido, havendo várias possibilidades de interpretação de uma norma, umas conformes e outras desconformes à Constituição, só dentre as primeiras se pode eleger a que melhor se ajusta aos valores nela impregnados, pois que o comando normativo da interpretação conforme à Constituição (artigo 3.º CRP) tem a estrutura de uma regra (e não de um princípio ), daí derivando a recusa das interpretações constitucionais.
(…)
Seria, pois, contraditório, a mais de juridicamente insuportável, que a Constituição consagrasse um catálogo de direitos fundamentais e erigisse uma ampla tutela dos mesmos, atribuindo-lhes garantia jurisdicional direta (artigo 20.º, § 5.º e 32.º, § 4.º CRP) e depois permitisse ao legislador ordinário a liberdade de restringir tal catálogo, ou, no que redundaria em espécie do mesmo género, atribuir a qualquer outra autoridade a competência para aferir da lesividade dos atos que relevantemente afetem os direitos ou liberdades fundamentais dos cidadãos (por mor disso também dos cidadãos arguidos).
(…)
Não por acaso mas por consequência, é este exatamente o caminho trilhado pela doutrina mais qualificada, como é o caso de Jorge de Figueiredo Dias, Nuno Brandão, Maria João Antunes e José Mouraz Lopes , expressando os primeiros, com proficiente clareza que:
«No nosso sistema legal, a participação do juiz de instrução no inquérito não se cinge à prática dos atos referidos no n.º 1 do art. 268.º do CPP e à ordenação ou autorização dos atos referidos no n.º 1 do art. 269.º do CPP.
(…) Um exemplo de atos legalmente atribuídos ao juiz de instrução que extravasam o elenco de competências previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP é o das decisões de validação que ao juiz de instrução são confiadas em vários domínios: v.g., a validação da aplicação do segredo de justiça decidido pelo Ministério Público (art. 86.º, n.º 3, do CPP); ou a validação de buscas, não domiciliárias e domiciliárias, efetuadas por órgão de polícia criminal sem prévia autorização de autoridade judiciária nos caso de terrorismo e de criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa (artigos 174.º, n.º 6, e 177.º, n.º 4, do CPP).
A consagração legal destas intervenções judiciais a posteriori, com a natureza de atos de validação, é demonstrativa de que o Código reserva ao juiz de instrução um papel que vai para além da esfera de competência delimitada pelos artigos 268.º e 269.º do CPP.
Será do mesmo modo esta a conclusão, substancialmente pelas mesmas razões, a tirar relativamente aos atos processuais restritivos de direitos fundamentais dos visados aos quais sejam opostas arguições de invalidade: também em relação a eles deve ser reconhecida a competência do juiz de instrução para, na pendência da fase de inquérito, proceder ao controlo da sua legalidade.”
Aqui chegados podemos concluir, com segurança, que quer a Constituição, quer a Lei processual penal, atribuem ao JIC a competência para apreciar requerimentos onde se procure sindicar actos do MP, durante o inquérito, que possam traduzir uma violação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como é o caso da constituição de uma pessoa como arguida.
Como acertadamente notam os recorrentes:
“…a constituição de alguém como arguido é um ato sujeito a critérios legais, exatamente porque contende com direitos fundamentais, desde logo com a imagem, a reputação e a credibilidade da pessoa em causa, pela associação da mesma à suspeita da prática de um crime, mas também decorrentes da sujeição a um conjunto de deveres próprios e ao termo de identidade e residência.
Nessa medida, a constituição de alguém como arguido sem razão para tal sem a existência de uma suspeita fundada e o seu interrogatório nessa qualidade, sem que lhe sejam assegurados todos os meios para a sua defesa contendem com direitos fundamentais, sendo, consequentemente, a irregularidade dessa constituição e desse interrogatório, mesmo que arguidas em sede de inquérito, da competência do juiz de instrução criminal.”
Ora, o que por estes é desejado é que o JIC, no âmbito das suas competências como juiz das liberdades, sindique a validade do acto do MP de os ter constituído como arguidos, já que, em seu entender, o mesmo apresentava diversas irregularidades e/ou nulidades, com as consequências lesivas daí decorrentes, nomeadamente, no interrogatório efectuado nessa qualidade e na prestação da medida de coacção de TIR, nos termos do Artº 196 do CPP.
Caberá, pois, ao Mmº JIC, nos termos combinados dos Artsº 267 a 269 e 17, todos do CPP, apreciar os requerimentos apresentados pelos recorrentes e relativos à arguição de invalidade das diligências de constituição de arguidos e interrogatório nessa qualidade.
E assim procede o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, que conheça dos requerimentos apresentados pelos ora recorrentes, onde se argui a irregularidade/nulidade da constituição destes como arguidos, bem como, dos respectivos interrogatórios em tal qualidade.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 19 de novembro de 2024
Renato Barroso
Maria José Cortes
Fátima Bernardes