AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
INVENTÁRIO MORTIS CAUSA
Sumário

I – Para efeitos do disposto no art.º 272º, n.º 1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando a decisão desta última pode afetar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.
II – A pendência de processo de inventário mortis causa, no qual deva ser considerado, para efeito do cálculo da legítima (art.º 2.162º do Código Civil), o valor dos imóveis doados pelo de cuius a dois dos seus descendentes, que os adquiriram em compropriedade, não constitui causa prejudicial determinante da suspensão da ação de divisão de coisa comum instaurada por um dos donatários/herdeiros contra o outro, uma vez que a decisão final que vier a ser proferida neste processo não corre o risco de se vir a revelar (supervenientemente) inútil, contraditória ou destituída de fundamento em resultado do prosseguimento da tramitação daquele inventário.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I. Relatório
AA e mulher BB instauraram ação de divisão de coisa comum contra CC, alegando que o requerente marido e a requerida são comproprietários, na proporção de metade, de dois imóveis, que identificam e que afirmam ser indivisíveis em substância.
Foram juntas aos autos as certidões da descrição predial desses imóveis.
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A ré contestou e deduziu reconvenção, invocando, para além do mais, a título de questão prévia, a existência de causa prejudicial ao julgamento da ação.
Disse, para o efeito, que os bens imóveis em causa, que foram adquiridos por doação dos pais de ambos, irão ser objeto de partilha no inventário que se encontra a correr por morte da sua mãe, no qual figuram como interessados, para além do requerente marido e da requerida, o cônjuge sobrevivo, pais de ambos, e um outro irmão.
Uma vez que tais doações deverão ser objeto de colação, existe uma probabilidade séria de se vir a concluir pela ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, com as consequência daí decorrentes, pelo que a decisão que venha a ser tomada no referido inventário pode afetar ou mesmo destruir a razão de ser da ação de divisão de coisa comum.
Assim, invocando o disposto no art.º 272.º do Código de Processo Civil, requereu a suspensão da ação até que seja julgada, com trânsito, a ação de inventário.
Foi junta a certidão que atesta a pendência do supra mencionado processo de inventário.
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Na sequência processual, foi proferido o seguinte despacho:
Em sede de contestação, a requerida veio requerer a suspensão da presente instância, alegando, em suma, que corre no Juízo Local Cível de Viseu – J... – o processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de DD, tendo o mesmo sido proposto pelo aqui requerente e no qual a requerida, juntamente com aquele e com EE figuram como interessados.
Mais alegou que os bens que constituem o objeto dos presentes autos foram por si e pelo requerente adquiridos por doação e que é de prever que os mesmos sejam objeto de discussão no inventário, podendo ser desapossados dos mesmos atendendo ao valor dos bens em causa, à quota disponível e à verificação ou não de colação, existindo a hipótese de as referidas doações, ocorridas em vida da mãe do requerente e da requerida, ofenderem a legítima e, nessa medida, serem chamados à colação, com as consequências daí decorrentes.
Conclui, então, que a decisão que venha a ser tomada no referido processo de inventário pode afetar ou destruir a razão de ser dos presentes autos.
O requerente pronunciou-se no sentido de que os presentes autos devem prosseguir.
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Sobre a suspensão da instância por determinação do juiz ou por acordo das partes dispõe o art. 272.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1 que «o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado», continuando o n.º 2 que «não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens». Por sua vez, o n.º 3 do citado preceito dispõe que «quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância» e termina o n.º 4 que «as partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final».
Desde logo, resulta dos articulados que inexiste acordo entre as partes, pelo que fica afastada a suspensão da instância por essa via.
Assim, cumpre indagar se a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos está dependente do julgamento de outra causa já proposta ou se ocorre motivo justificado para a suspensão da instância. Sendo certo que, caso assim se conclua, será de ponderar a aplicação do mecanismo de controlo previsto no n.º 2 do citado preceito.
Nessa indagação deve ter-se subjacente a ideia de que a suspensão da instância nos termos do art. 272.º do Código de Processo Civil consubstancia uma vicissitude de natureza excecional, prevista a par de casos especiais de suspensão da instância, pelo que deve ser mobilizada com moderação, tanto mais quando o fundamento é a alegada pendência de causa prejudicial.
Destarte, acompanhamos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, quando referem que «apenas podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa» e que «deve comprovar-se uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui pressuposto de outra decisão»
Para apurar da existência de um nexo de prejudicialidade entre duas ações há, então, que ponderar se a decisão de uma é suscetível de afetar a decisão a proferir na outra, a analisar na perspetiva da economia e coerência de julgamentos, concluindo-se que «uma causa é prejudicial à outra quando a decisão da primeira possa destituir o fundamento ou a razão de ser da segunda»
Volvendo ao caso em apreço, para efeitos da apreciação daquele nexo de prejudicialidade temos a considerar os presentes autos e os autos de inventário que correm termos no Juízo Local Cível de Viseu – J... – de modo a aquilatar se, tal como asseverado pela requerida, o desfecho desses autos deixará sem fundamento ou razão de ser os presentes autos de divisão de coisa comum.
O argumento mobilizado pela requerida vai no sentido de que os bens objeto dos presentes autos, tendo sido doados às aqui partes, podem ofender a legítima e nessa medida, serem chamados à colação.
Como salienta a requerida, nos termos do art. 2162.º do Código Civil, para o cálculo da legítima - e da quota disponível - deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança. Donde, a herança para efeitos do cálculo da legítima compreende, além do mais que aqui não releva, os bens existentes no património do de cujus à data do seu decesso e os que daquele foram distraídos em vida do autor da sucessão por via de doação.
Donde, dúvidas inexistem que os bens doados, como os em causa nos presentes autos de divisão de coisa comum, devem, pelo menos em abstrato, ser relacionados no âmbito de processo de inventário.
No entanto, é também evidente que os bens doados apenas são relacionados [com] […] vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, não sendo os mesmos partilhados precisamente por terem sido doados em vida, ou seja, por já não integrarem o património do de cujus à data do óbito.
Nessa medida, qualquer que seja o desfecho do processo de inventário, aí não será proferida qualquer decisão que contenda com o direito de compropriedade titulado pelo requerente e pela requerida quanto aos bens cuja divisão está em causa nos presentes autos, isto porque tais bens, porque doados em vida, não vão ser objeto de qualquer partilha entre os interessados no processo de inventário. Quando muito, em virtude das operações da partilha poderão ser devidas tornas pelos seus titulares, mas tal não esvazia nem sequer contende com a decisão a proferir no âmbito da ação de divisão de coisa comum.
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Pelo exposto, não determino a suspensão da instância.
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Inconformada com esta decisão, apresentou a requerida recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

(…).

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Notificados das alegações de recurso interpostas pela requerida, apresentaram os requerentes resposta, pela qual defendem a manutenção da decisão de indeferimento da suspensão da instância requerida.


II. Delimitação do objeto do recurso.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é tão só a de saber se deve ou não ser ordenada a suspensão da instância por existência de causa prejudicial.

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III – Fundamentação fáctica.

A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso circunscreve-se à indicada no relatório acima enunciado.


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IV - Fundamentação de Direito
A questão que está aqui em apreciação é, pois, a de saber se deverá ser determinada a suspensão da instância dos autos de divisão de coisa comum, com fundamento na pendência do processo de inventário por óbito da mãe do aqui requerente marido e da requerida, que esta última entende constituir uma causa prejudicial.
Nos termos do art.º 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
“Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens (º 2 do mesmo artigo).

De acordo com Lebre de Freitas[1], “(a) questão diz-se prejudicial quando a sua resolução constitui pressuposto necessário da decisão de mérito, quer esta necessidade resulte da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência duma excepção peremptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo, e seja mais ou menos directa a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou o thema decidendum. Quando autonomizada como objecto de outra acção, constitui causa prejudicial, a qual pode constituir fundamento da suspensão da instância (art. 272º)”

Em comentário a este regime, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[2] o seguinte: “A suspensão da instância fora dos casos referidos nos preceitos anteriores constitui uma vicissitude que, face aos efeitos que projecta, deve ser interpretada com moderação. Assim acontece quando o motivo para a suspensão for centrado na pendência de uma causa prejudicial. Apenas podem motivar a suspensão com esse motivo acções que tenham sido instauradas anteriormente à acção em causa, a não ser que se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a um processo da competência dos tribunais criminais ou dos tribunais administrativos e fiscais (art. 92º), situação em que o juiz pode decretar a suspensão até que o tribunal competente se pronuncie. Por outro lado, deve comprovar-se uma efectiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efectivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na acção prejudicial, a qual constitui um pressuposto da outra decisão (vg, acção para cumprimento de um contrato e acção em que se invoque a nulidade desse contrato). O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão de uma poder afectar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial, é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (cf. Alberto dos Reis, Comentário do CPC, vol. III, pp 268 a 285; num exemplo que integra a acção de anulação de deliberação de amortização de quota e processo especial de inquérito judicial (cf. RL 12-4-11, 1207/10)”.
Postas estas breves noções, cumpre averiguar a questão acima colocada, ou seja, determinar se existe o mencionado nexo de prejudicialidade entre o inventário aberto por óbito da mãe do requerente marido e da requerida e a ação de divisão de coisa comum.
Entende a recorrente que sim, na medida em que os dois imóveis que são objeto da ação lhes foram doados por ambos os pais (portanto em vida daquela) devendo, por isso, ser objeto de colação, sendo que existe probabilidade séria de se vir a concluir pela ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, podendo (nas palavras da apelante) “o requerente e a requerida ser desapossados destes imóveis – o que certamente deverá ocorrer”. Defende, por conseguinte, que a decisão que venha a ser tomada no referido inventário pode afetar ou mesmo destruir a razão de ser desta ação de divisão de coisa comum.
Será assim?
O processo especial de divisão de coisa comum previsto nos artigos 925º e seguintes do Código de Processo Civil, que adjetiva o regime substantivo geral do art.º 1412º do Código Civil (segundo o qual qualquer comproprietário pode exigir a divisão, sem prejuízo da convenção de indivisibilidade, nos termos do seu n.º 2) tem como pressuposto a compropriedade e como objetivo a efetivação do direito à divisão, sendo considerada uma ação de natureza pessoal, que visa a modificação subjetiva e objetiva do direito de compropriedade, podendo extinguir a compropriedade.
 Nas palavras do Ac. da Relação de Lisboa de 2-03-2023[3], “(a) causa de pedir na ação de divisão de coisa comum – que não constitui uma ação real - é integrada pela existência de situação de comunhão, não estando em questão a propriedade sobre a coisa ou direito, mas a relação de comunhão em que os consortes estão envolvidos e o poder – de provocar a sua cessação mediante divisão - resultante dessa relação”.
Sendo que o pedido respetivo consiste na divisão material da coisa de harmonia com os quinhões que forem fixados ou, sendo a coisa indivisível, na sua adjudicação ou venda, com a subsequente partilha do valor na proporção das quotas de cada um dos consortes (cfr. art.º do 925º do Código de Processo Civil).
No caso, afigura-se evidente que o requerente marido invocou uma situação de comunhão do direito de propriedade com a aqui requerida, relativa a dois distintos imóveis; manifestou a sua vontade de não permanecer nessa indivisão; alegou a indivisibilidade dos bens e pediu a sua adjudicação e subsidiariamente a venda, com a subsequente partilha do valor na proporção das quotas de cada um dos consortes.
É também certo que a requerida alega – e o requerente não contesta – que ambos os imóveis objeto do pedido de divisão foram por eles adquiridos por doação de seus pais, sendo que relativamente a um deles se terá tratado de uma doação indireta (através da  outorga de um contrato de compra e venda, no qual o requerente marido e a requerida figuraram como compradores, sendo o preço integralmente suportado pelos pais de ambos).
Está também demonstrada a pendência de processo de inventário para partilha da herança da mãe do requerente marido e da requerida, que faleceu após outorgar tais doações.
Ora, nos termos do art.º 2.104º, n.º 1 do Código Civil, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação. O n.º 2 da mesma norma estabelece que “são havidos como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no art.º 2.110”.
A restituição que corresponde à colação, como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[4], “é a restituição (as mais das vezes apenas em valor, não em espécie ou substância) feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendam entrar na sucessão deste. A colação tem por fim a igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do “autor da herança” e que se justifica por a lei pressupor que as doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador correspondem a uma espécie de adiantamento por conta da quota hereditária e não a uma intenção de distinguir um descendente em face de outro, sem prejuízo do dever de igualdade a observar numa futura partilha.
É também sabido que a colação pode ser afastada pelo doador, quer no próprio ato de doação, quer posteriormente – cf. art.º 2113.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Em caso de dispensa de colação, o autor da sucessão terá pretendido beneficiar o descendente, daí que a imputação não é feita na sua legítima subjetiva, mas antes na quota disponível e só se a extravasar será feita na quota indisponível – cf. art.º 2014º do Código Civil.
No caso, a factualidade alegada pelas partes não permite concluir que as mencionadas doações de imoveis tenham sido realizadas por conta da quota disponível ou seja com dispensa de colação.
Não se encontra junta aos autos a escritura pública de doação pela qual os pais do requerente marido e da requerida lhes transmitiram, por doação, a propriedade de um dos identificados imóveis, desconhecendo-se, por conseguinte, se ali foi declarado que a doação era por conta da legítima, ou seja, com dispensa de colação.
Relativamente ao outro imóvel, objeto da doação indireta, há que ter em conta que, como defende Lopes Cardoso que “(n)o âmbito global da colação (e, assim, na relacionação respectiva) compreendem-se não só as doações com observância do próprio formalismo, como também as denominadas doações indirectas (compras pelo pai em nome dos filhos, pagamentos de dívidas destes, renúncias de que os filhos tiraram proveito, etc.).[5]
Assim, partindo do princípio que se verificam todos os pressupostos da obrigatoriedade da colação, a conferência efetuar-se-á nos termos do estipulado no n.º 1 do art.º 2.108º do Código Civil, pela imputação do valor dos bens na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados se houver acordo de todos os herdeiros”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[6], em anotação ao artº. 2.108º do Código Civil, “a restituição de bens ou valores doados à massa da herança, imposta pela colação, faz-se, em princípio, pela simples imputação do valor da doação na quota do herdeiro do donatário, não há por conseguinte, uma efectiva restituição de bens à massa sucessória, a não ser que isso seja acordado entre os principais interessados na partilha.  É a condição referida na parte final do texto do n.º 1 («… se houver acordo de todos os herdeiros)”.
E tal imputação, de acordo com a mesma norma, deve ser feita por imputação do valor da doação na quota hereditária (não no quinhão legitimário). E acrescenta o n.º 2 da dita norma que, no caso de não haver bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso a doação sujeita à colação será reduzida, salvo se houver inoficiosidade.
Assim, nada impede que o autor da sucessão doe em vida bens aos seus descendentes, desde que não afete a quota legitimária, ou seja, a quota-parte de bens de que o inventariado não pode dispor livremente, pois que, afetando-a, pode haver lugar à redução da doação por inoficiosidade[7].
Não podemos assim afirmar que a circunstância de um dos doadores ter falecido e pender o processo para partilha da herança respetiva, coloque em causa o direito de compropriedade (ou as respetivas quotas) invocado pelo requerente como pressuposto da sua pretensão (de divisão de coisa comum).
É que a doação, sempre que incida sobre coisa determinada, é um contrato de eficácia real (quod effectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou do direito se verifica como consequência do contrato (cf. art.º 408º do Código Civil), e dele nasce, consequentemente, para o doador a obrigação de entregar a coisa doada (não a de transferir o domínio ou o direito doado)[8].
E, no caso da doação de imóveis, o momento da aquisição ou da transferência do direito de propriedade é o da celebração da escritura pública que o formaliza.
E se assim é, há que concluir que, à data do óbito da mãe do requerente e da requerida, os referidos imóveis já não figuravam no património desta.
E mesmo se o requerente e requerida, enquanto donatários, não estejam dispensados da colação sempre conservariam no seu património os bens doados, sendo apenas o seu valor imputado na sua quota hereditária, com o valor reportado à data da abertura da herança (data da morte do de cujus – cf. art.º 2031º do Código Civil).
Como se disse, a coisa doada é efetiva propriedade do “beneficiário” da doação e desde que esta teve lugar, direito que em nada é afetado com o óbito do doador da coisa, pelo que apenas poderia ser levado à conferência o valor do bem doado.
E, salvo acordo de todos os interessados em que se realize a colação em substância, tal conferência ou restituição é puramente fictícia, porquanto o donatário conserva no seu património os bens doados ou, em todo o caso, não se verifica um regresso efetivo desses bens à massa hereditária.[9]
Aliás, é isso que resulta expressamente do teor do art.º 2087º, n.º 2 do Código Civil, que estipula: “Os bens doados em vida pelo autor da sucessão não se consideram hereditários e continuam a ser administrados pelo donatário”, ainda que tais bens estejam sujeitos a colação ou a redução por inoficiosidade[10] .
E diga-se que a conclusão seria a mesma se no processo de inventário mencionado se viesse a decidir que os bens em causa foram doados por conta da quota disponível, ou seja, com dispensa de colação, pois neste caso seriam até relacionados não como bens pertencentes à herança, pois que já não existiam no património do de cujus à data da sua morte, atenta a transferência da propriedade para os donatários, mas antes para verificar se a doação é inoficiosa e realizar, eventualmente, a sua redução na medida em que possa ter sido afetada a legítima de um dos herdeiros[11].
Contudo, as operações de redução por inoficiosidade não significam necessariamente a restituição dos bens ou a sua atribuição ao herdeiro legitimário afetado, tudo dependendo do montante da redução no confronto com o valor dos bens – cf. art.º 2174º do Código Civil.
Por outro lado, atenta a transferência do direito de propriedade para os donatários, estes têm o direito de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas doadas, nos termos do disposto no art.º 1305º do Código Civil, o que significa que, à data da abertura da sucessão, os bens doados podem até não existir no património do donatário, caso em que o preenchimento da legítima, ocorrendo inoficiosidade, será realizado em dinheiro, conforme decorre do art.º 2175º do Código Civil.
E se, nos termos supra expostos, a divisão de coisa comum, ainda que com a adjudicação dos imóveis ou a sua venda, não prejudica o direito patrimonial dos interessados na partilha do acervo hereditário da mãe do aqui requerente e da ora requerida, também não nos parece que a pendência do processo de inventário para a partilha da respetiva herança seja suficiente para colocar em crise o direito de compropriedade (e as respetivas quotas) invocado pelo requerente para fundamentar o pedido de divisão (e, dessa forma, para justificar a suspensão da tramitação da correspondente ação).
Tem aqui pleno cabimento a seguinte passagem do recente Ac. da RL de 8-10-2024[12], (cuja fundamentação aqui seguimos de perto); “Significa isto que o prosseguimento da presente acção de divisão de coisa comum, sua eventual procedência e consequente cessação da indivisão mediante venda dos bens, em nada contenderá com a possibilidade de herdeiros legitimários do falecido JP, incluindo o cônjuge sobrevivo, suscitar, no processo próprio, a eventual inoficiosidade das doações, que, uma vez verificada, determinará a concretização da correspondente redução mediante a reposição em dinheiro.
Isto é, “mesmo que os bens doados tenham perecido ou sido alienados, o donatário ou os seus sucessores continuam a ser responsáveis pela satisfação da legítima (v. art.º 2175º). Ou seja, a responsabilidade do donatário não tem uma natureza real, não está dependente da existência do bem doado, configurando-se antes como uma responsabilidade pessoal mas que se transmite inclusive aos seus sucessores, sem prejuízo de a redução por inoficiosidade poder, em certos casos, operar em espécie.” – cf. Cristina Pimenta Coelho, op. cit., pág. 1052.
Daqui decorre, pois, que, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, a prévia partilha dos bens deixados por óbito de JP e a aferição da eventual inoficiosidade das doações não constitui condição prévia e necessária da divisão de coisa comum, que pode ter lugar, sem prejuízo da intangibilidade da legítima de herdeiros legitimários, nos termos supra expostos”
Por todo o exposto, entendemos que a pendência do mencionado processo de inventário não configura causa prejudicial que, nos termos do citado art.º 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, justifique ou aconselhe a suspensão dos autos de ação de divisão de coisa comum, na medida em que a decisão final a ser aqui proferida não corre o risco de se vir a revelar (supervenientemente) inútil, contraditória ou destituída de fundamento em resultado do prosseguimento da tramitação daquele inventário

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Sumário – artº 663º nº7 do CPC
(…).
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.


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Custas pela apelante por ter decaído no recurso (artº 527º, nº1, do Código de Processo Civil).

Coimbra, 12 de novembro de 2024

Assinado eletronicamente por:

Hugo Meireles

Anabela Marques Ferreira

Francisco Costeira da Rocha

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)

[1] CPC Anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, pág. 173.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, pags. 314 e 315.
[3] Processo n.º 102/22.2T8VLS.L1-2, in www.dgsi.pt

[4] Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, pag. 173.
[5] .A. LOPES CARDOSO, “Partilhas Judiciais”, I volume, 4ª edição, 1990, pág. 429-430, nota 1232.,
[6] Op. cit. pag. 179
[7] Ac. da RP, de 2-02-2010, processo n.º 4179/07.2TBPRD.P1., in www.dgsi.pt
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3ª edição, pag, 278.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, 1998, pag. 179; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, pag. 252; e Ac. do TR Coimbra de 11.05,2004, CJ, ano XXIX, t. 3, pgs. 11 e segs.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pag. 147.
[11] Ac. do TR do Porto de 26-03-2009, processo n.º 0837985, in www.dgsi.pt.

[12] Processo n.º 1823/23.8T8OER.L1-7 (relatora Micaela Sousa), in www.dgsi.pt