I – Para efeitos do disposto no art.º 272º, n.º 1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando a decisão desta última pode afetar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.
II – A pendência de processo de inventário mortis causa, no qual deva ser considerado, para efeito do cálculo da legítima (art.º 2.162º do Código Civil), o valor dos imóveis doados pelo de cuius a dois dos seus descendentes, que os adquiriram em compropriedade, não constitui causa prejudicial determinante da suspensão da ação de divisão de coisa comum instaurada por um dos donatários/herdeiros contra o outro, uma vez que a decisão final que vier a ser proferida neste processo não corre o risco de se vir a revelar (supervenientemente) inútil, contraditória ou destituída de fundamento em resultado do prosseguimento da tramitação daquele inventário.
(Sumário elaborado pelo Relator)
(…).
II. Delimitação do objeto do recurso.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é tão só a de saber se deve ou não ser ordenada a suspensão da instância por existência de causa prejudicial.
A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso circunscreve-se à indicada no relatório acima enunciado.
De acordo com Lebre de Freitas[1], “(a) questão diz-se prejudicial quando a sua resolução constitui pressuposto necessário da decisão de mérito, quer esta necessidade resulte da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência duma excepção peremptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo, e seja mais ou menos directa a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou o thema decidendum. Quando autonomizada como objecto de outra acção, constitui causa prejudicial, a qual pode constituir fundamento da suspensão da instância (art. 272º)”
Em comentário a este regime, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[2] o seguinte: “A suspensão da instância fora dos casos referidos nos preceitos anteriores constitui uma vicissitude que, face aos efeitos que projecta, deve ser interpretada com moderação. Assim acontece quando o motivo para a suspensão for centrado na pendência de uma causa prejudicial. Apenas podem motivar a suspensão com esse motivo acções que tenham sido instauradas anteriormente à acção em causa, a não ser que se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a um processo da competência dos tribunais criminais ou dos tribunais administrativos e fiscais (art. 92º), situação em que o juiz pode decretar a suspensão até que o tribunal competente se pronuncie. Por outro lado, deve comprovar-se uma efectiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efectivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na acção prejudicial, a qual constitui um pressuposto da outra decisão (vg, acção para cumprimento de um contrato e acção em que se invoque a nulidade desse contrato). O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão de uma poder afectar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial, é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (cf. Alberto dos Reis, Comentário do CPC, vol. III, pp 268 a 285; num exemplo que integra a acção de anulação de deliberação de amortização de quota e processo especial de inquérito judicial (cf. RL 12-4-11, 1207/10)”.
Postas estas breves noções, cumpre averiguar a questão acima colocada, ou seja, determinar se existe o mencionado nexo de prejudicialidade entre o inventário aberto por óbito da mãe do requerente marido e da requerida e a ação de divisão de coisa comum.
Entende a recorrente que sim, na medida em que os dois imóveis que são objeto da ação lhes foram doados por ambos os pais (portanto em vida daquela) devendo, por isso, ser objeto de colação, sendo que existe probabilidade séria de se vir a concluir pela ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, podendo (nas palavras da apelante) “o requerente e a requerida ser desapossados destes imóveis – o que certamente deverá ocorrer”. Defende, por conseguinte, que a decisão que venha a ser tomada no referido inventário pode afetar ou mesmo destruir a razão de ser desta ação de divisão de coisa comum.
Será assim?
O processo especial de divisão de coisa comum previsto nos artigos 925º e seguintes do Código de Processo Civil, que adjetiva o regime substantivo geral do art.º 1412º do Código Civil (segundo o qual qualquer comproprietário pode exigir a divisão, sem prejuízo da convenção de indivisibilidade, nos termos do seu n.º 2) tem como pressuposto a compropriedade e como objetivo a efetivação do direito à divisão, sendo considerada uma ação de natureza pessoal, que visa a modificação subjetiva e objetiva do direito de compropriedade, podendo extinguir a compropriedade.
Nas palavras do Ac. da Relação de Lisboa de 2-03-2023[3], “(a) causa de pedir na ação de divisão de coisa comum – que não constitui uma ação real - é integrada pela existência de situação de comunhão, não estando em questão a propriedade sobre a coisa ou direito, mas a relação de comunhão em que os consortes estão envolvidos e o poder – de provocar a sua cessação mediante divisão - resultante dessa relação”.
Sendo que o pedido respetivo consiste na divisão material da coisa de harmonia com os quinhões que forem fixados ou, sendo a coisa indivisível, na sua adjudicação ou venda, com a subsequente partilha do valor na proporção das quotas de cada um dos consortes (cfr. art.º do 925º do Código de Processo Civil).
No caso, afigura-se evidente que o requerente marido invocou uma situação de comunhão do direito de propriedade com a aqui requerida, relativa a dois distintos imóveis; manifestou a sua vontade de não permanecer nessa indivisão; alegou a indivisibilidade dos bens e pediu a sua adjudicação e subsidiariamente a venda, com a subsequente partilha do valor na proporção das quotas de cada um dos consortes.
É também certo que a requerida alega – e o requerente não contesta – que ambos os imóveis objeto do pedido de divisão foram por eles adquiridos por doação de seus pais, sendo que relativamente a um deles se terá tratado de uma doação indireta (através da outorga de um contrato de compra e venda, no qual o requerente marido e a requerida figuraram como compradores, sendo o preço integralmente suportado pelos pais de ambos).
Está também demonstrada a pendência de processo de inventário para partilha da herança da mãe do requerente marido e da requerida, que faleceu após outorgar tais doações.
Ora, nos termos do art.º 2.104º, n.º 1 do Código Civil, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação. O n.º 2 da mesma norma estabelece que “são havidos como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no art.º 2.110”.
A restituição que corresponde à colação, como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[4], “é a restituição (as mais das vezes apenas em valor, não em espécie ou substância) feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendam entrar na sucessão deste. A colação tem por fim a igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do “autor da herança” e que se justifica por a lei pressupor que as doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador correspondem a uma espécie de adiantamento por conta da quota hereditária e não a uma intenção de distinguir um descendente em face de outro, sem prejuízo do dever de igualdade a observar numa futura partilha.
É também sabido que a colação pode ser afastada pelo doador, quer no próprio ato de doação, quer posteriormente – cf. art.º 2113.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Em caso de dispensa de colação, o autor da sucessão terá pretendido beneficiar o descendente, daí que a imputação não é feita na sua legítima subjetiva, mas antes na quota disponível e só se a extravasar será feita na quota indisponível – cf. art.º 2014º do Código Civil.
No caso, a factualidade alegada pelas partes não permite concluir que as mencionadas doações de imoveis tenham sido realizadas por conta da quota disponível ou seja com dispensa de colação.
Não se encontra junta aos autos a escritura pública de doação pela qual os pais do requerente marido e da requerida lhes transmitiram, por doação, a propriedade de um dos identificados imóveis, desconhecendo-se, por conseguinte, se ali foi declarado que a doação era por conta da legítima, ou seja, com dispensa de colação.
Relativamente ao outro imóvel, objeto da doação indireta, há que ter em conta que, como defende Lopes Cardoso que “(n)o âmbito global da colação (e, assim, na relacionação respectiva) compreendem-se não só as doações com observância do próprio formalismo, como também as denominadas doações indirectas (compras pelo pai em nome dos filhos, pagamentos de dívidas destes, renúncias de que os filhos tiraram proveito, etc.).[5]
Assim, partindo do princípio que se verificam todos os pressupostos da obrigatoriedade da colação, a conferência efetuar-se-á nos termos do estipulado no n.º 1 do art.º 2.108º do Código Civil, pela imputação do valor dos bens na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados se houver acordo de todos os herdeiros”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[6], em anotação ao artº. 2.108º do Código Civil, “a restituição de bens ou valores doados à massa da herança, imposta pela colação, faz-se, em princípio, pela simples imputação do valor da doação na quota do herdeiro do donatário, não há por conseguinte, uma efectiva restituição de bens à massa sucessória, a não ser que isso seja acordado entre os principais interessados na partilha. É a condição referida na parte final do texto do n.º 1 («… se houver acordo de todos os herdeiros)”.
E tal imputação, de acordo com a mesma norma, deve ser feita por imputação do valor da doação na quota hereditária (não no quinhão legitimário). E acrescenta o n.º 2 da dita norma que, no caso de não haver bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso a doação sujeita à colação será reduzida, salvo se houver inoficiosidade.
Assim, nada impede que o autor da sucessão doe em vida bens aos seus descendentes, desde que não afete a quota legitimária, ou seja, a quota-parte de bens de que o inventariado não pode dispor livremente, pois que, afetando-a, pode haver lugar à redução da doação por inoficiosidade[7].
Não podemos assim afirmar que a circunstância de um dos doadores ter falecido e pender o processo para partilha da herança respetiva, coloque em causa o direito de compropriedade (ou as respetivas quotas) invocado pelo requerente como pressuposto da sua pretensão (de divisão de coisa comum).
É que a doação, sempre que incida sobre coisa determinada, é um contrato de eficácia real (quod effectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou do direito se verifica como consequência do contrato (cf. art.º 408º do Código Civil), e dele nasce, consequentemente, para o doador a obrigação de entregar a coisa doada (não a de transferir o domínio ou o direito doado)[8].
E, no caso da doação de imóveis, o momento da aquisição ou da transferência do direito de propriedade é o da celebração da escritura pública que o formaliza.
E se assim é, há que concluir que, à data do óbito da mãe do requerente e da requerida, os referidos imóveis já não figuravam no património desta.
E mesmo se o requerente e requerida, enquanto donatários, não estejam dispensados da colação sempre conservariam no seu património os bens doados, sendo apenas o seu valor imputado na sua quota hereditária, com o valor reportado à data da abertura da herança (data da morte do de cujus – cf. art.º 2031º do Código Civil).
Como se disse, a coisa doada é efetiva propriedade do “beneficiário” da doação e desde que esta teve lugar, direito que em nada é afetado com o óbito do doador da coisa, pelo que apenas poderia ser levado à conferência o valor do bem doado.
E, salvo acordo de todos os interessados em que se realize a colação em substância, tal conferência ou restituição é puramente fictícia, porquanto o donatário conserva no seu património os bens doados ou, em todo o caso, não se verifica um regresso efetivo desses bens à massa hereditária.[9]
Aliás, é isso que resulta expressamente do teor do art.º 2087º, n.º 2 do Código Civil, que estipula: “Os bens doados em vida pelo autor da sucessão não se consideram hereditários e continuam a ser administrados pelo donatário”, ainda que tais bens estejam sujeitos a colação ou a redução por inoficiosidade[10] .
E diga-se que a conclusão seria a mesma se no processo de inventário mencionado se viesse a decidir que os bens em causa foram doados por conta da quota disponível, ou seja, com dispensa de colação, pois neste caso seriam até relacionados não como bens pertencentes à herança, pois que já não existiam no património do de cujus à data da sua morte, atenta a transferência da propriedade para os donatários, mas antes para verificar se a doação é inoficiosa e realizar, eventualmente, a sua redução na medida em que possa ter sido afetada a legítima de um dos herdeiros[11].
Contudo, as operações de redução por inoficiosidade não significam necessariamente a restituição dos bens ou a sua atribuição ao herdeiro legitimário afetado, tudo dependendo do montante da redução no confronto com o valor dos bens – cf. art.º 2174º do Código Civil.
Por outro lado, atenta a transferência do direito de propriedade para os donatários, estes têm o direito de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas doadas, nos termos do disposto no art.º 1305º do Código Civil, o que significa que, à data da abertura da sucessão, os bens doados podem até não existir no património do donatário, caso em que o preenchimento da legítima, ocorrendo inoficiosidade, será realizado em dinheiro, conforme decorre do art.º 2175º do Código Civil.
E se, nos termos supra expostos, a divisão de coisa comum, ainda que com a adjudicação dos imóveis ou a sua venda, não prejudica o direito patrimonial dos interessados na partilha do acervo hereditário da mãe do aqui requerente e da ora requerida, também não nos parece que a pendência do processo de inventário para a partilha da respetiva herança seja suficiente para colocar em crise o direito de compropriedade (e as respetivas quotas) invocado pelo requerente para fundamentar o pedido de divisão (e, dessa forma, para justificar a suspensão da tramitação da correspondente ação).
Tem aqui pleno cabimento a seguinte passagem do recente Ac. da RL de 8-10-2024[12], (cuja fundamentação aqui seguimos de perto); “Significa isto que o prosseguimento da presente acção de divisão de coisa comum, sua eventual procedência e consequente cessação da indivisão mediante venda dos bens, em nada contenderá com a possibilidade de herdeiros legitimários do falecido JP, incluindo o cônjuge sobrevivo, suscitar, no processo próprio, a eventual inoficiosidade das doações, que, uma vez verificada, determinará a concretização da correspondente redução mediante a reposição em dinheiro.
Isto é, “mesmo que os bens doados tenham perecido ou sido alienados, o donatário ou os seus sucessores continuam a ser responsáveis pela satisfação da legítima (v. art.º 2175º). Ou seja, a responsabilidade do donatário não tem uma natureza real, não está dependente da existência do bem doado, configurando-se antes como uma responsabilidade pessoal mas que se transmite inclusive aos seus sucessores, sem prejuízo de a redução por inoficiosidade poder, em certos casos, operar em espécie.” – cf. Cristina Pimenta Coelho, op. cit., pág. 1052.
Daqui decorre, pois, que, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, a prévia partilha dos bens deixados por óbito de JP e a aferição da eventual inoficiosidade das doações não constitui condição prévia e necessária da divisão de coisa comum, que pode ter lugar, sem prejuízo da intangibilidade da legítima de herdeiros legitimários, nos termos supra expostos”
Por todo o exposto, entendemos que a pendência do mencionado processo de inventário não configura causa prejudicial que, nos termos do citado art.º 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, justifique ou aconselhe a suspensão dos autos de ação de divisão de coisa comum, na medida em que a decisão final a ser aqui proferida não corre o risco de se vir a revelar (supervenientemente) inútil, contraditória ou destituída de fundamento em resultado do prosseguimento da tramitação daquele inventário
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Assinado eletronicamente por:
Hugo Meireles
Anabela Marques Ferreira
Francisco Costeira da Rocha
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] CPC Anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, pág. 173.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, pags. 314 e 315.
[3] Processo n.º 102/22.2T8VLS.L1-2, in www.dgsi.pt
[4] Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, pag. 173.
[5] .A. LOPES CARDOSO, “Partilhas Judiciais”, I volume, 4ª edição, 1990, pág. 429-430, nota 1232.,
[6] Op. cit. pag. 179
[7] Ac. da RP, de 2-02-2010, processo n.º 4179/07.2TBPRD.P1., in www.dgsi.pt
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3ª edição, pag, 278.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, 1998, pag. 179; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 4ª edição, 1970, pag. 252; e Ac. do TR Coimbra de 11.05,2004, CJ, ano XXIX, t. 3, pgs. 11 e segs.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pag. 147.
[11] Ac. do TR do Porto de 26-03-2009, processo n.º 0837985, in www.dgsi.pt.
[12] Processo n.º 1823/23.8T8OER.L1-7 (relatora Micaela Sousa), in www.dgsi.pt