I – Tendo sido realizada prova pericial e apurados todos os factos necessários à prolação de decisão relativa ao valor do imóvel a partilhar, não é possível remeter as partes para os meios comuns.
II – Encontrando-se o imóvel a partilhar dentro do perímetro urbano e com acesso à via pública, é possível proceder ao destaque de parcelas do mesmo, desde que estejam respeitadas as demais normas urbanísticas aplicáveis.
III – Não obstante ser apenas de partilhar a quota ideal do prédio, tendo os interessados posse de duas parcelas concretas dentro do mesmo, o facto de ser teoricamente possível o destaque dessas parcelas deve ser considerado no momento da avaliação da quota do imóvel.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Juízes Desembargadores Adjuntos: Francisco Costeira da Rocha
Cristina Neves
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
(…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
Nos autos de inventário facultativo, que correm termos no Juízo Local Cível de Castelo Branco – Juiz ..., em que são Interessados AA (Cabeça de Casal) e BB, foi realizada conferência de interessados, não tendo havido entendimento quanto ao valor a atribuir à verba nº 83, bem como relativamente à necessidade de a questão ser resolvida nos meios comuns.
Então, foi proferido o seguinte despacho:
I.
DA REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS QUANTO À VERBA N.º 83:
Foi realizada conferência de interessados, no dia 21.05.2024 (cfr. ref.ª citius 37250334), não tendo as partes logrado o acordo quanto à partilha.
Nessa medida, prosseguiu-se para a preparação das licitações, com a composição de lotes e atribuição dos respectivos valores.
As partes acordaram quanto à composição de lotes e valores base das licitações, tendo surgido a questão da atribuição de valor à verba n.º 83.
Resumidamente, os interessados não acordaram quanto ao valor de tal verba, entendendo a interessada BB que deverá atender-se à soma dos valores das duas parcelas que efectivamente existem no local (conforme resulta da avaliação, e assim seria a soma do valor da parcela 1, 89.800,00€, com o valor da parcela 2, 59.100,00€, num total de 148.900,00€), enquanto que o interessado e cabeça-de-casal AA entende que o valor a atribuir deve ser o valor correspondente aos 5/42 (29.000,00€).
Defende a interessada BB que deverá ser aferida a composição exacta de tal verba, atendendo a que ambos os interessados aceitaram que esta verba é composta efetivamente por 2 parcelas distintas independentemente do valor, e nesse sentido não sendo possível atribuir a soma dos valores de cada parcela, terá de ser discutida nos meios comuns e só depois partilhada.
Por sua vez, o interessado e cabeça-de-casal AA defende que o inventário deve prosseguir, independentemente do direito que a interessada tem de ir para os meios comuns, mas tal não deve determinar nesta fase do processo a suspensão do inventário.
Dado o adiantado da hora e o tipo de questões em causa, foi determinada a abertura de conclusão para que o Tribunal se pronunciasse.
Cumpre saber se devem as partes ser remetidas para os meios comuns quanto a essa verba n.º 83 ou se, não sendo caso disso, deve o Tribunal atribuir a tal verba um valor diferente do respeitante a 5/42 do prédio em questão.
Vejamos.
Nos presentes autos, já após a admissão da avaliação da verba n.º 83, mas antes de concluída a mesma, foi posta a questão, por iniciativa do Tribunal, de as partes poderem ser remetidas para os meios comuns no que concerne à verba n.º 83, por se terem suscitado dúvidas sobre a concordância dos interessados quanto à localização das parcelas que, no local, concretamente pertenceriam aos inventariados e sobre o próprio conteúdo do direito de propriedade dos inventariados relativamente ao prédio identificado na verba n.º 83 – cfr. despacho de 26.09.2024, ref.ª citius 36287627.
Neste seguimento, verificou-se que, afinal, as partes não discutem sobre a concreta localização das parcelas que integram a verba n.º 83, mas apenas sobre os efeitos jurídicos que emergem de tal terreno, alegando o cabeça-de-casal, em suma, que as construções localizadas no mesmo são ilegais e que as parcelas individualmente consideradas são juridicamente intransmissíveis.
Ora, a avaliação avançou, precisamente tendo em vista o eventual acordo entre as partes quanto à partilha, uma vez que as mesmas estão cientes de que aquelas concretas parcelas (partes de terreno) existem e pertencem à herança, muito embora não se encontrem juridicamente reconhecidas como tal.
Resultou dessa avaliação o relatório pericial junto em 06.02.2024, com a ref.ª citius 3496325, e os esclarecimentos escritos juntos em 03.04.2024, com a ref.ª citius 35555175.
Assim, e tendo em conta o estado avançado dos autos – que prosseguiram na avaliação precisamente tendo em vista a solução consensual do litígio, de modo a evitar outros litígios subsequentes ao inventário –, não pode o Tribunal ignorar os dados factuais trazidos ao processo por parte do Sr. Perito, quanto ao que foi identificado no local, concretamente, no prédio rústico, sito em ... ou ... – ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica com artigo ...69 – secção C da freguesia ..., com área de 122.500,00 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...25.
E também não pode o Tribunal ignorar que o Sr. Perito apurou o valor individual dessas parcelas e considerou, ademais, que as construções que as mesmas abarcam, destinados a arrecadações/armazém, são passíveis de serem licenciadas, reunindo condições para que eventual projecto de legalização seja deferido pelas entidades competentes.
Ora, considerando o estado actual dos autos e o resultado da avaliação, é por demais evidente que, quanto à verba n.º 83, a realidade registral não tem correspondência com a realidade que se encontra no local.
É um facto que o Tribunal não poderá alterar essa realidade, já que aquilo que se encontra descrito e relacionado são 5/42 do prédio rústico e não concretas parcelas de terreno aí existentes.
No entanto, ficou evidente que as partes sabem exactamente as parcelas d terreno que existem no terreno cuja posse têm como herdeiros da herança dos inventariados, sendo essas parcelas de terreno respeitadas pelos demais.
Assim, a dúvida quanto à localização do terreno foi dissipada (ou nem chegou a existir), apenas subsistindo dúvidas quanto à possibilidade de desanexação das referidas parcelas, o que pouco ou nada importará para estes autos, uma vez que daqui resultará apenas a adjudicação da verba n.º 83, tal como está descrita, como sendo 5/42 do prédio, ficando a parte a quem for adjudicada com o ónus de tentar regularizar a circunstância de ter o registo de 5/42 do prédio quando, na realidade, o que tem é duas parcelas concretas de terreno.
E isso nunca será impedimento de prosseguir nestes autos com as licitações deste concreto bem relacionado e cuja composição se mostra, agora, clara.
Assim, não restam dúvidas de que, juridicamente, o que temos é 5/42 de um prédio rústico, o que não invalida, de todo, que o mesmo seja composto por uma realidade fáctica diversa da que se mostra descrita no registo – ainda que, quanto a essa questão, o Tribunal não a possa resolver.
Tudo isso são questões que não são de resolver no âmbito deste processo, mas também não invalidam que se prossiga com a partilha quanto a um bem que se encontra nessas condições (ou seja, cuja realidade de facto não corresponde à realidade registada).
Por todo o exposto, decido não remeter os interessados para os meios comuns quanto à verba n.º 83, a qual se manterá na relação de bens.
**
II.
DO VALOR A ATRIBUIR À VERBA N.º 83:
Como se disse, as partes acordaram quanto à composição de lotes e atribuição de valores para efeitos de base de licitações. Só não acordaram quanto ao valor a atribuir à verba n.º 83.
Tendo em vista a total colaboração com as partes de modo a conseguirem obter uma solução consensual para o litígio e uma partilha amigável, o Tribunal permitiu que se procedesse à avaliação da verba n.º 83 tendo em consideração o pedaço de vida efectivamente existente no local.
Inicialmente o Tribunal veiculou a posição de que, estando relacionados 5/42 de um prédio, o valor a atribuir seria o correspondente a essa quota de direito.
Sucede que, em face do permanente litígio suscitado pelas partes, os autos foram avançando, nomeadamente com a avaliação do bem, resultando dos autos a real composição da verba n.º 83.
Desde logo, do relatório pericial e da reportagem fotográfica junta (cfr. fotografia da página 7), resulta que esse prédio se encontra separado fisicamente por caminho público em terra batida, sendo constituído por “duas partes distintas”.
Ademais, a partir da mesma fotografia é possível atestar a existência de outras “parcelas” perfeitamente delimitadas no local que integram o artigo ...69 – secção C, e não pertencem à herança.
Do que resulta evidente que o prédio rústico com o artigo ...69 – secção C não é, na prática, possuído pelos seus titulares como comproprietários.
Isto não é nem pode ser declarado pelo Tribunal do processo de inventário, no entanto, o Tribunal não pode ignorar essa realidade para efeitos de atribuição de valor à verba n.º 83, na medida em que as partes estão em desacordo.
Ora, foi possível apurar os seguintes valores na avaliação realizada.
- A totalidade do prédio - 243.300,00 €
- 5/42 avos - 29.000,00 €
- Parcela 1 - 89.800,00 €
- Parcela 2 - 59.100,00 €
E como tem vindo a ser dito e é agora ponto assente, no local não existe a posse
de 5/42, mas sim a posse das parcelas 1 e 2, sendo que cada uma dessas parcelas tem um valor de mercado, sendo de 89.800,00€ a parcela 1 e de 59.100,00 a parcela 2, realidade física que se encontra no local e que tem, em si mesma, um valor de mercado, e não deixa de existir pelo simples facto de se poderem considerar ou não construções ilegais ou pedaços que não são passíveis de ser desanexados.
Isso não é questão que ocupará este Tribunal,
De facto, a avaliação realizada (também quanto às duas parcelas) teve em vista obter o valor adequado a atribuir à verba n.º 83, e não a expectativa de desanexação ou individualização jurídica como prédios rústicos autónomos, pois essa pretensão nunca seria atendida neste processo.
Ao invés, o que se pretende neste inventário é a partilha de bens pelo que – repete-se –, quanto muito, o que existirá é a venda ou adjudicação da verba n.º 83 na sua globalidade e nunca a adjudicação ou venda das parcelas concretas que sabemos existirem no local.
Dai que a eventual pretensão de desanexação seja problema a solucionar (se for caso disso) por quem ficar com esse bem.
Mas, para efeitos de partilhas e, bem assim, de atribuição de valor real aos bens que compõem a herança, para efeitos de licitação, e havendo discórdia entre os interessados, o Tribunal terá que decidir quanto ao valor a atribuir à verba n.º 83, sendo o valor da avaliação a base de partida das licitações.
E, nesta fase em que nos encontramos, não restam dúvidas de que a verba n.º 83 tem um valor real que é composto pelo que existe no local e que pertencia aos inventariados, sendo que a realidade física que foi possível apurar existente nessa verba é, precisamente, constituída pelas parcelas 1 e 2, com os respectivos valores de mercado autónomos, independentemente das eventuais dificuldades inerentes à legalização de edificações, desanexações ou venda a terceiros.
Tudo para concluir que o valor base da verba n.º 83, na falta de acordo dos interessados em atribuir um novo valor à mesma, deverá corresponder ao efectivo valor de mercado, condicionado pelo que se encontra no local, ou seja, deverá corresponder à soma do valor de cada uma das parcelas 1 [89.800,00€] e 2 [59.100,00€].
Em face do exposto, e na ausência de acordo entre os interessados, o Tribunal fixa como valor base de partida das licitações quanto à verba n.º 83 o valor de 148.900,00€.
O Recorrente AA interpôs recurso dessa decisão, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
Terminou pedindo:
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exas. suprirão, deverá o recurso de apelação ser julgado procedente e revogada a decisão proferida em 20/06/2024 (ref.ª 37356202) que fixou o valor da verba 83 em 148.900,00€, determinando-se o prosseguimento do inventário com o valor fixado por perícia à verba 83 de 29.000,00€.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deverá o recurso de apelação ser julgado procedente e revogada a decisão proferida em 20/06/2024 (ref.ª 37356202), que fixou o valor da verba 83 em 148.900,00€, determinando- se a remessa da questão para os meios comuns, prosseguindo o inventário para partilha dos restantes bens.
A Recorrida pugnou pela manutenção do despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, prestados contributos e sugestões pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e realizada conferência, cumpre decidir.
Questões a decidir:
1. Devem os interessados ser remetidos para os meios comuns para determinação do valor a verba nº 83?
2. Em caso de resposta negativa, qual o valor a atribuir à verba nº 83?
Do historial dos presentes autos no que ao âmbito do presente recurso interessa:
1. O ora Recorrente, na qualidade de Cabeça de Casal, intentou inventário por óbito de seus pais, AA e BB, indicando como herdeiros, o próprio e a sua irmã, a Recorrida BB.
2. Indicou o ativo da herança composto por oito verbas e a inexistência de passivo.
3. A Interessada apresentou reclamação à relação de bens, quer quanto ao ativo quer quanto ao passivo, incidente que terminou por acordo, constando do ativo acordado: Verba 83: 5/42 do prédio rústico sito em ... ou ..., inscrito na matriz predial cadastral sob o artigo ...69, secção C, da freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... com o n.º ...82, com o valor patrimonial tributário na proporção de € 82,86. (Doc. 3, 7, 11 e 12, juntos com o RI, que se dão por integralmente reproduzidos) ........ 82,86€.
4. A requerimento das partes, foi realizada avaliação das verbas nºs 81 e 83, aí se determinando diferentes formas de avaliar a verba 83 “i. Qual o valor do prédio na sua totalidade; ii. Qual o valor do prédio na proporção de 5/42 avos (que pertenciam aos inventariados), sem partes concretas e definidas no prédio; iii. Partindo do pressuposto de que os inventariados exerciam posse sobre parcelas concretas e definidas no local e não na proporção de 5/42 avos: quais são essas configurações e qual o valor dessas concretas parcelas.”
5. A estas questões respondeu o Sr. Perito: i. 243.300,00 € (duzentos e quarenta e três mil e trezentos euros); ii) 29.000,00 € (vinte e nove mil euros); iii) Parcela 1 - 89.800,00 € (oitenta e nove mil e oitocentos euros) e Parcela 2 - 59.100,00 € (cinquenta e nove mil e cem euros).
6. As partes estão de acordo quanto ao uso dessas duas parcelas pelos inventariados, de modo exclusivo e sem oposição dos demais coproprietários.
7. Foram solicitados esclarecimentos ao Sr. Perito no sentido de saber se teve em conta que as parcelas identificadas não estão autonomizadas em termos registrais e que as construções nelas identificadas não estão licenciadas, ao que o mesmo respondeu afirmativamente, mais afirmando ter feito um juízo de prognose quanto à possibilidade e custos de destaque das parcelas e legalização do edificado.
8. Realizou-se conferência de interessados, na qual não houve acordo quanto ao valor a atribuir à verba nº 83.
9. Foi então proferido o despacho recorrido, supra transcrito.
Dispõe o artº 1093º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:
Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns. (sublinhado nosso)
In casu, está assente que a verba a partilhar, que pertencia aos inventariados, tal como se encontra registada, corresponde a 5/42 do prédio rústico sito em ... ou ..., inscrito na matriz predial cadastral sob o artigo ...69, secção C, da freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... com o n.º ...82.
Mais se encontra assente que, desse prédio, de que os inventariados eram coproprietários, estes utilizavam duas determinadas parcelas – devidamente identificadas e objeto de avaliação – de forma exclusiva e sem qualquer oposição dos demais coproprietários.
Ao avaliar as referidas parcelas, o Sr. Perito teve em conta a situação de integração das parcelas no prédio 182, bem como a inexistência de licenciamento do edificado existente, tendo feito um juízo de prognose quanto à possibilidade e custos de destaque das parcelas e legalização do edificado.
Do supra exposto, resulta que não há quaisquer factos a apurar, pelo que, consequentemente, também não está em causa qualquer questão relativa à complexidade da matéria de facto subjacente.
Quanto à questão da complexidade da matéria de facto, diz-nos Maria João Gonçalves, “O Novo Regime do Processo de Inventário: Contributo para a definição das situações de remessa das partes para os meios comuns”, Julgar – nº 24, 2014, Coimbra Editora, pág. 149 e 150:
No processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão não se conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir mais ampla discussão no quadro de um processo judicial comum. Apenas serão de admitir as provas que se compadeçam com a natureza do processo de inventário que se pretende célere. Impõe-se atender à necessidade de se proteger as garantias das partes, permitindo aos interessados que recorram aos meios “normais” de pleitar, não estando assim sujeitos aos constrangimentos e limitações probatórias do processo de inventário.
Quanto à oportunidade da prolação da decisão de remessa para os meios comuns, cremos que a mesma tanto poderá ter lugar antes da produção de prova no incidente, o que ocorrerá quando for já previsível ou seguro que a questão é de tal forma complexa que não poderá ser decidida no processo de inventário, como após a produção de prova, quando apenas neste momento o notário se apercebe da impossibilidade de decidir a questão atentas as limitações de prova do processo.
Ora, no caso em apreço, já foram apurados todos os factos necessários à prolação da decisão.
A questão que se poderia colocar estaria relacionada com a admissibilidade da perícia, pela morosidade que poderia trazer ao processo de inventário; porém, essa questão já não se coloca, uma vez que o respetivo momento prévio de análise foi ultrapassado, tendo a perícia sido já realizada.
Neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9 de Fevereiro de 2023, proferido no processo nº 3080/17.6, disponível em www.direitoemdia.pt , onde se diz: 3. Não é aceitável que a decisão de remeter as partes para os meios comuns, com fundamento na complexidade da prova, seja tomada depois de produzida toda a prova apresentada pelas partes.
Acresce que, bem analisadas as conclusões do recurso – que delimitam o seu âmbito – daí não se retira também qualquer necessidade de apuramento de novos factos.
Assim, não há que remeter os interessados para os meios comuns.
Veio o Recorrente invocar a nulidade da decisão recorrida, por estar em contradição com a anterior decisão do tribunal, transitada em julgada, que homologou a relação de bens, nessa parte se extinguindo o poder jurisdicional do juiz quanto aos bens a relacionar à partilha.
Para tanto, alega que, no despacho recorrido, se admitiu a avaliação de bem que não se encontravam na relação de bens a partilhar.
Porém, de imediato se verifica que assim não é: as parcelas avaliadas não são prédios diferentes a quota ideal de 5/42 que os inventariados detinham sobre o prédio; antes refletem o uso que estes davam a essa quota ideal e o potencial de valor que daí se pode retirar, ainda que passando necessariamente por processos de legalização, com as suas incertezas e custos.
Não há qualquer violação de caso julgado, nem aditamento de bens à relação de bens anteriormente homologada; há apenas um exercício de raciocínio para alcançar o real valor daquela quota ideal, sem lançar mão de um mero exercício aritmético de correspondência do valor total do prédio à quota ideal, mas antes uma concreta análise do valor que, na realidade, dele retiravam os inventariados.
Como se diz na decisão recorrida:
Assim, não restam dúvidas de que, juridicamente, o que temos é 5/42 de um prédio rústico, o que não invalida, de todo, que o mesmo seja composto por uma realidade fáctica diversa da que se mostra descrita no registo – ainda que, quanto a essa questão, o Tribunal não a possa resolver.
Tudo isso são questões que não são de resolver no âmbito deste processo, mas também não invalidam que se prossiga com a partilha quanto a um bem que se encontra nessas condições (ou seja, cuja realidade de facto não corresponde à realidade registada).
Assim, o bem a partilhar sempre será 5/42 do prédio rústico descrito como verba nº 83 da relação de bens, não havendo qualquer contradição com a sentença que a homologou.
Mais invoca o Recorrente a nulidade da decisão por violação do disposto no artº 1376º, nº 1, do Código Civil, conjugado com o artº 2º e Anexo I à Portaria nº 219/2016, de 9 de Agosto, uma vez que as parcelas em causa não são autónomas (de facto) nem autonomizáveis.
Novamente, nesta parte, a decisão recorrida é bem clara, ao dizer: De facto, a avaliação realizada (também quanto às duas parcelas) teve em vista obter o valor adequado a atribuir à verba n.º 83, e não a expectativa de desanexação ou individualização jurídica como prédios rústicos autónomos, pois essa pretensão nunca seria atendida neste processo. (sublinhado nosso)
Como já vimos, a consideração da existência das duas parcelas teve em vista a melhor avaliação da verba nº 83 e não a sua desanexação, pelo que, também por esta via, a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade.
Do que poderemos estar a falar aqui é da bondade da perícia e da aceitação ou não do resultado avaliativo alcançado pelo Sr. Perito.
Dispõe o artº 607º, nº 5, do Código de Processo Civil, consagrando o princípio da livre apreciação da prova, que O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Este princípio abarca também a ponderação do resultado da perícia. Porém, atenta a especial qualificação científica do perito, cabe ao julgador ter um especial cuidado e fundamentar cuidadosamente a decisão sempre que se afaste de tal resultado[1].
Porém, há uma parte das conclusões a que o perito chega, e que são as que interessam ao âmbito do presente recurso, que dependem de apreciações jurídicas, para as quais o perito não é mais qualificado do que o próprio Tribunal, a saber, a conclusão de que, no caso em apreço, não é aplicável o disposto no artº 1376º, nº 1, do Código Civil, conjugado com o artº 2º e Anexo I à Portaria nº 219/2016, de 9 de Agosto.
Assim, concluindo pela possibilidade de destaque das parcelas em causa – o que aqui apenas interessa, como sabemos, na perspetiva da avaliação do imóvel – diz-nos o Sr. Perito[2]:
Contudo, de acordo com alínea i) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro (RJUE - Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), na sua atual redação, define as operações de loteamento como “as ações que tenham por objeto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulte da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento”, consagrando a possibilidade de constituição de lotes através da divisão do prédio.
Mais estabelece no artigo 41º, que “as operações de loteamento só podem realizar-se em áreas situadas dentro do perímetro urbano e em terrenos já urbanizados ou cuja urbanização se encontre programada em plano municipal ou intermunicipal de ordenamento do território”, conforme se verifica após consulta das plantas de ordenamento e condicionantes do PDM, que está parcialmente dentro do perímetro urbano.
Assim sendo, o fracionamento de prédios rústicos abrangidos pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, só podem dizer respeito a prédios dessa natureza localizados fora do perímetro urbano, concluindo-se que os solos incluídos no perímetro urbano, aos quais se aplica o RJEU, não são solos com aptidão agrícola ou florestal, mas sim solos para os quais é reconhecida vocação para o processo de urbanização e edificação.
De outro modo, e atendendo ao preconizado no n.º4 do artigo 6.º do RJUE, estabelece que “os atos que tenham por efeito o destaque de uma única parcela de prédio com descrição predial que se situe em perímetro urbano estão isentos de licença desde que as duas parcelas resultantes do destaque confrontem com arruamentos públicos”, devendo ser observado também, o estipulado nos seguintes n.os 6, 7 e 8, relativo ao ónus de não fracionamento por um prazo de 10 anos.
O n.º9 deste mesmo artigo prevê que “a certidão emitida pela câmara municipal comprovativa da verificação dos requisitos do destaque constitui documento bastante para efeitos de registo predial da parcela destacada”, resultando daqui a constituição de dois prédios autónomos.
Neste caso em concreto, é o que sucede, sendo que à luz da legislação em vigor, é permitido o destaque do prédio em causa, uma vez o mesmo está localizado dentro do perímetro urbano de ..., e as duas parcelas resultantes, confrontam a norte com o arruamento público (Rua ...). (sublinhado nosso)
Efetivamente, diz-nos Carla Manuela de Sousa Vieira, “As operações de transformação fundiária resultantes do loteamento e o (seu) registo”, dissertação de mestrado em solicitadoria da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto, ano 2015/2016, disponível no Repositório Científico de tal Instituição, pág. 58, que:
O destaque consiste na divisão de prédios para construção urbana, que apenas dá origem a duas parcelas, ou seja, é uma divisão bastante simples, que integra uma operação de loteamento em sentido estrito, que justifica a isenção de controlo prévio. Porém, o destaque está vinculado ao cumprimento dos requisitos constantes do número 4, do artigo 6º do RJUE, quando se trate de prédio que se situe em perímetro urbano e no número 5, quando o prédio se situe fora de perímetro urbano.
No que diz respeito às parcelas de prédio situado em perímetro urbano – não há prévio licenciamento ou comunicação prévia, desde que as duas parcelas resultantes do destaque confrontem com arruamentos públicos.
Tudo isto desde que estejam respeitadas as demais normas urbanísticas aplicáveis, como o Plano Diretor Municipal e Plano Especial de Ordenamento do Território.
Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Março de 2008, proferido no processo nº 0442/07, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:
I - O artº 6º do DL 555/99, de 16/12, na redacção que lhe foi dada pelo DL 177/2001, de 4/06, com isenção e dispensa de licença ou autorização permite, para efeitos de construção e desde que verificadas as condições previstas no seu nº 4, o destaque de uma única parcela de prédio que se situe em perímetro urbano.
II – Essa operação tem no entanto, face ao disposto no nº 8 do artº 6º, que respeitar o estabelecido nas demais normas regulamentares aplicáveis, nomeadamente as constantes de plano municipal e plano especial de ordenamento do território, não sofrendo por isso de ilegalidade o despacho que indeferiu um pedido de destaque feito ao abrigo do citado artº 6º, com o fundamento de que a “operação de destaque não cumpre com os indicadores urbanísticos previstos pelo PDM”.
Ou no recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2024, proferido no processo nº 290/20.2T8PTL.G1.E1, disponível em ECLI – European Case Law Identifier, onde se diz[3]:
I- Apesar de o direito de propriedade incidir, em regra, sobre a totalidade da coisa (certa, determinada e autonomizada juridicamente), nada obsta a que exista posse em termos de direito de propriedade sobre a parte de um prédio ainda não autonomizada, mas suscetível de vir a sê-lo.
II- Ocorrendo uma situação dessas, é de admitir, em termos gerais, a possibilidade de aquisição por usucapião da parte do prédio sobre a qual recai a posse, ainda que não tenha ocorrido o prévio destaque da mesma.
III- Não pode, no entanto, prescindir-se da observância das regras urbanísticas que impunham, no momento em que teve início a posse, as condições para que aquela operação pudesse ser realizada.
IV- A observância de tais regras apresenta-se assim como um facto constitutivo do direito à aquisição por usucapião de uma parcela de terreno que será, por essa via, autonomizada do prédio de que fazia parte.
Não cabendo ao Tribunal decidir do destaque das parcelas, mas apenas atentar na bondade do parecer do Sr. Perito, verificamos que a situação em que se encontram, quer o prédio descrito – dentro do perímetro urbano[4], com acesso à via pública -, quer as parcelas avaliadas - tendo estado na posse e vindo a ser usadas pelos inventariados de forma exclusiva e sem oposição dos demais coproprietários - torna teoricamente possível o destaque dessas parcelas.
Havendo ainda que ter em conta que o Recorrente, nas suas alegações de recurso, em tempo algum vem pôr em causa a realidade fática e administrativa em que o Sr. Perito se baseou para avaliar as parcelas, limitando-se a invocar o disposto no do disposto no artº 1376º, nº 1, do Código Civil, conjugado com o artº 2º e Anexo I à Portaria nº 219/2016, de 9 de Agosto, sem nunca de referir à pertença ao perímetro urbano e à aplicação, ou não, das normas do RJUE.
Tal realidade deve ser considerada no momento da avaliação do imóvel, ainda que à herança pertença apenas uma quota ideal, pois que é bem diferente o valor económico de uma parcela de um imóvel que permanecerá indiviso do de uma parcela que pode ser destacada desse imóvel.
Assim, bem andou também aqui o tribunal a quo, ao não afastar as conclusões do Sr. Perito.
Deste modo, a decisão recorrida não merece censura, devendo ser mantida.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 12 de Novembro de 2024
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Francisco Costeira da Rocha
Cristina Neves
[1] Neste sentido, ver, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1 de Outubro de 2015, proferido no processo nº 40/12.7TBSBR.G1, onde se diz:
1 – O valor da prova pericial civil, contrariamente ao que acontece com a prova pericial penal não vincula o critério do julgador.
2 -. Porém convém não esquecer o peculiar objeto da prova pericial: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina.
3 – E assim se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva. (sublinhado nosso)
[2] Em esclarecimento à perícia, por requerimento de 03/04/2024, refª 3555175.
[3] Ainda com algum interesse para os presentes autos, ver também o igualmente recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Abril de 2024, proferido no processo nº 139/19.9T8CDR.C2.86, disponível em ECLI – European Case Law Identifier.
[4] Como é consabido, pertencer ao perímetro urbano/rústico e ser classificado como prédio urbano/rústico são realidades distintas e não necessariamente sobrepostas.