I – Ainda que o A. tenha pedido a condenação da Ré relativamente a factos que não foram praticados pela mesma, invocando, tão só, qualidade de herdeiro relativamente ao responsável, e se entenda que tal condenação não apresenta suporte no âmbito do Direito substantivo, a petição não pode ser taxada de inepta.
II – Também não é inepta a petição quando é pedida indemnização suscetível de conter erro na categorização dos danos (patrimoniais/não patrimoniais) e bem assim por não ter sido feita a especificação do reclamado a título de danos patrimoniais e a título de danos não patrimoniais.
III – Não existindo ainda elementos seguros para considerar que o facto ilícito gerador de responsabilidade extracontratual constitui crime para o qual a lei estabelece prescrição sujeita a prazo mais longo, e bem assim divergência quanto à data do início da contagem do prazo prescricional, a exceção de prescrição não deve ser apreciada no despacho saneador.
(Sumário elaborado pelo Relator)
I-Relatório
AA, residente na Rua ... – Residência... ...00..., titular do Cartão do Cidadão n.º ...17, contribuinte fiscal n.º ...33
intentou contra
BB, residente na Rua ..., ..., ..., NIF ...54...,
CC, residente na Travessa ..., ... ..., NIF ...70...,
DD, residente na Estrada ..., ..., ..., NIF ...64...,
EE, residente na Rua ..., ..., ... ... ..., NIF ...26...,
e
FF, residente em Travessa ..., ... ..., NIF ...83...,
a presente ação declarativa, de condenação, pedindo, com os fundamentos que invocou,
“a) Devem ser os Réus condenados, solidariamente, no pagamento ao Autor da quantia de 13.654,20€, a título de indemnização pelos valores de pensões de sobrevivência a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2010 e 2016 por terem sido recebidas indevidamente pela GG e pela 5ª Ré; e
b) Devem ser os 1º a 4º Réus ser condenados, solidariamente, no pagamento ao Autor da quantia total de 41.210,26€ a título de indemnização pelos valores de pensão de sobrevivência, prestações sociais e familiares e respetivas bonificações /majorações a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2001 e 2016 por não terem sido requeridas ou terem sido recebidas indevidamente pela GG e/ou de que o Autor não beneficiou; e
c) Devem ser os Réus condenados, solidariamente e na proporção da respetiva responsabilidade, no pagamento ao Autor da quantia de 50.000€, a título de indemnização de outros danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor; e
d) Devem ainda ser os Réus condenados, solidariamente e na proporção da respetiva responsabilidade, no pagamento ao Autor de juros de mora sobre as quantias peticionadas em a), b) e c) desde a data da prática do respetivo facto ilícito, até integral e completo cumprimento”.
*
Os RR. contestaram invocando, por exceção, a ineptidão da petição inicial, a prescrição do crédito do A. e a ausência de requisitos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por omissão, e bem assim impugnaram parte da factualidade alegada na p.i.
*
O A. respondeu defendendo a improcedência das exceções.
*
Foi proferido despacho saneador que incluiu, ao demais, os seguintes excertos decisórios:
“– Da invocada ineptidão da Petição Inicial:
Considerando a factualidade invocada pelo Autor na Petição Inicial, não ocorre qualquer contradição entre pedido e causa de pedir nem ocorre qualquer falta de causa de pedir, tratando-se de questões atinentes ao mérito da causa, bem como, da análise da Contestação verifica-se que os Réus compreenderam e interpretaram convenientemente a Petição Inicial.
Deste modo, não ocorre a invocada ineptidão da Petição Inicial, para efeitos do disposto no art. 186.º, n.º 1, 2, al. a) e b) e n.º 3, do CPC.
– O processo é próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.
– As partes têm personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e não há vícios de patrocínio.
– Não existem quaisquer nulidades, excepções dilatórias, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e cumpra conhecer.
– Da invocada prescrição:
O prazo de prescrição é de três anos após o conhecimento do facto pelo lesado, conforme o art. 498º, n.º 1, do Código Civil, contudo, resulta do seu n.º 3 que “Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.”.
Considerando que os factos alegados pelo Autor na sua Petição Inicial são suscetíveis de configurar em abstracto a prática, entre outros, de crimes de abuso de confiança nos termos do disposto no art. 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), do Código Penal, com pena de prisão entre 1 e 8 anos, o prazo prescricional para tais tipos de crime está fixado em 10 anos, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 118.º do Código Penal, e tendo em conta o alegado conhecimento pelo Autor dos factos susceptíveis de consubstanciar responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos (ano de 2010), o prazo de prescrição apenas terminaria em 2026, por isso, como a presente acção foi intentada no ano de 2023 não se mostra prescrito o direito invocado.
«a) Devem ser os Réus condenados, solidariamente, no pagamento ao Autor da quantia de 13.654,20€, a título de indemnização pelos valores de pensões de sobrevivência a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2010 e 2016 por terem sido recebidas indevidamente pela GG e pela 5ª Ré; e
b) Devem ser os 1º a 4º Réus ser condenados, solidariamente, no pagamento ao Autor da quantia total de 41.210,26€ a título de indemnização pelos valores de pensão de sobrevivência, prestações sociais e familiares e respetivas bonificações/majorações a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2001 e 2016 por não terem sido requeridas ou terem sido recebidas indevidamente pela GG e/ou de que o Autor não beneficiou; e
c) Devem ser os Réus condenados, solidariamente e na proporção da respetiva responsabilidade, no pagamento ao Autor da quantia de 50.000€, a título de indemnização de outros danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor; e
d) Devem ainda ser os Réus condenados, solidariamente e na proporção da respetiva responsabilidade, no pagamento ao Autor de juros de mora sobre as quantias peticionadas em a), b) e c) desde a data da prática do respetivo facto ilícito, até integral e completo cumprimento.».
Comportamento dos Réus relativamente ao recebimento, ou não solicitação, das quantias pertencentes ao Autor.
Danos causados ao Autor”.
*
A Ré CC interpôs recurso dessa decisão[2], fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
(…).
*
O A. respondeu, defendendo o acerto da decisão recorrida, culminando com as seguintes conclusões:
(…).
*
Dispensados os vistos, foi realizada conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, tendo em consideração as desistências dos recursos, a circunstância de este tribunal apenas poder apreciar o recurso quanto ao decidido relativamente a CC e tendo presente a causa de pedir apresentada relativamente a esta, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
Saber se:
a) a petição inicial, na parte em que visa a condenação da Ré recorrente, é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir (conclusões 35 e 36),
b) a petição é também inepta (por falta de causa de pedir) em relação à indemnização de €50.000,00 a título de “outros danos patrimoniais e não patrimoniais” na medida em que a petição inicial não concretiza minimamente os referidos danos nem oferece qualquer critério que permita compreender quanto daquele montante corresponderá a danos patrimoniais e quanto corresponderá a danos não patrimoniais (conclusões 37 e 38),
c) se os créditos peticionados relativamente à recorrente devem ser considerados prescritos,
e se
d) a decisão recorrida, ao omitir pronúncia, quanto à exceção invocada - ausência de um dos requisitos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por omissão – é nula (conclusões 39 a 42),
. *
III-Fundamentação
A- Da ineptidão da petição inicial
No recurso interposto a Ré CC insurge-se quanto ao decidido no despacho saneador a propósito da invocada ineptidão da petição inicial porquanto:
- existe contradição entre o pedido e a causa de pedir na parte em que se pretende a sua condenação relativamente a factos que não lhe são imputados
e
- existe falta de causa de pedir em relação à indemnização de €50.000,00 a título de “outros danos patrimoniais e não patrimoniais” na medida em que a petição inicial não concretiza minimamente os referidos danos nem oferece qualquer critério que permita compreender quanto daquele montante corresponderá a danos patrimoniais e quanto corresponderá a danos não patrimoniais.
*
De acordo com o disposto no art. 186.º, n.º 2, alíneas a) e b), a petição é inepta, ao demais, quando falte a indicação da causa de pedir ou quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.
Diga-se, antes de se avançar na decisão e como pressuposto da possibilidade desse avançar, que, apesar de no presente o CPC não referir expressamente a possibilidade de ineptidão parcial, não haver razões para a excluirmos quando ocorra autonomia de causas de pedir e pedidos; ou seja quando sejam apresentados diversos pedidos, cada um deles apoiado, ou a dever ser apoiado, em causa de pedir “própria” (no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do TRP de 15.12.2016 e do TRE de 06.02.2020, disponíveis em www.dgsi.pt).
Conforme decorre do art. 552.º, n.º 1, alín. d) do C.P.C., na petição inicial deve o A. expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
Como refere Alberto dos Reis (Comentário ao C.P.C., vol. II, págs. 370 a 375) "a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito de que o autor se propõe declarar (...) o que tem valor e eficácia jurídica, o que tem vida, é o facto individual e concreto " ou, na expressão de Ulpiano "a causa de pedir é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis".
Se a petição não satisfizer tal requisito ou quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir, é inepta e, como tal, nulo todo o processo.
Na decisão recorrida decidiu-se que “não ocorre qualquer contradição entre pedido e causa de pedir nem ocorre qualquer falta de causa de pedir, tratando-se de questões atinentes ao mérito da causa, bem como, da análise da Contestação verifica-se que os Réus compreenderam e interpretaram convenientemente a Petição Inicial”.
Vejamos:
O A., que é filho da Ré recorrente, veio peticionar a condenação solidária das RR.,
- relativamente a valores devidos ao A., que foram recebidos pela sua avó materna GG, a título de pensão de sobrevivência por óbito do pai HH, abono de família, bonificação por deficiência e subsídio por morte, quantias de que o A. nunca beneficiou, nem foram aplicadas ou gastas em seu prol;
- relativamente aos valores que lhe deviam ter sido pagos respeitantes a metade da pensão de sobrevivência, no período de 15.05.2010 e 08.04.2016 (€ 13.654,20), de que o A. ficou privado devido aos comportamentos omissivos da avó materna GG referidos nos artigos 30 a 32 da p.i.,
- relativamente às prestações a título de abono de família, bonificação por deficiência e bonificação de família monoparental, que não foram recebidos, devido aos comportamentos omissivos da avó materna GG referidos nos artigos 45, 52 e 56 da p.i.,
- relativamente a danos “patrimoniais e não patrimoniais” sofridos em consequência dos factos ilícitos.
Ora, embora a pretensão do A. aparente uma extrema fragilidade nos seus pressupostos de facto e jurídicos – que eventualmente poderiam ter motivado outra decisão da primeira instância – não vemos que ocorra qualquer ineptidão.
Bem ou mal, o A. defendeu que a Ré BB é herdeira de GG, falecida em 28.12.2021, e, como tal, responsável pela indemnização ressarcitória relativa a factos ilícitos por esta praticados.
Na sua construção, viável ou inviável em termos de procedência, o pedido e a causa de pedir apresentam inteira coerência e sintonia.
A circunstância de se pedir a condenação da recorrente relativamente a factos que não foram praticados pela mesma, decorre, a seu ver, da qualidade de herdeiro relativamente ao responsável.
A isso, ao acolhimento da pretensão, responde o Direito susbstantivo, sem que se possa dizer que a petição inicial se apresenta inepta.
Depois, quanto ao pedido de indemnização de € 50.000 a que se refere a alínea c) do petitório, independentemente do acerto quanto à sua categorização legal e doutrinária dos danos, ou de não ter sido feita a especificação do reclamado a título de danos patrimoniais e a titulo de danos não patrimoniais, da leitura dos artigos 66 a 75 da petição inicial resulta fundamentada a causa desse pedido, os danos cujo ressarcimento se pretende.
Entende-se, assim, que a petição inicial não sofre de ineptidão.
*
B – Da prescrição
A recorrente sustenta, com os fundamentos invocados, que os créditos peticionados relativamente à recorrente devem ser considerados prescritos.
Analisando a petição inicial contata-se que o A. pretende a condenação da Ré recorrente (em regime de solidariedade com os outros RR.)
a) do montante € 13.654,20, relativos aos valores de pensões de sobrevivência a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2010 e 2016, por terem sido recebidas indevidamente pela GG e pela Ré FF,
b) do montante de € 41.210,26 a título de indemnização pelos valores de pensão de sobrevivência, prestações sociais e familiares e respetivas bonificações/ majorações a que o Autor tinha direito e que deixou de receber entre 2001 e 2016, por não terem sido requeridas ou terem sido recebidas indevidamente pela GG
c) na proporção da respetiva responsabilidade, do montante de € 50.000, a título de indemnização de outros danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor;
d) na proporção da respetiva responsabilidade juros de mora sobre as quantias referidas em a), b) e c) desde a data da prática do respetivo facto ilícito, até integral e completo cumprimento.
Toda a causa de pedir relativa à Ré recorrente foi construída no pressuposto da responsabilidade civil decorrente de atos ilícitos, ativos e omissivos, de sua mãe - GG (avó materna do A.)
Não foi indicado nenhum facto ilícito gerador de responsabilidade praticado pela Ré recorrente CC.
Ainda seguindo o que foi escrito na petição inicial, esses factos ilícitos ocorreram entre a data em que foi aplicada ao A. a medida de proteção, com a sua colocação à guarda da avó GG, da Ré DD e do marido desta (07.02.2001) e a data em que o A. atingiu a maioridade (15.05.2010).
Estatui-se no n.º 1 do art. 298º do Cód. Civil que "estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição".
Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 445) define a prescrição extintiva como "o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos".
A prescrição extintiva é um instituto endereçado fundamentalmente à realização de conveniência ou oportunidade mas também, e no dizer de Mota Pinto, "à ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito, em harmonia com o velho aforismo - dormentius non sucurrit Jus -" (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1983, pág. 374).
Na situação dos autos, como já atrás ficou dito, estamos inseridos no âmbito de responsabilidade civil extracontratual.
Conforme preceitua o n.º 1 do art. 498.º do C.C., o prazo prescricional normal para a obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade extracontratual é de 3 anos.
Por seu lado, de acordo com o disposto no art. 320.º, n.º 1, parte final, do Cód. Civil, a prescrição nunca se completaria antes de o A. completar os 19 anos de idade, ou seja, 15.05.2011.
Mais: ainda que não tenha sido nomeada pessoa que representasse o A. ou administrasse os seus bens, tão só a sujeição a uma medida de promoção e proteção que não implicasse esses efeitos, o prazo prescricional só começaria a correr com o atingir da maioridade pelo A., ou seja, em 15.05.2010 (cfr. 1.ª parte do último dos normativos citados).
Seja como for, tendo sido alegado que o conhecimento dos factos ilícitos apenas ocorreu em (data não indicada de) 2016, a prescrição ocorreria no ano de 2019, sendo que a ação foi intentada em 27.02.2023.
Na decisão recorrida defendeu-se, no entanto, o alargamento do prazo prescricional, “Considerando que os factos alegados pelo Autor na sua Petição Inicial são suscetíveis de configurar em abstracto a prática, entre outros, de crimes de abuso de confiança nos termos do disposto no art. 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), do Código Penal, com pena de prisão entre 1 e 8 anos, o prazo prescricional para tais tipos de crime está fixado em 10 anos, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 118.º do Código Penal, e tendo em conta o alegado conhecimento pelo Autor dos factos susceptíveis de consubstanciar responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos (ano de 2010), o prazo de prescrição apenas terminaria em 2026, por isso, como a presente acção foi intentada no ano de 2023 não se mostra prescrito o direito invocado.
Com efeito, de acordo com o preceituado no n.º 3 do art. 498.º do Código Civil, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
Ora, e voltando à análise da p.i., salvaguardado o devido respeito, a apreciação da exceção exige um cuidado mais apurado.
Vejamos o que o A. referiu acerca dos factos ilícitos geradores de responsabilidade:
“O valor da pensão de sobrevivência nunca beneficiou o Autor, nem foi aplicado ou gasto pela GG em prol do Autor, nomeadamente em tratamentos, atividades terapêuticas, pedagógicas, de reabilitação ou recuperação ou, em geral, em benefício do Autor e da melhoria da sua saúde física ou mental - que nunca lhe foram prestados” (art. 21).
“Essas prestações correspondem ao valor total de 19.203,65€ para o período entre Janeiro de 2001 e Maio de 2010, nos termos do art. 42º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência “(art. 22).
“Sucede que a GG e a 3ª Ré nunca informaram, requereram ou diligenciaram para que o Autor fosse submetido a uma avaliação médica que comprovasse o seu estado clínico e lhe atestasse, para todos os efeitos, a situação de deficiência grave e permanente” (art. 23)
“A GG e a 3ª Ré omitiram e jamais comunicaram à CGA, nomeadamente nos diversos requerimentos e habilitações a prestações da CGA, que o Autor sofria de paralisia cerebral e era portanto uma pessoa com deficiência e portador de incapacidade definitiva, seja antes ou depois da maioridade do Autor” (art. 24).
“E omitiram e não comunicaram à CGA, seja antes ou depois da maioridade do Autor, que este, apesar de sofrer de paralisia cerebral e ser portador de incapacidade definitiva, estava inscrito em estabelecimento de ensino secundário e mantinha aproveitamento escolar” (art. 25).
“E também omitiram e não transmitiram ao Autor, ou assegurou que este fosse informado, de que era titular de direito a diversas prestações e benefícios e quais as condições para, ao chegar à maioridade, continuar a ter direito a eles” (art. 26).
“E não cuidaram de requerer, junto da CGA e/ou da Segurança Social, prestações e benefícios sociais e familiares a que o Autor tinha direito em função da sua situação de deficiência e incapacidade” (art. 27)
“Imediatamente após o Autor atingir a maioridade, a CGA remeteu em 13/07/2010 uma comunicação escrita à GG a informar que, para agilizar e facilitar a prova da situação escolar do Autor, a matrícula do Autor para o ano letivo 2010-2011 no estabelecimento de ensino deveria ser realizada com indicação do seu número de beneficiário da CGA” (art. 29)
“No entanto, a GG não providenciou que a matrícula do Autor para o ano letivo 2010-2011 no estabelecimento de ensino fizesse menção desse número de beneficiário da CGA, como também não o fez nos anos letivos de 2011-2012 e 2012-2013” (art. 30).
“A GG também não enviou à CGA, por qualquer outra forma, comprovativo ou prova de que o Autor esteve matriculado e frequentou o dito estabelecimento escolar em 2010-2011, 2011-2012 e 2012-2013” (art. 31).
“Em consequência dessa atuação da GG, e apesar de o Autor ser titular de pensão social por invalidez, atribuida pela Segurança Social desde 01/07/2010, o Autor deixou de estar habilitado e perdeu o seu direito à pensão de sobrevivência por óbito do pai” (art. 32).
“Porém, no período entre 15/05/2010 e 08/04/2016 foram a GG e/ou a 5ª Ré que beneficiaram, em exclusivo e pela totalidade, em consequência da reversão operada, da pensão de sobrevivência atribuida pela CGA por óbito de HH” (art. 37).
“Após o decurso da data da sua maioridade, a 5ª Ré também omitiu e não comunicou à CGA que o Autor, seu irmão, era portador de deficiência e incapacidade que lhe atribuia igualmente o direito à pensão de sobrevivência, de forma vitalícia” (art. 39).
“Em todo o caso, as prestações pagas pela Segurança Social entre Julho de 2004 e Junho de 2010 foram transferidas para uma conta bancária de que a GG era única titular, com o IBAN ...70” (art. 46).
“E, em todas as circunstâncias, tais prestações de abono de família entre 2001 e 2010 nunca beneficiaram o Autor, nem foram aplicadas ou gastas pela GG em tratamentos, atividades terapêuticas, pedagógicas, de reabilitação ou recuperação ou, em geral, em benefício do Autor e da melhoria da sua saúde física ou mental” (art. 47).
“Para o período a partir de Julho de 2004, a prestação de abono de família relativa ao Autor foi requerida pela GG e passou a ser paga pela Segurança Social para uma conta bancária de que a GG era única titular, com o IBAN ...70” (art. 51).
“Mas apenas até Junho de 2010, uma vez que a GG, apesar de o Autor manter direito à bonificação por deficiência após essa data e até fazer 24 anos, por ser jovem portador de deficiência, não comunicou à Segurança Social tal situação” (art. 52).
“Em todo o caso, as prestações pagas pela CGA entre 2001 e 2004 e pela Segurança Social entre Julho de 2004 e Junho de 2010 nunca beneficiaram o Autor, nem foram aplicadas ou gastas pela GG em tratamentos, atividades terapêuticas, pedagógicas, de reabilitação ou recuperação ou, em geral, em benefício do Autor e da melhoria da sua saúde física ou mental” (art. 53)
“A GG não requereu à Segurança Social a bonificação de família monoparental relativa ao Autor” (art. 56)
“Ou, se o fez, as ditas prestações nunca beneficiaram o Autor, nem foram aplicadas ou gastas pela GG em tratamentos, atividades de reabilitação ou recuperação ou, em geral, em benefício do Autor e da melhoria da sua saúde física ou mental” (57).
“a GG requereu à CGA que fosse pago Subsídio por Morte” (art. 59).
“O referido subsídio foi deferido e pago pela CGA em 16/05/2004, para conta bancária indicada pela GG” (art. 60).
“Em todo o caso, a referida prestação da CGA nem foi utilizada para as finalidades para que foi instituída e está legalmente prevista a sua atribuição nem foi utilizada em beneficio do Autor e das suas necessidades” (art. 61.º).
“Dessa forma, o Autor ficou privado da quantia respeitante ao subsídio por morte atribuida pela CGA, cujo valor de prestação única foi 1.714€ “ (art. 62)
“Ora, a GG, a 3ª Ré e a 5ª Ré, cada uma na sua medida, agiram de forma contrária ao que lhes era imposto pelas mais básicas regras da boa fé e da relação familiar com o Autor, com o propósito e intenção de, nada requerendo, comunicando ou informando quer à CGA, Segurança Social ou ao Autor, prejudicar ou impedir o direito deste à pensão de sobrevivência, abono de família respetivas bonificações e majorações de prestações familiares atribuidas pela CGA ou Segurança Social e, simultaneamente, beneficiar a GG e/ou a 5ª Ré pela atribuição de valores que de outra forma não lhe seriam devidos nem prestados, porquanto não eram representantes legais do Autor, ou locupletar-se quanto a valores de que o Autor era titular e que nunca foram aplicados em seu benefício” (art. 63).
“No limite, a GG, a 3ª Ré e a 5ª Ré tinham, cada uma na sua medida, a capacidade e o dever de prever que as suas condutas iriam impedir ou prejudicar o direito do Autor a prestações sociais e familiares de que era titular e, simultaneamente, beneficiar a GG e/ou a 5ª Ré pela atribuição a estas de valores que de outra forma não lhe seriam prestados” (art. 65).
Ora, tal alegação permite, quanto a alguns dos créditos reclamados, considerá-los desde já prescritos e, quanto aos restantes, dever considerar-se que os autos não permitem nesta fase uma decisão conscienciosa, desde logo por a sua apreciação estar dependente da prova de factos.
Assim, quanto às condutas omissivas de GG, as quais, recorde-se, não deram lugar ao recebimento de qualquer quantia e, consequentemente, à entrega e apropriação por parte da mesma, é de rejeitar em absoluto que integrem a prática do crime de abuso de confiança, sendo que também não foram alegados factos que permitam o preenchimento de qualquer outro tipo de ilícito.
Estão nesta situação os valores relativos
- ao não pagamento da pensão de sobrevivência por óbito do pai do A. entre 15.05.2010 e 08.04.2016, no montante de € 13.654,20;
- à bonificação por deficiência do abono de família a partir de 30 junho de 2010, no montante de € 7150,20
e
- à bonificação de família monoparental, no montante de € 706.21;
Sobram como imputados factos ilícitos, os recebimentos pela avó materna do menor das quantias:
- de € 19.203,65, recebida entre Janeiro de 2001 e maio de 2010, a título de pensão de sobrevivência
- de € 6.219,84 recebida entre 19.01.2001 e 30.06.2010, a título de abono de abono de família
- de € 5893,56, recebida entre 19.01.2001 a 30.06.2010, a título de bonificação ao abono de família por deficiência
- de € 1714 pago em 16.05.2004, a título de subsídio por morte.
À partida parece admissível, a fazer-se prova do alegado pelo A. no sentido de fundamentar o ilícito, que a apropriação desses valores consubstancie a prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205.º, n.º 1, e 4 b), o qual se encontra sujeito a um prazo prescricional de 10 anos (art. 118.º, n.º 1, b) do Código Penal).
É ainda de admitir que o prazo tenha começado a correr quando o A. atingiu a maioridade, ou seja em 15.05.2010 e, como tal, à data da propositura da ação, já haver decorrido na íntegra.
Não obstante, caso o A. faça prova de que apenas tomou conhecimento do facto ilícito em data posterior, ou seja, em 2016, pode vir a considerar-se que a prescrição ainda não operou.
Em suma, sem prejuízo de se impor a revogação parcial do decidido, por falta de produção de prova de factos relevantes, o estado dos autos não habilitava, na fase de saneamento, à apreciação da exceção da prescrição quanto aos montantes de € 19.203,65 (quantia recebida entre Janeiro de 2001 e maio de 2010, a título de pensão de sobrevivência), € 6.219,84 (recebida entre 19.01.2001 e 30.06.2010, a título de abono de abono de família) € 5.893,56 ( recebida entre 19.01.2001 a 30.06.2010, a título de bonificação ao abono de família por deficiência), € 1714 (pago em 16.05.2004, a título de subsídio por morte) e € 50.000 (a título dos outros danos peticionados consequentes ao facto ilícito) e dos juros moratórios respetivos.
C – Da nulidade da decisão recorrida por omitir pronuncia quanto à exceção invocada - falta de um dos requisitos de que depende a responsabilidade civil.
Na contestação apresentada a Ré recorrente havia defendido que, no respeitante aos pedidos relacionados com o não recebimento de quantias por omissão do dever de atuação da falecida GG, da p.i., não resultavam alegados factos que permitissem evidenciar que tivesse sido omitida a prática de qualquer ato imposto por um qualquer dever jurídico decorrente de lei ou de contrato.
Diga-se, antes de mais, que a invocação em causa não se traduz no conhecimento de exceção, antes da mera verificação dos pressupostos em que o direito invocado assenta, ou seja, saber se existe ou não omissão do cumprimento de dever de agir e, consequentemente, se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil.
Assim, tratando-se, no fundo, do conhecimento do mérito da causa, ou, dito de outro modo, do conhecimento da defesa por impugnação apresentada, não se impunha que tal conhecimento tivesse lugar no despacho saneador.
Não obstante, ainda que assim não se entenda, quanto aos créditos reclamados nesta sede já se constatou que os mesmos se encontram prescritos, o que torna inútil e, como tal, prejudicada, a apreciação dessa “exceção”.
Sumário[3]:
(…).
IV - DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, e, consequentemente,
a) declarar prescritos relativamente à recorrente CC os créditos peticionados quanto ao não pagamento da pensão de sobrevivência por óbito do pai do A. entre 15.05.2010 e 08.04.2016, no montante de € 13.654,20; à bonificação por deficiência do abono de família a partir de 30 junho de 2010, no montante de € 7150,20, à bonificação de família monoparental, no montante de € 706.21 e juros moratórios respetivos, indo, nessa parte, revogada a decisão recorrida;
b) revogar o despacho recorrido na parte em que, relativamente à recorrente, quanto aos demais créditos cuja condenação no pagamento se pretende, considerou não estarem prescritos, determinando-se que o conhecimento dessa matéria apenas tenha lugar na decisão final, após ser produzida prova quanto ao que foi alegado suscetível de relevar para efeitos do disposto no art. 498.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil, devendo ser aditados ao despacho saneador as alterações que se justifiquem quanto ao objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova
e
c) confirmar, no demais, a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da recorrente e do recorrido na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente.
Coimbra, 12 de novembro de 2024
(Paulo Correia)
______________________
(Maria João Areias)
_______________________
(Chandra Gracias)
[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Maria João Areias e Chandra Gracias
[2] - Inicialmente o recurso foi interposto por todos os RR., sendo que, com exceção da Ré BB, posteriormente todos os demais vieram desistir.
[3] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).