RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO

I.1. O Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido, em 21 de Fevereiro de 2024, nos autos supra identificados, por entender existir oposição de julgados com o decidido nos seguintes acórdãos:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Processo n.º 564/22.8T9SCR.L1, de 24/05/2023 e,

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo nº 4392/17.4T9AVR.P1, de 14/02/2022.

I.2. O Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM apresentou as seguintes conclusões:

“a) Quanto à primeira questão suscitada pelo Douto Acórdão em apreço, ou seja, de que a vigência de um acordo de pagamento faseado de contribuições e quotizações à segurança social, realizado no âmbito do processo de execução fiscal, obsta à realização da notificação a que alude o artigo 105.º, nº 4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma e impede a instauração do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, contra a entidade empregadora e contra os respetivos gerentes/legais representantes:

b) Desde logo, cumpre começar por notar que, como refere o Acórdão em apreço, “a maioria da jurisprudência publicada, a propósito desta questão, tem entendido, por virtude das diversas e autónomas realidades que constituem, por um lado, a execução fiscal (onde se visa o pagamento da dívida do imposto) e, por outro, o crime fiscal (onde se tem por objetivo sancionar os comportamentos criminais), traduzidos na falta de pagamento de um imposto ou de uma contribuição, com o atinente desvalor face ao bem jurídico que a incriminação visa tutelar, pondo em causa o sistema financeiro público do Estado, através do qual este obtém as receitas necessárias ao funcionamento do próprio Estado, propiciador de bem-estar a todos os seus cidadãos, que o pagamento em prestações não equivale a pagamento da dívida nem à extinção desta, mas a um pagamento que se vai realizando, no âmbito das execuções fiscais, pelo que, não estando a dívida paga, teriam os arguidos (como responsáveis criminalmente) de ser notificados, como foram, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), RGIT. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 777/16.1IDLSB.L1-5, de 17-04-2018).”

c) Da mesma forma, este entendimento tem vindo a ser seguido relativamente a este tipo de questão, nomeadamente veja-se o Acórdão proferido no âmbito do processo n.° 564/22.8T9SCR.L1, de 24/05/2023, do Tribunal da Relação de Lisboa, já transitado em julgado e disponibilizado no sítio da internet em www.dgsi.pt.

d) Com efeito, o Douto Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 564/22.8T9SCR.L1, do Tribunal da Relação de Lisboa, relativamente a um processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, no Juízo de Instrução Criminal ... (com a decisão instrutória da Senhora Juíza de Direito do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo de Instrução Criminal ..., datada de 10/01/2023), em que o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, interpôs recurso de uma decisão instrutória e em que foi julgado procedente o recurso e revogou-se a decisão recorrida, pois entendeu-se “À luz, do que dito fica, podemos concluir com a necessária segurança que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a administração tributária, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado na alínea b) do nº 4 do artigo 105.º. do RGIT, que no caso se mostra preenchida, muito menos impede a notificação a que alude na parte final da referida disposição legal.”

e) Acrescenta o referido Douto Acórdão que “Constatamos assim que da letra da lei positivada (cf. art. 107.º e art. 105.º do RGIT), só o efetivo e integral pagamento/entrega à Segurança Social da totalidade do valor das quotizações deduzido das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, pode obstar à instauração ou ao prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social; só o cumprimento, pela entidade empregadora/devedora, da condição de pagamento, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito, da totalidade do montante das quotizações em falta impede o acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.

Assim, com o devido respeito por opinião contrária, da leitura que fazemos da lei positivada, parece-nos que a celebração de acordo de pagamento da dívida de contribuições e de quotizações em sede de execução fiscal, não descriminaliza a conduta da entidade empregadora, muito menos impede/desobriga a Segurança Social de notificar o devedor e o gerente, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do art. 105.º do RGIT, e não dispensa a entidade empregadora devedora de quotizações, e o gerente, caso queiram evitar a instauração do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, de terem de proceder ao pagamento integral desse valor das quotizações, acrescido de juros e da coima eventualmente aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação que para o referido efeito lhe seja efetuada pela Segurança Social”.

f) Acresce que o referido Douto Acórdão ainda menciona que “Na realidade, na nossa leitura da lei ao caso aplicável, parece-nos que a celebração de acordo de pagamento em processo de execução fiscal, que depende da livre vontade do devedor, pela sua própria natureza, não tem força bastante nem virtualidade para descriminalizar a sua conduta omissiva de não entrega mensal, no prazo legal, dos valores das quotizações à Segurança Social.

Com efeito, reafirmamos nesta sede que, se o Órgão Legiferante pretendesse que só fosse penalmente punível a conduta dos empregadores e dos gerentes que, tendo deduzido nos salários pagos aos seus trabalhadores as quotizações por estes devidas à segurança social, não as entreguem à segurança social no prazo legal e não requeiram e obtenham o deferimento do pagamento faseado da dívida exequenda nos termos previstos no artigo 196.º do Código do Procedimento e Processo Tributário, tê-lo-ia dito na letra do art. 105.º do RGIT, e quanto a este quid, não pode o juiz, a pretexto de interpretação normativa, invadir a competência do Órgão Legiferante [cf. Alíneas c) e d) do art. 161.º da Constituição da República Portuguesa.”

g) A este respeito, cumpre também realçar que se o legislador quisesse que a retenção pelos empregadores das quotizações nos salários dos seus trabalhadores e a não entrega das mesmas à segurança social só fossem puníveis se, antes da notificação efetuada nos termos do disposto na alínea b), do n.º 4, do artigo 105.º do RGIT, o devedor não tivesse celebrado acordo de pagamento da dívida em prestações em processo de execução fiscal; ou se o legislador quisesse que os acordos e pagamento de dívida em processo ele execução fiscal determinassem a impossibilidade de instauração ou prosseguimento do procedimento criminal em abuso de confiança fiscal relativamente à conduta do abuso de confiança à segurança social pela retenção e não entrega mensal à segurança social dos valores das quotizações retidos nos salários dos trabalhadores, tê-lo-ia dito na letra da lei - e não o diz.

h) Deste modo, não se pode tirar a ilação que a dívida respeitante a quotizações se encontra paga, só pelo facto do contribuinte pessoa coletiva ter requerido um plano de pagamento prestacional, sendo certo que o mesmo pode a qualquer momento ser incumprido, ou serem incumpridas com as demais condições para a sua manutenção, para além do facto do acordo não ter sido celebrado com os demais arguidos pessoas singulares.

i) Com efeito, no caso em apreço, o acordo de pagamento faseado de contribuições e quotizações à segurança social, realizado no âmbito do processo de execução fiscal, vincula apenas o devedor ente coletivo e não os gerentes.

j) Efetivamente, tendo em conta toda a fundamentação expendida no douto Acórdão nº 564/22.8T9SCR.L1, com o devido respeito que muito é, verifica-se que ocorreu no Acórdão em crise a violação de lei substantiva, mormente do disposto no artigo 105.º, do RGIT, o que aqui se consigna para os devidos efeitos.

k) Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o Acórdão em apreço que considerou “improcedente o recurso interposto pelo assistente INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM, mantendo-se o despacho alvo de recurso”, não fez uma adequada apreciação da prova, nem aplicação do direito, razão pela qual o Acórdão sub Júdice está em contradição com o citado Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 564/22.8T9SCR.L1, de 24/05/2023, do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que o Acórdão em apreço configura questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, estando em causa a mesma questão de direito, no âmbito da mesma legislação, isto para além de estarmos perante interesses de particular relevância social.

l) O Recorrente está, pois, convicto de que Vossas Excelências, reapreciando esta questão e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de eliminar o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito, fixando-se, assim, a respetiva jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 437.º do Código do Processo Penal, o que aqui se requer, para os devidos efeitos.

m) Quanto à segunda questão suscitada pelo Douto Acórdão em apreço, isto é, saber se por ter sido detetada uma eventual irregularidade formal no cumprimento da notificação prevista no artigo 105.º, nº 4, alínea b) do RGIT, ou até no caso da mesma não ter sido realizada, essa falta poderia ter sido suprida a todo o tempo, ou seja, se essa falta poderia ter sido reparada oficiosamente ou mandada reparar pelo Ministério Público ou pela autoridade judiciária competente.

n) Em primeiro lugar, considera o assistente que, em vez do arquivamento, o Ministério Público deveria ter procedido à realização de todas as diligências necessárias para investigar a existência do crime que foi denunciado pelo ISS, determinar os seus agentes e a responsabilidade de cada um deles, bem como descobrir e recolher as provas e tudo o mais necessário a sustentar uma acusação, tendo por base o preceituado no nº1, do artigo 219.º, da Constituição da República Portuguesa.

o) No Acórdão em apreço é referido que “na decisão instrutória, menciona-se, a respeito das missivas enviadas nos autos, pela assistente, o seguinte:

Ora, a Segurança Social não está impedida nem desobrigada de proceder à notificação em caso de incumprimento, nem tão pouco de levar a cabo os procedimentos contra-ordenacionais a que houver lugar, mas os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também – e principalmente – o Estado impõem que a notificação em causa seja efectuada previamente à instauração do procedimento criminal, mesmo com risco de prescrição dos factos não podendo os arguidos ser responsabilizados pela omissão em tempo daquela, sendo consequência lógica, a de que não podem ser retiradas quaisquer consequências legais da notificação efectuada para efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, quer por via da regularização precedente da situação contributiva, quer pela invalidade da mesma.

Com efeito, as notificações que constam dos autos não foram sequer assinadas, delas não consta a menção relativa à coima aplicável e no caso do arguido, a notificação constante dos autos não é feita a título pessoal, mas enquanto gerente da sociedade arguida.

Ainda que se considerasse que estas omissões – de notificação a título pessoal e em pessoa diversa – constituem irregularidade susceptível de sanação e não nulidade como acima exposto, a notificação em causa não pode ocorrer nesta fase processual, dada a sua natureza, pois não cabe à instrução substituir-se à Administração ou ao Ministério Público.”

p) E ainda acrescenta o mesmo Acórdão que “tal nulidade, não pode ser suprida nem pelo MºPº, nem pelo tribunal, uma vez que (como aliás igualmente afirma o acórdão citado pela assistente) De tudo resulta que não pode ser proferida acusação contra arguido que não se encontre regularmente notificado nos termos e para os efeitos previstos na al. b), do nº 4, do art. 105º do RGIT. E a tê-lo sido, essa acusação apresenta-se como manifestamente infundada.

Assim se decidiu também nos acórdãos desta Relação de Évora de 25.10.2016 (Rel. Leonor Esteves) e de 10.12.2007 (Rel. Sénio Alves), o qual teve o sumário seguinte:

“I. Em processo relativo a factos praticados após a entrada em vigor da al. b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, a notificação aí prevista (e o não pagamento subsequente, nos 30 dias posteriores) deve estar verificada antes da acusação.

II. Não o estando, deve a acusação ser rejeitada, nos termos do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) do CPP, por ser manifestamente infundada”.

(…)

Assim, resulta inequívoco que, em circunstâncias normais (isto é, quando não ocorrem alterações legislativas no decurso de processo criminal pendente), a condição objectiva de punibilidade tem de se considerar verificada para poder ser proferida acusação. Não se justificando que seja, por exemplo, o juiz de julgamento a (poder/dever) realizá-la, pois a necessidade de proceder à notificação verificou-se em momento muito anterior à sua intervenção no processo crime.”

q) Contudo, nesta parte, ao decidir como foi decidido, entendemos, com o devido respeito que muito é, que o Acórdão em apreço está em contradição com o Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, produzido no âmbito da mesma legislação, lavrado no âmbito do processo nº 4392/17.4T9AVR.P1, de 14/12/2022, já transitado em julgado e disponibilizado no sítio da internet em www.dgsi.pt, que consignou o seguinte:

“I – Com a introdução da alínea b) ao n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a falta de entrega da prestação só poderá constituir crime se tiverem decorrido noventa dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efetuada e se, decorrido tal prazo, o omitente seja notificado para, em trinta dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, e que, decorrido o mesmo, tal pagamento não se mostre realizado, notificação esta que, conforme acórdão de uniformização de jurisprudência, configura uma condição objetiva de punibilidade aplicável ao crime de abuso de confiança à segurança social.

II – Não consta de tal alínea ou de qualquer outra norma quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, pelo que a mesma não tem de ser efetuada, necessariamente, pela Administração Tributária, podendo sê-lo, estando o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside, razão pela qual o Tribunal Constitucional determinou no Acórdão 409/2008 que tal notificação será feita, em cada caso, pela entidade que detiver o processo quando a questão se coloque.

(…)”.

r) Com efeito, entende-se que a notificação prevista no artigo 105.º, nº 1, alínea b), do RGIT, não tem de ser efetuada, necessariamente, pela Administração Tributária, podendo sê-lo, estando o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside.

s) A notificação prevista na alínea b) do n.º 4, do artigo 105.º do RGIT não é um elemento do tipo. O prazo ali mencionado é uma condição objetiva de punibilidade e consideramos que não impede o exercício da ação penal.

t) Por sua vez, se a regra é a do conhecimento das irregularidades, nos termos do artigo 123.º, Código de Processo Penal – é evidente que nos termos do nº 2 do mesmo artigo, pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.
u)
Sendo certo que a falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, nº 4, alínea b), do RGIT, constitui, em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (cfr. artigo 123.º, nº 2, do Código de Processo Penal.

v) Pelo que, tendo em conta que não consta da alínea b), do nº 4, do artigo 105.º, do RGIT ou de qualquer outra norma de quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, na fase da instrução e em última instância a Meritíssima Juíza de Instrução, poderia e deveria ter ordenado a notificação aos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 105.º, nº 4, do RGIT.

w) Assim sendo, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o Acórdão em apreço que considerou “improcedente o recurso interposto pelo assistente INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM, mantendo-se o despacho alvo de recurso”, não fez uma adequada apreciação da prova, nem aplicação do direito, razão pela qual o Acórdão sub Júdice está em contradição com o citado Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 4392/17.4T9AVR.P1, de 14/12/2022, do Tribunal da Relação do Porto.

x) Pelo exposto, o Recorrente está, pois, convicto de que Vossas Excelências, também relativamente a esta questão, procederão à reapreciação desta matéria e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de eliminar o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito, fixando-se, assim, a respetiva jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 437.º do Código do Processo Penal, o que aqui se requer, para os devidos efeitos.

y) Por sua vez, tendo por base o que antecede, entendemos que estão reunidos todos os pressupostos para que o presente recurso extraordinário seja admitido, nos termos ora requeridos, já que tal decisão suscita quer agora quer no futuro, dúvidas no julgamento de casos semelhantes, pelo que se nos afigura que a admissão deste recurso permitirá uma melhor apreciação e interpretação do Direito, o que aqui se requer, para os devidos efeitos.

NESTES TERMOS,

Deve ser admitido o presente recurso, fazendo V. Exas., Venerandos e Ilustres Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, o que é de inteira J U S T I Ç A”

I.3. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso, manifestando-se pela sua procedência.

1.4. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer e manifestou-se pela rejeição do recurso extraordinário interposto nos termos do disposto nos artigos 440º, nºs 3 e 4 e 441º, nº 1, do Código de Processo Penal, por o recorrente ter colocado duas questões de direito e invocado dois acórdãos fundamento.

1.5. Respondeu o recorrente, reafirmando a procedência do recurso e, caso se entenda que o recurso deve ser rejeitado «(…) pelos motivos indicados no douto parecer do Ministério Público, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, sempre se dirá que o Instituto de segurança Social da Madeira, IP-RAM, vem por este meio dizer que pretende reduzir o pedido no sentido de que seja apreciada somente a questão colocada na alínea a) do recurso por si interposto:

“A vigência de um acordo de pagamento faseado de contribuições e quotizações à segurança social, realizado no âmbito do processo de execução fiscal, obsta à realização da notificação a que alude o artigo 105.º, nº 4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma e impede a instauração do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, contra a entidade empregadora e contra os respetivos gerentes/legais representantes?”»

I.6. Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Sob a epígrafe “Fundamento do recurso”, dispõe o artigo 437.º do Código de Processo Penal, no que tange à interposição de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência:

«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».

Por sua vez o artigo 438º, sob a epígrafe “Interposição e efeito”, dispõe:

“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.”

II.2. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim fomentando os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

Como se diz no acórdão nº 5/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.

Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reiterar, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.1

São requisitos de ordem formal:

i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);

ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito;

iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões;

iv. tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).

São requisitos de ordem material:

i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;

ii. verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

iii. oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos;

iv. as decisões em oposição sejam expressas;

v. a identidade de situações de facto.

II - 3. Da verificação dos pressupostos formais

Legitimidade e interesse em agir: o Assistente Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM tem legitimidade e interesse em agir (artigo 437º, nº 5 do Código de Processo Penal)

Tempestividade: Nos termos do artigo 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o recurso para fixação de jurisprudência deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido.

O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 21 de Fevereiro de 2024, foi notificado ao Assistente via eletrónica, no dia 22 de Fevereiro de 2024 e transitou em julgado no dia 7 de Março de 2024.

O presente recurso entrou em dia 21 de Março de 2024, portanto dentro dos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do mesmo.

Assim, o pressuposto da tempestividade mostra-se igualmente preenchido.

Invocação, identificação, cópia do acórdão fundamento (só um) e indicação da sua publicação (artigo 438, nº 2 do Código de Processo Penal).

O recorrente para a oposição de julgados como acórdão fundamento invocou, não um, mas, dois acórdãos, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Processo n.º 564/22.8T9SCR.L1, de 24/05/2023 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo nº 4392/17.4T9AVR.P1, de 14/02/2022, ambos transitados em julgado e disponíveis no sítio da DGSI;

Ora, perante a invocação de dois acórdãos fundamento é manifesto que o recorrente não cumpre o pressuposto formal estabelecido na norma legal.

Como assertivamente refere o Senhor Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer, o qual se subscreve, “(…) a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a entender que só pode ser enunciado pelo recorrente uma única e não várias questões de direito. Para além disso, tem também entendido este Supremo Tribunal que não se pode indicar mais que um acórdão fundamento, não podendo uniformizar-se, ao mesmo tempo, interpretações judiciais essencialmente “normativas” sobre mais que uma questão de direito.

Tal entendimento resulta, não só da interpretação da lei, designadamente dos citados artigos 437.º n.º 1, 2 e 438.º n.º 2 do CPP, mas também da natureza do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, que não tem por finalidade a decisão de uma questão ou de uma causa, mas a definição do sentido de uma determinada norma, pressupondo a identificação da respetiva fonte normativa e da questão a determinar a oposição de julgados de modo unitário, e não múltiplo ou complexo.

A exigência da invocação de um só acórdão fundamento visadelimitar com toda a minúcia, o âmbito da questão jurídica a dirimir, o que, em princípio, só se alcançará quando colocados defronte, apenas, de 2 pontos de vista exatos, cada um deles expresso no respetivo aresto, sempre suposta uma mesma situação de facto e identidade de legislação"- cfr. Acórdão do STJ de 08.04.2010, (Proc. 311/09.0 YFLSB, disponível em Sumários de Acórdãos do STJ, www.stj.pt.

Neste mesmo sentido, sustenta-se no acórdão do STJ, de 24/03/2021 proferido no processo n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1, que: “(…) não é legalmente admissível cumular questões de direito no mesmo recurso extraordinário, nem indicar mais que um acórdão fundamento, não podendo uniformizar-se, ao mesmo tempo, interpretações judiciais essencialmente “normativas” sobre mais que uma questão de direito,

Entendimento que tem suporte, desde logo, na interpretação literal. Efetivamente, o elemento gramatical é inequivocamente nesse sentido. O legislador expressou o seu pensamento no texto da lei servindo-se, repetidamente da categoria singular. Assim sucede no art. 437º: no n.º 1, com a expressão: “relativamente à mesma questão de direito”; e no n.º 3 com a expressão: “resolução da questão de direito controvertida”.

Identicamente se expressou nos art.ºs 437.º 4, 438º n.´1, 440º n.º 2, socorrendo-se do singular: “o acórdão”.

Bem como no art.º 445º n.º 3, designando “o conflito” (e não os conflitos).

Assente também na incontornável exigência legal – como acabamos de ver e a jurisprudência do STJ sufraga - de o recorrente não poder indicar mais que um acórdão fundamento.

Igualmente no mesmo sentido aponta o caráter extraordinário deste recurso, a implicar interpretação estrita do quadro normativo disciplinador inerente à respetiva excecionalidade.

(…)

Deste modo, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não pode ser admitido com a finalidade de alçar o caso ao reexame extraordinário da regularidade processual ou do mérito da decisão recorrida. O que acabaria sucedendo, inegavelmente, se o recorrente pudesse, no mesmo recurso extraordinário, requerer, cumulativamente, a fixação de jurisprudência sobre as múltiplas questões de direito que tivessem sido decididas no acórdão impugnado na tentativa de que alguma pudesse ter êxito e, assim, obter a revisão do julgado. Admitindo-se tal possibilidade, ficaria subvertida a lógica deste recurso extraordinário, fazendo prevalecer o interesse pessoal do recorrente, em detrimento da eficácia externa que acabaria remetida a plano secundário. Não é isso que o legislador, seguramente, pretendeu.

Finalmente, ainda no mesmo sentido, apontam razões de praticabilidade e da necessária coerência lógica que as decisões judiciais têm de observar.”

Do que acaba de dizer-se resulta a inadmissibilidade legal do presente recurso, com a sua consequente rejeição, sem que haja lugar ao convite ao aperfeiçoamento, já que, como decorre do artigo 440.º do C.P.P não se encontra prevista a formulação de convite em ordem ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso de fixação, (neste sentido entre outros vide acórdão do STJ proferido no proc. n.º 112/15.6T9VFR.P1-D.S1 06-01-2021 disponível em www.dgsi.pt.

Neste sentido vai, também, o entendimento da doutrina conhecida.

Assim, refere o juiz Conselheiro Pereira Madeira, em Código de Processo Penal Anotado, página 1565 e ss, “não sendo cumpridas as exigências substanciais previstas, não há lugar a convite aos recorrentes, para suprir a falha. Por um lado, porque o processo penal, não alberga, muito menos em termos genéricos, um qualquer princípio de convite à correcção ou aperfeiçoamento das peças processos defeituosas.

E, igualmente neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 4ª edição, pág. 1196, anotação 4., refere que: “O relator não tem de convidar o recorrente a especificar qual é o acórdão fundamento do recurso, havendo ele indicado vários, impondo-se neste caso a rejeição imediata do recurso (…). Trata-se de um requisito estrutural do recurso, cuja omissão prejudica em definitivo o conhecimento do recurso e cuja sanação implicaria a formulação de um novo recurso”.

Na verdade, resulta inequivocamente da letra do artigo 437.º, n.º 1 e n.º 4, do Código de Processo Penal que o conflito de jurisprudência é apenas entre dois acórdãos (o acórdão recorrido e o acórdão fundamento), relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, não podendo, por isso, ser invocado mais do que um acórdão fundamento.

Apresentando o recorrente mais que um acórdão fundamento, como é o caso dos autos, é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça que o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.2

Nestes termos, sem necessidade de mais considerandos por desnecessários, conclui-se pela rejeição do presente recurso extraordinário, nos termos dos artigos 437º, nº 4, 438º, nº 2 e 441º, nº 1, todos do Código de Processo Penal.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Assistente Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC`s.

Supremo Tribunal de Justiça STJ, 16 de Outubro de 2024.

Antero Luís (Relator)

Carlos Campos Lobo (1º Adjunto)

Jorge Raposo (2º Adjunto)

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1. Veja- se por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2024, proc.298/22.3YUSTR.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt

2. Veja-se, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021, Proc. nº 701/16.1T9MTJ.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt