PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PROCESSO NEGOCIAL
ENCERRAMENTO DO PROCESSO NEGOCIAL
Sumário

I - O encerramento do processo negocial não se confunde com a decisão de encerramento do PEAP.
II - No caso de as maiorias dos credores previstas no nº 3 do art. 222º-F do CIRE concluírem antecipadamente não ser possível alcançar acordo de pagamento, não está previsto que esse encerramento antecipado dependa de decisão judicial, ocorrendo por mera comunicação de tal facto ao processo, acto da exclusiva competência do administrador judicial provisório, que inclusivamente o deve publicitar no portal citius sem dependência de prévio despacho judicial nesse sentido.
III - Estando expressamente previsto no art. 222º-G nº 1 do CIRE o encerramento antecipado do processo negocial naqueles casos, não deve o tribunal emitir qualquer juízo sobre a postura assumida pelo credor que detendo a maioria de 93,5% dos créditos se recusou a aprovar acordo de pagamento apresentado pelo devedor qualquer que fosse o seu teor.

Texto Integral

Processo n.º 342/24.0T8AMT.P1- Apelação

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO
1. AA e BB, por requerimento de 7.03.2024, intentaram Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) ao abrigo do disposto nos arts. 222º-A e 222º-C conjugados com os arts. 1º nº 3 e 2º nº 1 al. a) do CIRE, indicando como credores o Banco 1..., SA com crédito garantido no valor de €167.763,00 e CC com crédito comum no valor de €750,00, tendo nesse requerimento apresentado como proposta preliminar relativamente aos créditos privilegiados o pagamento em 150 prestações.

2. Por despacho proferido em 11.03.2024 foi ordenado o prosseguimento do PEAP.

3. Por requerimento de 9.04.2024 foi apresentado pela Administradora judicial provisória a lista provisória de credores, nos termos do art. 222º-D nº 3 do CIRE.

4. Por requerimento de 3.05.2024, a Administradora judicial provisória comunicou o encerramento antecipado do processo negocial e apresentou o parecer previsto no art. 222º-G nº 4 do CIRE tendo informado que o Banco 1..., SA dera a conhecer que votava contra quer o plano apresentado, quer outro semelhante, juntando a declaração entregue pelo referido credor.

5. Foi proferida decisão em 7.05.2024, Ref. Citius 95212752, com o seguinte teor (transcrição).
“AA e BB vieram, ao abrigo do disposto no art. 222.º-A e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, intentar o presente processo especial para acordo de pagamento.
Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 222.º-C, n.º 4, do citado diploma legal.
O Sr. Administrador Judicial Provisório juntou aos autos lista provisória de créditos nos termos do disposto no art.º 222.º-D, n.º2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
A lista provisória converteu-se em definitiva, por não ter havido quaisquer impugnações.
O credor, Banco 1... SA, principal credor com 93,5% dos créditos, declarou votar contra o plano apresentado ou qualquer outro.
Cumpre decidir:
Estabelece o art.º 222-G, n.º1 do CIRE que, caso o devedor ou a maioria dos credores concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, o processo negocial é encerrado.
In casu, em face da maioria de 93.5% do credor Banco 1... SA que informou que votará contra qualquer plano apresentado pelos devedores, é manifesto poder concluir-se antecipadamente que não existe viabilidade de ser alcançado um acordo, estando preenchida a hipótese prevista no artigo 222-G, n.º1 do CIRE.
Assim sendo, ao abrigo do dispositivo legal citado, declaro encerrado o processo negocial.
Publicite-se.”

6. Inconformados com a decisão, os Requerentes interpuseram recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1- Não podem os ora recorrentes conformar-se com a decisão do Tribunal “a quo” (sentença proferida nos autos com refª 95212752).
2- A nossa discordância funda-se em aspectos sobre factos e em questões de direito que serviram de fundamento à douta sentença proferida, que encerrou o PEAP.
3- Assim, através de sentença proferida nos autos com a referência 95212752, o juiz do tribunal a quo decidiu encerrar o processo negocial, em suma porque o credor hipotecário alegou que votaria contra qualquer plano que viesse a ser apresentado.
4- Ora, os recorrentes não se podem conformar com tal conclusão, tamanha é a sua injustiça.
5- O recurso merece provimento por parte de V. Exas.
6- O Tribunal ao apreciar e decidir a matéria constante do pedido fez errada interpretação da matéria de facto e aplicação da Lei, chegando a conclusões ininteligíveis.
7- Atente-se, Senhores Juízes Desembargadores, que os Recorrentes/ Devedores ainda não apresentaram qualquer plano de pagamentos, estando ainda o prazo das negociações a decorrer, o qual penas terminaria em 18/06/2024 em prorrogação ou 18/07/2024 com prorrogação.
8- Do nada, e sem que nada o fizesse prever, o Sr. AJP, SEM CONSULTAR OS DEVEDORES, enviou um e-mail ao credor hipotecário com uma proposta. Proposta que não partiu dos Devedores. Proposta que o credor recusou, afirmando que votaria contra QUALQUER PLANO APRESENTADO PELOS DEVEDORES, o que não se concede.
9- Como assim, votaria o credor contra qualquer plano?
10-Caso os devedores proponham o pagamento integral e retoma do crédito –direito que lhes assiste nos termos do DLn.º74-A/2017, de 23 de Junho, o credor recusaria?
11-Ou ainda se os Devedores propuserem venda extrajudicial a terceiro com pagamento do valor global ao credor?!
12-Nestes casos, ainda que quisesse o credor, não se poderia opor.
13-Assim, mal andou o Sr. AJP, mal andou a secretaria e mal andou o tribunal a quo.
14-Assim, deve o despacho ser revogado e reaberto o processo negocial.
Concluíram, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso,revogando- se a douta sentença recorrida.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir é a seguinte:
- Se deve ser reaberto o processo negocial para acordo de pagamento.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Para a decisão a proferir relevam todos os factos inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais, constantes do relatório acima elaborado.

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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Os aqui Apelantes recorreram a PEAP, o qual se destina a permitir ao devedor que não seja uma empresa e se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (art. 222º-A nº 1 do CIRE).
Essas negociações devem decorrer, obrigatoriamente, no prazo de 2 meses a contar do final do prazo para a impugnação da lista provisória de créditos elaborada pelo administrador judicial provisório nomeado no despacho inicial, podendo tal prazo ser prorrogado por mais um mês, mediante acordo prévio entre o administrador judicial provisório e o devedor (art. 222º-D nº 2 do CIRE), assim como pode ser encerrado antecipadamente o processo negocial em curso, ainda que não esteja esgotado o prazo de negociações, se o devedor ou as maiorias dos credores previstas no nº 3 do art. 222º-F concluírem antecipadamente não ser possível alcançar acordo, devendo neste último caso o administrador comunicar tal facto ao processo (art. 222º-G nº 1 do CIRE).
Assim decorre do art. 222º-G nº 1 do CIRE que estabelece que, “caso o devedor ou as maiorias dos credores previstas no nº 3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível por meios electrónicos, e publicá-lo no portal Citius.”
Foi esta última hipótese que ocorreu no caso sob apreciação, em que foi comunicado pela administradora judicial provisória o encerramento antecipado do processo negocial porque o credor que detém 93,5% dos créditos declarou votar contra o plano apresentado pelos devedores ou qualquer outro.
De acordo com o teor literal do referido preceito legal afigura-se-nos que no caso de as maiorias dos credores previstas no nº 3 do art. 222º-F concluírem antecipadamente não ser possível alcançar acordo, não está previsto que o juiz emita qualquer juízo, ainda que por impulso do devedor, sobre se ainda haveria viabilidade de ser alcançado um acordo, designadamente mediante a apresentação de outras propostas pelo devedor, no período de tempo que restava para se esgotar o prazo das negociações.
Até porque o tribunal nenhum poder tem na fase das negociações, elas decorrem de forma extrajudicial, sob a fiscalização e orientação do administrador judicial provisório nomeado, não podendo interferir com a vontade dos credores de participarem ou não nas negociações, ou de aprovarem ou não qualquer acordo de pagamento que venha a ser apresentado pelo devedor.
Nem sequer está previsto que esse encerramento antecipado dependa de decisão judicial, ocorrendo por mera comunicação de tal facto ao processo, acto da exclusiva competência do administrador judicial provisório, que inclusivamente o deve publicitar no portal citius sem dependência de prévio despacho judicial nesse sentido.
O encerramento do processo negocial não se confunde com a decisão de encerramento do PEAP[1], este último só ocorre depois de o administrador emitir parecer sobre se o devedor se encontra ou não em estado de insolvência, e apenas será necessária a prolação de decisão judicial de encerramento e arquivamento do processo especial para acordo de pagamento nos casos em que o administrador judicial provisório venha a concluir que o devedor se encontra em situação de insolvência e este deduza oposição, pois que se o devedor não deduzir oposição a decisão será de declaração de insolvência, conforme decorre da articulação dos nºs 3 a 7 do art. 222º-G do CIRE e, caso o administrador judicial provisório venha a concluir que o devedor ainda não se encontra em situação de insolvência o encerramento do processo previsto no nº 4 ocorrerá independentemente de decisão judicial.
Esta problemática é abordada por Alexandre de Soveral Martins, quando escreve que “De acordo com o art. 222º-G, 4, se o administrador judicial provisório emite parecer no sentido de que o devedor não está em situação de insolvência, o encerramento do PEAP acarreta a extinção de todos os seus efeitos. Porém, fica no ar uma dúvida: nos casos previstos no art. 222º-G, 4, o encerramento do PEPAP tem lugar com a emissão do parecer? Com a sua comunicação ao processo? Ou necessita de decisão de encerramento do juiz?
Esta última solução tem argumentos a seu favor. È o que está previsto para os casos em que o administrador judicial provisório conclui pela insolvência do devedor e este deduz oposição (art. 222º-G,6), solução que se poderia considerar aplicável também aqui (art.222º-A,3).
No entanto, o art. 222º-J, 1, b), estabelece que o PEPAP se considera encerrado, designadamente, quando seja cumprido o «disposto nos nºs 1 a 7 do art. 222º-G, nos casos em que não tenha sido aprovado ou homologado plano de pagamento». Nos casos do art. 222º-G, 4, parece bastar a comunicação do parecer ao processo”[2].
Ora, se assim é, se mesmo nessa hipótese de encerramento do próprio PEAP não se prevê a prolação de decisão judicial para que o mesmo ocorra, por maioria de razão será admissível sustentar, como fazemos, que não está prevista a necessidade de decisão judicial para que ocorra o encerramento do processo negocial (encerramento das negociações), o que nos leva a afirmar que assim sendo o tribunal não deve sindicar ou emitir qualquer juízo sobre se o credor que detém uma das maiorias previstas no art. 222º-F nº 3 do CIRE podia ou não recusar proposta de acordo apresentada pelo devedor, qualquer que ela fosse, determinando a cessação antecipada do processo negocial.
Em reforço desta posição socorremo-nos também de Maria Rosário Epifânio, que a propósito da natureza do PEAP escreveu o seguinte: “o PEAP é um processo judicial especial, pré-insolvencial, concursal, urgente, híbrido; (…)é um processo híbrido, composto por uma forte componente extrajudicial, compensada com a intervenção do juiz em momentos chave, conditio sine qua non do carácter concursal do mesmo.”[3]
A propósito dessa intervenção judicial em momentos chave faz referência em nota de rodapé, “maxime, no controlo inicial, na decisão da impugnação dos créditos, no cômputo dos votos e na decisão de homologação e, para alguns, na declaração de insolvência”, não fazendo alusão a qualquer intervenção judicial quando é comunicado aos autos pelo administrador judicial provisório que o processo negocial se encerrou antecipadamente porque um dos credores detentor de uma das maiorias previstas no nº 3 do art. 222º-F do CIRE declarara antecipadamente não ser possível alcançar acordo.
Para que o processo negocial se considere encerrado bastará aquela comunicação, para que o PEAP se considere encerrado já será necessária intervenção judicial de aferição da admissibilidade de homologação do plano (caso seja alcançado acordo de pagamento entre o devedor e a maioria de credores exigida por lei), ou da declaração de insolvência do devedor (caso não seja alcançado acordo de pagamento e o administrador judicial provisório emita parecer nesse sentido).
Isto para concluir que apesar de o tribunal a quo ter proferido despacho a declarar encerrado o processo negocial não foi tal despacho que determinou o encerramento do processo negocial, pois na verdade o encerramento das negociações ocorreu com a comunicação aos autos pelo administrador judicial provisório de que o credor que detém a maioria de créditos (93.5%) enviara declaração de não estar disponível para aceitar qualquer proposta de acordo apresentada pelos devedores, tendo-se limitado o juiz a constatá-la, confirmando que o credor que havia tomado aquela posição assumia na lista de credores a posição de uma das maiorias de credores expressamente prevista na lei com o poder de encerrar antecipadamente as negociações- decisão formal que nada decide de mérito, pois que não emite, por tal nem sequer estar previsto, qualquer juízo de valor sobre a postura assumida pelo credor.
Deste modo, ainda que o prazo de negociações estivesse em curso e os devedores/Apelantes pudessem eventualmente apresentar outras versões de acordo de pagamento mais favoráveis aos interesses daquele credor, o sentido de voto do credor que tem uma das maiorias previstas no nº 3 do art. 222º-F do CIRE já havia sido antecipadamente anunciado, ao declarar por escrito que quaisquer que fossem as condições apresentadas pelos devedores o voto seria de não aprovação, pelo que sempre seria inútil e mesmo contraproducente deixar exaurir o prazo em curso apenas para isso se vir a concretizar em votação final.
Estando, como está, expressamente previsto o encerramento antecipado do processo negocial naqueles casos, não deve o tribunal ter qualquer intervenção quanto à avaliação da postura assumida pelo credor que se recusou a aprovar acordo de pagamento qualquer que fosse o seu teor.
Neste tipo de processo especial para acordo de pagamento os devedores estão em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente e nessa posição não estão em condições de impor aos credores qualquer acordo, estando dependentes da disponibilidade dos credores em quererem ou não negociar um acordo de pagamento, tendo estes liberdade para assumirem a posição que melhor defenda os seus interesses, a qual poderá passar pela não aprovação de qualquer acordo sem que isso mereça qualquer sancionamento judicial.
Este credor em particular até tem processo executivo em curso movido contra os aqui Apelantes, ao que se sabe está suspensa a venda do imóvel dos devedores dado em garantia àquele credor, de modo que nem sequer se pode afirmar não ser razoável a postura assumida pois não terá qualquer interesse em acordar com os devedores no pagamento da dívida em 150 meses (proposta que lhe foi dada a conhecer pelos próprios devedores no requerimento inicial) quando em condições normais estará em condições de receber o valor da venda judicial do imóvel muito mais cedo.
De todo o modo, caso seja intenção dos aqui Apelantes proporem o pagamento integral e a retoma do crédito, direito que agora reclamam à luz do DL nº 74-A/2017 de 23/7, estarão sempre em tempo de o fazer independentemente do encerramento antecipado das negociações, se tiverem capacidade financeira para o efeito e não estiverem em situação actual de insolvência.
Em suma, perante a posição que foi assumida pelo credor que detém uma das maiorias previstas no nº 3 do art. 222º-F do CIRE nada mais restava ao Administrador judicial provisório que comunicar o encerramento antecipado do processo negocial, prestando o parecer sobre se os aqui Apelantes se encontram ou não em situação de insolvência e ao tribunal recorrido restava determinar o prosseguimento dos autos com vista a oportunamente ser proferida decisão final de encerramento do PEAP caso o administrador judicial provisório conclua pela situação de insolvência dos devedores e estes deduzam oposição, ou decisão de declaração de insolvência caso os devedores não deduzam oposição.
Na ausência de fundamento legal para reabertura do processo negocial, confirma-se a decisão recorrida.
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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pelos Apelantes, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes
Notifique.

Porto, 5.11.2024
Maria da Luz Seabra
Alexandra Pelayo
Rui Moreira

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] A esse propósito Ac RC de 23.11.2021, Proc. Nº 3185/21.9T8LRA-A.C1, www.dgsi.pt;
[2] Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. II, 3ª edição, pág.401
[3] Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, pág. 535