RELATÓRIO SOCIAL
OMISSÃO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Sumário

- O relatório social é uma fonte de informação, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova e não é de elaboração obrigatória, podendo o juiz solicitá-lo quando o considere necessário;
- Não há insuficiência da matéria de facto para a decisão sobre a medida concreta da pena de prisão a aplicar aos arguidos decorrente da falta de elaboração de relatório social, quando o Tribunal recolheu os elementos de prova que considerou necessários das declarações do arguido;
- Não cumpre as exigências legais da impugnação ampla da matéria de facto o recorrente que não indica os concretos pontos que considera terem sido mal julgados, não indicou quais os meios de prova que impunham decisão diversa, não indicou as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir e que factualidade é que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados;
- Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido;
- Pratica o crime de tráfico de droga quem detém quantidade de produto estupefaciente superior ao previsto para o seu consumo e quem cede produto estupefaciente a terceiro, sem receber dinheiro em troca.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório

No processo nº 904/21.7PAPTM do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de ... - Juiz …, por sentença datada de 9/05/2024, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de um ano e seis meses, acompanhada de regime de prova.

*

Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, pugnando pela sua absolvição e formulando as seguintes conclusões:

“1. O Arguido AA foi condenado pela prática de um crime de trafico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º alínea a) do DL 15/93 de 22-01, com referência à Tabela I – C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 ano e 6 meses, acompanhada de regime de prova.

2. Todavia, o Recorrente discorda da sentença proferida, divergindo da condenação a que foi sujeito, por se revelar injusta, desadequada e desproporcional e por entender não ter sido devidamente levada em conta toda a prova produzida ao longo do processo e, em sede de audiência de discussão e julgamento.

3. O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e a matéria direito da douta Sentença proferida nos presentes autos.

4. Tribunal a quo, deu como provado que, no dia 29 de 05.202, pelas 11h50m, o arguido tinha na sua posse.

10 saquetas de Canabis (resina) com o peso de 11.330gr., grau de pureza de 28.8% (THC), suficiente para 65 doses;

7 saquetas de Canabis (resina) com o peso de 7.330gr., grau de pureza de 25.3% (THC), suficiente para 37 doses e 3 saquetas de Canabis (resina) com o peso de 3.982gr., grau de pureza de 28.8% (THC), suficiente para 22 doses,

Dois telemóveis,

Uma faca

E 40 euros

5. Resulta da sentença proferida que o arguido entregou a BB, uma embalagem, contendo 1,063 gramas de resina de canábis, para consumo desse e, em data não concretamente apurada, no ano de 2020, no Largo …, o agudo partilhou, sem receber qualquer contrapartida, um cigarro de haxixe, com CC e outros, que também frequentavam esse local, que o fumaram em conjunto.

6. E, é dado também como provado que o arguido destinava o produto estupefaciente que detinha ao seu consumo.

7. o Tribunal A quo considerou como não provado que, entre o ano 2020 e o ano de 2022, a principal fonte de rendimento do arguido era a venda a terceiros de produto estupefacientes. E, a quantia monetária apreendida ao arguido era proveniente da actividade de tráfico e dois telemóveis e a faca, também apreendidos, serviam para desenvolver a referida actividade.

8. Para assim decidir, o Tribunal a quo fundou a sua convicção na prova testemunhal e documental junta aos autos.

9. Ora da prova testemunhal, ambos os Agentes da PSP afirmaram que o arguido já se encontrava referenciado relativamente a estupefacientes e era do conhecimento destes que o mesmo era consumidor à data dos factos.

10. Contudo, se atendermos ao Certificado de Registo Criminal do Arguido, o certo é que o mesmo não tem averbado qualquer crime de natureza relacionada com trafico de estupefacientes.

11. As testemunhas inquiridas em sede de Discussão e julgamento e que o douto Tribunal considerou que depuseram de forma coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, pelo que foi valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos, referiram que o arguido entregou uma dose, sem contrapartida monetária, ou seja, sem que o mesmo lhe tivesse pago qualquer valor.

12. Dos elementos coligidos nos autos, é certo que, o arguido trazia consigo produto estupefaciente, conforme auto de apreensão junto aos autos.

13. Mas também é certo, conforme já explanado anteriormente, que o mesmo é consumidor e que não foi nos presentes autos provado qual o destino que o mesmo iria dar ao produto estupefaciente que trazia consigo.

14. Não há prova suficiente que permita concluir que o destino do produto estupefaciente fosse a venda do mesmo.

15. Pelo que, emerge a dúvida quando ao destino do produto estupefaciente apreendido.

16. O arguido é consumidor, conforme resulta do depoimento das testemunhas BB e CC.

17. Não se provou qualquer acto de venda.

18. Pelo que, entendemos que subsiste uma forte e séria dúvida quanto ao destino do produto estupefaciente.

19. Motivo pelo qual, não pode o Tribunal a quo afirmar que o mesmo seria para cedência ou venda a terceiros, não há qualquer facto provado que permita chegar a esta conclusão.

20. E, não é a forma como o arguido acondiciona o produto estupefaciente que consome que demonstra que o mesmo o vai ceder/vender a terceiros.

21. Ora, conforme consta na douta sentença, também os senhores agentes da PSP referiram que o arguido era consumidor de produto estupefaciente.

22. se dúvidas não existem quanto ao facto que o arguido é consumidor, permanece a dúvida quanto ao destino do produto estupefaciente apreendido.

23. E, nada ficou provado que o arguido o destinava para consumo de terceiros.

24. Temos que face aos factos provados e à fundamentação dos mesmos, não se pode concluir, sem qualquer margem de dúvida, que a actuação do arguido integra a prática de um crime de trafico de estupefaciente de menor gravidade.

25. O Tribunal a quo considerou que parte daquele estupefaciente também se destinaria ao consumo de terceiros.

26. E, questiona o Recorrente que parte?

27. Pois, não qualquer sustentação por parte do Tribunal A quo que o permita concluir.

28. Motivo pelo qual, não havendo prova de qual o destino seria dado pelo arguido a tal produto estupefaciente, somente restam dúvidas quanto ao destino do mesmo.

29. E, havendo dúvida, o Tribunal A quo devia observar o princípio basilar do direito penal, o Princípio do in dubio pro reo, pelo que a douta sentença a quo enferma do vício enunciado no artº 410º, nº 2, alínea c) do Código do processo penal.

30. Ao ter decidido como se decidiu, violou-se na douta sentença o disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

31. Considerando a qualidade e a quantidade do produto estupefaciente apreendido nos autos, bem como a circunstância de não existir prova suficiente de que o arguido desenvolva actividade associada ao trafico deste tipo de substância, entende o Recorrente que deveria ser absolvido do crime que lhe é imputado.

32. Por outro lado, é de salientar que, o Tribunal a quo decidiu sem possuir elemento probatório suficiente.

33. Não se socorreu do devido e necessário relatório social.

34. O Tribunal a quo encerrou a audiência de julgamento sem qualquer elemento referente à personalidade, à situação económica e social do recorrente e os factos provados neste âmbito restringem-se aos antecedentes criminais.

35. A existência de um relatório social para um julgamento, elaborado por técnicos sociais habilitados torna-se indispensável para habilitar o Tribunal a quo no conhecimento de fatores actualizado, com particular incidência no juízo sobre a determinação da medida concreta da pena.

36. O facto de o recorrente não ter requerido a elaboração do relatório social, o mesmo não dispensa o Tribunal a quo de, oficiosamente, determinar a elaboração de relatório social, pelos serviços competentes.

37. Não o tendo feito verifica-se efetivamente na sentença recorrida o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, constante do artigo 410. º nº 2 alínea a) do CPP, quanto à globalidade da fundamentação de facto de conhecimento oficioso.

38. Pelo exposto, impõe-se a revogação da decisão proferida nos autos, e a sua substituição por acórdão que decrete a absolvição do ora recorrente, da prática de um crime de trafico de estupefacientes de menor gravidade.

39. Por tudo o exposto e, com todo o devido respeito que é muito, entendemos que o arguido deve ser absolvido do que crime que lhe é imputado, todavia e, caso assim não se entenda e face à prova produzida e por tudo o acima exposto, o Recorrente entende que pena aplicada é manifestamente desproporcionada e violadora do disposto nos artigos 70 º e 71º do Código Penal.

40. Sempre se dirá que, ponderada a gravidade dos factos, na sua globalidade e as considerações que o Tribunal a quo teceu a respeito deste tipo de crime imputado ao arguido, entende-se que a pena aplicada é manifestamente penosa, pelo que o Recorrente entende que a ser aplicada uma pena de prisão, mesmo que suspensa na sua execução a mesma não deveria ser superior a 1 (um) ano.

41. Considerando, então, que a medida da pena abstracta em relação a este crime se situa entre um e cinco anos, entendemos que tendo em conta todas as circunstâncias da prática do mesmo, a culpa do agente, as condições e personalidade do arguido, as exigências de prevenção, a pena a aplicar deveria ser de 1 (um) ano, pelo que a pena aplicada a este crime deve ser alterada, reduzindo-se a pena aplicada pelo Tribunal a quo.

42. A pena aplicada ao arguido é excessiva e desajustada.

43. É certo que, à data dos factos, o arguido registava já condenações no seu certificado de registo criminal, no entanto, os antecedentes criminais do Arguido não permitem, de modo algum extrair as gravosas consequências que o tribunal a quo extraiu nesta sede.

44. A existência de condenações anteriores do agente só devem surgir como agravantes na medida em que essas condenações possam ligar-se ao facto praticado e constituir índice de uma culpa mais grave, o que não sucede in casu.

45. Assim, deve ter-se em conta as considerações atinentes à culpa que se reportam ao momento da prática do facto e as considerações referentes à prevenção que se reportam ao momento do julgamento.

46. De salientar também que, à data dos factos, o arguido não é reincidente.

47. Não existe prova suficiente que permita concluir que o destino do produto estupefaciente fosse a venda do mesmo.

48. Pelo que, emerge a dúvida quando ao destino do produto estupefaciente apreendido.

49. O arguido é consumidor, conforme resulta do depoimento das testemunhas BB, CC e dos Agentes da PSP.

50. Não se provou qualquer acto de venda.

51. Pelo que, entendemos que subsiste uma forte e séria dúvida quanto ao destino do produto estupefaciente.

52. Motivo pelo qual, não pode o Tribunal a quo afirmar que o mesmo seria para cedência ou venda a terceiros, não há qualquer facto provado que permita chegar a esta conclusão.

53. E, não é a forma como o arguido acondiciona o produto estupefaciente que consome que demonstra que o mesmo o vai ceder/vender a terceiros.

54. Se dúvidas não existem quanto ao facto que o arguido é consumidor, permanece a dúvida quanto ao destino do produto estupefaciente apreendido.

55. E, nada ficou provado que o arguido o destinava para consumo de terceiros.

56. Temos que face aos factos provados e à fundamentação dos mesmos, não se pode concluir, sem qualquer margem de dúvida, que a actuação do arguido integra a prática de um crime de trafico de estupefaciente de menor gravidade.

57. O Tribunal a quo considerou que parte daquele estupefaciente também se destinaria ao consumo de terceiros.

58. E, questiona o Recorrente que parte?

59. Pois, não qualquer sustentação por parte do Tribunal A quo que o permita concluir.

60. Assim, a pena aplicada parece até ter um efeito contraproducente, estigmatizando de forma desproporcional o arguido, sancionando-o com uma pena bem superior à sua falta, numa desproporcionalidade que não se pode aceitar.

61. Assim e, face ao exposto, com todo o devido respeito que é muito, entende o Recorrente que o Tribunal A quo a aplicar uma pena de prisão, mesmo que suspensa na sua execução, não deve ultrapassar 1 (um) ano, uma vez que, é manifestamente suficiente para realizar de uma forma adequada as finalidades da punição, não afectando, de forma alguma, as exigências de prevenção de futuros crimes.

62. E a mesma tem capacidade para manter ao arguido afastado do cometimento de novos crimes, havendo, pois, uma esperança suficientemente fundada de que a ressocialização em liberdade poderá ser alcançada.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, formulando as seguintes conclusões:

“1- AA, arguido nos presentes autos de processo comum, com a intervenção do Tribunal Singular, foi condenado, por sentença pela prática de trafico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º alínea a) do DL 15/93 de 22-01, com referência à Tabela I – C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 ano e 6 meses, acompanhada de regime de prova

2- O arguido no presente recurso veio alegar que na presente sentença se verificou um erro notório na apreciação da prova e insuficiência da prova para a decisão sobre a matéria de facto provada;

3-Entendemos que a prova produzida em audiência não deve ser objecto de reapreciação, porquanto o recorrente não identifica, os segmentos dos suportes técnicos em que se encontram os elementos que impunham decisão diversa da recorrida bem como, nem transcreve excertos dos depoimentos.

3-O Ministério Público, salvo o devido respeito, não concordando com o alegado, entende que a fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma, partindo das regras de experiência, assim como da prova oral que foi produzida, aferindo-se quanto a esta o conhecimento de causa e isenção de cada um dos depoimentos prestados.

4- Analisada a matéria de facto provada, a gravidade do ilícito mediana, o dolo mediano, consideramos ser manifestamente justa, adequada e equilibrada a pena de prisão fixada pelo Tribunal a quo, de um ano e 6 meses.

5-Para suspender a execução da pena de prisão o Tribunal teria de formular um juízo de prognose favorável ao arguido no momento da decisão.

6-Ponderadas as condições de vida do arguido e a sua conduta anterior e posterior ao facto, não nos merece qualquer reparo a decisão do Tribunal a quo de suspender a execução da pena de prisão.

7-Não enfermando a douta sentença de qualquer vício, mas ao invés, tendo ponderado os critérios de escolha da pena, bem como os factores de determinação da medida concreta conforme o legalmente estatuído.

8- Motivo pelo qual, a douta sentença deve ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre decidir:

- Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal;

- Erro de julgamento;

- Violação do princípio in dubio pro reo;

- Qualificação jurídica dos factos apurados;

- Medida da pena.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“ A) Da matéria de facto:

Com relevância para a boa decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos:

I - FACTOS PROVADOS:

1. No dia 29.05.2021, pelas 11h50m, no entroncamento entre a Rua … e a Rua …, na cidade de …, o arguido tinha na sua posse:

- 10 saquetas de Canabis (resina), com o peso líquido de 11.330gr. e um grau de pureza de 28.8% (THC), que dariam para 65 doses;

- 7 saquetas de Canabis (resina), com o peso líquido de 7.330gr. e um grau de pureza de 25.3% (THC), que dariam para 37 doses;

- 3 saquetas de Canabis (resina), com o peso líquido de 3.982gr. e um grau de pureza de 28.8% (THC), que dariam para para 22 doses,

- dois telemóveis,

- uma faca,

- e 40 euros em notas.

2. Nas mesmas circunstâncias, o arguido entregou a BB, uma embalagem, contendo 1,063 gramas de resina de canábis, para o consumo deste.

3. Pelo menos numa ocasião, em data não concretamente apurada, no ano de 2020, no Largo …, o arguido partilhou, sem receber qualquer contrapartida, um cigarro de haxixe, com CC e outros, que também frequentavam esse local, que o fumaram em conjunto.

4. O arguido destinava o produto estupefaciente que detinha ao seu consumo e também à venda ou cedência a terceiros que o procurassem para o efeito.

5. O arguido conhecia a natureza estupefaciente do produto que tinha na sua posse, sabendo que a sua detenção, oferta, venda e cedência é proibida por lei.

6. Mais sabia que as quantidades que tinha na sua posse eram bastante superiores às necessárias para o consumo médio individual de uma pessoa durante o período de dez dias.

7. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

8. O arguido encontra-se em prisão preventiva desde 19 de Julho de 2023; antes de preso estava desempregado, embora realizasse trabalhos ocasionais, e vivia com a sua mãe e uma prima, tendo o 9.º ano de escolaridade.

9. O arguido já foi condenado:

a) Por sentença proferida em 12.11.2018, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (por factos praticados em 30.08.2018), já extinta pelo cumprimento;

b) Por sentença proferida em 19.02.2019, pela prática de um crime de ameaça e de um crime de ofensa à integridade física, na pena única de 100 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (por factos praticados em 20.03.2018), já extinta pelo cumprimento;

c) Por sentença proferida em 14.04.2021, transitada em julgado em 07.06.2021, pela prática de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 ano e 6 meses, acompanhada de regime de prova (por factos praticados em 07.10.2018).

FACTOS NÃO PROVADOS:

Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:

1. Entre o ano 2020 e o ano de 2022, a principal fonte de rendimento do arguido era a venda a terceiros de produto estupefaciente.

2. A quantia monetária apreendida ao arguido era proveniente da actividade de tráfico e dois telemóveis e a faca, também apreendidos, serviam para desenvolver a referida actividade.

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B) Da convicção do Tribunal:

Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente (como sucede quanto à prova pericial), a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:

1. Declarações do arguido: que exerceu o seu direito ao silêncio a respeito dos factos que lhe foram imputados, tendo apenas esclarecido quanto à sua situação pessoal, o que, por consistente, foi valorado.

2. Depoimento da testemunha DD: Agente da PSP, responsável pela abordagem do arguido, o qual esclareceu que, ao passar, em patrulha, pelo parque de terra batida situado no local dos autos, viu o arguido, já conotado com o tráfico e consumo de estupefacientes, acompanhado de um outro indivíduo (testemunha BB). Pelas suspeitas geradas pelo comportamento de ambos, aproximou-se dos mesmos, altura em que este indivíduo deixou cair uma embalagem ao chão (que veio depois a apurar tratar-se de uma embalagem contendo haxixe) e o arguido tentou esconder algo numas ervas sitas nas imediações (que veio depois a apurar tratarem-se de dois maços de tabaco, em cujo interior se encontravam embalagens contendo haxixe). Realizada uma revista ao arguido, tinha o mesmo consigo, 40 euros em notas, uma faca e mais três embalagens contendo estupefaciente. A testemunha depôs de modo coerente e objectivo, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.

3. Depoimento da testemunha EE: Agente da PSP, que acompanhava o Agente DD, e que confirmou que, na ocasião dos autos, ao passarem pelo local em apreço, viram o arguido e um indivíduo, posicionados atrás de uma viatura, como se estivessem a dissimular algo. Como o arguido já estava referenciado relativamente a estupefacientes, decidiram abordá-los. Acrescentou que, à sua aproximação, um deles, atirou algo para o chão (testemunha BB), e o arguido foi esconder algo numas ervas, o que veio, nessa sequência, a ser apreendido, verificando que o que aquele tinha atirado para o chão se tratava de uma embalagem contendo haxixe, tendo referido que o havia acabado de comprar, e o que o arguido quisera esconder, tratavam-se de 2 maços de tabaco, contendo embalagens com haxixe. Tendo este sido sujeito a revista foram ainda apreendidos os artigos dos autos.

A testemunha depôs de modo coerente e objectivo, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.

4. Depoimento da testemunha BB: consumidor ocasional de haxixe, o qual esclareceu que, na ocasião dos autos, contactou o arguido, pedindo-lhe para lhe arranjar uma dose, para fumar, já que sabia que o arguido também consumia. Chegado ao local, como combinado, ainda esteve à conversa com o arguido, o qual lhe entregou uma dose, para o “safar”, sem que o mesmo lhe tivesse pago qualquer valor, apesar de ter intenção de lhe entregar, noutra ocasião, algum dinheiro ou cigarros, para o compensar. Entretanto, chegou a PSP ao local, altura em que jogou a embalagem que o arguido lhe tinha entregado para o chão, tendo sido, em face disso, autuado. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo sido valorado seu depoimento para o apuramento dos factos.

5. Depoimento da testemunha CC: consumidora ocasional de haxixe, a qual esclareceu que, quando morava em …, chegou a frequentar o Largo …, na altura da pandemia (2020), onde se reunia com um grupo de consumidores, entre os quais o arguido, tendo, em algumas vezes, fumado haxixe, partilhando-o entre si, ora cedido pelo arguido, ora cedido por outros. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, pelo que o seu depoimento foi valorado para o apuramento dos factos.

6. Prova pericial: relatório de exame de toxicologia, de fls 91/92 (arguido); relatório de exame de toxicologia, de fls 218 (testemunha BB);

7. Documentos: auto de apreensão, de fls 8, frente e verso; auto de notícia (contraordenação/consumidor), de fls 11, frente e verso; reportagem fotográfica, de fls 31 a 33; resultado de pesquisas às bases de dados a Segurança Social, de fls 51; auto de interpretação de dados (telemóveis apreendidos), de fls 106 a 136; e CRC do arguido.

Os factos dados como provados resultam do que se legitima concluir, em face da conjugação dos meios de prova produzidos nos autos, ponderados à luz das regras de experiência comum e da normalidade do acontecer.

Com efeito, dos elementos de prova coligidos nos autos, resultou apurado que o arguido trazia consigo, quando foi abordado pela PSP, guardados em 2 maços de tabaco, embalagens, contendo resina de canábis (um, com 10 saquetas, contendo 11.330 gr. e um grau de pureza de 28.8% (THC), que dariam para 65 doses; e o outro, com 7 saquetas, contendo 7.330gr. e um grau de pureza de 25.3% (THC), que dariam para 37 doses). Tinha, ainda, consigo, mais 3 saquetas, com 3.982 gr de resina de canábis, e um grau de pureza de 28.8% (THC), que dariam para 22 doses. Ou seja, tinha consigo resina de canábis que daria para um total de 124 doses de haxixe.

Ora, o arguido consumia haxixe, tal como resultou do depoimento das testemunhas BB e CC.

Mas destinava todo aquele estupefaciente ao seu consumo?

Adiantando razões, não é credível que assim fosse.

Com efeito, não é credível que o arguido andasse com aquela quantidade de resina de canábis, já em pedaços, acondicionada em saquetas, e com graus de pureza diferentes, estando os mesmos, curiosamente, repartidos em locais diferentes, só para o seu consumo. Tal como não é credível que, se fosse apenas para o seu consumo, o arguido tivesse tratado de esconder os 2 maços de tabaco, onde tinha guardada a maioria das saquetas, nas imediações do local onde se encontrava, entre umas ervas, como os Agentes da PSP explicaram ter visto.

Legitima-se, pois, concluir que parte daquele estupefaciente também se destinaria ao consumo de terceiros.

Aliás, tanto assim, que cedeu uma saqueta a BB.

Donde, pese embora não se tivesse provado qualquer acto de venda, legitima-se concluir que o arguido destinaria aquele estupefaciente ao seu consumo, mas também ao consumo de outros, nomeadamente, cedendo-o. Ou seja, ainda que se não tivesse apurado que o arguido tivesse chegado a vender aquela substância (e, portanto, que o dinheiro que trazia consigo provinha de vendas anteriores ou que os telemóveis que lhe foram apreendidos eram por si usados para encetar os contactos para tanto), não é credível que o arguido destinasse todo aquele estupefaciente apenas ao seu consumo exclusivo (tanto mais que já o havia cedido em outras ocasiões), sendo, por isso, legítimo concluir que o destinaria, também, pelo menos, à cedência a terceiros ou, mesmo, à venda (se o arguido estaria desempregado, tendo que gastar dinheiro para a comprar, expectável é que a cedesse a terceiros mediante o pagamento de uma quantia).

Por outro lado, o arguido tinha consigo, quando foi abordado pela PSP, 40 euros em notas (2 notas de 10 euros e 1 nota de 20 euros). Ora, segundo o que resulta de fls 51, à data dos factos o arguido estaria desempregado (a última remuneração datava de Novembro de 2019, no valor de 23,34 euros). Porém, em audiência, avançou que fazia uns biscates, embora não os tivesse concretizado. Ora, não se tendo apurado a realização de qualquer transacção onerosa (uma vez que os Agentes da PSP não presenciaram qualquer troca que legitimasse supor que parte do dinheiro que o arguido tinha na sua posse correspondia ao valor da embalagem cedida a BB e este negou ter entregue, então, qualquer contrapartida ao arguido), não se legitima, pela insuficiência da prova, presumir que tal dinheiro proviesse de vendas anteriores. Por isso se deu tal facto como não provado.

Tinha, ainda, dois telemóveis, os quais lhe foram apreendidos. Sucede que, analisado o seu conteúdo (cfr fls 70 e segs), nada ali consta de comprometedor. Por isso, também, não resultasse apurado que o arguido se dedicasse à venda de estupefacientes e usasse aqueles telemóveis para estabelecer os contactos necessários a tanto.

Provou-se, portanto, que o arguido detinha aquela quantidade de resina de canábis. E que cedeu, a BB, uma saqueta.

Também se provou que, em, pelo menos, uma ocasião (já que a testemunha CC não logrou concretizar quantas foram as vezes), o arguido cedeu haxixe, para consumo partilhado com um grupo, em ocasião de convívio com outros consumidores.

Ou seja, se, nessa ocasião o fez em contexto de confraternização, para consumo em grupo e imediato, também o chegou a fazer fora dessas circunstâncias, isto é, cedeu a outros consumidores, para consumo destes noutras alturas em que não estivessem com ele (ou seja, para consumo não imediato), como sucedeu com BB. Donde, é de afastar que a droga que o arguido detinha se destinasse ao seu exclusivo consumo.

Já os factos dados como não provados resultam da ausência de suporte probatório bastante.”

*

3.2.- Mérito do recurso

No presente recurso vem o recorrente pôr em causa a pena concreta que lhe foi aplicada, bem como alegar que não foi feita prova bastante quanto ao destino do produto estupefaciente que lhe foi apreendido, não se podendo concluir que o mesmo seria para cedência ou venda a terceiros.

Entende o recorrente que, havendo dúvida, o Tribunal a quo deveria ter observado o princípio do in dubio pro reo, pelo que a sentença enferma do vício enunciado no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal.

Considerando a qualidade e a quantidade do produto estupefaciente apreendido nos autos, bem como a circunstância de não existir prova suficiente de que desenvolvia actividade associada ao tráfico deste tipo de substância, entende o recorrente que deveria ser absolvido do crime que lhe é imputado.

Por outro lado, entende também que, o Tribunal a quo decidiu sem possuir elemento probatório suficiente, pois não se socorreu do relatório social, tendo encerrado a audiência de julgamento sem qualquer elemento referente à personalidade e à situação económica e social do recorrente, pelo que a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, constante do art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal.

Vejamos se lhe assiste razão.

A) Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal

Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.

No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.

Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.

Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”

No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ (…) Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.”

Relativamente ao relatório social, dispõe o art.º 370º, nº 1 do Cód. Proc. Penal que:

“O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando aqueles já constarem do processo.”(sublinhados nossos)

Em face desta norma, verifica-se que o relatório social é apenas uma fonte de informação e não uma perícia, que contribui para a determinação da pena a aplicar ao arguido e está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do Cód. Proc. Penal.

O relatório social não é de elaboração obrigatória e, como já se pronunciou o TC no seu acórdão nº 182/99, de 22/03, não há nenhuma inconstitucionalidade na não obrigatoriedade da sua elaboração.

O relatório social é, assim, apenas um instrumento de auxílio do juiz, que o “pode” solicitar, caso o considere necessário, não resultando do texto da lei nenhuma obrigatoriedade de elaboração do relatório social, nem nenhuma cominação para a sua não junção aos autos.

Neste sentido, refere Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, Almedina, pág. 834 que: “(…) nada impede que os elementos habitualmente constantes de um relatório social ou de uma informação social, possam ser colhidos em audiência por declarações dos intervenientes. Igualmente pode o Instituto de Reinserção Social (IRS) que eventualmente, por qualquer razão, acompanhe um arguido, por sua iniciativa, se o julgar conveniente, remeter ao processo o relatório social.”

No caso em apreço o Tribunal a quo ouviu o arguido quanto à sua situação pessoal e não sentiu a necessidade de ordenar a elaboração de relatório social, designadamente para a determinação da medida concreta da pena de prisão a aplicar, tanto mais que não se punha a opção entre pena de prisão e pena de multa.

Assim sendo, constata-se que não ocorre qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão, por não ter sido elaborado relatório social, impondo-se julgar improcede nesta parte o recurso.

Neste sentido, veja-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdão do STJ de 20/10/10, proferido no processo nº 845/09.6JDLSB, em que foi relator Raul Borges: (…) V - O que há é omissão do relatório social, elemento de trabalho eventual, relatório que não assume valor pericial, subordinado ao princípio da livre apreciação da prova, que não tendo chegado ao processo em tempo útil, do mesmo veio a prescindir o colectivo, por no caso em apreciação não ter considerado a sua necessidade, ou por entender que no caso não assumia o documento em falta carácter imprescindível. O tribunal avançou para a determinação da medida da pena sem que se

mostrasse junto o relatório, porque não o considerou necessário à correcta determinação da sanção, e como se sabe, a requisição obedece ao critério de necessidade.

VI - Acresce que não se vislumbra que se esteja face a vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois que a facticidade assente ancora de forma bastante a medida das penas aplicadas ao recorrente. Improcede, pois, a arguição de nulidade.(…)”;

- Acórdão do TRC de 13/12/17, proferido no processo nº 269/16, em que foi relator Heitor Bernardo Cardoso Vasques Osório: “I - A realização de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, como é entendimento maioritário, não é uma diligência obrigatória, apenas devendo ser determinada quando se torne necessária para a correcta determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar.

II - Quando a realização do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social seja relevante para a boa decisão da causa, a sua omissão constitui uma irregularidade, sujeita ao apertado regime de arguição previsto no art. 123.º, n.o 1, do CPP.(…)”

- Acórdão do TRG de 13/07/20, proferido no processo nº 414/19.2GAEPS.G1, em que foi relatora Teresa Coimbra: “1.A junção de relatório social a um processo é facultativa, na medida em que só se for entendido “necessário à correta determinação da sanção” ( art. 370º do CPP) é que o tribunal deverá diligenciar por obter tal meio de prova. Tal significa, portanto, que a necessidade da sua junção tem de ser casuística e concretamente avaliada.(…)”;

- Acórdão do STJ de 26/05/21, proferido no processo nº 293/07.2GACBT.S1, em que foi relator Sénio Alves: “(…) II - Atenta a natureza facultativa do relatório social, a omissão da sua realização poderá, quando muito, constituir uma irregularidade prevista no art. 123.º do CPP (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 950, Acs. STJ de 8/11/2018, Proc. 2760/14.2T3SNT.L1.S1, de 18/4/2018, Proc. 29/18.2YRPRT.S1 ou de 15/6/2011, Proc. 721/08.0GBSLV.E2.S1); e a ser assim, só determinará a invalidade do acto “quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado”.

III - Estando o defensor do arguido presente na sessão da audiência onde foi determinada a não realização do relatório social relativo a um arguido, atenta a sua ausência no estrangeiro, tendo tal defensor sido notificado da decisão e contra ela não reagido, sanada está a eventual irregularidade decorrente da omissão de realização do relatório social.”

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».

Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).

Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)”

No caso dos presentes autos, o recorrente invoca o vício do erro notório, alegando apenas que não foi feita prova bastante quanto ao destino do produto estupefaciente que lhe foi apreendido, não se podendo concluir que o mesmo seria para cedência ou venda a terceiros, pelo que havendo dúvida, o Tribunal a quo deveria ter observado o princípio in dubio pro reo.

Porém, o que daqui decorre é que o recorrente se limita a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, mas não concretiza em que consiste o vício em causa, nem em que partes da decisão é que o mesmo se verifica.

Ora, analisada a decisão recorrida, não resulta da mesma que padeça de erro notório, pois os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.

Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.

B) Erro de julgamento

Da argumentação do recorrente decorre também que o mesmo não concorda com a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, nem com a matéria de facto fixada pelo mesmo, o que significa que pretende fazer uma impugnação ampla da matéria de facto, embora nunca a qualifique como tal.

Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.

Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que o recorrente não cumpriu minimamente as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, pois não indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, não indicou quais os meios de prova que impunham decisão diversa, não indicou as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir e que factualidade é que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados.

Em face disso, não tendo o recorrente cumprido minimamente o ónus imposto pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, não pode este Tribunal reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, improcedendo também nesta parte o recurso.

C) Violação do princípio in dubio pro reo

Alega ainda o recorrente que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo, porquanto não existe prova suficiente que motive validamente a sua condenação, devendo ser absolvido.

Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.

No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, proferido no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”

Também no Ac. do TRL de 10/01/2018, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”

Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.

Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.

Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.

Desde logo importa reforçar que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.

A factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não resultando dessa factualidade qualquer dúvida quanto à responsabilidade criminal do arguido.

Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, improcede também neste tocante o recurso.

D) Qualificação jurídica dos factos apurados

Põe também em causa o recorrente a qualificação jurídica dos factos apurados, quanto ao preenchimento da tipicidade objectiva do art.º 25º do D.L. nº 15/93, porquanto entende que não se provou nenhum acto de venda ou de cedência de droga a terceiro, por si praticado, para além do que se apurou que o recorrente é consumidor, sendo o produto que lhe foi apreendido destinado ao seu consumo.

Importa atentar em que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é a tal matéria que teremos que nos ater.

Ora, o recorrente foi condenado pela prática, como autor, na forma consumada, de um crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) e Tabela I-C do D.L. nº 15/93, de 22/01, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Prevê-se nesta norma que:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”

Por seu turno, o art.º 21º, nº 1 do mesmo diploma estabelece que:

“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” (sublinhados nossos) Tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência que o crime previsto no art.º 25º consubstancia um tipo privilegiado, em razão do grau de ilicitude, em relação ao tipo fundamental do art.º 21º. A diferenciação dos tipos de crime apenas conforme o grau de ilicitude, com reflexos ao nível da moldura penal, justifica-se pela necessidade de dar resposta a realidades diferentes, como sejam o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico.

Quanto à caracterização deste tipo de crime reproduzimos aqui as considerações, completas e actuais, expendidas no Acórdão do STJ de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raul Borges, in www.dgsi.pt: “A previsão legal do artigo 21º do DL 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27º do Decreto-Lei nº 480/83, de 13-12, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial. Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação. Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto. O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo. A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente. O conceito foi introduzido na nossa jurisprudência com o acórdão do STJ de 18-04-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 170, onde se refere que o crime exaurido é “ uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal”.(…)

Trata-se de crimes que como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto crime formal com antecipação de punição - para o crime de falsificação veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2006, processo 4306/05-3ª.(…) Como se referia no acórdão do STJ de 12-12-1991, BMJ, 412, 206, o crime é de perigo, em cuja punição relevam exigências de prevenção de futuros crimes. O crime em causa é um crime de trato sucessivo, em que a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transaccionada - acórdão do STJ de 29-06-1994, CJSTJ1994, tomo2, 258. O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos. O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la. Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime. Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral) (…) Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo. O normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo -ver acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, de 06-11-1991, in DR, II Série, nº 78, de 02-04-1992 e BMJ 411,56 (seguido de perto pelo acórdão do TC nº 441/94, de 07-06-1994,, in DR, II Série, nº 249, de 27-10-1994): “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia”. Já no preâmbulo da Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, concluída em Nova Iorque, em 31-03-1961 (aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 435/70, de 12-09 (BMJ 200, 348) e ratificada em 30-12-1971) se referia a preocupação com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo a toxicomania como um grave mal para o indivíduo, constituindo um perigo social e económico para a humanidade. Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 420/70, de 3/09, referia-se terem-se presentes os perigos que o consumo de estupefacientes comportava para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência. No preâmbulo do Decreto-Lei nº 430/83, de 13-12, que efectuou a adaptação do direito interno ao constante daquela Convenção de 1961 e da Convenção sobre as substâncias psicotrópicas de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto nº 10/79, de 30-01, fazia-se referência a relatório coevo de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.

O tipo-base deste crime caracteriza-se, assim, quanto à tipicidade das acções que o integram, como um tipo plural, com uma actividade típica ampla e diversificada, que abrange desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando por todos os elos do circuito e sendo todos os actos aptos a colocar em perigo os bens e os interesses protegidos pela incriminação.

Enquadra-se também na categoria de “crime exaurido” ou “crime de empreendimento”, na denominação alemã, ou ainda de “crime excutido”, porquanto o resultado típico se alcança logo com a realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação e desde que a droga não se destine exclusivamente a consumo.

O bem jurídico tutelado em primeiro lugar é a saúde pública, na sua dupla vertente física e moral, e num segundo plano a integridade física e moral dos consumidores, o que faz deste crime um crime de perigo abstrato, cujo preenchimento não exige para a respectiva consumação a verificação de um dano real ou efectivo ou sequer o perigo concreto do bem jurídico tutelado.

É ainda, quanto ao objecto da acção, um crime de mera actividade ou formal, cuja consumação se verifica pela mera execução de um comportamento humano, não se exigindo um resultado.

Ao nível da tipicidade subjectiva, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido integrado pela jurisprudência no elenco dos crimes de trato sucessivo, em que existe uma unidade de resolução criminosa, ou “unidade resolutiva”, e uma conexão temporal entre os atos realizados.

Pode-se, pois, afirmar que a detenção e a cedência de produto estupefaciente, desacompanhada da prova de quaisquer outras circunstâncias que permitam diverso enquadramento jurídico, preenche o tipo-base previsto no referido art.º 21º do D.L. nº 15/93.

Em face do exposto, não tem razão o recorrente quando alega que não praticou o crime em apreço, porquanto não se provou que tivesse executado qualquer acto de venda de produto estupefaciente, pois face à abrangência de comportamentos que cabem na previsão normativa, a simples detenção e a cedência de produto estupefaciente a terceiros já são idóneas para o preenchimento da tipicidade objectiva da incriminação.

Por outro lado, alega o recorrente que não praticou qualquer crime, porquanto a quantidade de droga que lhe foi apreendida era apenas para o seu consumo. Porém, atenta a quantidade de produto estupefaciente apreendido, equivalente a 124 doses de resina de canábis, é manifesto que o mesmo ultrapassa largamente o número de doses legalmente previstas para consumo no mapa anexo à Portaria nº 94/96, de 26 de Março, ao contrário do pretendido pelo recorrente.

Impõe-se, assim, concluir que não merece censura a qualificação dos factos feita pelo Tribunal recorrido, sendo a matéria de facto apurada suficiente para integrar os elementos objectivo e subjectivo do crime de tráfico de menor gravidade, improcedendo também nesta parte o recurso.

E) Medida da pena

O arguido veio também impugnar a pena concreta que lhe foi aplicada, de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, por a considerar desproporcional e desadequada, defendendo que lhe devia ter sido aplicada uma pena de prisão não superior a um ano, igualmente suspensa na sua execução, tendo em conta que, à data dos factos, não era reincidente, não existe prova suficiente que permita concluir que o destino do produto estupefaciente fosse a venda do mesmo, para além do que o arguido é consumidor.

Mais uma vez aqui se impõe reforçar que não foi feita qualquer alteração à matéria de facto fixada na decisão recorrida.

Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

As finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Para Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade. Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”

Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida, depois de ter afastado a aplicação ao arguido do regime especial para jovens, fundamentou a aplicação da pena em apreço pela seguinte forma:

“(…) Assim, e ao abrigo do n.º 2 do art.º 72.º do CPP cumpre atender:

- Contra o arguido -

- o grau de ilicitude: é, ainda, mediano (tratou-se da detenção de um total de 22,642 gramas de resina de canábis, embora, pelo seu grau de pureza, fossem adequadas a gerar um total de 124 doses; e de uma cedência a um consumidor, de 1,063 gramas; tratando-se de uma substância estupefaciente, ainda assim, considerada menos nociva que outro tipo de estupefacientes);

- o grau de dolo: é mediano;

- o arguido regista antecedentes criminais, embora pela prática de crimes de outra natureza, sofrendo penas sucessivamente mais gravosas, a última das quais em pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução (embora o trânsito seja posterior a estes factos);

A seu favor:

- o arguido é primário quanto a este crime;

- o arguido tinha, à data, 19 anos de idade;

- o tempo decorrido desde os factos;

Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado, afigura-se adequado punir o crime praticado pelo arguido, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. (…)”

Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.

Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crime gerador de grande e forte sentimento de repúdio pela comunidade por pôr em causa a saúde pública e a saúde individual de cada consumidor e respectivas famílias, assim como a ordem e tranquilidade públicas, atenta toda a restante criminalidade e insegurança social que lhe andam associadas, o que justifica uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas.

Ao contrário do alegado pelo arguido, foram tidas em conta na medida concreta da pena que lhe foi aplicada as suas condições pessoais e sociais.

Uma vez que o crime é punido apenas com pena de prisão e de 1 a 5 anos, a pena aplicada a este arguido de 1 ano e 6 meses é uma pena muito próxima do limite mínimo legal, pelo que se considera a mesma adequada e proporcional à culpa do agente e à gravidade dos factos pelo mesmo praticados, sendo tal pena de manter.

Por tudo o exposto, improcede também neste tocante o recurso.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.

Évora, 5 de Novembro de 2024

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

J. F. Moreira das Neves

Manuel Soares

(Adjuntos)