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CONTRATO DE FORNECIMENTO
PRESUNÇÃO DE CULPA
CASO DE FORÇA MAIOR
Sumário
1- A presunção de culpa prevista no nº 1 do art.º 799º do Código Civil só pode ser afastada se o devedor provar que actuou com a diligência exigível, ou quando alegue e prove a conexão entre o não cumprimento e uma causa estranha, seja uma causa de força maior, um facto do próprio credor (lesado) ou facto de terceiro. 2- No caso do decréscimo da clientela de um café/snack-bar, por ter sido deslocalizada uma instituição de ensino superior existente nas proximidades daquele café/snack-bar, não se pode falar de causa de força maior que afaste a culpa (presumida) do réu no incumprimento da sua obrigação contratual de aquisição de um determinado volume mínimo de café, para venda no referido café/snack‑bar, uma vez que tal alteração da clientela é, pela sua própria natureza, um risco próprio de qualquer negócio dessa natureza, não apresentando as características de imprevisibilidade ou insuperabilidade que a causa de força maior deve ter. (Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
J., S.A., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob forma de processo comum, contra P., pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 6.646,87, acrescida de juros de mora.
Alega para tanto, e em síntese, que:
· No exercício do seu comércio celebrou com o R. um contrato através do qual este se obrigou a comprar-lhe 2.000 quilogramas de café em quantitativos mínimos mensais de 30 quilogramas;
· No âmbito do aludido contrato concedeu ao R. o montante de € 4.559,62, a título de bonificação, com correlativa venda de bens no mesmo valor;
· Vendeu ainda ao R. outros bens, no valor de € 189,56;
· Desde Dezembro de 2007 o R. não mais comprou café à A., tendo até então comprado 970 quilogramas, o que determinou a resolução do contrato, nos termos convencionados, que a A. comunicou ao R. por carta de 14/12/2018.
O R. apresentou contestação onde confirma a celebração do contrato, mais alegando, em síntese, que adquiriu cerca de 1.900 quilogramas de café, desde o início do contrato até 2008, e que a falta de compra dos remanescente 100 quilogramas de café não resulta de qualquer comportamento que lhe seja imputável, mas antes do decaimento significativo das vendas do estabelecimento, em razão da mudança de instalações de um estabelecimento de ensino superior existente no local, que implicou que professores, funcionários e alunos deixassem de frequentar o seu estabelecimento. Mais alega que a factura no valor de € 189,56 se encontra paga e que a cláusula penal se mostra manifestamente excessiva porque as vantagens decorrentes da mesma para a A. se apresentam mais benéficas que a situação de cumprimento efectivo do contrato. Conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
A A. respondeu à matéria das excepções, concluindo pela improcedência das mesmas.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Conforme os critérios e fundamentos normativos supra-referidos: Condeno o Réu (…) ao pagamento à Autora (…) da quantia de 6.646,87 € (…), acrescido de juros de mora à(s) taxa(s) a que se reporta os §§ 3.º e 4.º do artigo 102.º do Código Comercial, por referência à Portaria n.º 597/2005, de 19 de Julho e subsequente Portaria n.º 277/2013 de 26 de Agosto e sucessivos avisos da Direcção Geral do Tesouro e correlativas taxas, desde a data de citação até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo de diferente taxa legal que em cada momento venha a vigorar. A responsabilidade por custas fica a cargo do Réu”.
O R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I. O presente recurso tem como objecto o segmento decisório da douta sentença proferida nospresentesautosquecondenouoRecorrentenopagamentoàRecorridadovalor de € 6.646,87 à Autora, acrescido de juros de mora, a título de indemnização contratual em função da resolução motivada, operada pela Autora ora Recorrida, do contrato de fornecimento decafé;
II. Paratanto,oTribunalaquoconsiderouqueanãoaquisiçãodatotalidadedocafé prometido comprar pelo Réu representa e consubstancia um incumprimento definitivo do contrato, ora facto voluntário, ilícito e culposo, suficiente para funcionar a resolução motivadado contrato ejustificaraindemnizaçãocontratual;
III. Comodevidorespeitopelaopiniãocontrária,queémuito,entendeoRecorrenteque oTribunalaquoincorreunumerrodejulgamentonavaloraçãoeinterpretaçãodafigurajurídicadapresunçãodeculpaquandoconsiderouqueoRecorrente,oradevedora,nãoafastounemilidiuaculpapresumidanos termosdoart.º 799.º,n.º1doCódigoCivil;
IV. OTribunaladquodeveriatertidoemcontatodasascircunstânciasdocaso,mais precisamente o encerramento do estabelecimento escolar/académico: I. Lisboa, para concluir em sentido diferente: ilidirapresunçãodaculpado Réu;
V. AodecidircomodecidiuoTribunalaquoviolouanormajurídicapresentenosartigos 436.º, 487.º,n.º 2e799.º,n.ºs 1e 2,todosdo CódigoCivil;
VI. AactuaçãodoRecorrentenãosemostracomoculposa,nostermosdabitolapresente noart.º487.º,n.º1e2doCódigoCivil,porquantoaproduçãodofacto[nãoaquisição datotalidadedocaféprometido]resultoudeumacausaestranha,ouseja,deuma causadeforça maior,umfactode terceiro;
VII. ORecorrente,oradevedor,aoalegaredemonstraroencerramentodo estabelecimentoescolar/académico:I. Lisboa[facton.º7]afastouapresunçãodeculpaquesobresiimpendia,nostermos doart.º 799.ºdoCódigo Civil.
VIII. Nestesentido,violouoTribunalaquoacorrectainterpretaçãodoregimeda responsabilidadecontratual,maisespecificamentedadefiniçãoeaveriguaçãoda culpadodevedor,nostermosdosartigos436.º,487.º,n.º2e799.º,n.ºs1e2,todos doCódigoCivil;
IX. Razãopelaqualdeveráser dadoprovimentoaopresente recursodeApelaçãoquanto àrevogaçãododispositivoqueconsideroucomoválidaacessação,porresoluçãomotivada com base num incumprimento ilícito e culposo, do contrato de fornecimentoe, em consequência, condenou o Recorrente no pagamento da respectiva indemnizaçãocontratual.
Não foi apresentada alegação de resposta pela A.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se com a ausência de culpa do R. no incumprimento da sua obrigação contratual, e consequente inexistência da obrigação de pagamento das indemnizações convencionadas.
***
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. Em 26 de Abril de 2001, no exercício da actividade de venda, por grosso, de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos, a Autora acordou, por escrito, com o Réu, que explorava um estabelecimento – café/snack-bar, sito na zona da Lapa, em Lisboa, que:
- a Autora procederia ao fornecimento ao Réu de 2000 quilos de café Tomé, Lote Moinho Clássico, que este adquiriria em fracções mínimas mensais de 30 quilos, ao preço da tabela geral em vigor à data de cada entrega.
- a Autora concederia um desconto/bonificação de 914.121$00 quando fosse adquirido a totalidade do café (2000 quilos), a regularizar anualmente em função directa e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos em cada ano
- a Autora entregaria ao Réu uma máquina de café, um moinho de café e uma máquina de lavar louça, no valor global de 914.121$00, reservando para si a respectiva pertença até à entrega integral da contrapartida, que seria compensada em virtude das quantias entregues anualmente a título de desconto e bonificação.
2. Do referido acordo constam, entre outras, as seguintes cláusulas:
Promessa de Compra/Venda
01
A PO promete vender, ao SO, dois mil (2000) quilos de café Tomé, lote Moinho Clássico, em fracções mínimas mensais de trinta (30) quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efectivas, sendo o seu preço actual de dois mil quinhentos e cinquenta escudos (2.550$00) por quilo.
02
E conceder-lhe um desconto/bonificação de novecentos e quatorze mil cento e vinte e um escudos (914.121$00) quando, cumulativamente, a totalidade do café referida em um se mostrar integralmente adquirida e paga – a regularizar, porém, anualmente, em função directa e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano sempre sem prejuízo do estabelecido no número novo, a propósito de resolução/anulação do contrato;
03
O café adquirindo será fornecido sob encomenda prévia do SO, sendo os pagamentos devidos no acto da entrega das mercadorias – concedendo-se, contudo, que, ocasionalmente, possam efectuar-se nos oito dias seguintes – tendo a PO o direito de suspender os fornecimentos em caso de não cumprimento em tais termos;
Compra/Venda
04
A PO vende ao SO – no estado físico de novos, em perfeitas condições de funcionamento e sem vícios aparentes – os bens mencionados na factura 19497, de 26 de Abril de 2001, no valor global de novecentos e quatorze mil cento e vinte e um escusos (914.121$00) – da qual se junta cópia e cujo teor aqui fica dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos – reservando para si a propriedade dos mesmos até integral pagamento do preço.
05
A obrigação de pagamento do preço será cumprida por via de compensação com as quantias que venham a ser anualmente liquidadas a favor do SO a título de desconto/bonificação, conforme se acordou no número dois;
(…)
09
Se o SO, seguida ou interpoladamente, não adquirir café durante dois meses, ou não efectuar, em dois trimestres, um mínimo trimestral de compras de noventa (90) quilos de café – ou não pagar duas quaisquer facturas vencidas, no prazo máximo de oito dias, a contar dos seus vencimentos – e sendo-lhe tais factos imputáveis – poderá a PO resolver/anular este contrato e, consequentemente, reclamar-lhe indemnização em montante correspondente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido em venda e ainda não adquirido; pagamento imediato dos bens de equipamento vendidos, ou a sua restituição, conforme melhor aprouver à PO. O SO poderá também resolver/anular o contrato, em caso de incumprimento culposo do mesmo por parte da PO.
10
Em caso de mora – no cumprimento de obrigações derivadas directamente do contrato ou da sua resolução – a taxa convencional aplicável, permitida por lei, é, actualmente, de dezasseis por cento (16%);
11
Se o SO, no prazo de quinze dias, a contar da data da resolução/anulação do contrato, comprar e pagar a totalidade do café ainda não adquirido, ficará sem efeito a indemnização de vinte por cento assinalada no número nove, sendo-lhe devida por inteiro a bonificação concedida e referenciada em dois;
12
Este contrato terá termo inicial no dia 26 de Abril de 2001 e termo final quando a totalidade do café prometida em venda houver sido integralmente adquirida e paga nos termos nele prevenidos;
(…)
14
O SO promete comprar os cafés identificados em um, e comprar os bens mencionados em quatro, tudo em rigorosa conformidade exarado em todas as cláusulas antecedentes;
15
Declara haver recebido, nesta data, os bens descritos em quatro, no estado físico e de funcionamento aí descritos.
Declaração de Ciência
16
Declara ainda, expressamente, o SO que o teor deste contrato lhe foi facultado, por cópia integral, com dez dias de antecedência em relação à data da sua outorga, tendo-lhe sido prestada explicação bastante de todos os seus termos, pelo que ficou absolutamente ciente de que o mesmo corresponde, integral e fielmente, à sua manifestação de vontade. De que assim é, dão fé e vão assinar, sem reservas quaisquer, todos os Outorgantes.
Celebrado em Rio Tinto, aos 26 de Abril de 2001.
Pela Primeira Outorgante
J., S.A.
O Segundo Outorgante,
(…).
3. A Autora procedeu à entrega dos aludidos bens [uma máquina de café, um moinho de café e uma máquina de lavar louça] ao Réu.
4. Desde Abril de 2001 até Dezembro de 2007, o Réu procedeu à aquisição junto da Autora de 970 quilos de café da marca Tomé, Lote Moinho Clássico.
5. A solicitação do Réu, em 28 de Novembro de 2008, a Autora entregou ao Réu café distinto da marca identificada supra no valor de 189,56 €, tendo emitido a factura n.º 116002834/08, que este não liquidou.
6. A Autora comunicou, por missiva, ao Réu, datada de 14 de Dezembro de 2018, a resolução do aludido acordo, sendo que o preço de tabela do café, à data, era 19,80 €, bem como instou que o Réu procedesse à liquidação da aludida factura.
7. À data do acordo referido em 1. e até 2005, o estabelecimento de ensino superior I. Lisboa localizava-se próximo do estabelecimento/café pertencente ao Réu.
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Na sentença recorrida ficou ainda a constar que:
“Não se lograram provar quaisquer outros factos, não foram considerados as circunstâncias conclusivas, as alegações de direito, e as circunstâncias fácticas irrelevantes para o presente juízo jurisdicional”.
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Não estando colocado em crise o contrato celebrado entre as partes, nem a obrigação que do mesmo emerge para o R., de adquirir à A. a quantidade mínima de 2.000 quilogramas de um específico lote de café comercializado por esta, na sua contestação o R. veio defender-se por excepção, invocando não lhe ter sido possível adquirir a totalidade desse volume de café porque se alteraram supervenientemente as circunstâncias que determinaram a definição desse volume mínimo de café a consumir pelo mesmo no seu estabelecimento comercial, e que se prendiam com a circunstância de o mesmo estabelecimento estar próximo de uma instituição de ensino superior, beneficiando do facto de alunos, docentes e demais funcionários dessa instituição virem tomar café ao seu estabelecimento, o que deixou de suceder quando a mesma instituição mudou as suas instalações para local distinto, perdendo o R. os clientes em questão. E, nessa medida, sustentou que o incumprimento dessa sua obrigação de adquirir o volume de café em questão não “resultou de um comportamento culposo, imputável ao Réu, mas sim de alteração superveniente e substancial das circunstâncias que determinaram a sua vontade inicial em contratar” (art.º 51º da contestação).
Na sentença recorrida foi afirmado que “considerando a realidade fáctica apurada verifica-se que o Réu apenas adquiriu 970 quilos do café convencionado de um total de 2000 quilos, sendo que tal comportamento consubstancia um facto voluntário ilícito, culposo, pois não foi feita qualquer prova em contrário, nos termos conjugados dos artigos 344.º, 350.º e 799.º do Código Civil, do qual resultaram danos correspondentes à não aquisição do café nos termos acordados. Ergo, a aludida circunstância é reconduzível ao âmbito da cláusula resolutiva convencionada entre as Partes. * Hic et nunc, apesar dos fundamentos mobilizados por parte do Réu, ante a matéria de facto provada, exigir-se-ia um plus fáctico para se mobilizar o instituto a que alude o artigo 437.º do Código Civil. Eis que, em verdade, impunha-se, em síntese: ) demonstrar um alteração das circunstâncias em que as Partes tenham fundado a decisão de contratar, sendo que, no caso judicando, nada resultou quanto à determinação, de modo essencial, da voluntas negocial e / ou condicionamento do efeito vinculativo das declarações emitidas; ) a existência de uma alteração anormal, uma imprevisibilidade subtraída aos próprios riscos próprios do contrato; ) a demonstração de repercussões patrimoniais [apreciação numa dimensão económica]; ) demonstrar a afectação grave das exigências do princípio da boa fé [uma inexigibilidade do cumprimento pontual da prestação em razão de uma manifesta desproporcionalidade induzida pela alteração das circunstâncias]; ) a inexistência de mora no momento da alteração, no cumprimento da prestação, o que não ocorreu no caso judicando”.
E foi a partir deste entendimento que o tribunal recorrido conclui que “verificando‑se contratual e normativamente válidos os fundamentos de resolução invocados – resolução, essa, que foi comunicada ao Réu - vai implicada a resolução do contrato celebrado e, por corolário, deverá a Autora ser indemnizada, ante os efeitos resolutivos convencionados”.
O argumento utilizado pelo R. para sustentar a procedência do recurso continua a ser o mesmo apresentado na instância recorrida, a saber, que a mudança de instalações de uma instituição de ensino superior que, à data da celebração do contrato (26/4/2001), estava instalada nas proximidades do estabelecimento comercial do R., foi determinante para a diminuição dos consumos de café que se verificaram, tendo sido por isso que o R. não adquiriu à A. o volume de café estipulado, e havendo então que afirmar que não procedeu de culpa sua esse incumprimento da sua obrigação de adquirir o volume de café em questão.
Ou seja, o R. não coloca em crise que se presume a sua culpa, por só ter adquirido 970 quilogramas, dos 2.000 quilogramas de café que se havia obrigado a adquirir. Mas entende que tal presunção de culpa, que emerge do art.º 799º do Código Civil, tem-se por afastada face à factualidade que emerge do ponto 7 dos factos provados, na medida em que se deve concluir que “o que produziu o facto (a não aquisição do café prometido (2000 quilos) pelo Réu) foi um evento alheio e fora do domínio do Réu (encerramento do estabelecimento escolar/académico (…))”.
Para sustentar esse seu entendimento convoca o afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 14/4/2011 e de 12/11/2013 (relatados por Lopes do Rego e por Garcia Calejo, respectivamente, e disponíveis em www.dgsi.pt).
Com efeito, resulta do primeiro dos acórdãos em apreço que “nas acções que visam efectivar a responsabilidade civil contratual vale plenamente a presunção de culpa do devedor, estabelecida no art.º 799º do CC”. Pelo que “não basta, pois, ao devedor, onerado com a dita presunção de culpa, negar, de forma genérica, global e factualmente indeterminada, a existência de culpa no incumprimento: na verdade, se não impugnar o facto do incumprimento que está na base da aludida presunção, terá que invocar factos impeditivos da ilação que a lei extrai desse incumprimento («objectivo») da obrigação, mostrando – através da sua versão factual, minimamente concretizada e densificada e oportunamente deduzida no processo – que foi diligente, se esforçou por cumprir, usando as cautelas e zelo que utilizaria um «bom pai de família» nas concretas circunstâncias do caso, - decorrendo, afinal, o incumprimento de factores e circunstâncias que, escapando inteiramente ao seu domínio, lhe não foi possível controlar adequadamente”.
Do mesmo modo, resulta do segundo dos acórdãos em apreço que “na responsabilidade contratual, compete ao devedor provar que a falta de cumprimento (ou o cumprimento defeituoso) da obrigação não resulta de culpa sua. Assim, apesar da regra geral do art. 342º nº 1 do C.Civil, a lei estabelece uma presunção de culpa neste tipo de responsabilidade – art.º 799º nº 1 – bastando ao credor provar que a obrigação não foi cumprida ou que foi cumprida defeituosamente (facto ilícito). Dito de outro modo, o ónus da prova da ausência de culpa, pertence, no domínio da responsabilidade contratual, ao devedor. Por conseguinte, uma vez provados os restantes elementos da responsabilidade civil (base da presunção de culpa), presume‑se que o devedor actuou com culpa, cabendo-lhe provar o contrário”. E mais resulta que, “como refere Pedro Romano Martinez, há duas formas do devedor alijar a presunção de culpa do art. 799º nº 1, ou bem que o devedor alega e prova que actuou com a diligência exigível, ou bem que alega e prova a conexão entre o não cumprimento e uma causa estranha – seja uma causa de força maior, um facto do próprio credor (lesado) ou facto de terceiro”.
Ou seja, “no domínio da responsabilidade contratual (…) é ao devedor que compete provar que o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (…)”, sendo que “a culpa do devedor deve ser apreciada in abstracto, ou seja, como se diz no nº 2 do artigo 487º, pela diligência de um pai de família”. O que significa que “se deve preferir a tese da culpa como um erro de conduta (envolvendo também a falta de perícia, de aptidão ou de conhecimento) e não como uma simples deficiência de vontade (falta de zelo ou de empenho) na realização da prestação”, não sendo “justo (…) que a inaptidão, a imperícia, a incompetência (…), em lugar de onerarem o próprio agente, prejudicassem antes a pessoa ou o património de terceiro” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume II, 3ª edição revista e actualizada, 1986, pág. 55-56).
Com efeito, e como resulta do art.º 762º do Código Civil, no cumprimento da obrigação, como no exercício do correspondente direito de crédito, devem as partes proceder de boa fé.
A este respeito refere Almeida Costa (Obrigações, 3ª edição, pág. 715) que “segundo a boa fé, tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito, como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação, devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade”.
Assim, e como igualmente explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1986, pág. 2-3), o cumprimento da obrigação rege-se pelo “dever de agir com lisura e correcção”, sendo que, por um lado, “o devedor não pode limitar-se a uma realização puramente literal ou farisaica da prestação a que se encontra vinculado” e, por outro lado, “o dever de boa fé não se circunscreve ao simples acto da prestação, abrangendo ainda, na preparação e execução desta, todos os actos destinados a salvaguardar o interesse do credor na prestação (o fim da prestação) ou a prevenir prejuízos deste, perfeitamente evitáveis com o cuidado ou a diligência exigível do obrigado”.
Mais explicam os referidos autores que é “nesta área do cumprimento da obrigação que especialmente se concentra a vasta galeria dos deveres acessórios de conduta (…) que a literatura civilística alemã tem extraído do preceito lapidar formulado no § 242 do B.G.B.”, explicando ainda que a “necessidade juridicamente reconhecida e tutelada de agir com correcção e lisura não se circunscreve ao obrigado; incide de igual modo sobre o credor, no exercício do seu poder. E, tal como sucede com o dever de prestar, também no lado activo da relação o dever de boa fé se aplica a todos os credores, seja qual for a fonte do seu direito, embora isso não exclua a desigual intensidade do dever de cuidado e diligência que pode recair sobre as partes”.
Do mesmo modo, como ficou referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 7/12/2010 (relatado por Silva Salazar e disponível em www.dgsi.pt), os “contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada. III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa fé – art. 762.º, n.º 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização”.
Do mesmo modo, ainda, como ficou referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 27/11/2018 (relatado por Graça Amaral e disponível em www.dgsi.pt), no “negócio jurídico bilateral, de onde emergem direitos e deveres para cada uma das partes, a avaliação do incumprimento contratual não se confina aos deveres principais adstritos às respectivas partes, estendendo-se, necessariamente, aos deveres acessórios ou complementares ínsitos nas estipulações contratuais e aos que decorrem do desígnio da própria vinculação contratual (deveres inerentes à dinâmica negocial assentes no princípio de boa fé e num critério ético-normativo de razoabilidade)”.
Regressando ao caso concreto, pode-se então afirmar que o programa contratual estabelecido entre as partes pressupunha a existência e manutenção da actividade comercial do R., já que era para o exercício dessa actividade comercial (a exploração do estabelecimento de café/snack bar) que o R. destinava as quantidades de café que se havia obrigado a adquirir a A.
Ora, tratando-se da aquisição de pelo menos 30 quilogramas mensais de café para venda ao público no estabelecimento comercial do R., naturalmente que se exigia a este a diligência normal de qualquer comerciante desse ramo de actividade, desde logo na captação e manutenção da clientela que lhe permitisse tal revenda, assim assegurando que adquiria café à A. nos volumes estipulados.
Mas será que a simples diminuição da referida clientela, por força de um acontecimento externo à vontade do R., corresponde à verificação de um caso de força maior, apto a afastar a presunção de culpa que recai sobre o R., no que respeita ao não cumprimento da sua obrigação de aquisição dos volumes de café estipulados no contrato?
Importa recordar que o caso de força maior apto a afastar a presunção de culpa que emerge do art.º 799º do Código Civil deve revestir características de imprevisibilidade ou de insuperabilidade, reconduzindo-se a situações que o R. não poderia normalmente prever, ou cujos efeitos não poderia normalmente prevenir, mesmo actuando com a diligência que qualquer pessoa utilizaria, se colocada na posição concreta do R.
Como ficou afirmado no acórdão de 18/12/2013 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Fonseca Ramos e disponível em www.dgsi.pt), “o caso de força maior como excludente da culpa e até da responsabilidade civil lato sensu tem ínsita uma ideia de inevitabilidade, ligada a uma acção do homem ou terceiro e, em muitos casos, a fenómenos da natureza, que por serem incontroláveis e nem sequer previsíveis pela vontade do agente, não são passíveis de imputação pelas suas consequências, configurando-se como evento contra o qual nada pôde fazer por maior que tivesse sido a sua diligência”.
Do mesmo modo, como ficou afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2010 (relatado por João Camilo e disponível em www.dgsi.pt), ainda que a respeito do incumprimento de um contrato de arrendamento, mas em circunstâncias transponíveis para um caso como o dos autos, “tal como ensina o Prof. A. Varela, in R.L.J., ano 116, pág. 192, as situações de força maior são os impedimentos resultantes de forças da natureza (o abalo sísmico, a inundação grave, o raio ou descarga eléctrica) ou de actos insuperáveis da autoridade ou mesmo de particulares (a realização de obras públicas de demolição ou de desaterro, a ocupação militar de carta zona, a revolução, a guerra civil, etc.” Assim, para se verificar esta excepção ao direito de resolver é necessário, uma ocorrência revestida de imprevisibilidade e de inevitabilidade, ocorrência esta que a vontade do locatário não possa vencer ou ultrapassar. Também David Magalhães - outro dos raros autores que tratam desta questão de feição com interesse para a resolução da questão aqui em apreço -, em “A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano”, Coimbra Editora, 2009, pág. 274 entende que a força maior se caracteriza pelo carácter irresistível, inevitável, da causa do não cumprimento. A obrigação não é cumprida devido a uma força superior à qual não se pode resistir, ainda que seja previsível: por exemplo, tempestade, guerra inundação, sismo, ou acto de autoridade (factum principis)”.
E do mesmo modo, como ficou afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/6/2017 (relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt), “o caso fortuito ou de força maior reconduzem-se à impossibilidade de cumprimento por causa não imputável ao devedor e está em correlação com o disposto no artigo 790º nº 1 do Código Civil. A responsabilidade do devedor pelo não cumprimento é afastada sempre que a impossibilidade superveniente da prestação derive de facto do credor ou quer de facto não imputável a um nem a outro – caso fortuito ou de força maior –. No domínio das obrigações, o caso fortuito representa o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a acção do homem; a força maior pode definir-se como acontecimento natural ou acção humana que, sendo previsível, não era possível evitar (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. Refundida, pág. 773). São situações excludentes da responsabilidade, que exoneram o devedor em matéria de cumprimento das obrigações. Mas para que tal aconteça incumbe, ao devedor da prestação, tratando-se de responsabilidade contratual, alegar e provar que a impossibilidade da prestação não procedeu de culpa sua (artigo 799º nº 1)”.
Da matéria constante do ponto 7 dos factos provados resulta que ao tempo da celebração do contrato entre as partes existia uma instituição de ensino superior localizada próximo do estabelecimento comercial de café/snack-bar explorado pelo R.
E é notório que a existência dessa instituição de ensino superior, com a sua afluência diária de alunos, docentes e demais funcionários, significava a existência de um incremento de clientela para o estabelecimento comercial do R.
Mas mesmo admitindo que a deslocalização da instituição de ensino superior, em 2005, trouxe com ela um decréscimo da clientela do café/snack-bar do R., já que com essa deslocalização foram igualmente deslocalizados os referidos alunos, professores e demais funcionários da referida instituição, tal alteração de clientela não se pode afirmar como correspondendo a uma circunstância imprevisível, inevitável ou insuperável para o R.
É que a alteração da clientela de uma estabelecimento comercial de café/snack‑bar é, pela sua própria natureza, um risco próprio de qualquer negócio dessa natureza. O que significa que qualquer comerciante, quando colocado na posição do R., e desde que esteja normalmente atento ao mercado da restauração (o que é o mesmo que dizer, que actue com a necessária diligência), não pode ignorar que não pode fazer depender da flutuação da clientela o cumprimento de contratos de fornecimento das mercadorias que vende no seu estabelecimento comercial.
Assim, e ainda que se possa admitir a diminuição da clientela do café/snack‑bar do R., em razão da deslocalização da instituição de ensino superior, não deve tal diminuição de clientela ser qualificada como causa de força maior apta a excluir a culpa (presumida) do R. no incumprimento da sua obrigação de adquirir à A. a quantia mínima total de 2.000 quilogramas de café do comércio desta.
A situação seria distinta se estivesse preenchida a previsão do art.º 437º do Código Civil, ou seja, que o contrato de fornecimento celebrado entre as partes teve na sua génese a consideração da existência de tal instituição de ensino superior na proximidade do café/snack‑bar do R., tendo as partes feito depender a sua vontade de contratar, nos termos em que o fizeram (designadamente quanto à fixação dos volumes mínimos de fornecimento), da quantificação da clientela do café/snack‑bar originada pela referida proximidade da instituição de ensino superior, e pressupondo a permanência da mesma instituição naquele local durante todo o tempo necessário (pelo menos 67 meses, tendo presente o valor mínimo mensal de aquisições de café de 30 quilogramas e o valor mínimo total de aquisições de café de 2.000 quilogramas) ao cumprimento da obrigação de aquisição de café pelo R.
Mas nada disso resulta provado, pelo que não se pode fazer qualquer censura à sentença recorrida, quando recusou o cumprimento do disposto no art.º 437º do Código Civil e afirmou o incumprimento ilícito e culposo da obrigação contratual do R., mais reconhecendo o consequente direito da A. à resolução contratual e aos valores estipulados no contrato em razão de tal resolução pelo incumprimento contratual do R., assim improcedendo na sua totalidade as conclusões do recurso.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelo R.
7 de Novembro de 2024
António Moreira
Vaz Gomes
Laurinda Gemas