I – Suscitada a existência da exceção dilatória de preterição do procedimento previsto no PERSI, pelo Apelante, sendo de conhecimento oficioso, está o Tribunal da Relação obrigado ao seu conhecimento, desde que assegurado o exercício do contraditório pelo cumprimento do disposto no art.º 3º, n.º 3, do C. P. Civil.
II – Limitando-se a Apelada, nas suas contra-alegações de recurso, a invocar a extemporaneidade da invocação de tal exceção, sem alegar, como lhe competia, ter integrado o Réu no PERSI, ter-lhe comunicado tal facto e que tal procedimento se extinguiu, é de julgar procedente tal exceção, com a consequente absolvição do réu da instância.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
A Banco 1..., S.A., intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum especial contra AA,
Pedindo:
a condenação do Réu a pagar à autora a quantia de 19.683,16 €, acrescida dos juros vincendos sobre o capital em dívida.
Alegando, em síntese:
a autora celebrou com o Réu “contrato de mútuo” destinado a restruturação de dívidas que o Réu tinha perante si, relativamente ao qual o réu deixou de pagar as prestações vencidas desde 13.10.2015;
a autora enviou carta de interpelação ao réu, sendo que, a 07-03-2022 encontrava-se em dívida a quantia total de 19.683,16 €.
Citado o réu editalmente, bem como o Ministério Público nos termos do art. 21º do CPC, não foi deduzida oposição.
6. Decisão
Face ao exposto e decidindo, condeno o Réu a pagar à Autora a quantia de €19.683,16 € (dezanove mil, seiscentos e oitenta e três euros e dezasseis cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal desde a data de citação até ao efetivo e integral pagamento da referida quantia.
Custas da ação a cargo do Réu [art. 527.º do CPC].
Notifique e registe
A. O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
“…”;
B. Entendemos que esses factos – todos os dados como provados – se encontram incorretamente julgados, tendo de ser dados como não provados – nos termos do artigo 640.º n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil;
C. A prova que consta dos autos, apresentada pela autora e que nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil impõe decisão diversa, consiste no (i) depoimento prestado pela testemunha BB, em sede de audiência de julgamento realizada em 03.05.2023 – cuja ata se encontra sob a referência eletrónica 103671798, assinada em 05.05.2023 – gravada através do sistema de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo sido gravada cópia em CD e o mesmo sido registado sob o n.º 26/23 no Livro de Registo do Juízo Local Cível de Porto de Mós, com início às 14:40:43; mormente no minuto 01:08 desse depoimento que, onde refere que “esse contrato foi efetuado para renegociar, tinha dois cartões, acho eu”; ao minuto 01:40 quando questionado sobre se teve algum contacto com o cliente, disse que não teve qualquer contacto com o cliente, o réu; e ao minuto 01:46 declarou não saber precisar quando o processo passou para a sua gestão.
Pelo que nada se logrou provar com o depoimento prestado, nem sequer a celebração do contrato; (b) os três documentos juntos com a petição inicial, todos sob a referência eletrónica 8532606: o contrato; a carta com a referência 26834 (SGC); a nota de débito, mormente,
D. Não se provou sequer que a carta a que é feita referência no ponto 10.º dos factos dados como provados – e que foi junta com a petição inicial em documento não numerado – foi remetida e muito menos que foi recebida pelo réu; sendo que apenas foi junto o escrito e não qualquer comprovativo da remessa do mesmo, ou da sua receção, sendo que se trata de uma carta tipo; e também dessa carta não consta que a morada para a qual a autora alega que foi remetida seja a morada que consta do contrato que a autora juntou, e que se 9 de 13 impunha no ponto 19. desse contrato, cuja validade a autora alega e do qual quer fazer fé e dar como bom.
E. Pelo que também por esta via não se poderia ter dado como provada a existência de qualquer interpelação por parte da autora ao réu – ponto 10 dos factos dados como provados, pois, a carta não foi remetida para aquela morada e nos autos não se fez qualquer prova da sua remessa/do seu registo/da sua receção por causa imputável ao réu.
F. Razão pela qual da prova que consta do processo sempre se teria de dar como não provado o facto que consta do ponto 10 dos factos dados como provados.
G. Ademais, não foi junto pela autora qualquer extrato bancário que comprovasse minimamente que o empréstimo foi de facto concedido e que foi depositado na conta do réu, conforme alegado nos pontos 3 e 5 dos factos dados como provados, pelo que não poderiam estes factos serem dados como provados.
H. E sendo que a autora não comprovou, também, por qualquer modo o uso e gasto da quantia que anota nos pontos 5 e 11 dos factos dados como provados, nem sequer a inexistência do pagamento conforme consta do ponto 9 dos factos dados como provados.
I. Sendo que a autora nem logrou provar que a conta em causa não tinha fundos suficientes nem outros produtos associados para fazer face ao pagamento, ou que a quantia que alega ter sido entregue por título do contrato que alega ter sido celebrado com o réu tenha sido por este usada, e na sua íntegra.
J. Estes factos – que constam dos pontos 3, 5 e 11 dos factos dados como provados – sempre teriam de ser provado por prova documental e nada foi provado.
No demais,
K. Também não podia ser dado como provado que o réu foi informado de todos os contornos do contrato, porquanto não há qualquer prova produzida que conduza à factualidade de que a informação constante do contrato foi entregue ou exibida ao réu, e que o mesmo tinha pleno conhecimento de todas as suas cláusulas, nomeadamente quanto ao pagamento dos juros contratuais, encargos diversos, e quaisquer outras. É que estando-se perante um contrato regido nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02.06, artigo 4.º, n.º 1, alínea c), tratando-se, 10 de 13 assim, de um contrato a que se aplica o regime das cláusulas contratuais gerais – nos termos do Decreto-Lei n.º 466/85, de 25.10, assim também aplicável, e em que por isso o consumidor não consegue nem pode fixar o conteúdo do contrato (sendo um contrato de adesão), temos que impende sobre a autora demonstrar que o credor diligentemente prestou todas as informações para a celebração do contrato, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 6.º, nºs. 1, 2, 3, 5 e 11 – sendo que este estabelece que “compete ao credor e, se for o caso, ao intermediário de crédito fazer prova do cumprimento das obrigações previstas neste artigo” e artigo 7.º do Decreto-Lei supracitado, e nada disso foi provado nos autos, nem sequer foi alegado.
L. E assim sendo também não poderiam ter sido dados como provados os factos que constam sob os números 6, 7, 8 dos factos dados como provados, em violação do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02.06, artigo 4.º, n.º 1, alínea c), artigo 6.º, nºs. 1, 2, 3, 5 e 11 e artigo 7.º.
Pelo que na verdade,
M. O Tribunal a quo não poderia ter dado como provado qualquer facto que constasse da petição inicial apresentada, por falta de prova, e assim sendo a prova da celebração do contrato com conhecimento da sua plenitude por parte do réu, não podendo assim ser dados como provados os factos 1, 2 e 4 dos factos dados como provados.
N. No mais, a autora também não provou a realização de qualquer diligência de integração do réu no PERSI, consagrado no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10, aplicável atento o disposto no seu artigo 2.º, n.º 1, alíneas a), c), d) e e) – não tendo demonstrado nem que enviou cartas de interpelação nem que encetou qualquer outro tipo de contacto com o réu;
O. Não tendo a autora demonstrado o cumprimento das normas legais imperativas consagradas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10 – que fizeram as diligências legalmente impostas e que o PERSI se extinguiu nos termos legais, provando documental tais factos, nos termos dos artigos 13.º, 17.º, nºs.1, 3 e 4 do citado diploma, 364.º do Código Civil e 574.º, n.º 1, 713.º e 715.º do Código de Processo Civil -, verifica-se uma falta de verificação dessa condição objetiva de procedibilidade, a qual consubstancia uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 278.º, alínea e) e 578.º, do Código de Processo Civil, o que desde já se invoca e que importa a absolvição do pedido;
P. Sempre cabia à autora, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, alegar e provar tal factualidade, o que não foi feito;
Q. Pelo que, assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos, nas conclusões que antecedem se impugna a Sentença, na vertente de (i) impugnação de facto e de (ii) impugnação de direito, pois não foi efetuada qualquer prova dos factos alegados, nomeadamente, (a) em momento algum a prova testemunhal foi no sentido de comprovar os termos do negócio, a interpelação, o uso do dinheiro, o incumprimento, ou qualquer outro facto, porquanto a testemunha nada sabia; (b) não foi junto qualquer documento que comprovasse que o réu recebeu aquele montante na sua conta, que usou aquele montante, que o deixou de pagar na data invocada nada mais pagando até à presente data, e que foi, efetivamente e nos termos de um contrato celebrado entre as partes, interpelado para esse cumprimento – e a prova cabia à autora e cumpria realizar por documentos.
R. Pelo que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo padece de um erro de julgamento, da apreciação da prova, no sentido de um vício de apuramento da matéria de facto, tendo ocorrido uma errada interpretação da prova (não) produzida;
S. Pelo que tais factos - pontos 01 a 11 da matéria de facto dada como provada – têm que ser dados como não provados, e assim aditados à lista dos factos não provados, porquanto nenhuma prova foi realizada no sentido de serem dados como provados;
T. Ao considerar taxativamente todos os factos elencados na petição inicial provados – e que constam dos pontos 1 a 11 dos factos dados como provados na sentença –, o Tribunal a quo violou as regras da experiência comum e do n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil;
U. Assim, nos termos e para os efeitos do disposto na aliena c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, deverão os factos alegados serem dados como 12 de 13 não provados, e assim a Decisão terá de comportar a absolvição, do pedido, e caso assim não se entenda, da instância, do réu na sua totalidade.
Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. proficientemente suprirão, requer, mui respeitosamente, que concedam provimento ao presente recurso e consequentemente, (i) sejam os factos dados como provados sob os pontos 01 a 11 dados como não provados, e importando assim a absolvição do réu no pedido.; e, sempre sem conceder, caso assim não se entenda (ii) seja o réu absolvido, verificando-se a exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 278.º, alínea e) e 578.º, do Código de Processo Civil. .
A. O presente recurso versa sobre a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu “condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de €19.683,16 € (dezanove mil, seiscentos e oitenta e três euros e dezasseis cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal desde a data de citação até ao efetivo e integral pagamento da referida quantia”.
B. O Recorrente havia já anteriormente em, 12/06/2023, interposto Recurso de Apelaçãoem representação do Réu revel, esgrimindo ipsis verbis, os argumentos agora apresentados, peticionado igualmente a absolvição do Réu por não provados os factos constantes de 01 a 11 e assim não se entendendo, por verificada a exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.
C. O Tribunal a quo, reformulou a sentença com base no Acórdão proferido, em 13/12/2023, fundamentando devidamente a mesma, nos termos do artigo 607º do C.P.C.
D. Motivo pelo qual, andou bem ao decidir como decidiu na douta sentença, atenta toda a prova e factualidade produzida e carreada nos autos, inexistindo outra solução jurídica atendível perante tal situação, não merecendo, salvo melhor opinião, o presente recurso de apelação qualquer provimento.
E. O Ministério Público, em representação do Réu revel, apresenta uma vez mais, recurso da decisão pugnando pela nulidade da mesma e pela absolvição do Réu.
F. Ora, salvo o devido respeito, os factos novamente alegados pelo Recorrente, configuram matéria de defesa a ser utilizada em sede de Contestação e não em sede de Recurso.
G. Devidamente notificado o Recorrente em 15/09/2022, nos termos do artigo 21.º do C.P.C., para vir deduzir em representação do Réu, contestação aos presentes autos, este nada disse, não ofereceu contestação ou impugnou qualquer documento ou elemento de prova fornecido pela Autora.
H. Razão pelo qual, se considera nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 573º do C.P.C., que perdeu o direito de defesa quanto ao alegado na petição inicial, visto que, lhe foi dada a oportunidade para contestar e não o fez.
I. A revelia operante não arreda o Réu da lide, o qual, nos termos do n.º 2, do artigo 567º do C.P.C., pode apresentar alegações escritas que se destinam a permitir que a parte, face à circunstância de se registar assente a matéria de facto invocada pela Autora, possa apresentar a sua argumentação de direito, ou melhor, expor a sua posição quanto ao direito que poderá ser aplicado quanto àquela factualidade.
J. O que não pode é a parte revel transmutar as alegações de direito na contestação que não apresentou!
K. Ainda para mais, quando em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, no âmbito do qual foi produzida a prova, o Ministério Público que tanto tem agora a dizer, nada disse em sede de alegações, limitando-se a pedir que se “faça a acostumada justiça”.
L. Todavia e caso o supra exposto não se verifique suficiente para que seja o recurso ora apresentado julgado totalmente improcedente, sempre se diga por mero dever de patrocínio que, os factos elencados de 01. a 08. resultam única e inequivocamente, do contrato celebrado com o Réu e junto aos autos, não percebendo porque motivo não devem ser dados como não provados, nada tendo sido pela Recorrente alegado em sede de contestação ou audiência final quanto aos mesmos.
M. No que respeita ainda aos pontos 09. a 11., também estes resultam inequivocamente das notas de débito e cartas juntas aos autos e que não mereceram qualquer reparo da Recorrente quer em sede de contestação ou de audiência final.
N. Os factos elencados na petição inicial pela Autora, estão devidamente suportados por prova documental e prova testemunhal.
O. Salvo melhor opinião, o momento certo para o Recorrente vir impugnar ou questionar o referido contrato e seus meandros seria na Contestação, que não o fez, fazendo agora uma série de alegações que devem ser desconsideradas uma vez que, volta a frisar-se, seriam alegações de defesa a apresentar em sede de Contestação e não de Recurso.
P. Além de ser matéria que poderia ter sido trazida à causa pelo Recorrente em sede de Contestação, que mais uma vez, diga-se, livremente não o fez, também é matéria que está distorcida pelo Recorrente, onde a sede própria para a sua discussão foi na ação, após a contestação e sem sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
Q. E que só não aconteceu porque o Recorrente se absteve de apresentar defesa.
R. É inequívoco que o teor do contrato de mútuo aqui em crise, assim como, o documento bancário ora junto, sob designação “Nota de Débito”, demonstram-se elementos mais que suficientes para comprovar a celebração do contrato com o Réu, a disponibilização dos montantes mutuados e a sua atualização, bem como o incumprimento pelo Réu das responsabilidades que voluntariamente assumiu.
S. Inclusive, não só das suas alegações é clarividente que o Recorrente não analisou corretamente os documentos juntos com a petição inicial, como tenta descredibilizar por completo a testemunha apresentada pela Autora.
T. Testemunha esta que se trata de pessoa idónea, funcionário bancário e que corroborou a existência do contrato, a utilização do valor que foi mutuado e o momento que se iniciou o incumprimento.
U. Motivo pelo qual, na opinião da aqui Recorrida, todos as alegações realizadas em sede de Recurso têm e devem ser desconsideradas pois é defesa que podia e devia ter sido apresentada em sede própria e que não o tendo feito, esgotou a possibilidade de o fazer, muito menos em sede de Recurso.
V. Não satisfeito e tentando a todo o custo absolver o Réu, o Recorrente alega ainda que não se verifica a integração daquela em PERSI, o que deve desde logo falecer por inadmissível nesta fase processual, nada tendo sido referido quanto ao mesmo quer em sede de contestação quer em sede de audiência final, não podendo o Recorrente pretender que o douto Tribunal da Relação decida uma exceção que nunca foi levantada, sem conceder resposta ou defesa à aqui Recorrente.
W. Por fim, conclui-se que esta não é a sede própria para reverter uma sentença que se baseou única e exclusivamente em alegações e prova feitas pela Autora, porque o Recorrente se absteve todo o tempo de praticar os atos que a lei lhe conferia.
X. Pela simplicidade e claridade da petição inicial, da prova oferecida e pela falta de contestação e impugnação, o Douto Tribunal a quo decidiu conferir a procedência da ação, baseando a sua decisão “atenta a factualidade vertida na petição inicial, e a fundamentação de direito ali aduzida, atenta a simplicidade da causa (…)”, decisão esta que deverá manter-se.
Nestes termos e nos demais de Direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser o presente recurso julgado improcedente, mantendo-se em consequência a douta decisão recorrida,
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
1. Se a falta de prova da integração do réu no PERSI pode ser invocada e conhecida unicamente em sede de recurso
A autora/Banco 1... instaurou a presente ação, alegando, ter celebrado com o réu, a 31-12-2013, um contrato de refinanciamento sob a forma de mútuo para liquidação de responsabilidades emergentes de cartões de crédito ou de cartões de débito diferido no âmbito do DL 227/2012, concedendo-lhe um empréstimo de 10.600,00 €, com um prazo de diferimento de 12 meses, seguido de um prazo de amortização de 48 meses. Mais alega que o réu deixou de liquidar as prestações a que estava adstrito, encontrando-se em falta as prestações desde 03-10-2015, e que interpelado para pagamento, não respondeu nem efetuou qualquer pagamento, encontrando-se em dívida, a 07-03-2022, a quantia de 19.683,16 €.
Citado o réu editalmente e citado o Ministério Publico para assumir a sua defesa, não foi apresentada contestação.
Proferida sentença a condenar o réu no pedido, vem agora o Ministério Publico/Apelante, nas suas alegações de recurso, invocar que, não tendo a autora demonstrado a realização de qualquer diligência de integração do réu no PERSI, e que o procedimento se extinguiu nos termos legais, consagrado no DL 227/2012, de 25/10 – não demonstrou que enviou as cartas de interpelação nem que encetou outro tipo de contacto – se verifica uma condição objetiva de procedibilidade que consubstancia uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, o que importa a absolvição do pedido.
Nas suas contra-alegações de recurso, a Apelada opõe-se ao conhecimento de tal questão, alegando que a invocação de tal exceção deve, desde logo, falecer por inadmissível nesta fase processual, nada tendo sido referido quanto à mesma, quer em sede de contestação quer em sede de audiência final, não podendo o Recorrente pretender que o douto Tribunal da Relação decida uma exceção que nunca foi levantada, sem conceder resposta ou defesa à aqui Recorrente.
Cumpre apreciar
O Dec. Lei nº 227/2012, de 25.10, que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), prevê, em caso de incumprimento, uma fase pré-judicial que envolve a informação ao cliente do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, persistindo o incumprimento, a sua integração obrigatória no PERSI, entre o 31º e o 60º dia subsequente à data do vencimento da obrigação em causa (artigos 13º e 14º).
Durante o período que decore entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento e de intentar ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (nº1 do artigo 18º).
Como tem sido posição unânime na jurisprudência, o recurso a tal procedimento extrajudicial – com a integração no PERSI e a comunicação de extinção de tal procedimento, persistindo o incumprimento) – funciona como condição de admissibilidade da ação judicial (declarativa ou executiva) pela instituição bancária que peticiona o pagamento.
Sendo a integração no PERSI obrigatória quando verificados os respetivos pressupostos, instaurada ação para cobrança de créditos com omissão de cumprimento pela instituição bancária, dessa obrigação prévia (falta de PERSI), verifica-se exceção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art. 18º, nº1, al. b) do referido diploma)[1]”.
Sustenta o Apelante que tal exceção, não tendo sido invocada na contestação ou na audiência final, não pode só agora ser levantada, uma vez que não teve oportunidade de responder.
Não é de dar razão à Apelante.
Quanto à oportunidade de dedução da defesa, vigora o princípio da concentração – todos os meios de defesa (impugnações ou exceções) que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação, sob pena de preclusão (artigo 573º, nº1, do CPC).
Contudo, a lei prevê exceções a tal princípio, de onde se destacam as exceções ou meios de defesa que sejam de conhecer oficiosamente (artigo 573º, nº2), sem prejuízo de os factos em que as exceções se baseiem só poderem ser introduzidos no processo pelas partes (salvo os casos excecionais em que é possível o seu conhecimento oficioso – artigo 5º, nº2, al.c), CPC), na fase dos articulados ou com os limites definidos para a alegação de facto em articulado superveniente.
Não podendo ser suscitadas em recurso questões novas – constituindo questões novas, novo pedido, nova causa de causa de pedir, ou nova exceção que não seja de conhecimento oficioso –, é possível fazer valer em recurso exceções de conhecimento oficioso não invocadas na instância recorrida, podendo o tribunal conhecê-las desde que existam no processo os elementos imprescindíveis para tal[2].
“É legítimo à parte confrontar o tribunal de recurso com questões de conhecimento oficioso, mesmo que estas não tenham sido anteriormente suscitadas, desde que que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado. Do mesmo modo, para decisão do recurso pode o tribunal apreciar tais questões ex officio, ainda que sobre as mesmas não havido anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou recorrido, embora deva acautelar o principio do contraditório, a fim de evitar decisões surpresa[3]”.
O incumprimento do regime legal da integração obrigatória do cliente bancário no PERSI traduz-se numa falta de condição objetiva de procedibilidade da ação a intentar contra o devedor, que é enquadrada no regime jurídico das exceções dilatórias atípicas ou inominadas[4].
Sendo a preterição de sujeição do devedor ao PERSI questão de conhecimento oficioso pelo tribunal, a invocação da exceção de tal preterição, não se encontra dependente da sua invocação no prazo concedido para a apresentação da defesa[5].
Tal exceção, sendo de conhecimento oficioso (artigo 578º do CPC), é passível de ser invocada pelo mutuário em qualquer momento processual, podendo ser invocada ex novo, em sede de alegações de recurso, e “enquanto a instância não se mostrar extinta ou enquanto não se formar caso julgado que já não o permita”[6].
Sendo indiscutido encontrarmo-nos no âmbito das relações entre um consumidor e uma instituição de crédito, sujeita ao regime do DL 272/2012, de 25/10 [cfr. artºs. 2º, nº. 1, a), 3º, a), c), e) e f)] – como alega a autora na petição inicial, o contrato de “refinanciamento sob a forma de mútuo”, destinou-se à “liquidação de responsabilidades emergentes de cartões de crédito ou de cartões de débito diferido no âmbito do DL nº 227/2112”, relativamente ao qual o réu terá entrado em incumprimento em 03-10-2015 –, a autora/Apelada encontrava-se impedida de proceder à cobrança do seu crédito enquanto não processe à integração do réu no PERSI e até à sua extinção nos termos do artigo 17º deste diploma.
A autora não podia propor a presente ação sem o cumprimento prévio dos procedimentos constantes dos arts. 13º a 17º, e sem que alegasse e provasse nos autos a comunicação ao réu da sua integração no PERSI e a extinção de tal procedimento.
Como vem sendo entendimento na jurisprudência[7], é sobre a instituição de crédito que, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 14º, nº4 e 17º, nº3, do citado diploma, com o artigo 342º, nº1 e 2, do Código Civil, que impende o ónus de alegar e provar o cumprimento do PERSI junto dos seus clientes bancários em cumprimento, designadamente a efetiva comunicação da sua integração no PERSI e, bem assim, da efetiva comunicação da extinção da mesma.
Na petição inicial, a autora é completamente omissa quanto ao cumprimento prévio de tais procedimentos, sendo que, quando confrontada com tal omissão, ainda que só em sede de recurso, limita-se a invocar a intempestividade de tal invocação, remetendo-se ao silêncio quanto à ocorrência ou não de tal procedimento prévio.
Como se afirma no Ac. do TRC de 10-10-2023[8], suscitada a existência de uma exceção dilatória do conhecimento oficioso, também o Tribunal da Relação está obrigado ao seu conhecimento, após ter sido assegurado o exercício do contraditório pelo cumprimento do disposto no art.º 3º, n.º 3, do C. P. Civil.
No caso concreto, tendo tal exceção sido invocada pelo réu em sede de alegações de recurso, à Apelada foi já dada oportunidade sobre ela se pronunciar nas contra-alegações de recurso, considerando-se cumprido o contraditório, imposto pelo artigo 3º, nº1, do CPC.
Não alegando a Apelada ter havido lugar a (nova) integração do réu no PERSI, como lhe competia, considera-se verificada a exceção inominada, impeditiva do conhecimento da ação, com a consequente absolvição do réu da instância (e não do pedido, como sustenta o Apelante)
A Apelação do autor é de julgar procedente.
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a Apelação, revogando a decisão recorrida e absolvendo-se o réu da instância pela verificação da exceção dilatória inominada de preterição da sujeição do réu ao PERSI (artigos 573º, 576º, ns. 1 e 2, e 578º do CPC).
A Autora suportará as custas da ação, sendo as custas da Apelação suportadas pela Autora/Apelada e pelo R., a meias e em partes iguais.
Coimbra, 25 de outubro de 2024
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] Acórdão do TRP de 08-06-2022, relatado por Eugénia Cunha, e em igual sentido, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 13-04-2021, relatado por Graça Amaral, de 02-03-2023, relatado por Fernando Batista, e de 09-12-2021, relatado por Ferreira Lopes, Acórdão do TRP de 08-06-2022, relatado por Manuel Domingos Fernandes, Acórdãos do TRL de 17-02-2022, relatado por António Santos, e de 14-07-2022, relatado por Carlos Castelo Branco, e Acórdão do TRC de 15-12-2021, relatado por Luís Cravo, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Almedina, p. 635.
[3]António Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 7ª ed, Almedina, pp. 140 – 142.
[4] Ac. do TRE de 28-06-2018, relatado por Marta Ribeiro, e Acórdão do TRC de 15-12-2021, relatado por Luís Cravo, disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Ac. do TRE de 28-06-2018, relatado por Marta Ribeiro, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do TRG de 21-01-2021, relatado por Lígia Venade, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Cfr., Acórdãos do TRL de 17-02-2022, relatado por António Santos, do TRC de 14-06-2022, relatado por Cristina Santos, disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Acórdão relatado por Sílvia Pires, disponível in www.dgsi.pt.