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DIVÓRCIO
PARTILHA
INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário
1. Num processo de partilha subsequente a divórcio, uma vez transitada a decisão que decidiu sobre as reclamações à relação de bens e determinou quais os bens a partilhar, não pode suspender-se a instância após conferência de interessados para se aguardar pelo desfecho de acção proposta por um ex-cônjuge contra o outro com vista ao reconhecimento de um direito sobre um imóvel. 2. Após conferência de interessados em que nenhum dos ex-cônjuges aceitou pagar as dívidas comuns nem requereu a insolvência e em que foi reconhecido um crédito sobre esse património comum de valor superior à soma dos activos, qualquer operação de partilha é inútil, pelo que deve ser declarada extinta a instância pela sua inutilidade superveniente. (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Apelação n.º 66/22.2T8ELV.E1
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Ricardo Miranda Peixoto
2.ª Adjunta: Sónia Moura
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO: I.A. AA, requerente no processo de inventário judicial que instaurou e tendo como interessado e cabeça-de-casal o seu ex-cônjuge BB, interpôs recurso da decisão judicial de 8/05/2024 (...) proferida pelo Juízo Local Cível ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que terminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 277.º, al. e), do C.P.C., declara-se extinta, por inutilidade superveniente da lide, a presente instância”.
I.B.
A requerente/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“1ª - A Recorrente e o Recorrido – cabeça de casal – tal como resulta dos próprios autos, divorciaram-se por mutuo consentimento, tendo em comum - património conjugal – os bens e o passivo objecto de relacionação, o qual foi feito constar do ACTIVO e PASSIVO, melhor descrito na sentença recorrida sob as verbas Nºs 1 a 7 – Activo – e 8 a 10 - Passivo – do despacho proferido nos autos em 20.01.2024;
2ª - A exclusão da relação de bens do Imóvel que foi a morada de casa de família, como resulta dos próprios autos, deu lugar à instauração, pela ora recorrente, de acção declarativa em vista da obtenção do reconhecimento dos seus direitos sobre o mesmo imóvel ou subsidiariamente ao reembolso à recorrente dos valores por esta despendidos (48.000,00 euros) com o pagamento do credito hipotecário que permitiu a construção do mesmo imóvel. (Acção Nº ...44/24.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ...).
3ª - Resulta à evidencia que o pagamento do passivo do casal vinha sendo realizado com absoluta pontualidade, tanto mais que o credito hipotecário, contraído para a construção do imóvel que foi a casa de morada de família dos aqui interessados, tinha assegurado o seu pagamento, pelo próprio valor do imóvel (Hipoteca), ao mesmo tempo que nele se manteve a residir o cabeça de casal que, por motivos óbvios, vem realizando pontualmente o pagamento das prestações mensais devidas pela sua amortização, tal como acordado na ATA da tentativa de conciliação que converteu o divorcio em mutuo consentimento (Veja-se ponto 1º do acordo ou se pode ler ”...comprometendo-se este a liquidar o credito á habitação associado”).
4ª – A Sentença recorrida, contrariamente ao que seria lógico, coerente e legal termina por pôr termo ao presente inventário na pressuposição completamente errada e sem fundamento de que o património conjugal é insolvente e, ao abrigo do Artº 277, alínea e) do C.P.C. e “declara extinta por inutilidade superveniente da lide, a presente instância”, violando clamorosamente o disposto no Artº 3º do CIRE.
5ª -A Recorrente ao instaurar acção Judicial Nº ...44/24.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ... pretendeu fazer valer direito que indiscutivelmente, se relaciona com a vida patrimonial do casal – Requerente e Requerido - pelo que a sua decisão final poderá ter e terá certamente repercussão na determinação do Activo e Passivo em partilha neste Inventario.
6ª– A Meritíssima Juiz recorrida, em presença da factualidade descrita, não lhe é licito, aceitável nem coerente que determine a extinção da instancia por inutilidade superveniente da lide (Artº 277 alínea e) do C.P.C.), entre outros aspectos, por violar o Artº 3º do CIRE e o disposto no Artº 1092 Nº 1 alíneas a) e b) do C. Proc. Civil.
7ª - A suspensão do Inventário, até à prolação de Sentença do Proc. Nº ...44/24.... – Juízo Local Cível ... – Juiz ... teria sido – será – a decisão mais acertada e faria correcta aplicação do disposto nos Artºs 272 nº 1 e 1092 nº 1 alíneas a) e b) do C. P. C., para oportuna apreciação neste inventario das suas repercussões no activo e passivo a partilhar;
8ª – A sentença recorrida, nos termos das anteriores conclusões, para além de violar os dispositivos legais já mencionados, faz incorrecta aplicação do direito, devendo, outrossim, ter observado o disposto no Artº 1092 Nº 1 alíneas a) e b) do C.P.C., pelo que a mesma deve ser revogada;
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas doutamente Suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a Sentença recorrida e substituindo-se esta por uma outra que determine, nos termos do Artº 272 Nº 1 “ex vi” 1092 Nº 1 alíneas a) e b) ambos do C. Proc. Civil a suspensão da instância do presente inventario, até à prolação da sentença no Proc. Nº ...44/24.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., com oportuna apreciação das suas repercussões no presente procedimento assim se permitindo que, a final, se faça JUSTIÇA”
I.C.
O requerido e nomeado cabeça-de-casal nãoapresentou resposta.
I.C.
O recurso foi devidamente recebido pelo Tribunal a quo.
Após os vistos, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO: II.A.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso, perante as conclusões apresentadas, apenas se impõe apreciar se deve suspender-se a instância até ser julgada acção de processo comum que a apelante instaurou contra o cabeça-de-casal e se deve ser revogada a decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
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II.B. Fundamentação de facto: II.B.1Factos provados:
Considera-se provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão:
1. Por requerimento de 25/01/2022 veio AA requerer inventário judicial para partilha dos bens comuns do casal que havia sido constituído entre ela e BB.
2. Esses interessados casaram, sem convenção antenupcial, a ../../1996.
3. O referido casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de ../../2019.
4. Por despacho judicial de 28/02/2022 (...) foi designado o requerido como cabeça-de-casal.
5. O cabeça-de-casal apresentou relação de bens, a requerente e ora apelante apresentou reclamação e, após ausência de acordo em audiência prévia, foi designada data para produção de prova, conforme acta de 10/05/2023.
6. Por decisão judicial de 9/10/2023 (...), transitada em julgado, após análise da prova produzida, foi decidido que:
“Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas supra, julga-se o presente incidente de reclamação contra a relação de bens parcialmente procedente, por parcialmente provado, e em consequência, determina-se:
a) a inclusão na relação dos bens comuns do extinto casal dos bens móveis descritos sob Verbas n.º 2 a n.º 8 pela interessada requerente/reclamante na relação apresentada com o requerimento inicial.
b) a inclusão na relação de bens, como passivo, da dívida resultante do contrato de mútuo (crédito para obras em habitação própria e permanente) celebrado em ../../2003 e descrita sob Verba n.º 9 pela interessada requerente/reclamante na relação apresentada com o requerimento inicial.
c) a exclusão da relação de bens, como passivo, do crédito do cabeça de casal sobre a interessada requerente/reclamante decorrente das prestações pagas após o divórcio para amortização do contrato de mútuo celebrado em ../../2003.”
7. Mais se decidiu que, após trânsito, o cabeça-de-casal deveria apresentar nova relação de bens.
8. Nessa sequência foi apresentada relação de bens corrigida onde foram relacionados os seguintes bens, dívidas e créditos:
ACTIVO
BENS MÓVEIS
Verba n.º 1: Veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-..-VI, com o valor de 5.000,00 € (cinco mil euros);
Verba n.º 2: Autocaravana de marca ..., com o valor de 600,00 € (seiscentos euros);
Verba n.º 3: Veículo motorizado de marca ... 600, com o valor de 1.200,00 € (mil e duzentos euros):
Verba n.º 4: Mobília de sala (composta por 2 sofás, 2 cadeirões, 1 móvel de televisão, 2 colunas, 1 televisão, 1 aparelhagem sonora e 1 salamandra), com o valor global de 500,00 € (quinhentos euros);
Verba n.º 5: Mobília de sala de jantar (composta por 1 mesa, 6 cadeiras, 1 móvel com loiças (conjunto de copos) e 1 aparador), com o valor de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros):
Verba n.º 6: Mobília de quarto das filhas (composta por 3 camas, 2 mesas de cabeceira e duas escrivaninhas), com o valor de 100,00 € (cem euros);
Verba n.º 7: Cozinha completa com frigorífico, forno, micro-ondas e mesa com cadeiras, com o valor de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros).
PASSIVO
Verba n.º 8: Dívida da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges contraída em ../../2003 junto do Banco 1..., S.A. (crédito para obras em habitação própria e permanente), computada, em ../../2023, no montante de 31.621,97 € (trinta e um mil seiscentos e vinte e um euros e noventa e sete cêntimos).
Verba n.º 9: Dívida da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges contraída em ../../2019 junto do Banco 1..., S.A. (crédito pessoal), computada, em ../../2023, no montante 1.636,07 € (mil seiscentos e trinta e seis euros e sete cêntimos).
Verba n.º 10: Crédito do cabeça de casal sobre a interessada requerente/reclamante correspondente às prestações pagas para amortização da dívida relacionada sob a Verba n.º 9 desde a data do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio (../../2020), à razão de 58,66 € (cinquenta e oito euros e sessenta e seis cêntimos) por cada prestação paga.
9. Por despacho proferido em 20/01/2024 (...), foi verificado o passivo nos seguintes termos:
“consideram-se reconhecidas as dívidas relacionadas pelo cabeça de casal na relação de bens corrigida apresentada em 20-11-2023 e junta sob Ref.ª Citius ...83, de que é credor o Banco 1..., S.A., no montante de 31.621,97 € (trinta e um mil seiscentos e vinte e um euros e noventa e sete cêntimos) e de 1.636,07 € (mil seiscentos e trinta e seis euros e sete cêntimos), oportunamente reclamadas pelo credor através de requerimento apresentado em juízo em ../../2023 (cf. Ref.ª Citius ...29), bem como o crédito do cabeça de casal sobre a interessada requerente, no montante de 2.639,70 € (dois mil seiscentos e trinta e nove euros e setenta cêntimos).”
10. Nesse despacho foi, ainda, dada forma à partilha e designada data para a realização da conferência de interessados.
11. Realizada a conferência de interessados em 15/04/2024 foram os interessados instados a deliberar quanto à forma de pagamento do passivo, tendo ambos declarado que não reúnem condições para efectuar o respectivo pagamento das dívidas comuns e a interessada AA declarado, de igual modo, também não ter condições de pagar a divida relacionada como crédito do cabeça de casal.
12. Seguidamente, advertidos para a eventual necessidade de se apresentarem à insolvência, por ambos os interessados foi declarado que não pretendem fazê-lo, tendo a interessada AA informado que instaurou acção contra o cabeça de casal para reconhecimento da aquisição originária (por acessão industrial imobiliária) de ½ do imóvel que constituiu casa de morada de família (considerado bem próprio do cabeça de casal na decisão de 09-10-2023) e, subsidiariamente, para condenação do cabeça de casal no pagamento de uma compensação no montante de 48.310,98 € (quarenta e oito mil trezentos e dez euros e noventa e oito cêntimos).
13. Foram os interessados notificados, perante a insuficiência do activo relacionado para cobrir o passivo verificado, a falta de deliberação (acordo) quanto à forma do seu pagamento e a posição assumida pelos interessados quanto à sua eventual apresentação à insolvência, para, querendo, se pronunciarem quanto à extinção da presente instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide.
14. Apenas a interessada requerente se pronunciou por requerimento de 24/04/2024.
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II.C. Fundamentação jurídica: a) Importa saber se deve ser decretada a suspensão da instância, por estar pendente acção que a ora requerente/apelante instaurou contra o requerido/cabeça-de-casal.
Esta pretensão da requerente/apelante, porém, desconsidera totalmente a decisão já proferida nos autos e transitada em julgado.
Uma decisão faz caso julgado quando se torna imodificável. Tal imodificabilidade da decisão constitui o fulcro do caso julgado e ocorre quando os tribunais já não podem alterar o decidido.
A conversão da decisão em caso julgado ocorre com o trânsito em julgado: a decisão transita ou passa em julgado quando deixa de ser susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, conforme artigo 628.º do Código de Processo Civil.
Tanto podem transitar em julgado as decisões relativas a questões de carácter processual, como as decisões referentes à relação material em litígio. No primeiro caso, forma-se o caso julgado formal; no segundo, o caso julgado material.
A decisão de 9/10/2023 decidiu sobre as reclamações à relação de bens e determinou quais os bens a partilhar ou, por outras palavras, qual o património comum do ex-casal. Como tal, poderia ter sido alvo de apelação autónoma, conforme resulta do artigo 1123.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
Como nenhuma das partes recorreu, tal decisão transitou em julgado. Tornou-se definitiva (ou melhor, obrigatória) nos autos, conforme resulta do disposto no artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Não pode, por isso, nem o Tribunal a quo nem este Tribunal de recurso, voltar a apreciar a questão de um bem ser, afinal, parte do património comum.
De resto, como ensina Carlos Lopes do Rego[1], o novo modelo procedimental do inventário parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão.
Na fase de saneamento o juiz, após realização das diligências necessárias e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar.
Esta estruturação sequencial e compartimentada do processo envolve a imposição às partes de cominações e preclusões, levando naturalmente – em reforço de um princípio de auto responsabilidade das partes na gestão do processo – a que as objecções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição.
A antecipação do momento adequado para as partes suscitarem determinada questão ou para o juiz dirimir certas matérias litigiosas sobre temas que condicionam a partilha implica que no momento da realização da conferência de interessados se concentrem as diligências típicas de concretização da partilha, por acordo ou sem ele, sem que surjam assuntos prévios ou colaterais a tal finalidade, ainda não resolvidos, a entravar o andamento dessa conferência.
Com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação intempestiva de questões ponha em causa o regular e célere andamento do processo.
Estando definido, neste processo concreto e na fase processual adequada, qual o património a partilhar, a fase de partilha já não pode parar com o pretexto de uma das partes pretender definir, noutro processo, outros bens a partilhar.
Existe, sobretudo, uma outra forte razão impeditiva da suspensão preconizada pela requerente/apelante: é que nessa outra acção que intentou a ora requerente/apelante não pretende a definição de um património comum, mas de um regime de compropriedade sobre um concreto bem imóvel. E o processo de partilha não serve para dividir um bem em compropriedade (neste sentido ver Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[2]e, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/10/2019, processo n.º 1517/13.2TJLSB.L1.S2[3]). Além de que o pedido subsidiário nessa outra acção (invocado crédito de um cônjuge sobre o outro) também não serviria para aumentar o activo do património comum a partilhar.
De todo o modo, estando definitivamente assente, pelo trânsito em julgado, qual o património comum do ex-casal que poderia ser partilhado, não existe qualquer fundamento para se suspender a instância, pelo que improcede a apelação nesta parte.
b) Importa verificar se, perante os factos acima elencados, deve proceder a intenção da requerente/apelante de ver revogada a decisão que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
A solução dada à problemática da questão da inutilidade do inventário na sequência de divórcio quando o passivo é superior ao activo não é uniforme na jurisprudência.
De um lado encontra-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2010 (processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7[4]) que, com voto de vencido, decidiu que “A responsabilidade dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio, de modo que não existindo bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente ao divórcio. O divórcio pode ainda despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges cujos bens próprios tenham respondido por dívidas da responsabilidade de ambos. Apesar da inexistência de bens comuns, o facto de existirem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges basta para que se requeira a abertura de processo de inventário que possibilita a liquidação global das relações patrimoniais estabelecidas entre os cônjuges”.
E, também, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/10/2017, (processo n.º 1589/09.4TMLSB-A.L1-1[5]) que decidiu que “O inventário requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1326º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil destina-se, não apenas a partilhar bens, mas a pôr termo à comunhão conjugal, a qual é muito mais abrangente do que mera comunhão de bens. Assim, a circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar”.
O que estava em causa nesses dois processos onde foram proferidos tais Acórdãos era uma inutilidade decretada antes de ser convocada uma conferência de interessados e foi sobre isso que se debruçaram.
No caso dos autos agora em apreço, no entanto e conforme se extrai do elenco dos factos a considerar, já foi verificado o passivo e convocada a conferência de interessados. Restaria fazer a partilha dos bens.
Ora, é precisamente nesse ponto que se manifesta (tal como decidido pelo Tribunal a quo), a inutilidade de prosseguimento dos autos.
Como ensina Cristina Araújo Dias[6]: “o património comum paga em primeiro lugar as dívidas comuns e só depois as dívidas próprias; os patrimónios próprios pagam indistintamente todas as dívidas (próprias e comuns) se os bens comuns não chegarem para pagar as dívidas comuns. Uma vez pagas as dívidas e as compensações, procede-se à partilha propriamente dita. Só se partilha o ativo líquido, isto é, os bens comuns existentes depois de realizadas as operações de liquidação” (sublinhado nosso).
Por ser assim, se o património comum tem de pagar as dívidas comuns, tendo sido reconhecido um crédito sobre esse património comum no valor de 31.621,97€ (crédito esse que nenhum dos ex-cônjuges se dispôs a pagar) e sendo o activo de apenas 7.900,00€, qualquer operação de partilha é inútil (por não restarem, naturalmente, bens a partilhar). Não há património líquido. Por outras palavras, o património comum nem chega para pagar as dívidas comuns, pelo que uma vez estas pagas (ainda que parcialmente) não resta nada para partilhar.
Neste sentido pode consultar-se, de resto, a seguinte jurisprudência:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/11/2005 (processo n.º 9851/2005-6[7]) com o seguinte sumário: “não sendo requerida por algum credor ou deliberada por unanimidade pelos interessados, não pode declarar-se oficiosamente a insolvência da herança e passar-se à fase do processo da falência, devendo antes o processo de inventário terminar por inutilidade superveniente da respectiva lide”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/07/2009 (processo n.º 111-C/1992.P[8]), com o seguinte sumário: “III – Se o valor do passivo aprovado e reconhecido exceder o do activo e nenhum credor requerer a insolvência do património comum do casal, nem os interessados deliberarem nesse sentido, o processo de inventário termina por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º, al. e), do CPC, já que, se os bens que integram o acervo hereditário vão ser absorvidos pelo pagamento do passivo, não há quaisquer bens a partilhar entre os herdeiros, cessando, por isso, a razão de ser do processo de inventário”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/07/2011 (processo n.º 9172/08.5TMSNT-A.L1-2[9]) com o seguinte sumário: “Em inventário na sequência de divórcio inexistindo quaisquer bens comuns, sendo relacionada tão só uma dívida de terceiro da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se justifica o prosseguimento do inventário”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07/12/2012 (processo n.º 637/06.4TMSTB-B.E1[10]), com o seguinte sumário: “Não existindo qualquer activo a partilhar, a simples persistência de parte de uma dívida relacionada, sem que nenhum credor tenha requerido a insolvência nem os interessados tenham deliberado nesse sentido, não constitui justificação para a continuação do inventário, dado que as dívidas que neste tipo de inventário podem ser relacionadas são apenas aquelas da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois que só por estas respondem os bens comuns nos termos do direito substantivo (art. 1695º, nº 1 do CC), pelo que nada mais há a decidir no processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/01/2017 (processo n.º 724/06.9TBFLG-C.P1[11]), com o seguinte sumário: “Verificada a situação de insolvência do património comum dos cônjuges, se não for requerida a conversão do inventário em insolvência, a instância do inventário para separação de meações requerido pelo cônjuge não executado deve ser declarada extinta por inutilidade superveniente da lide”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/02/2017 (processo n.º 180/12.2TBFLG.P1[12]), com o seguinte sumário: “Ocorrendo uma cumulação de inventários e tendo os interessados, em conferência, aprovado um passivo de dimensão muito superior ao activo mas que releva apenas na partilha dependente, deve concluir-se a partilha no inventário inicial, ocorrendo inutilidade superveniente da lide apenas quanto à partilha no inventário sucessivamente cumulado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/05/2019 (processo n.º 470/14.0T8LMG.C1[13]), com o seguinte sumário “Num processo de inventário para separação de meações, apurando-se na conferência de interessados que o passivo é muito superior ao activo, o que inviabiliza a partilha, e não tendo, por via disso, sido requerida a insolvência, impõe-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide”.
Se o activo é inferior ao passivo, ou seja, o valor das verbas que compõem o activo é inferior ao valor das dívidas, reafirma-se que não há nada para partilhar.
Aos interessados não cabe nenhum bem concreto nem nenhuma quota parte dos bens, porque os mesmos são insuficientes para satisfação das dívidas – que nenhum deles assumiu pagar – o que equivale a que não estejam reunidos os pressupostos para que seja elaborado o mapa da partilha e, consequentemente, da própria partilha, pelo que se impõe a extinção da instância dos autos de inventário, por inutilidade superveniente da lide.
Seguindo essa orientação, só pode dizer-se, como se disse na decisão recorrida, que “considerando que o processo especial de inventário em causa visa a partilha do património comum do extinto casal e perante a inviabilidade da partilha [face à evidente desproporção entre o passivo verificado e reconhecido (33.259,04 €) e o activo que compõe o património comum (7.900,00 €)], a falta de deliberação (unânime) dos interessados quanto à forma de pagamento do passivo, bem como quanto à sua apresentação à insolvência (tendo ambos manifestado, em sede de conferência de interessados e de forma expressa, que não pretendem fazê-lo), é indiscutível que a prossecução dos presentes autos redundaria numa inutilidade, por não se mostrar sequer possível elaborar um mapa da partilha, nos termos do artigo 1120.º, n.º 3, do C.P.C..”.
Assim, também nesta parte deve improceder a apelação.
Custas:
Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida no recurso.
No caso, a parte vencida é apelante que, por isso, deve ser condenada nas custas do recurso (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário).
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III. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Condena-se a requerente/apelante nas custas do recurso, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
Évora, 10 de Outubro de 2024
Filipe Aveiro Marques
Ricardo Miranda Peixoto
Sónia Moura