Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do DL. 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o art.º 28.º do DL 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.
1. Por apenso à acção execução sumária para pagamento de quantia certa, intentada por LC Asset 1 S.A.R.L., os executados AA e BB deduziram embargos de executado, pedindo que os mesmos sejam julgados procedentes por provados, com as legais consequências.
Alegaram, em síntese, que:
- os pagamentos referentes aos créditos dos contratos de mútuo e respectivos contratos de seguro eram efectuados através da conta nº .... .... .... .... .20, de que eram titulares os embargantes, e que a conta, domiciliada no Banco Popular, passou para o Banco Santander Totta, S.A.;
- não é verdade que tenham interrompido o pagamento das prestações de ambos os empréstimos, em 16 de Novembro de 2018 e 16 de Janeiro de 2019, respectivamente, remetendo para o extracto bancário que juntaram;
- o Banco Santander descontou as prestações de crédito até, pelo menos, 8 de Março de 2019 (prestação nº 131) e o pagamento do seguro foi liquidado em 23 de Agosto de 2019;
- com a mudança das agências do Santander Totta, e porque era necessário efectuarem a reestruturação dos créditos assumidos, em virtude de terem um filho autista que os obrigou a um enorme dispêndio económico, iniciaram este processo para entrega dos documentos necessários para o efeito, na agência de ..., ..., não tendo tido qualquer resposta;
- algum tempo depois, após o embargante se ter deslocado à agência da ... do Banco Santander Totta, S.A., para verificar o que se passava com os créditos assumidos, constatou que deixaram de cobrar as prestações vincendas, existindo, no entanto, “capital na conta domiciliada para procederem ao seu desconto”, desconhecendo os embargantes a razão pela qual o Banco Santander Totta, S.A., deixou de fazer essa cobrança;
- com vista à reestruturação dos créditos assumidos, deram início ao processo “para entrega dos documentos necessários para o efeito”, não tendo obtido qualquer resposta da instituição bancária.
Concluíram no sentido da existência de mora do credor.
2. Recebidos os embargos de executado, por despacho de 18/1/2023, foi determinada a notificação da exequente para, querendo, contestar.
3. Notificada, a exequente contestou, respondendo às excepções e concluindo pela improcedência dos embargos de executado.
Alegou, em síntese, que:
- aceita a confissão dos executados quanto à celebração dos contratos accionados nos autos e ao conhecimento da transmissão do crédito do Banco Popular Portugal, Lda., para o Banco Santander Totta, S.A.;
- o incumprimento do contrato que corresponde à escritura identificada como documento nº 2 (empréstimo no valor de € 103.927,14 – cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos) ocorreu no dia 16 de Novembro de 2018 e o incumprimento do contrato que corresponde à escritura identificada como documento nº 3 (empréstimo no valor de € 84.072,86 – oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), ocorreu no dia 16 de Janeiro de 2019;
- dos extractos bancários juntos pelos embargantes não resulta qualquer prova de pagamento ou data de incumprimento;
- os embargantes invocam o pagamento da prestação nº 131, em 8 de Março de 2019, e que esse facto resulta do extracto bancário, mas não indicam relativamente a que contrato é que tal prestação foi paga;
- do extracto bancário junto apenas resulta que foram pagas, pelo executado, pequenas quantias (Eur. 14,42; Eur. 1,65, Eur. 0,07; Eur. 11,31; Eur. 113,87) que, na sua globalidade, não correspondem ao pagamento de uma singela prestação de qualquer um dos contratos accionados;
- os executados, após o incumprimento dos contratos manifestaram a intenção de reestruturação dos créditos assumidos junto do Banco cedente, mas não apresentaram qualquer proposta junto do mesmo, invocando sempre dificuldade de obtenção de novo financiamento, para amortização das prestações vencidas;
- das condições contratuais previstas nos contratos accionados, resulta que em caso de incumprimento definitivo, pelo devedor, são os contratos considerados resolvidos, sendo exigível a totalidade da dívida, pelo que é inócuo que, posteriormente a estas datas o devedor tenha ou não saldo na sua conta bancária, uma vez que o plano prestacional acordado já não se encontra em vigor;
- se os embargantes entendiam que não existia qualquer incumprimento, e que as prestações não estavam a ser cobradas, como homem médio e diligente, aquando das suas várias deslocações aos Balcões do Banco cedente, conforme confessa na sua petição inicial, o executado deveria ter solicitado, por escrito, referências multibanco para efectuar o pagamento das suas prestações, o que não ocorreu;
- o executado sabia e bem sabe que incumpriu os contratos e a prova disso é a confissão, na sua petição, que tentou efectuar a restruturação do empréstimo, a qual não chegou a ocorrer.
Concluiu que a alegação de mora do credor é manifestamente inócua uma vez que para se verificar, teria que ter existido, por parte do Banco cedente, a recusa em receber a prestação ou ausência de colaboração, por motivo injustificado, o que não ocorreu no presente caso.
4. Por despacho de 30/3/2023, foi designada audiência prévia destinada a tentativa de conciliação, nos termos do disposto nos artigos 591º, nº 1, a), e 594º, nº 1, do Código de Processo Civil.
5. Realizada a audiência prévia, em 18 de Maio de 2023, não se mostrou possível a conciliação, mantendo as partes a posição vertida nos articulados.
Nessa diligência foi proferido o seguinte despacho:
“Determino que as partes no prazo de 10 dias, se pronunciem sobre a eventualidade de o Tribunal proferir decisão judicial quanto à subsequente tramitação dos autos, sejam no sentido de decisão de mérito imediata seja no sentido de prosseguimento para julgamento, por inexistência de factos controvertidos relevantes”.
6. A exequente/embargada apresentou requerimento, manifestando que não se opõe ao prosseguimento do presente processo para decisão de mérito ou para a realização de audiência final de julgamento.
7. Os embargantes apresentaram requerimento, pugnando pela procedência das excepções invocadas, informando que, caso assim não se entenda, não se opõem ao prosseguimento do presente processo para decisão de mérito ou para realização de audiência final de julgamento.
8. Em 12/6/2023, foi proferida a seguinte decisão:
“Dado o estado dos autos, havendo o processo de findar no despacho saneador por ser possível conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas, dispensa-se a audiência prévia, nos termos do disposto nos arts. 593º, nºs 1 e 2, a) e 595º, nº 1, b), do Código de Processo Civil, pelo que se passa a elaborar o despacho saneador”.
9. Feito o saneamento dos autos e julgada improcedente a excepção de ilegitimidade da exequente, foi proferida decisão, apreciando o mérito dos autos, constando da parte decisória:
“Julgo os presentes embargos de executado improcedentes e em consequência, absolvo a exequente do pedido contra si formulado.
Custas pelos executados embargantes, nos termos do disposto no art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Fixo à causa o valor de € 194.313,66 (cento e noventa e quatro mil e trezentos e treze euros e sessenta e seis cêntimos), nos termos do disposto nos arts. 297º, nº 1 e 306º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique”.
10. Não se conformando com a decisão, dela apelaram os embargantes/executados AA e BB, onde invocaram, entre outras questões, a nulidade das cessões de créditos a favor da LC ASSET 1 S.A.R.L., alegando que os créditos em causa são insuscetíveis de serem cedidos a terceiros que não sejam instituições de crédito, tendo sido violado o art.º 6.º do decreto-lei 349/98, em conjugação com os artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 240.º, do Código Civil.
11. Notificada, a Exequente/Embargada apresentou resposta, concluindo que “bem andou o Tribunal a quo”, pois que, decidindo, como decidiu, interpretou corretamente os factos e aplicou de forma adequada o Direito, não violando quaisquer normas jurídicas, designadamente, as invocadas pela Apelante, no que respeita aos fundamentos do presente recurso”.
12. O recurso foi admitido por despacho datado de 23/10/2023, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
13. Por despacho de 14/12/2023, foi comunicado às partes a intenção de, pelo tribunal da Relação, ser apreciada a questão da observância/inobservância da regra plasmada no artigo 18º, nº1, al. c), do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro.
14. Pronunciando-se sobre a questão, o Recorrente/Embargante alegou não ter sido integrado no PERSI, pelo Banco Popular, instituição bancária que cedeu o crédito a uma entidade que não podia promover esse procedimento. Não tendo sido observado o disposto no artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei 227/2012, de 25/10, o empréstimo não podia ser resolvido e, consequentemente, não era possível a instauração da presente execução.
Concluiu, pedindo a extinção da execução, com fundamento no incumprimento do disposto no artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei 227/2012, de 25/10.
15. A Recorrida LC ASSET 1, S.A.R.L. invocou a integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, em data anterior à cedência do crédito, alegando que:
_ os Recorrentes constituíram-se em mora nos contratos em causa nos autos, no ano de 2017, e, nessa sequência, foram integrados em PERSI, em 5 de Julho de 2017, juntando dois documentos para demonstrar o por si alegado;
_ em 23 de Novembro de 2017, o PERSI foi extinto com fundamento na alínea d) do n.º 2 do artigo 17.º do Decreto -Lei n.º 227/2012, de 25/10, tendo juntado dois documentos para demonstrar o por si alegado;
_ o incumprimento definitivo dos contratos em causa ocorreu em 16/11/2018 e 16/01/2019 e só em 24 de Junho de 2019, foi efectuada a cessão de créditos dos contratos executados pelo Banco Santander Totta, S.A. à cessionária, ora Exequente.
Concluiu, assim, que o Banco cedente não estava impedido de efectuar a cessão em causa, nos termos do 18.º n.º1, alínea c), do Decreto-Lei n.º227/2012, de 25/10.
16. Veio a ser proferido acórdão que culmina com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos acima expostos, julga-se o presente recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, sem prejuízo do aditamento, à decisão da matéria de facto, dos pontos j), l), m), n), o) e p), nos termos enunciados.
Custas da apelação pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que os mesmos beneficiam (artigo 527.º, nº 1, do Código de Processo Civil e artigo 18º, nº4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, com a alteração introduzida pela Lei nº47/2007.”
17. Desse acórdão os embargantes interpuseram recurso de revista, no qual formulam as seguintes (transcritas) conclusões:
O Douto Acórdão recorrido, confirmou a sentença proferida nos autos de embargos de executado, proferida pelo tribunal de primeira instância e, em consequência, absolveu a exequente/recorrida do pedido contra si formulado.
O recorrente , no âmbito do presente recurso, circunscreve- se à decisão do Tribunal da Relação do Porto apenas quanto à matéria alegada no recurso sobre a violação do art.º 37.º do Decreto-lei 74-A/207, de 23 de Junho, do art.º 6.º do DL 349/98, de 11 de Novembro, e 577.º, n.º 1 e art.º 281.º do Código Civil, e do art.º 577.º n.º 1 do Código Civil, contrariamente ao já decidido no Tribunal da Relação do Porto, no douto Acórdão proferido no processo n.º 7748/17.9T8PRT-B.P1, acerca da inadmissibilidade da cessão de créditos, de um crédito à habitação, apenas possível entre instituições de crédito, à exequente.
O Tribunal da Relação na pronúncia sobre as questões formuladas pelos recorrentes, indeferiu a arguição das invocadas nulidades sobre: 1) a nulidade da cessão dos créditos, nos termos do artigo 18º, nº1, al. c), do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, bem como, 2) da nulidade da cessão do crédito: decorrente do empréstimo, contraído junto do Banco Popular, por escritura de 16/09/2008, no valor de €84.702,86, destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários, por violação do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro, e no artigo 577º, nº1, do Código Civil;
b. decorrente do empréstimo, contraído junto do Banco Popular, por escritura de 16/09/2008, no valor de €103.927,14 “para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário” para o imóvel adquirido: por violação do disposto no artigo 6º do DecretoLei nº 349/98, de 11 de Novembro, e nos artigos 577º, nº1, e 281º do Código Civil
O entendimento perfilhado pelo venerando tribunal foi de que “O direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito. Nessa perspectiva, não existe qualquer impedimento à admissibilidade da cessão de créditos resultante da circunstância de a Exequente não ser uma instituição de crédito. Esta solução impor-se-ia, igualmente, relativamente ao empréstimo no montante de €103.927,14, caso estivesse em causa um contrato de crédito à habitação.”.
Posição contra a qual os recorrentes se insurgem, e remetem a reapreciação ao Colendo Tribunal,
Porquanto,
As escrituras que constituem a causa de pedir na execução são nulas, porquanto:
Pela escritura de 16.09.2008, o Banco Popular, concedeu um empréstimo aos embargantes, no valor de e 84.702,86€ destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários;
Na data da concessão deste empréstimo, estava em vigor o decreto-lei 349/98, que veio revogar o decreto-lei 328- D/86, que regulava a concessão de crédito à habitação;
O decreto-lei 349/98, regula a concessão de crédito à aquisição de habitação própria e permanente (art.º 1.º, alínea a));
Este crédito apenas podia ser concedido por instituições de crédito (art.º 6.º do citado diploma);
Sendo que somente se admitia a transferência deste crédito entre Bancos, como é o caso em apreço;
Daí que na citada escritura não se preveja a cessão de créditos a favor de terceiros que não sejam Bancos, como é o caso da LC ASSET 1 S.A.R.L., ora recorrida;
Quer isto dizer que o crédito à habitação, tinha e tem um regime jurídico próprio onde avultam os decretos-leis 328- B/86, 349/98 e 74-A/2017, somente podendo ser concedido por Bancos e está sujeito à supervisão do Banco de Portugal;
Daqui decorre que a cessão de créditos a favor da LC ASSET 1 S.A.R.L. é nula, nulidade que é do conhecimento oficioso e pode ser suscitada em qualquer altura, como seja no presente recurso;
Pela escritura de 16.09.2008, ou seja, no mesmo dia, o Banco Popular concedeu um empréstimo de € 103.927,14 alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário para o mesmo imóvel;
Este crédito é um crédito complementar do crédito à habitação e não um crédito ao consumo, revestindo a mesma natureza, razão pela qual foi concedido na mesma data e pelo mesmo prazo, 384 meses;
Daqui decorre que este crédito:
É qualificável como crédito à habitação e por isso se lhe aplica o regime jurídico deste crédito;
Ou caso não fosse assim, esta escritura seria nula por desvio do fim, ou até por simulação, dado que ela visou substancialmente complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam;
Seja por uma via, seja pela outra, a segunda escritura enferma da nulidade assacada à primeira escritura;
Daqui decorre que os mencionados créditos são insuscetíveis de serem cedidos a terceiros que não sejam instituições de crédito;
Daí que se invoque a nulidade das escrituras que constituem a causa de pedir na execução, a qual foi alvo dos embargos de executado, por violação do art.º 6.º do decreto-lei 349/98, em conjugação com os artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 240.º, do Código Civil;
São nulas as escrituras suprarreferidas, nomeadamente a efetuada entre o primitivo credor, Banco Santander Totta, S.A. (que incorporou por fusão o Banco Popular Portugal, S.A.) e a LC ASSET 1 S.A.R.L., já que esta recorrida não é uma instituição de crédito, pelo que, consubstancia fraude à lei, nos termos do art.º 37.º, n.º 1 do Decreto- Lei n.º 74-A/2017.”
18. Nas contra-alegações o exequente defende assim: “Em conclusão: bem andou o Tribunal “a quo”, pois que, decidindo, como decidiu, interpretou corretamente os factos e aplicou de forma adequada o Direito, não violando quaisquer normas jurídicas, designadamente, as invocadas pelos Apelantes, no que respeita aos fundamentos do presente recurso.”
19. O recurso foi recebido no Tribunal recorrido com a prolação do seguinte despacho:
“I_ Requerimento apresentado em 3/7/2024:
Por a decisão ser recorrível, os recorrentes disporem de legitimidade e ser tempestivo o
requerimento, admite-se o recurso interposto pelos Executados/Embargantes, através do requerimento apresentado em 3/7/2024 (arts. 627º, 629º, n.º 1, 631º, 637º e 638º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).
O recurso é de revista (normal), com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, para o Supremo Tribunal de Justiça (arts. 671º, n.º 1, 674º, 675º, n.º 1, 676º, n.º 1, por interpretação “a contrario” todos do CPC.
Notifique e, observando-se as formalidades legais, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir
II. Fundamentação
De facto
20. Das instâncias vieram apurados os seguintes factos provados:
a. O Banco Santander Totta, S.A., incorporou por fusão o Banco Popular Portugal, S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, estando a mesma registada pela apresentação nº 24, datada de 27 de Dezembro de 2017.
b. Por escritura pública de cessão de créditos e documento complementar designado por “Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos”, outorgado em 24 de Junho de 2019, o Banco Santander Totta, S.A., cedeu à exequente os créditos decorrentes dos contratos dados à execução, bem como todas as garantias a ele inerentes.
c. O Banco Popular Portugal, S.A., e os executados embargantes outorgaram no dia 16 de Setembro de 2008 a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual o Banco Popular Portugal, S.A., concedeu aos executados embargantes um empréstimo no valor de € 103.927,14 (cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, declararam constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..09/......14, da freguesia de ....
d. O Banco Popular Portugal, S.A., e os executados embargantes outorgaram no dia 16 de Setembro de 2008 a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual o Banco Popular Portugal, S.A., concedeu aos executados embargantes um empréstimo no valor de € 84.072,86 (oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, declararam constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..09/......14, da freguesia de ....
e. Da cláusula 11ª b) do documento complementar referente à escritura do empréstimo no valor de € 103.927,14 – cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), e da cláusula 10ª b) do documento complementar referente à escritura do empréstimo no valor de € 84.072,86 – oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), consta que a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento de todas.
f. Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..09/......14, da freguesia de ..., incidem registos de hipoteca voluntária, a favor do Banco Popular Portugal, S.A., pelas apresentações nºs 16 e 17, datadas de 12 de Setembro de 2008, para garantia de empréstimos, juros, cláusula penal e despesas, a primeira até ao montante máximo de € 125.268,00 (cento e vinte e cinco mil e duzentos e sessenta e oito euros) e a segunda até ao montante máximo de € 149.212,00 (cento e quarenta e nove mil e duzentos e doze euros), entretanto elevada em mais € 2.521,63 (dois mil e quinhentos e vinte e um euros e sessenta e três cêntimos) pela apresentação nº 39, datada de 23 de Setembro de 2008.
g. Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..09/......14, da freguesia de ..., incidem registos de transmissão do crédito por fusão, a favor do Banco Santander Totta, S.A., das hipotecas constantes das apresentações nºs 16 e 17, datadas de 12 de Setembro de 2008, pelos averbamentos constantes das apresentações nºs ..73, ..74 e ..75, datados de 23 de Novembro de 2018 (cfr. cópia digitalizada de certidão permanente que se encontra a fls. 55 e segs., dos autos principais).
h. Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..09/......14, da freguesia de ..., incidem registos de transmissão do crédito por cessão, a favor da ora exequente, pelos averbamentos constantes das apresentações nºs ..27, ..28 e ..29, datados de 17 de Outubro de 2019.
i. Os embargantes manifestaram a intenção de reestruturação dos créditos assumidos junto do Banco Santander Totta, S.A., mas a mesma não foi concretizada”.
j. Pelo Banco Popular foi enviada, ao embargante, uma carta, datada de 5 de Julho de 2017, de cujo teor consta:
“Em consequência do incumprimento verificado desde 2017-05-16, das responsabilidades emergentes do contrato de crédito nº ..46–..03–.46–.......43, cujo saldo devedor ascende, nesta data, a €539,71, nos termos e para os efeitos do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, serve a presente para notificar que se encontra integrado no Procedimento Extrajudicial de Regularização em Situações de Incumprimento (PERSI), identificado em assunto, com efeitos a partir da data aposta na presente comunicação.
Na sequência do procedimento emergente do PERSI nº PERSI/......94/.......65/2017, em que V. Exa. se encontra integrado, verifica-se nos termos e ao abrigo do nº 1 do Artigo 15º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, a necessidade de apreciar os seguintes elementos:
a) Última certidão de liquidação do Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares disponível relativa ao agregado familiar;
b) Cópia dos documentos comprovativos dos rendimentos auferidos pelos membros do agregado familiar, nomeadamente a título de salário, remuneração pela prestação de serviços, pensões e outras prestações sociais;
c) Documento comprovativo do domicílio fiscal dos membros do agregado familiar;
d) Declaração escrita do cliente bancário, atestando a veracidade, completude e atualidade das informações prestadas.
Face ao exposto, fica V. Exª. notificado(a) para remeter / entregar na nossa agência sita (…) os elementos acima identificados, no prazo de 10 dias, contados da recepção da presente comunicação, a fim de viabilizar a apreciação da sua capacidade financeira para regularizar os incumprimentos acima identificados, bem como para fazer face às responsabilidades emergentes do crédito. …”. [documento nº1 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]
k. Pelo Banco Popular foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 5 de Setembro de 2017 e de cujo teor consta:
“Como é do seu conhecimento, V. Exª. encontra-se integrado no PERSI nº PERSI/......94/.......65/2017, com fundamento no incumprimento verificado no contrato de crédito nº ..46–..03–.46–.......43.
Tendo-se verificado que V. Exª. entrou também em incumprimento relativamente ao(s) crédito(s) de crédito; nº ..46–..03–.47–...........46-...-.......25, ficar(á)(ão) este(s), igualmente, abrangido(s) pelo PERSI melhor identificado no parágrafo anterior, tendo em vista o estudo da viabilidade de obtenção de solução que lhe permita regularizar os incumprimentos através de um único procedimento, nos termos do nº 3 do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro…”.[documento nº2 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]
l. Pelo Banco Popular foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 23 de Novembro de 2017 e de cujo teor consta:
“Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº : PERSI/......13/.......65/2017
…
Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.
Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco Popular Portugal, S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira”. [documento nº3 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]
m. Pelo Banco Popular foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 23 de Novembro de 2017, e de cujo teor consta:
“Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº : PERSI/......13/.......65/2017
…
Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.
Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco Popular Portugal, S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira.” [documento nº4 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]
n) No dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs .21 a .29 referentes ao empréstimo no montante de €84.072,86, vencidas entre Março e Novembro de 2018. No dia 8/3/2019, foi debitada a quantia referente à prestação nº130, vencida em 16/12/2018.
o) No dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs .27 e .28, vencidas em 16/9/2018 e 16/10/2019, referentes ao empréstimo no montante de €103.927,14, bem como da prestação nº.29, vencida em 16/11/2018.
De Direito
21. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
Assim, o objecto do recurso consiste em saber se é nula a cessão dos créditos reclamados na execução, por violação do disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei nº349/98, de 11 de Novembro, e dos artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 294º, ambos do Código Civil.
22. Entrando na questão objecto do recurso, insurgem-se os recorrentes/embargantes quanto à decisão proferida pelo Tribunal a quo por entenderem que é nula a cessão de ambos os créditos por violação do disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei nº349/98, de 11 de Novembro, e dos artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 294º, ambos do Código Civil.
Alegam, em síntese, que:
A. Crédito concedido por escritura de 16/09/2008, no valor de €84.702,86:
- por escritura de 16/09/2008, o Banco Popular concedeu um empréstimo aos embargantes, no valor de €84.702,86, destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários;
- na data da concessão deste empréstimo, estava em vigor o Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro que veio revogar o Decreto-Lei 328-D/86, de 30 de Setembro, que regula a concessão de crédito à aquisição, construção, beneficiação, recuperação ou ampliação de habitação própria, secundária ou de arrendamento, nos regimes geral de crédito, crédito bonificado e crédito jovem bonificado.
- de harmonia com o disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, apenas “As instituições de crédito têm competência para conceder financiamentos de acordo com o presente regime geral de crédito à habitação e dentro dos limites fixados nos artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº 34/86, de 3 de Março, para os bancos comerciais e de investimento”;
- o crédito à habitação tinha, e tem, um regime jurídico próprio onde avultam os Decretos-Leis 328-B/86, de 30 de Setembro, 349/98, de 11 de Novembro e 74-A/2017, de 23 de Junho, somente podendo ser concedido por Bancos e sujeito à supervisão do Banco de Portugal e a sua transferência apenas é admitida entre bancos.
Concluem, assim, que a cessão de créditos a favor da LC ASSET 1 S.A.R.L. é nula, sendo a nulidade de conhecimento oficioso.
B_ Crédito concedido por escritura de 16/09/2008, no montante de €103.927,14:
- o Banco Popular concedeu um empréstimo no montante de €103.927,14, por escritura de 16/09/2008, alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário para o imóvel que constitui a habitação própria e permanente dos embargantes;
- trata-se de um crédito complementar do crédito à habitação e não um crédito ao consumo, revestindo a mesma natureza daquele, pelo que se encontra sujeito ao regime jurídico do crédito ao consumo e, consequentemente, a sua transferência apenas é admitida entre bancos;
- caso assim não se entenda, esta escritura seria nula “por desvio do fim ou até por simulação” por o crédito visar “substancialmente complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam”.
Concluem, assim, que ambos os créditos são insusceptíveis de serem cedidos a terceiros que não sejam instituições de crédito e, com este fundamento, invocam “a nulidade das escrituras que constituem a causa de pedir na execução”.
23. O Tribunal recorrido conheceu da questão, mas a resposta que deu foi no sentido de as cessões dos créditos não serem nulas.
Para o efeito o tribunal usou o seguinte percurso lógico: verificar se existia impedimento legal à cessão, por via do diploma especial ou por via das regras civilistas.
Depois de situar o problema no quadro da interpretação do art.º 577.º do CC e de explicitar em que consiste a cessão de créditos, passou a analisar os requisitos dessa cessão, que considerou verificados e, em seguida, se a cessão seria proibida por lei.
Disse:
São “requisitos da cessão de créditos: a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito; b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão; c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor”1.
O primeiro requisito verifica-se, encontrando-se plasmado no convénio celebrado entre o Banco Santander Totta, SA e a Exequente, em 24 de Junho de 2019.
Conforme disposto no art. 577.º do CC, a cessão de créditos será admissível se não for proibida por determinação da lei ou convenção das partes e, portanto, o que interessa saber é se a cessão de créditos aqui em causa era proibida por lei.
O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) – aprovado pelo Decreto- Lei n.º 298/92 de 31/12 – consagra, no seu art. 8.º, o princípio da exclusividade relativamente a determinadas actividades aí previstas, determinando que elas só podem ser exercidas pelas entidades ali enunciadas, designadamente pelas instituições de crédito e sociedades financeiras nos termos ali definidos.
A Exequente não é uma instituição de crédito ou sociedade financeira, nem reúne as condições exigidas no citado diploma para as referidas instituições ou sociedades e, nessa medida, não está habilitada ao exercício das actividades que estão reservadas àquelas instituições.
Com ressalva das situações excepcionadas (que não ocorrem no caso sub judice), dispõe a citada disposição legal que só as instituições de crédito podem exercer a atividade de recepção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização por conta própria e que só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as atividades referidas nas alíneas b) a i), r) e s) do n.º 1 do artigo 4.º, com excepção da consultoria referida na alínea i), ou seja, só essas instituições ou sociedades podem exercer as seguintes actividades:
- Operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring;
- Serviços de pagamento, tal como definidos no artigo 4.º do regime jurídico dos serviços de pagamento e da moeda eletrónica;
- Emissão e gestão de outros meios de pagamento, não abrangidos pela alínea anterior, tais como cheques em suporte de papel, cheques de viagem em suporte de papel e cartas de crédito;
- Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo, opções e operações sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobiliários;
- Participações em emissões e colocações de valores mobiliários e prestação de serviços correlativos;
- Atuação nos mercados interbancários;
- Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários;
- Gestão em gestão de outros patrimónios;
- Emissão de moeda eletrónica;
- Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba.
A aquisição dos créditos aqui em causa não envolve o efectivo exercício pela cessionária (a Exequente) de nenhuma das referidas actividades que, nos termos da citada disposição legal, estão reservadas às instituições de crédito. O direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.
Nessa perspectiva, não existe qualquer impedimento à admissibilidade da cessão de créditos resultante da circunstância de a Exequente não ser uma instituição de crédito. Esta solução impor-se-ia, igualmente, relativamente ao empréstimo no montante de €103.927,14, caso estivesse em causa um contrato de crédito à habitação.”
Analisando.
24. Terá razão o tribunal ao entender que as cessões em causa não violam a lei?
Vejamos.
No quadro fáctico apurado nos presentes autos, os embargantes são devedores de dois créditos bancários constituídos ao abrigo do regime do crédito à habitação, sujeito ao regime do Decreto-lei 349/98, com as alterações que, entretanto, foram aprovadas e ainda pelo Decreto-lei 74-A/20172, com as últimas alterações operadas pela Lei n.º 24/2023, de 29/05.
E os créditos em execução integram-se no âmbito de aplicação deste DL 74-A/2017:
Artigo 2.º Âmbito |
1 - Sem prejuízo das exclusões previstas no artigo seguinte, o presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito, celebrados com consumidores: a) Contratos de crédito para a aquisição ou construção de habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento; b) Contratos de crédito para aquisição ou manutenção de direitos de propriedade sobre terrenos ou edifícios já existentes ou projetados; c) Contratos de crédito que, independentemente da finalidade, estejam garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente habitualmente utilizada sobre imóveis, ou garantidos por um direito relativo a imóveis. 2 - O presente decreto-lei aplica-se também aos contratos de locação financeira de bens imóveis para habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 14.º, na alínea a) do n.º 2 e nos n.os 6 e 7 do artigo 25.º e no artigo 28.º |
Neste diploma legal estão previstos certos direitos dos consumidores destes créditos, como os que se reflectem na fase da contratação, na execução e no termo do contrato:
– art.ºs 8.º e ss – integradas no CAPÍTULO III
Informação e práticas prévias à celebração do contrato de crédito;
– art.º 22.º e ss CAPÍTULO VI
Informação e direitos relativos aos contratos de crédito, nos quais cumpre destacar os art.ºs seguintes
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Releva em especial este último artigo que consagra um especial regime de protecção do devedor consumidor e lhe permite reverter o incumprimento (a perda do beneficio do prazo e a resolução do contrato) em momentos importantes e que podem colidir com a validade da cessão do crédito a quem não esteja autorizado ao exercício da função de concessão de crédito, por força das normas que só o permitem a certas instituições.
Nesta norma consagra-se a retoma do contrato como um direito que o consumidor pode exercer, desde que cumpridos certos requisitos, e que – em certas circunstâncias – funciona como um direito potestativo do consumidor.
Assim, o consumidor pode solicitar a retoma do contrato, sem que o credor, instituição bancária, possa obstaculizar ao direito, desde que:
- Proceda ao pagamento das prestações vencidas (sem contar com as abrangidas pelo vencimento antecipado) e não pagas;
- Proceda ao pagamento dos juros de mora e as despesas do mutuante;
- Não tenha usado desta faculdade mais do que duas vezes no decurso do plano contratual de cumprimento acordado.
Este direito pode ser exercido:
- No prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação;
- Até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores.
De salientar igualmente que a interpretação deste diploma legal deve ser feito tendo presente a Directiva 2014/17/EU, do PE e do Conselho, de 4 de Fev., que foi transposta para o direito nacional através deste mesmo diploma3 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0017).
Quer isto dizer que se o consumidor exercer estes direitos na oposição à execução quando o exequente não é uma instituição de crédito este exequente não está em condições de assegurar o cumprimento dos direitos do consumidor, porque não pode conceder crédito e a instituição de crédito que o havia concedido já não pode operacionalizar o direito que o consumidor tem por já não ser a devedora dessa obrigação de retoma perante o consumidor – e também porque já não terá esse crédito incumprido no seu balanço uma vez o cedeu a terceiro4.
Numa situação destas a admissão da cessão do crédito ao exequente que não seja instituição de crédito funcionaria como modo de “fugir” ou tornar mais difícil (impossível) o direito que a lei atribui ao devedor do crédito.
Quer isto dizer que a cessão deste crédito enquanto for possível ao devedor exercer este direito à retoma não pode ser permitida e a sua realização em contradição com a lei viola as regras gerais de cessão de créditos – art.º 577.º do CC.
“O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.”
Na situação dos presentes autos, o direito à retoma não foi invocado na fase de oposição à execução, mas não está excluída a invocação até à venda executiva dos imóveis sobre os quais incidem as hipotecas.
Em face do exposto, considera-se que as cessões dos créditos objecto da presente execução são nulas, por violação de disposição legal imperativa.
25. Em apoio da orientação exposta, consideraram-se as seguintes posições da jurisprudência e doutrina.
Na jurisprudência das Relações – uma vez que no STJ não foi identificada a questão como tendo já sido suscitada – afigura-se relevante:
1. Acórdão TRG de 3/10/2019, Proc. 2149/13.OT8GMR
Sumário:
- Desde que respeitados os princípios fundamentais que enformam o direito processual civil, tais como os princípios do contraditório e da igualdade das partes, deve o juiz adaptar as regras processuais pela forma que melhor sirva o fim prosseguido, ou seja a realização do direito material ou substantivo.
II- Para além dos incidentes da instância nominados ou como tal previstos no Título III do CPC, existem outros disseminados pelo Código e em legislação avulsa, nomeadamente e no que tange à execução, não pode deixar de se considerar como tal o procedimento previsto no art.º 28º do DL n.º 74-A/2017, de 23 de Junho (Regime dos Contratos de Crédito Relativos a Imóveis), intitulado “Retoma do Contrato de Crédito”.
III- A retoma do contrato tanto pode ocorrer por força da citada legislação, quando se verifiquem os seus pressupostos legais, vindo o executado ao processo, nos embargos de executado ou posteriormente, até à venda do imóvel, pela via incidental, exercer esse direito, que se impõe ao Banco exequente e, verificados os respectivos requisitos o contrato retoma todos os seus efeitos extinguindo-se a execução.
IV- Como tal retoma pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo entre credor e devedor, sendo que, neste último caso, não carece da verificação dos requisitos previstos nos citados diplomas, nomeadamente quanto à natureza do crédito.
V- O título executivo que emerge da resolução do contrato, operada a retoma, fica sem efeito, acarretando a extinção da execução.
VI- Assim, mesmo que os executados não pudessem exercer no processo o seu direito à retoma do contrato (por não se tratar de crédito à habitação) ou não se verificassem todos os pressupostos legais para o exercício desse direito, desde que, por força de acordo com o exequente tivesse ocorrido efectiva retoma do contrato, deve admitir-se, até por analogia com o regime previsto nos citados diplomas legais, que a venham invocar, pela via incidental, antes da venda do imóvel, com vista à extinção da execução.
2. Acórdão TRP de 10/03/2022, Proc. 7748/17.9T8PRT-B.P1
Do qual se extrai o seguinte extracto:
Na tese dos Executados ora apelantes, o expresso reconhecimento feito no art.º 41º da sua contestação aos embargos de executado, de que os Recorrentes podiam exercer o direito previsto no art.º 28º do D.L. 74-A/20017, impedia a mutuante Banco1..., S.A.. de praticar qualquer acto e/ou negócio do qual viesse a resultar a exclusão desses contratos do regime daquele diploma ou a impossibilidade do exercício dos direitos nele previstos a favor dos consumidores, nos termos definidos na alínea d), nº1 do art.º 4º do mesmo diploma].
E isto por integrar uma situação de fraude das previstas no nº1 do art.º 37º supra citado, já que enquanto os Executados/Mutuantes estivessem em tempo de exercer o direito de retoma dos contratos (até à venda judicial do imóvel hipotecado e nomeado à penhora), a Exequente/Cedente não podia ceder os créditos emergentes dos contratos que são títulos executivos, a uma instituição que, como confessadamente assume, "não se encontra abrangida pelo art.º28º, n.º1 do DL 74-A/2017, de 23 de Junho".
Ora salvo melhor opinião tal entendimento merece ser acolhido. Se não vejamos:
Assim, admitir a validade e eficácia da cessão dos créditos que a Exequente celebrou com os Executados para a cessionária P..., que por não ser uma instituição de crédito alega não estar sujeita ao regime do D.L.74-A/2017, consubstancia uma verdadeira “fraude à lei”, na medida em que frustraria por completo os objectivos que presidiriam à consagração daquele especial regime o qual visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito.
Na verdade, julgando-se válida a cessão do crédito objecto destes autos para a cessionária e admitida a sua habilitação, esta adquire a posição contratual da cedente Banco1..., S.A. e por isso os Executados ficarão privados no futuro de exercer os direitos conferidos pelo D.L.74-A/2017, nomeadamente o direito de retoma dos contratos.
E isto porque passarão a estar vinculados perante uma entidade que ela própria assume não estar obrigada a cumprir com as regras impostas por aquele diploma legal.
Mais ainda, a celebração da cessão em apreço nos autos cria uma maior uma maior dificuldade para os Executados, dificuldade essa traduzida na impossibilidade destes exercerem direitos que, não existindo a cessão, poderiam continuar a exercer perante a Exequente, nomeadamente através da retoma dos contratos celebrados com esta última.
Estamos, pois, perante a previsão legal do art.º 571º, nº1 do Código Civil na qual não se admite a cessão de créditos quando a mesma é interdita por determinação da lei, lei essa que é no caso concreto, a da previsão do art.º 37º, nº1 e 2 do D.L. 74-A/2017.
E sendo assim e na procedência do recurso aqui interposto deve ser revogada a decisão que declarou a cessionária P... habilitada para no lugar da exequente Banco1..., S.A. prosseguir a acção executiva.”
3. Acórdão do TRC de 28/03/2023, Proc. 2194/20.0T8SRE.C1, com o seguinte sumário:
I. A retoma do contrato de crédito à habitação própria é um incidente previsto em legislação avulsa, enxertado no processo executivo, que pode ou não ser deduzido mediante embargos à execução ou extrajudicialmente por acordo entre credor e devedor, até à venda do imóvel.
II. A retoma do contrato de crédito à habitação própria acarreta a extinção da execução.
III. Os direitos do devedor quanto à possibilidade de retoma do crédito, não podem ser postergado pelo facto de o credor ceder o seu crédito, a uma outra instituição de crédito.
IV. O princípio do inquisitório não afasta a autoresponsabilidade das partes, quanto à obrigação de indicarem, nos momentos próprios, os meios de prova necessários à demonstração do que alegam.
4 - Acórdão do TRL de 30/11/2022, Processo n.º 13245/19.0T8SNT-A.L2-6, com o seguinte sumário:
1. À luz do DL 42/2019, de 28/03, que veio estabelecer o Regime Simplificado para Cessão de Créditos em Massa, não carece o cessionário do crédito de instaurar qualquer incidente de habilitação de cessionário, nos termos do artº 356º nº 1 do CPC, para substituir processualmente o anterior credor/exequente e, por isso, não há lugar à notificação do devedor para contestar, nos termos do artº 356º nº 1, al. a), considerando-se o cessionário habilitado no crédito exequendo face à simples junção aos autos da cópia do contrato de cessão de crédito.
2. Não obstante, caso o executado pretenda impugnar a validade do acto de cessão de créditos ou invocar que a cessão ocorreu para tornar mais difícil a sua posição processual, pode fazê-lo através de incidente em que suscite esses fundamentos. De contrário, poderíamos estar perante a impossibilidade do exercício do contraditório, enquanto elemento estrutural do processo equitativo, princípio fundamental do direito adjectivo, consagrado na Constituição
26. A jurisprudência indicada sufraga assim a tese defendida: segundo o artigo n.º 28 do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, caso o consumidor devedor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer renovação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento e para isso é fundamental que quem seja o titular do crédito dado à execução esteja em condições de efectivar a retoma do contrato, nomeadamente por ser uma instituição de crédito.
27. Na doutrina, importa referir o escrito de Sandra Passinhas, intitulado “Incumprimento do contrato de crédito à habitação, cessão de créditos e direitos do Consumidor”, in www.revistadedireitocomercial.com, 2021-01-12, p. 65 e ss.
Desta obra – que iremos citar em passagem eventualmente longa – pretende-se ainda extrair argumentos sobre a contrariedade à lei da cessão destes créditos durante o período em que a instituição de crédito tem – ou devia ter – recorrido ao regime do PERSI e os requisitos exigidos ao cessionário pelo diploma que veio regular a cessão de créditos em massa - Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março (o cessionário deve ser uma instituição de crédito, sociedade financeira ou sociedade de titularização de créditos, pelo que as entidades não sujeitas a regulação estão excluídas deste regime), cuja importância cumpre salientar por conter certas exigências especiais relativamente ao cessionário. Também importa referir que este diploma, aprovado em Março de 2019, entrou em vigor em 1 de julho de 2019 e a cedência dos créditos na presente execução foi celebrada em 24.06.2019 – conforme cópia do contrato junto aos autos.
Citando:
p. 94 e ss – “O artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 determina que em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o mutuante só pode invocar a perda do benefício do prazo33 ou a resolução do contrato34 se cumulativamente ocorrerem a falta de pagamento de três prestações sucessivas e a concessão, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o consumidor proceda ao pagamento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, sem que este o faça.
O incumprimento parcial da prestação não é considerado para estes efeitos, desde que o consumidor proceda ao pagamento do montante em falta e dos juros de mora eventualmente devidos até ao momento da prestação seguinte. Note-se que, neste momento, após o incumprimento de três prestações e o decurso do prazo suplementar concedido para regularização, já terá sido extinto o PERSI, porquanto, salvo acordo escrito na prorrogação, este termina no 91.º dia subsequente à integração do cliente bancário neste procedimento, como vimos acima.
A resolução operada não é, todavia, estável até termo do prazo para a oposição à execução ou para a venda executiva35. O consumidor inadimplente tem ainda direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas. Trata-se de uma verdadeira retoma do contrato: considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações36, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento. O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respetiva vigência.”
…
p. 96/7 - Se o mutuário não conseguir cumprir as prestações devidas vencidas há mais de 90 dias ou se se concluir pela improbabilidade de que o mutuário venha a pagar o seu empréstimo, o empréstimo é classificado como empréstimo de mau desempenho ou improdutivo (Non Performed Loans [NPLs])37.
…
p. 104 e ss - A transação de NPLs em mercado implica a cessão de créditos em massa por parte das entidades financeiras, pelo que se impõe agora uma análise dos efeitos que a cessão do seu crédito pode ter para o consumidor.
O artigo 577º do Código Civil estabelece que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. O cedente transmite o seu crédito a outrem, o cessionário, que lhe vai suceder na titularidade do direito, com a consequente modificação subjetiva da relação obrigacional.
O termo cessão designa quer o contrato realizado entre o cedente e o cessionário (Abretung), quer o efeito fundamental do negócio (Übertragung)48.
No dia 1 de julho de 2019, entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que estabeleceu um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos. Considera-se, nos termos do artigo 2.º, cessão de créditos em massa aquela em que o cessionário seja uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos sempre que o preço de alienação global dos créditos a ceder seja, no mínimo, de 50.000,00 Euros, e a carteira seja composta por, pelo menos, 50 créditos distintos.
A cessão de créditos em massa é celebrada por documento particular, que constitui título bastante para efeitos do registo da transmissão dos créditos hipotecários, ou das respetivas garantias sujeitas a registo, quando contenha o reconhecimento presencial das assinaturas do cedente e do cessionário. Estabelece o artigo 3.º, n.º 1, que o cessionário se considera habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão, competindo-lhe apenas juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil. O cedente deve informar o cessionário sobre quaisquer causas que sejam instauradas contra si respeitantes a certo crédito cedido, no prazo máximo de cinco dias após a sua citação. Os registos necessários em função das operações de cessão de créditos em massa são realizados de forma centralizada em processo unitário e expedito, mediante uma única apresentação, e dispensam a apresentação da prova da situação matricial referida no artigo 31.º do Código do Registo Predial. Os termos deste registo, que tem natureza urgente, encontram-se fixados pela Portaria 228/2019, do Ministério da Justiça, de 22 de julho.
Na cessão de créditos, o crédito permanece inalterado, apenas se verificando a substituição do credor originário por um novo credor. Como a cessão dos créditos resultantes de um contrato de crédito hipotecário tem por efeito transmitir para o cessionário o (mesmo) direito de que era titular o cedente, transmitem-se para o adquirente, salvo convenção em contrário, as garantias e outros acessórios do crédito (artigo 582.º) e, imperativamente, por força do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, as garantias do devedor.
Consequentemente, o cessionário fica, inter alia, obrigado aos deveres de informação e de renegociação do contrato que impendiam sobre o original mutuante49. Et pour cause, relembre-se que o artigo 586.º do Código Civil estabelece que o cedente é obrigado a entregar ao cessionário os documentos e outros meios probatórios do crédito, que estejam na sua posse e em cuja conservação não tenha interesse legítimo50. Para além da documentação relativa ao crédito, cabem aqui necessariamente o processo individual dos clientes bancários integrados no PERSI, que a instituição de crédito deve conservar por cinco anos após a extinção do procedimento, nos termos do artigo 20.º Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
O devedor continua adstrito exatamente à mesma prestação a que se vinculou perante o cedente, resultante de um contrato de crédito à habitação, cuja qualificação como contrato de consumo é determinada51 no momento da celebração do contrato, cristalizando, e importando a sua sujeição a um determinado regime legal imperativo, no caso, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017. Como estabelece o artigo 585.º do Código Civil, o debitor cessus pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão. Resulta do regime geral que a cessão não pode colocar o devedor em pior situação do que aquela em que ele anteriormente se encontrava52, mas a estatuição é reiterada e reforçada pelo carácter imperativo das garantias do consumidor, como resulta expresso, em especial, dos artigos 35.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017. Relembre-se que, conforme determina o artigo 18.º do Decreto- Lei n.º 227/2012, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou transmitir a terceiro a sua posição contratual. Apenas se admite que a instituição possa ceder créditos para efeitos de titularização ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito. Neste último caso, reiteramos, a “instituição de crédito cessionária está obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual.” A cessão de crédito, em PERSI, a uma qualquer empresa de gestão de cobrança ou de recuperação de crédito é, pois, nula, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil, por contrariedade a norma legal imperativa53. Após a extinção do PERSI, a cessão já não contrariará a lei, mas os direitos do consumidor no contexto do incumprimento, maxime, quanto à informação e renegociação do contrato, permanecem inalterados, porquanto a cessão do crédito importa apenas uma modificação da contraparte negocial e em nada bole com a natureza objetiva do crédito54. Uma recusa de informação sobre a situação de incumprimento do devedor, ou da retoma do contrato de crédito, bem como o assédio sobre o mutuário, podem consubstanciar práticas comerciais desleais, proibidas pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. São práticas comerciais, para efeitos deste diploma, qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação de um profissional, incluindo a publicidade e a promoção comercial, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um bem ou serviço ao consumidor. Em geral55, e nos termos do artigo 5.º, é desleal qualquer prática comercial desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que o afete relativamente a certo bem ou serviço56.”
Da mesma autora cf. ainda - “O novo regime do crédito aos consumidores para imóveis de habitação”, Estudos de Direito do Consumidor 14 (2018), págs. 415-487, disponível em https://www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_14_completo.pdf
Citando:
p. 483/4 – “O consumidor tem direito à retoma do contrato, nos termos do artigo 28.º, no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas. Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento. O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respetiva vigência.”
E sobre a retoma do contrato, Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, 2ªed., p. 210:
“A figura visa permitir que o consumidor, tendo já a outra parte resolvido o contrato, possa, ainda assim, fazê-lo “renascer” retroativamente (fazendo cessar os efeitos da resolução). A resolução, fica “sem efeitos”, por isso se mantem o contrato exatamente nos termos em que foi celebrado, com eventuais alterações introduzidas. Não estamos, pois, como a lei se apressa a sublinhar, perante uma novação e as eventuais garantias preexistentes mantém-se (art.º 28.º, n.º2 do DL 74-A/2017, de 23/6).
Note-se que esta faculdade não se estende a todos os contratos abrangidos pelo diploma, mas depende da sua finalidade: só os créditos à habitação.
Para tal, o consumidor, no prazo para a oposição à execução, ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, se não tiver havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, tem de pagar as prestações vencidas, bem como os juros de mora e as despesas em que a outra parte tenha incorrido, quando documentalmente justificadas (art.º 28.º, n.º1 do DL 74-A/2017, de 23/6).
Compreensivelmente, este direito só pode ser exercido duas vezes (art.º 28.º, n.º3 do DL 74-A/2017, de 23/6).
Desta forma, a resolução destes contratos de crédito só se consolida efetivamente depois de decorrido o prazo em que o consumidor, nos termos apontados, pode gerar a sua ineficácia.”
27. Para melhor reforçar as ideias apontadas, cumpre ainda dar conta do estado da arte em matéria de “non performing loans” e modos de resolver os problemas que os mesmos colocam às instituições de crédito, e bem assim as soluções que lhes são facultadas (ou se pretende que venham a ser num futuro próximo), e das quais resulta também a importância da posição do cedido- devedor consumidor.
Para o efeito, veja-se o mesmo autor quando nos dá nota da importância da cessão de créditos em massa e da evolução do mercado em causa, na obra “A venda de non performing loans a entes externos ao sistema financeiro e o dever de supervisão do Banco de Portugal”, In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto - a.17-18 (2020-2021) - p.563-577, e na p. 569, na nota 16, aludindo a Estados Membros da União Europeia que exigem a categoria de instituição de crédito ao cessionário; na p. 572, ao analisar a proposta de Directiva5, a referência a que a venda do crédito não faz cessar a relação entre o banco e o cliente/devedor cedido.
E na p. 576, sobre a sujeição à supervisão (ou não pelo Banco de Portugal) diz:
“I. Não sendo as entidades que adquirem e cobram os créditos bancários instituições de crédito, sociedades financeiras ou empresas de investimento, não estão abrangidas, como se disse, pela supervisão, tanto prudencial, como comportamental. E, por esse motivo, o Banco de Portugal se tem abstido de agir – e relativamente a elas, bem, porque estão fora da sua competência (questão distinta é saber se estas entidades não deveriam ser por força da lei integradas no sistema financeiro – então já directamente sobe a alçada do supervisor – o merece uma clara resposta positiva).
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados é concedida a revista e julgada procedente a oposição à execução.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 29 de Outubro de 2024
Relatora: Fátima Gomes
1º adjunto: Dr Ferreira Lopes
2º adjunto: Dr Nuno Pinto Oliveira
__________
1. Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, 11.ª ed., p.14.
2. Não havendo disposição expressa que indique se se aplica a contratos anteriores, com base no regime do art.º 12.º do CC é de entender que se aplica aos contratos que se mantivessem em vigor após a alteração realizada por este diploma – no mesmo sentido, cf. RUI PINTO DUARTE, “O Novo Regime do Crédito Imobiliário a Consumidores (Dec.-Lei 74-A/2017): Uma Apresentação”, III Congresso de Direito Bancário, coord. por Miguel Pestana de Vasconcelos, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 313.
3. Cf. RUI PINTO DUARTE, “O Novo Regime do Crédito Imobiliário a Consumidores (Dec.-Lei 74-A/2017): Uma Apresentação”, III Congresso de Direito Bancário, obra citada, pág. 311 e ss e MIGUEL PESTANA VASCONCELOS, Direito Bancário, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 198 e ss e “A venda de non performing loans a entes externos ao sistema financeiro e o dever de supervisão do Banco de Portugal”,
In Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto - a.17-18 (2020-2021) - p.563-577.
4. No texto que se cita encontra-se a explicação dos motivos do recurso a esta cessão em massa e quais os benefícios que dela decorrem para o cedente – Miguel, Pestana Vasconcelos, “A venda de non performing loans a entes externos ao sistema financeiro e o dever de supervisão do Banco de Portugal”, In Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto - a.17-18 (2020-2021) - p.563-577.
5. Já aprovada - DIRETIVA (UE) 2021/2167 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 24 de novembro de 2021 relativa aos gestores de créditos e aos adquirentes de créditos e que altera as Diretivas 2008/48/CE e 2014/17/EU (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021L2167)