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PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INVERSÃO
PRESSUPOSTOS
Sumário
I. Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 369.º do CPC que, tendo sido formulado pedido de inversão do contencioso, é na própria decisão que decrete a providência que o juiz há-de verificar se, no caso, se encontram reunidos os pressupostos legais para que o pedido seja deferido, decretando – ou não – também este efeito. II. Proferida a decisão de decretamento da providência sem que seja apreciado o pedido de inversão do contencioso formulado pelo requerente, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz nos termos do artigo 613.º do CPC. III. Não sendo arguida pelos requerentes a omissão de pronúncia e transitada a decisão, fica sanada a nulidade, sem possibilidade do proferimento de decisão subsequente e autónoma a decretar a inversão do contencioso. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 513/22.3T8SSB.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Central Cível de Setúbal - Juiz 3
I. Relatório
(…) e (…) instauraram contra (…) o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse, pedindo que na sua procedência e sem audição da requerida:
a) fosse decretada a restituição provisória da posse do imóvel e respetivo recheio sito na Rua de (…), n.º 40, em Sesimbra, mediante a mudança de todas as fechaduras do aludido imóvel e entrega de um duplicado, apenas, a cada uma das Requerentes;
b) fosse nomeado Agente de Execução para a diligência de restituição da posse às Requerentes o Dr. (…);
c) no acto de mudança das fechaduras da casa fosse a requerida citada para, querendo, deduzir oposição à presente providência, com a cominação acrescida de ter de abandonar o imóvel dentro do mesmo prazo (10 dias).
d) fosse fixada uma sanção pecuniária compulsória à Requerida no valor diário de € 100,00 EUR, para garantir a eficácia da providência e por cada dia de atraso na efetivação da saída do aludido imóvel após o decurso do prazo concedido para o efeito.
e) fossem as requerentes dispensadas do ónus de intentar a ação principal, uma vez demonstrado o seu direito de posse e propriedade sobre o imóvel em apreço nos autos, sem prejuízo do artigo 376.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Produzida a prova oferecida pelas requerentes foi proferida decisão que julgou improcedente, por não provado, o procedimento cautelar instaurado, declarando prejudicada a apreciação da pedida inversão do contencioso.
Apelaram da decisão as requerentes, recurso que concluíram nos seguintes termos:
“Conclusão 51.ª “Em conclusão, deveria assim, em nosso entender, ter sido deferida a providência cautelar de restituição provisória da posse, com a determinação da mudança das fechaduras do imóvel e a entrega de um duplicado a cada Requerente, bem como ser determinada a entrega do imóvel às Requerentes. Termos em que, conforme o supra exposto e no mais de Direito aplicável, requer-se que a presente Apelação seja julgada totalmente procedente, por provada e, em consequência seja revogada a sentença e, por seu turno, decretada a providência cautelar de restituição provisória de posse, tal como peticionado pelas Requerentes, realizando-se assim a tão costumada JUSTIÇA”.
Na apreciação do recurso o Colectivo deste TRE proferiu acórdão em 12/1/2024, no qual enunciou como questões a decidir: “1.º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (documental e testemunhal) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada; 2.º) Saber se, atenta a factualidade apurada, estão verificados todos os requisitos para o decretamento da providência cautelar de restituição provisória de posse (nomeadamente a posse, o esbulho e a violência)”, tendo deliberado como segue: “(…) estão verificados os requisitos da providência cautelar de restituição provisória da posse, pelo que forçoso é concluir que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, decreta-se, sem audiência da requerida (artigo 378.º do CPC), a restituição provisória da posse do imóvel e respetivo recheio, sito na Rua de (…), n.º 40, em Sesimbra, mediante a mudança de todas as fechaduras do aludido imóvel e a entrega de um duplicado às requerentes. Uma vez que a requerida não foi ouvida antes de decretada esta concreta providência, observar-se-á o disposto no artigo 366.º, n.º 6, do CPC, ex vi do artigo 376.º, n.º 1, do mesmo Código, notificando-se a requerida da decisão que ordenou a providência, só após o devido cumprimento desta, para os efeitos previstos no artigo 372.º, n.º 1, do C.P.C. (o que terá de ser feito, indubitavelmente, na 1ª instância)”.
Tendo os autos sido remetidos à 1.ª instância, foi proferido em 13.02.2023 despacho com o seguinte teor: “Em face da decisão proferida no mesmo, que julgou procedente o recurso interposto com a consequente revogação da sentença, determina-se a restituição provisória da posse do imóvel e respetivo recheio, sito na Rua de (…), n.º 40, em Sesimbra, às Requerentes, mediante a mudança de todas as fechaduras do aludido imóvel e entrega de um duplicado, apenas, a cada uma das Requerentes. Para executar a referida restituição, nomeia-se o Agente de Execução indicado pelas Requerentes no seu Requerimento Inicial. * Uma vez restituído o imóvel e seu recheio às Requerentes, deverá a Requerida ser notificada nos termos do disposto no artigo 372.º, n.º 1, por efeito do disposto nos artigos 366.º, n.º 6 e 376.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil”.
Teve lugar no dia 14 de Abril de 2023 a restituição provisória da posse do imóvel e respectivo recheio às requerentes, conforme consta do auto que faz fls. 301v.º e 302 dos autos, tendo a requerida assinado a certidão de notificação de fls. 303 – na qual não consta menção a qualquer disposição legal – mas considerando-se notificada nessa mesma data do acórdão proferido [Ref.ª 45489728, a fls. 341 destes autos].
Em 2 de Maio de 2023 a requerida interpôs recurso de revista para o STJ (expediente que deu entrada neste TRE) do acórdão proferido, o qual não foi admitido por despacho do relator de 9 de Maio de 2023, tal como não foi admitida a subsequente reclamação para a conferência, convolada porém em reclamação a ser apreciada pelo STJ nos termos do artigo 643.º do CPCiv.
Recebidos os autos no STJ, a Exm.ª Sr.ª Conselheira Relatora, por decisão datada de 30 de Agosto de 2023 confirmou o despacho reclamado, assim mantendo a decisão de não admissão do recurso de revista.
Reclamou a recorrente para a conferência que, por acórdão de 2 de Novembro de 2023, confirmou a decisão da Sr.ª Conselheira Relatora.
Interpôs então a reclamante recurso para o TC, que a Sr.ª Conselheira do STJ não admitiu, na sequência do que apresentou reclamação para o TC, que confirmou aquele despacho em acórdão de 29 de Fevereiro de 2024[1].
Encontrando-se ainda os autos na 1.ª instância e depois da restituição ter sido realizada, por despacho de 10 de Maio de 2023 – já a requerida interpusera recurso do acórdão do TRE – fora ordenado pela Sr.ª juíza à secção que desse cumprimento ao 2º segmento do despacho proferido em 13 de Fevereiro.
Em cumprimento do ordenado, por manifesto lapso, a secção efectuou a notificação da requerida nos seguintes termos: “Fica V. Ex.ª notificado, relativamente ao processo supra identificado, de que a decisão que ordenou a providência e inverteu o contencioso, devidamente notificada, transitou em julgado. Fica advertido de que, querendo, deve intentar a ação destinada a impugnar a existência do direito acautelado, no prazo de 30 dias contados da presente notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como composição definitiva do litígio (artigo 371.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)”.
Devolvidos os autos à 1ª instância após o trânsito do acórdão proferido pelo TC em cumprimento do despacho do Sr. Juiz Relator proferido em 6/6/2024, vieram as requerentes “reiterar o seu pedido de inversão do contencioso, formulado na sua petição inicial do presente procedimento, ao abrigo do disposto no artigo 376.º, n.º 4, do CPC", fazendo notar que “em 12/05/2023, foi a Requerida notificada, precisamente nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do CPC (Ref.ª 97227658), não tendo as Requerentes conhecimento de qualquer resposta da Requerida à inversão do contencioso, pelo que se requer decisão sobre a consolidação da providência como composição definitiva do litígio”.
Respondeu a requerida, alertando para o facto de na decisão proferida pelo TRE não ter sido deferida a inversão do contencioso, pelo que não estavam as requerentes dispensadas de instaurar a acção para reconhecimento do seu direito.
Mais alegou que, não tendo a acção dado entrada em juízo no prazo prescrito no artigo 373.º, alínea a), do CPCiv., caducaram os seus efeitos, o que deve ser declarado, “bem como a total extinção dos autos, com a consequente restituição de posse do imóvel à ora Requerente, ficando a cargo das Requerente as custas do processo em ambas as instâncias”.
Responderam as requerentes, sustentando que, como resulta do disposto no artigo 373.º, n.º 1, alínea a), do CPCiv., o prazo de 30 dias para a propositura da acção principal conta-se a partir da notificaçãoàs Requerentes do trânsito em julgado da providência, notificação que ainda não teve lugar, motivo pelo qual o prazo nem sequer se iniciou.
Foi de seguida proferido o despacho datado de 10 de Julho de 2024 [Ref.ª 99867069], ora recorrido, que, para o que aqui releva, dispôs como segue: “(…) O que ressalta desde logo é que tendo as Requerentes formulado tal pedido no requerimento inicial e não tendo, até ao momento, ocorrido decisão a seu respeito, tal obsta à verificação da caducidade do procedimento cautelar. No mais, verifica-se que a Requerida foi citada em 14.04.2023 por agente de execução (fls. 303), mas sem menção a qualquer disposição legal. Ainda assim, no requerimento de 28.06.2024, a requerente alega que perante a decisão do TRE que revogou a decisão da 1ª instância, poderia ter contestado ou recorrido do mesmo, como permitia disposto no artigo 372.º-1, a) e b), do CPC, tendo optado por reclamar para a Conferência, primeiro, decidindo, depois, interpor o competente recurso de Revista para o STJ, ou seja, a requerida satisfez-se com os termos da citação (artigo 191.º, n.º 2, do CPC). Por outra via, verifica-se que a Requerida optou por interpor recurso, ao invés de deduzir oposição, o que significa que não pretendeu trazer à colação novos factos, com potencialidade para contrariar os que fundamentaram a decisão do TRE, pelo que estes estão sedimentados. E como resulta do artigo 369.º, n.º 2, do CPC, tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, a Requerida só poderia opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada, sendo que nas alegações de recurso que apresentou, nada referiu a esse propósito. Nestes termos, na consideração dos factos considerados provados pelo TRE que, como acima se referiu, estão sedimentados e a que na sua sequência foi considerado: “Ora, da factualidade apurada nos autos, resulta claro que as requerentes tinham a posse do imóvel aqui em apreço, mediante as chaves que possuíam e que lhes permitia o gozo e o livre acesso à casa do pai, sempre que o quisessem fazer, imóvel esse do qual as mesmas são atualmente proprietárias, por via da sucessão hereditária, por morte do progenitor, ocorrida em 27/12/2021, acabando, assim, por consolidar a sua posse, como uma posse titulada, a partir do momento do registo predial da casa a seu favor (pela dita sucessão hereditária que ocorreu por óbito do seu pai). Na verdade, havia para as requerentes a clara intenção de se comportarem como titulares da posse do imóvel, a partir do momento em que o pai lhes facultou um duplicado das chaves e lhes deu total liberdade de acesso e de utilização do referido imóvel. Com efeito, se assim não fosse, nunca a requerida tinha sentido a necessidade de proceder à alteração das fechaduras do imóvel, na colocação de cadeados nos portões e na vedação dos terrenos circundantes (cfr. pontos 30, 37, 44 e 52 dos factos provados). Por outro lado, da matéria fáctica apurada, ficaram também demonstrados os restantes requisitos deste procedimento cautelar, ou seja, o esbulho e a violência…”. Somos a concluir estarem verificados os pressupostos para a inversão do contencioso, pelo que, nos termos do disposto no artigo 369.º do Código de Processo Civil, decreto a inversão do contencioso, com a consequente dispensa das Requerentes de propor a ação principal de que a providência estaria dependente. Custas pelas Requerentes (artigo 539.º do CPC)”.
*
Inconformada, interpôs a requerida o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª Desde 2004 até 2018 vivera a Ré em plena comunhão de vida com o seu companheiro, pai das Requeridas, falecido em 27/12/2021, tendo ambos levado as suas vidas em comum durante aquele lapso de tempo e sem a menor interrupção.
2.ª Já viúvos e conhecendo-se desde crianças, passaram a viver juntos na casa deste seu companheiro, sita em (…), Sesimbra, em condições idênticas em tudo às de um casal normal, onde sempre viveram durante mais de 15 anos.
3.ª Poucos dias após o seu decesso, as Rdas instauraram contra a Reclte um processo de Rest. Prov. de Posse daquele imóvel, onde, para lograrem o seu deferimento, alegaram toda a sorte de mentiras, apoderando-se do espaço interior e exterior e de tudo quanto ali se encontrava, processo esse julgado improcedente na 1ª instância.
4.ª Sentença que o TRE, em sede apelativa, revogara mediante argumentação notoriamente errada, porque contra legem e as regras de vida, pois, além da injustiça que inquina tal aresto, também atentara contra o disposto no artigo 9.º-2, do CC, por não ter interpretado nem valorado corretamente os factos apurados pela então Mma. Juiz a quo.
5.ª Desalojada dessa casa, em 14/04/2023 nunca a Recte se arrogou ou pretende arrogar-se a titularidade desse imóvel, assistindo-lhe, porém, o direito de, ao abrigo da Lei 23/2010, continuar a viver ali, vide artigos 16.º-1 e 2, da CRP, sendo este último incontornável ao prescrever que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
6.ª Desiderato que é, aliás, de conhecimento oficioso, em nada interferindo com eventuais erros em que hajam intervindo as instâncias recursórias que esta antecedem. Vide, i.o., DUDH – artigo 12.º, de 10.12.48, e D.R. 1ª série A, n.º 57/78, de 9.3.1978, e, a esse respeito, J.G. Canotilho e Vital Moreira, in CRP anotada, 3ª ed., 220, no sentido de que a Constituição não aceita que se espartilhe, se confine e se restrinja o conceito de casal/família ao estatuto da união conjugal baseada no casamento, no sentido de que a Constituição não aceita que se espartilhe, se confine e se restrinja o conceito de casal/ família ao estatuto da união conjugal baseada no casamento.
7.ª Direito nunca abordado nas instâncias, quando deveria tê-lo sido, não só porque a Recte nunca dele se demitira, mas também porque deveria logo ter-lhe sido reconhecido ex oficio, pelo que, na negativa, incorreu o TRE nas inconstitucionalidades supra e nem aquela 2ª instância ad quem nem a suprema recursória de Amparo se hajam delas apercebido, malgrado a insistência da suplicante que tem vindo a aguardar por decisão miraculosa e definitiva sobre tal vexata quaestio que não chegou.
8.ª Razões por que o processo prosseguirá até ao TEDH, porquanto tal revogação não só atenta contra a CRP, como contra o artigo 4.º, n.º 1, da Lei 135/99, de 28 de Agosto, DUDH, e demais legislação internacional atinente à defesa dos direitos humanos. Só que apenas podem ser apresentadas queixas no TEDH contra Estados que tenham ratificado a Convenção ou o protocolo desta, o que se verifica in totum, aí assentando a razão essencial desta insistência.
9.ª Porém o referido Ac. TRE apenas revogara a sentença proferida na instância a quo, não tendo as Rqtes cuidado de tal desiderato nem tendo sequer levado em conta que o pedido de inversão do contencioso não só não lhes fora concedido na 1ª instância como na 2ª, não as isentando, portanto, de instaurarem a atinente ação declarativa, decorrido que fora o prazo legal.
10.ª Assim, não tendo sido decretada em nenhuma das instâncias a inversão do contencioso, a apelada não contestou – nem tinha, portanto, que contestar – sendo que o procedimento em causa sempre se extinguiria, ex vi do disposto no artigo 373.º-1, a), do CPC, caso as Rqtes não instaurassem, como não instauraram, a ação de que a providência é dependente no prazo de 30 dias contados da data em que transitou a decisão que a ordenara, sob pena de se verificar, como verifica, a caducidade dos efeitos jurídicos da providência cautelar e inclusivamente a extinção do próprio procedimento.
11.ª Não era intenção da Reclte voltar a esta sede recursiva, mas não teve outra saída que não fosse a de tentar explicitar melhor o seu pensamento, razões, factos e argumentos que antecedem, ainda que lamentando ter de vir roubar algum tempo mais a este Colendo Tribunal, para que a sua consciência se apazigue na convicção de ter esgotado todas as possibilidades de vir a obter nova e douta decisão, tentando, pois evidenciar aquelas que poderão contribuir para douta solução diversa da que antecede.
12.ª Daí que seja imperativo prosseguir ad odium – passe a rudeza não sentida da expressão – esgotar todos os recursos judiciais existentes na ordem jurídica interna e/ou demonstrar que tais recursos não foram eficazes, sendo, pois, certo que aquela instância internacional só tomará conhecimento sobre a estrita questão sub judicio, e após se terem esgotado sobre a estrita matéria em causa todas as vias de recurso interno deste país.
13.ª Solução que, francamente, nos desagrada, por ser notoriamente indesmentível que neste caso concreto dos autos, apenas está em causa saber se, tendo sido alegadas e profusamente verificadas as irregularidades cometidas nas instâncias que antecedem – designadamente no tocante às questões vindas de suscitar – não se hajam tido por erradas e profundamente injustas as decisões que apenas se reportaram a mera motivação formal.
14.ª A que tudo acresce, s.m.o. e devido respeito, que mais relevante do que tudo o que vem de ser alegado é a exigência legal e jurisprudencialmente mais justa de que a verdade vem sempre ao de cima e que é a certeza que nos assiste de que o direito deverá sobrelevar sempre o mero formalismo da lei adjetiva, sem o que o verdadeiro conceito de JUSTIÇA possa ter condições para ser olhado e respeitado pelas pessoas de bem.
Contra alegaram as requerentes sustentando o bem fundado da decisão recorrida.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
i. Da (in)admissibilidade do decretamento da inversão do contencioso após o trânsito da decisão que decretou a providência;
ii. Da caducidade da providência decretada;
iii. Do direito da recorrente ao uso do imóvel e respectivo recheio.
* II. Fundamentação
i. Da (in)admissibilidade do decretamento da inversão do contencioso após o trânsito da decisão que decretou a providência;
Vem o presente recurso interposto pela requerida da decisão proferida em 10/7/2024, que determinou a inversão do contencioso nos termos do artigo 369.º do CPC, com a consequente dispensa das requerentes do ónus de propositura da acção principal.
Interessando à decisão das questões suscitadas os factos ocorridos no processo, tal como resultam do relato feito em I, importa começar por referir que, conforme se reconhece na decisão recorrida, a notificação expedida em 10 de Maio de 2023 e à qual aludem as requerentes da providência não obedeceu ao despacho que a precedeu, tendo ficado a dever-se a óbvio e evidente lapso da secção, uma vez que o acórdão proferido por este TRE que decretou a providência, revogando a decisão da 1ª instância, é completamente omisso a respeito da requerida inversão do contencioso. Aliás, aquando daquela notificação, já a requerida, notificada do acórdão pelo Sr. Agente de execução no próprio dia em que as requerentes foram restituídas à posse do imóvel e respectivo recheio, havia dele interposto recurso. Não tinha assim aplicação o disposto no artigo 371.º ali mencionado, não podendo secundar-se o entendimento expresso no despacho recorrido quando, após referir que, “(…) como resulta do artigo 369.º, n.º 2, do CPC, tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, a Requerida só poderia opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada, sendo que nas alegações de recurso que apresentou, nada referiu a esse propósito”, conclui que se satisfez “com os termos da notificação”. É certo que a requerida nada referiu a esse respeito, mas não é menos certo que nada tinha que referir, uma vez que a decisão proferida era, repete-se, quanto ao pedido de inversão do contencioso, completamente omissa. Deste modo, e encontrando-se pendente o recurso interposto, a notificação efectuada, contrária, aliás, ao despacho que a ordenara, não produziu qualquer efeito.
Mas o despacho recorrido não pode subsistir ainda por um outro e decisivo fundamento.
Como resulta do disposto no artigo 369.º, n.º 2, do CPC, “1. Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus da propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” (é nosso o destaque).
Está em causa, como se sabe, uma inovação trazida pelo CPCivil agora em vigor, resultando da transcrita disposição que a lei exige um pedido expresso do requerente no sentido da dispensa, o qual pode ser formulado até ao encerramento da audiência final, dependendo o deferimento da aquisição pelo juiz, em face da prova produzida, “do mesmo grau de convicção que, em condições normais, apenas seria suscetível de ser conseguido num processo principal (…)[2]. Finalmente, a natureza do litígio há-de ser adequada à realização da composição definitiva do litígio, ou seja, a inversão do contencioso só pode ser concedida nos casos em que “a tutela cautelar seja suscetível de se substituir à tutela definitiva mediante uma convolação ex lege”[3].
No caso em apreço, não há dúvida que as requerentes formularam tempestivamente a sua pretensão, posto que requereram fosse decretada a inversão do contencioso logo no requerimento inicial. A apreciação do requerido resultou prejudicada na 1ª instância, face ao juízo de improcedência que recaiu sobre a providência, sendo certo que o acórdão proferido em 12/1/2024 por este TRE, que revogou a decisão da 1ª instância, decretando a providência requerida, não se pronunciou sobre a inversão do contencioso, não cabendo agora aqui discutir se, como parece ter sido entendimento do colectivo, tal questão se encontrava subtraída do objecto do recurso por não a terem as recorrentes incluído nas suas alegações e conclusões, ou se estamos antes perante uma nulidade do acórdão por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, sendo certo que, a ser este o caso, por não ter sido tempestivamente arguida pelas requerentes, sempre se encontraria sanada.
Seja como for, decretada a providência sem que na mesma decisão tivesse sido decretada a inversão do contencioso, é nosso entendimento que o não poderia ser em decisão autónoma posterior ao trânsito daquela decisão, em resposta a novo requerimento das requerentes nesse sentido.
Com efeito, resulta claramente do já citado n.º 1 do artigo 369.º que, tendo sido formulado pedido de inversão do contencioso, é na própria decisão que decrete a providência que o juiz há-de verificar se, no caso, se encontram reunidos os pressupostos legais para que o pedido seja deferido, decretando – ou não – também este efeito. Daqui decorre “que, se o juiz, na decisão em que decrete a providência cautelar, não se pronunciar quanto ao pedido de inversão do contencioso que tiver sido formulado pelo requerente – o que, no limite, poderá gerar uma nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, à luz do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) – não poderá fazê-lo em momento posterior, já que, com o proferimento da decisão de decretamento da providência cautelar, extinguiu-se o seu poder jurisdicional”[4]. Neste mesmo sentido, decidiu o TRG em acórdão de 25/10/2018 (processo 3554/18.1T8BRG.G1, acessível em www.dgsi.pt[5]), “Entendendo-se que a decisão que decreta a inversão do contencioso é incindível da correspondente decisão que deferiu a providência cautelar, por resultar expressamente da lei que ambas devem ocorrer em simultâneo, é manifesto que com a prolação da decisão que decretou a providência ocorre a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, tanto mais que o requerido não deduziu oposição ao decretamento da providência, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º do CPCivil.
Em consequência, a decisão recorrida, que deferiu a requerida inversão do contencioso, não podia ter sido proferida posteriormente à decisão que deferiu a providência, ainda que a título incidental”.
A referida incindibilidade resulta evidente quando se considere o disposto no artigo 370.º, nos termos do qual “A decisão que decrete a inversão do contencioso só é recorrível em conjunto com o recurso da decisão sobre a providência requerida”, solução que, no que se refere às providências decretadas sem audição prévia do requerido, resulta do n.º 3 do artigo 372.º, sendo certo que não é indiferente para a opção a tomar pela defesa estarmos perante o decretamento de uma providência com ou sem inversão do contencioso.
Em suma, proferida a decisão de decretamento da providência sem que seja apreciado o pedido de inversão do contencioso formulado pelo requerente, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz nos termos do artigo 613.º do CPC, maneira que, não sendo arguida a omissão e transitada a decisão, fica sanada eventual nulidade, sem possibilidade do proferimento de decisão subsequente e autónoma a decretar a inversão do contencioso.
Assiste assim razão à apelante quando sustenta que não tendo a inversão do contencioso sido decretada nem pela 1.ª, nem pela 2.ª instância, não pode manter-se a decisão recorrida. Embora a apelante não qualifique juridicamente o vício que invoca, tal não obsta ao seu conhecimento, atento o que dispõe o n.º 3 do artigo 5.º do CPC, afigurando-se que, tendo a decisão conhecido de questão da qual não podia já conhecer, é nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal, não podendo por isso subsistir.
*
ii. Da caducidade da providência decretada.
A recorrente defende ainda que, não tendo as requerentes instaurado a acção principal no prazo de 30 dias contado do trânsito da decisão que decretou a providência, deverá ser declarada a caducidade da mesma conforme prevê o artigo 373.º, n.º 1.
Não tem, porém, razão, como se verá.
Dispõe o artigo 364.º, n.º 1, do CPCiv., epigrafado de Relação entre o procedimento cautelar e a ação principal, que “Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é sempre dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva” (vide n.º 1).
Sendo uma medida cautelar e provisória, a providência decretada não pode produzir efeitos prolongados no tempo, desde logo porque, ressalvadas as situações de inversão do contencioso, assenta em prova perfunctória, bastando-se a lei com a prova da aparência do direito, o “bonus fumus iuris”. Dada a provisoriedade e instrumentalidade que caracterizam estas medidas, a lei faz recair sobre o requerente que se viu beneficiado com o decretamento da providência o ónus de instaurar a ação principal, isto sob pena de caducidade da medida cautelar, concedendo-lhe para tanto o prazo de 30 dias contados “da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado” (alínea a) do n.º 1 do artigo 373.º do CPCiv, aplicável ao caso ex vi do artigo 376.º. O termo inicial do prazo é assim, não o trânsito da decisão, conforme sem rigor invoca a requerente, mas a data da notificação ao requerente de que a decisão transitou, o que é coisa diversa.
No caso em apreço, não tendo sido decretada, como não foi, a inversão do contencioso, recai sobre as requerentes o ónus da instauração da acção de que depende a providência concedida. No entanto, não tendo sido ainda notificadas do trânsito do acórdão, conforme correctamente alegaram, o referido prazo de 30 dias não se iniciou sequer, pelo que não se verifica a invocada caducidade.
*
III. Dos pressupostos do decretamento da providência de restituição provisória da posse
Derradeiramente, pretende a requerida ver aqui discutidos mais uma vez os pressupostos do decretamento da providência, a qual, insiste, foi injustamente decretada.
É, todavia, deslocada tal invocação neste momento processual, posto que o acórdão deste TRE que decretou a providência há muito decretou em julgado, tendo tais razões que ser invocadas, isso sim, na acção principal a instaurar pelas requerentes.
Improcede, pelo exposto, este fundamento recursivo.
* III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso e, em conformidade: a) anulam a decisão recorrida, no segmento em que decretou a inversão do contencioso; b) julgam improcedente a arguida caducidade da providência, devendo todavia ser ordenada a notificação das requerentes nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 364.º e 373.º, n.º 1, alínea a), do CPC e com a cominação aqui prevista.
Custas a cargo de requerentes e requeridas na proporção de metade para cada (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).
* Sumário: (…)
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Évora, 25 de Outubro de 2024
Maria Domingas Alves Simões
Eduarda Branquinho
Mário João Canelas Brás
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[1] Sendo certo que não suscitou a requerida em momento algum a questão que, em nosso entender, se afigurava dever ser suscitada, a saber: nos casos, como o presente, em que a providência, sem audição prévia do requerido, é decretada pelo TR na sequência do recurso da decisão que a negou, parece ficar-lhe vedada a interposição de recurso, ficando limitado ao meio de defesa previsto na alínea b) do artigo 372.º do Código de Processo Civil.
[2] Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 4.ª Edição, pág. 159.
[3] Idem, pág. 161.
[4] Autor e ob. citado nas notas antecedentes, pág. 162.
[5] Parece ser também o entendimento expendido no acórdão deste TRE de 26/04/2108 (proc. 76/16.9T8RDD.E3), embora não fosse este exactamente o objecto do recurso, como transparece da seguinte passagem:
“Como referimos, este requereu, logo na petição inicial, a inversão do contencioso. Porém, a sentença que decretou a providência é omissa sobre essa matéria, não tendo, nem indeferido, nem decretado a inversão do contencioso. No recurso interposto da sentença, tal questão não foi tratada. É, pois, fora de dúvida que não foi decretada a inversão do contencioso. Ao deixar de conhecer esta questão, a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Contudo, tal nulidade não foi arguida no tempo e pela forma devidos, tendo a sentença transitado em julgado. Em face disto, nada há a fazer neste aspecto. Definitivamente, não foi decretada a inversão do contencioso e daí terão de ser retiradas as devidas consequências legais. Se o recorrente entendeu, como afirma, que, ao ser decretada a providência cautelar requerida – o que, em rigor, nem sequer aconteceu inteiramente, já que o procedimento foi julgado apenas parcialmente procedente –, se verificou uma total anuência ao seu pedido, incluindo a inversão do contencioso, fez mal, pois o decretamento deste último tem de resultar de expressa decisão nesse sentido, até porque, do mesmo, resultam ónus importantes para o requerido, nos termos do artigo 371.º do Código do Processo Civil”.