EXECUÇÃO
REJEIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
UTILIZAÇÃO INDEVIDA
FALTA DE TÍTULO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

(da responsabilidade da relatora - art.º 663º/7 do CPC)
I -Não estando em causa obrigação emergente de transacção comercial, tratando-se da injunção geral regulada pelo DL. 269/98, de 1 de Setembro, o procedimento injuntivo não é o meio próprio para obter o pagamento dos encargos com a cobrança da dívida.
II - A prolacção de decisão de rejeição da execução com fundamento em vício (excepção dilatória do uso indevido de procedimento injuntivo) que nenhuma das partes invocou e sobre o qual não teve oportunidade de se pronunciar, configura uma decisão-surpresa, decorrente da violação do princípio do contraditório, e consequentemente acarreta a nulidade de tal decisão, por excesso de pronúncia (art.º 615º/1d) do CPC).

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
NOS COMUNICAÇÕES, S.A. intentou a presente execução sumária, nos termos do art.º 21º do DL 269/98, de 1 de Setembro e art.º 703º/1 d) do Código de Processo Civil (CPC), com base em requerimento de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória, contra B , visando obter o pagamento  da quantia de €1.244,22, sendo €858,44 de capital, €129,69 de juros, €182,59 a título de “outras quantias” e €76,50 de taxa de justiça, alegando que celebrou com a executada um contrato de prestação de bens e serviços de telecomunicações, mediante o qual se obrigou a prestar os bens e serviços contratados com a R./executada e esta obrigou-se a efectuar o pagamento das facturas e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento da cláusula penal convencionada para a cessação antecipada do contrato, não tendo a executada procedido ao pagamento do valor das facturas identificadas no requerimento de injunção e sendo ainda devedora do montante peticionado em “outras quantias” a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida.
Da “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” consta:
«A Req.te (Rte), celebrou com o Req.do (Rdo) dois contratos de prestação de bens e serviços telecomunicações, a que foram atribuídos os seguintes números de contrato:
_Contrato nº 844002230 de 18.12.2018;
_Contrato nº 848323512 de 23.03.2021.
No âmbito dos referidos contratos, a Rte obrigou-se a prestar o serviço e a fornecer os bens solicitados pelo Rdo, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas e a manter os contratos pelo período neles fixado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento à Rte, a título de cláusula penal do valor relativo à quebra do vínculo contratual, valor que inclui os encargos decorrentes da cessação antecipada do contrato.
Tais faturas foram enviadas ao Rdo, logo após a data de emissão, para a morada por este indicada para o efeito.
Pelo facto de não as ter pago, apesar das diligências da Rte, constituiu-se o Rdo em mora e devedor de juros legais desde o vencimento, calculados à taxa de juro comercial, sucessivamente, em vigor, juros vencidos que totalizam o valor acima indicado.
Relação do capital e juros de mora em dívida:
_contrato n.º 844002230: capital em dívida de €542,45 e juros de mora de €113,78, relativos à(s) fatura(s) abaixo indicada(s) em 1);
_contrato n.º 848323512: capital em dívida de €312,99 e juros de mora de €15,91, relativos à(s) fatura(s) abaixo indicada(s) em 2).
Relação das faturas em dívida:
1)
_Fatura n.º FT 202092/2310331, no valor de €390,42, emitida em 19-11-2020 e vencida em 12-12-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1178251, no valor de €54,37, emitida em 18-06-2020 e vencida em 12-07-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1609331, no valor de €49,39, emitida em 18-08-2020 e vencida em 12-09-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1296296, no valor de €48,27, emitida em 18-07-2020 e vencida em 12-08-2020;
2)
_Fatura n.º FT 202393/346397, no valor de €149,99, emitida em 24-02-2023 e vencida em 19-03-2023;
_Fatura n.º FT 202293/2200796, no valor de €47,3, emitida em 25-11-2022 e vencida em 19-12-2022;
_Fatura n.º FT 202293/1986020, no valor de €47,26, emitida em 25-10-2022 e vencida em 19-11-2022;
_Fatura n.º FT 202293/1147419, no valor de €38,82, emitida em 27-06-2022 e vencida em 19-07-2022;
_Fatura n.º FT 202293/948103, emitida em 25-05-2022 no valor de €53,32, vencida em 19-06-2022 e de que permanecem em dívida €26,62;
_Fatura n.º FT 202293/2417605, no valor de € 3, emitida em 26-12-2022 e vencida em 19-01-2023;
É o Rdo, também, devedor do montante peticionado em "outras quantias" a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida.»
Foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Em face de todo o exposto, por verificação da exceção dilatória da falta de título executivo, decido rejeitar a presente execução (cf. artigos 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do CPC).»
Inconformada, veio a exequente interpor recurso de tal decisão, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Considerou o Tribunal a quo existir exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, absolvendo o Apelado da instância;
2. Por a Autora ter lançado mão de injunção onde incluiu valores em dívida relativos a cláusula penal pela rescisão antecipada do contrato e de despesas associadas à cobrança da dívida;
3. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, sendo contrária à Lei;
4. Desde logo porque a lei não habilita o Tribunal a quo a conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo;
5. Das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção;
6. Permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o artigo 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC;
7. Sem prescindir, o entendimento de que a cláusula penal as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância executiva, mas somente a recusa do título executivo relativamente à parte que integra tais valores.
8. A sentença recorrida foi ainda proferida sem a Apelante ter sido convidada a oferecer o devido contraditório, o que consubstancia uma violação do artigo 3.º do CPC;
9. A sentença proferida pelo Tribunal a quo traduz-se em indeferimento liminar da petição inicial, o que legitima a apresentação do presente recurso;
De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida, ao rejeitar, liminarmente, a execução, violou, nomeadamente:
- o artigo 726.º n.º 2 do C.P.C.;
- o artigo 734.º do CPC;
- o artigo 14.º-A n.º 2 do regime anexo ao DL 269/98 e os artigos 227.º, número 2 e 573.º do CPC;
- o artigo 193.º do CPC;
- o artigo 3.º n.º 3 do CPC”
Conclui que “deverá ser revogada e substituída por decisão que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos nos termos acima expostos.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões, que se indicam pela ordem suscitada na alegação recursória:
- Conhecimento oficioso da excepção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção;
- Consequências da verificação da excepção: Indeferimento total ou parcial do requerimento executivo;
- Preterição do princípio do contraditório.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A decisão posta em crise, julgando verificada a excepção dilatória da falta de título executivo, rejeitou a execução ao abrigo dos art.s 734º/1 e 726º/2 a) do CPC, considerando que «a cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato e a indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida peticionadas no procedimento injuntivo de que emergiu o requerimento/documento dado à execução não consubstanciam “uma obrigação pecuniária diretamente emergente de um contrato”».
Entendeu o tribunal a quo que:
- «a exequente não poderia ter recorrido ao requerimento de injunção e, tendo-o feito, deu causa à verificação de uma exceção dilatória inominada, prevista nos artigos 555.º, n.º 1, 37.º, n.º 1, primeira parte, e geradora de absolvição da instância ao abrigo do vertido nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil. »
- «Tal exceção atinge e contagia todo o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua utilização, e não apenas o pedido referente ao valor da cláusula penal peticionada – ver, neste sentido, Ac. RL, de 23.11.2021, relatado por Edgar Taborda Lopes, proc.88236/19.0YIPRT.L1-7; Ac. RP, de 15.01.2019, relatado por Rodrigues Pires, proc. 141613/14.0YIPRT.P1 (in www.dgsi.pt).»
Insurge-se a apelante contra o decidido, pugnando pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que admita o requerimento executivo e determine a prossecução dos autos.
Sustenta, desde logo, que o tribunal não pode conhecer oficiosamente das excepções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo.
Esgrime ainda que das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção.
Mais afirma que «Sem prescindir, o entendimento de que a cláusula penal e as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina a extinção total da instância executiva, mas somente a recusa do título executivo relativamente à parte que integra tais valores.»
E por último, alega que a sentença recorrida foi proferida sem que a apelante tivesse sido convidada a oferecer o devido contraditório, o que, entende, consubstancia uma violação do artigo 3º do CPC.
Apreciando.
Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art.º 10º/5 do Código Processo Civil), visando a realização coactiva da obrigação que é devida ao credor (art.º 10º/4), podendo o fim desta acção consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo (art.º 10º/6).
Em anotação ao art.º 703º do CPC (com a epígrafe “espécies de títulos executivos”), afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2ª edição, vol. II, pp. 16, que «No campo da formação dos títulos executivos, regem os princípios da legalidade e tipicidade: só podem servir a um processo de execução documentos a que seja legalmente atribuída força executiva. Contudo, apesar do cariz tendencialmente restritivo e taxativo do art.º 703º, nada impede que outras normas de valor idêntico ou superior confluam no sentido de conferir exequibilidade a certos documentos, preenchendo a verdadeira norma em branco que é a al. d) do nº 1.»
Entre os títulos executivos elencados no art.º 703º/1 do Cód. Proc. Civil constam os previstos na alínea d): “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.  Trata-se de uma previsão meramente remissiva, já que a determinação de títulos exequíveis depende da consideração de outras disposições legais, resultando das opções legislativas pautadas pelo intuito de acautelar diferentes tipos de interesses, dispensando o uso da via declarativa para obter o reconhecimento de determinados créditos e facultando o acesso imediato à via executiva (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit. pág. 29).
No caso dos autos, o título dado à execução é um requerimento de injunção, ao qual foi aposta a fórmula executória pelo Secretário de Justiça do Balcão Nacional de Injunções (cf. ref. citius 25380405), em cujo formulário consta: “obrigação emergente de contrato com consumidor”; é solicitado o pagamento da quantia de €1244,22, sendo o capital de €855,44, juros de mora €129,69, outras quantias: €182,59 e taxa de justiça: €76,50; “contrato de fornecimento de bens ou serviços”, “data do contrato: 18/12/2018”, “período a que se refere: 18/12/2018 a 19/3/2023”.
Da “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” consta:
“A Req.te (Rte), celebrou com o Req.do (Rdo) dois contratos de prestação de bens e serviços telecomunicações, a que foram atribuídos os seguintes números de contrato:
_Contrato nº 844002230 de 18.12.2018;
_Contrato nº 848323512 de 23.03.2021.
No âmbito dos referidos contratos, a Rte obrigou-se a prestar o serviço e a fornecer os bens solicitados pelo Rdo, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas e a manter os contratos pelo período neles fixado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento à Rte, a título de cláusula penal do valor relativo à quebra do vínculo contratual, valor que inclui os encargos decorrentes da cessação antecipada do contrato.
Tais faturas foram enviadas ao Rdo, logo após a data de emissão, para a morada por este indicada para o efeito.
Pelo facto de não as ter pago, apesar das diligências da Rte, constituiu-se o Rdo em mora e devedor de juros legais desde o vencimento, calculados à taxa de juro comercial, sucessivamente, em vigor, juros vencidos que totalizam o valor acima indicado.
Relação do capital e juros de mora em dívida:
_contrato n.º 844002230: capital em dívida de €542,45 e juros de mora de €113,78, relativos à(s) fatura(s) abaixo indicada(s) em 1);
_contrato n.º 848323512: capital em dívida de €312,99 e juros de mora de €15,91, relativos à(s) fatura(s) abaixo indicada(s) em 2).
Relação das faturas em dívida:
1)
_Fatura n.º FT 202092/2310331, no valor de €390,42, emitida em 19-11-2020 e vencida em 12-12-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1178251, no valor de €54,37, emitida em 18-06-2020 e vencida em 12-07-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1609331, no valor de €49,39, emitida em 18-08-2020 e vencida em 12-09-2020;
_Fatura n.º FT 202092/1296296, no valor de €48,27, emitida em 18-07-2020 e vencida em 12-08-2020;
2)
_Fatura n.º FT 202393/346397, no valor de €149,99, emitida em 24-02-2023 e vencida em 19-03-2023;
_Fatura n.º FT 202293/2200796, no valor de €47,3, emitida em 25-11-2022 e vencida em 19-12-2022;
_Fatura n.º FT 202293/1986020, no valor de €47,26, emitida em 25-10-2022 e vencida em 19-11-2022;
_Fatura n.º FT 202293/1147419, no valor de €38,82, emitida em 27-06-2022 e vencida em 19-07-2022;
_Fatura n.º FT 202293/948103, emitida em 25-05-2022 no valor de €53,32, vencida em 19-06-2022 e de que permanecem em dívida €26,62;
_Fatura n.º FT 202293/2417605, no valor de €3, emitida em 26-12-2022 e vencida em 19-01-2023;
É o Rdo, também, devedor do montante peticionado em "outras quantias" a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida.

A primeira questão suscitada pelo recorrente prende-se com o conhecimento da excepção dilatória – da falta de título executivo por uso indevido do procedimento de injunção - julgada procedente, considerando a apelante que o tribunal recorrido não a podia apreciar oficiosamente.
Note-se, antes de mais, que tal excepção se encontra expressamente prevista no art.º 14º-A, alínea a) do DL 269/98.
No despacho que admitiu o recurso, o tribunal de 1ª instância, pese embora referindo que não fora expressamente invocada qualquer nulidade, face ao alegado pela recorrente, pronunciou-se no sentido de que a questão apreciada é de conhecimento oficioso e pela inexistência de qualquer nulidade.
Entendemos que estamos perante questão de que o tribunal pode e deve conhecer, porquanto lhe compete apreciar da manifesta falta ou insuficiência do título que serve de base à execução, em conformidade com o disposto no art.º 734º/1 do CPC  (vide acórdãos: do TRL de 15/12/20, P. 6175/18.5T8FNC-B.L1-7, relatora Carla Câmara; do TRG de 25/11/21, P. 503/21.3T8VNF.G1, relator Joaquim Boavida; e ac. do TRL de 15/12/18, P. 2825/17; do TRP de 13/7/2022, P. 2370/19.8YIPRT.P1, relatora Francisca Vieira, acessíveis em www.dgsi.pt).
A este propósito, julgamos pertinente o afirmado no citado acórdão do TRG de 25/11/21:
“A falta de título executivo não é uma mera questão formal ou acessória susceptível de ser ultrapassada pelo exercício do poder de direcção do processo. Como o demonstra a exigência estabelecida no artigo 10º, nº 5, do CPC, o título é uma questão fundamental e incontornável numa execução; sem ele não pode haver execução. Ou há título ou não há: se não há título, o juiz deve retirar daí as respectivas consequências jurídicas, não lhe sendo imposta outra actuação.
A falta de título executivo não é uma questão impertinente nem dilatória, nem é susceptível de «simplificação e agilização processual».
Também, como vimos, não constitui sequer um pressuposto processual ou outro qualquer obstáculo formal susceptível de sanação. A falta de título exequível não é sequer um problema de «regularização da instância» ou que dependa da actuação do juiz para o seu suprimento.
Ainda no que respeita à sanação, não compete ao juiz desenvolver diligências no sentido ultrapassar nulidades de actos que decorrem da actuação das partes. Igualmente não é imposto ao juiz, perante uma inequívoca manifestação de vontade de uma parte em prevalecer-se da verificação de uma nulidade ou de qualquer outra invalidade ou causa de extinção do procedimento, convidá-la a abdicar de tal arguição para sanar o vício.”
São desnecessárias maiores considerações para se concluir que o tribunal a quo devia, como fez, pronunciar-se (oficiosamente) sobre a questão da falta de título, que conduziu à rejeição da execução.
Cumpre, de seguida, apreciar se o requerimento injuntivo apresentado pela exequente é ou não dotado de exequibilidade, ou seja, se estão reunidos os pressupostos para o uso do procedimento de injunção, tendo presente o supra citado art.º 703º d) do CPC.
Caso se conclua em sentido afirmativo, ficará prejudicado o conhecimento das outras questões.
Subscrevemos as considerações tecidas na decisão sob recurso acerca do âmbito de aplicação do procedimento de injunção, no sentido de que só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, de enriquecimento sem causa ou de relações de condomínio (vide Salvador da Costa, Injunções e as Conexas Acção e Execução, 5ª ed., 2005, pág. 41; e mencionado acórdão do TRP de 13/7/2022, P. 2370/19.8YIPRT.P1).
O tribunal a quo estribou-se na jurisprudência praticamente unânime, que seguimos de perto e que vem assumindo a inadmissibilidade do pedido de pagamento da  cláusula penal por incumprimento contratual nesta forma processual e/ou de indemnização (RL 08.10.2015, processo 154495/13.0YIPRT.L1-8; 12.05.2015, processo 154168/13.YIPRT.L1-7; RL 15-10-2015, processo 96198/13.1YIPRT.A.L1-2; RL 17.12.2015, processo 122528/14.9YIPRT-L1.2; RL de 25.01.2024, processo 101821/22.2YIPRT.L1-8).
Concluindo-se na decisão recorrida que:
«(…) as injunções, incluindo as decorrentes de transação comercial, e a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, não são a via processual adequada para acionar a cláusula penal, mesmo que compulsória, decorrente da mora ou de qualquer vicissitude na execução do contrato – ver, neste sentido, Ac. RL, de 15.10.2015, relatado por Teresa Albuquerque (in www.dgsi.pt); João Vasconcelos Raposo e Luís Baptista Carvalho, in «Injunções e Ações de Cobranças», 2012, p. 22.
A cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato e a indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida peticionadas no procedimento injuntivo de que emergiu o requerimento/documento dado à execução não consubstanciam “uma obrigação pecuniária diretamente emergente de um contrato”.
Assim, relativamente ao pedido de pagamento do montante correspondente à cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato e à indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida, foi lançado mão de uma forma processual que legalmente não é a prevista para tutela jurisdicional respetiva.»
Sucede que, analisando o requerimento executivo que deu origem à presente acção e o requerimento de injunção que lhe serviu de base, constatamos que a quantia cujo pagamento a exequente pretende obter é decorrente do não pagamento das facturas emitidas no âmbito do contrato de prestação de bens e serviços celebrado com a executada, sendo €858,44 a título de capital e €129,69 de juros.
No mais, é pedido o pagamento de:
- no requerimento executivo: “quantias exigíveis nos termos do art.º 33º/4 da Lei 32/2014, de 30/05 [art.º 5, alínea c) vi) e vii) do mesmo diploma] e art.º 26º, nº 3 alínea c) do RCP”;
- no requerimento de injunção: “outras quantias: €182,59” e “taxa de justiça paga: €76,50”, constando da parte final da exposição dos factos que fundamentam a pretensão: «É o Rdo, também, devedor do montante peticionado em “outras quantias” a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida».
Perante tal e ao contrário do afirmado pelo tribunal a quo, afigura-se-nos claro que não foi solicitado o pagamento de qualquer cláusula penal, que não pode confundir-se com encargos com a cobrança da dívida. Aliás, nem o exequente sequer indica qualquer valor relativo a cláusula penal, como impõe o art.º 10º/1 e) do DL 269/98.
“A cláusula penal é a estipulação pela qual as partes fixam o objecto da indemnização exigível do devedor que não cumpre, como sanção contra a falta de cumprimento” – cfr.Das Obrigações em Geral”, Antunes Varela, 5ª edição, vol. II, pág. 137.
Mas se dúvidas existissem, como vimos, consta expressamente do requerimento executivo que as demais quantias cujo pagamento se pretende além do valor das facturas e juros, são “quantias exigíveis nos termos do art.º 33º/4 da Lei 32/2014, de 30/05 [art.º 5, alínea c) vi) e vii) do mesmo diploma] e art.º 26º, nº 3 alínea c) do RCP”.
Estabelece o nº 4 do citado art.º 33º da Lei 32/2014 (diploma que aprovou o procedimento extrajudicial pré-executivo): “Os valores suportados pelo requerente no âmbito do procedimento extrajudicial pré-executivo, com exceção dos referentes à remuneração devida pelas consultas, podem ser reclamados pelo requerente no processo de execução.”
Por sua vez, o art.º 26º/3 do RCP (Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo DL 43/2008, de 26 de Fevereiro, na versão actualizada), dispõe que: “3 - A parte vencida é condenada, nos termos previstos no Código de Processo Civil, ao pagamento dos seguintes valores, a título de custas de parte:
a) Os valores de taxa de justiça pagos pela parte vencedora, na proporção do vencimento;
b) Os valores pagos pela parte vencedora a título de encargos, incluindo as despesas do agente de execução;
c) 50 /prct. do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial, sempre que seja apresentada a nota referida na alínea d) do n.º 2 do artigo anterior;”
Não obstante a natureza indemnizatória da cláusula penal, decorrente do incumprimento do contrato, tal cláusula nada tem que ver com a “indemnização pelos encargos da cobrança da dívida.”
Quanto a estes, no que concerne ao procedimento de injunção especial previsto no DL. 62/2013, de 10/5, no seu art.º 7º (apenas aplicável à injunção decorrente de transacção comercial) - sob a epígrafe “indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida” -  o legislador veio expressamente estabelecer: «Quando se vençam juros de mora em transações comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente.»
Porém, como se refere no acórdão do TRP de 12/7/2023, P. 3889/21.6T8VLG-A.P1, relatora Isabel Ferreira (disponível em www.dgsi.pt), “não existe norma semelhante no DL 269/98, não obstante este ter sido alterado em 2019 (pela Lei 117/2019, de 13/09), já muito depois do DL 62/2013”, pelo que a indemnização prevista no art.º 7º do DL 62/2013 não se aplica ao procedimento geral de injunção (neste sentido, Salvador da Costa, ob.cit., pág. 76), mas apenas ao procedimento de injunção especial previsto no DL 62/2013.
Destarte, no caso presente, não estando em causa obrigação emergente de transacção comercial, porque se trata de injunção geral regulada pelo DL. 269/98, o procedimento injuntivo não é o meio próprio para obter o pagamento dos encargos com a cobrança da dívida, circunstância que, em nosso entender, deveria determinar, não a rejeição total da execução, mas apenas parcial (como se decidiu no acórdão proferido em 10/9/24, relatado pela ora relatora, no P. nº 13136/21.5T8SNT.L1, embora aí estivesse em causa a injunção especial prevista no DL nº 62/2013).
Aqui chegados, verificada a existência de fundamento para a rejeição (v.g. parcial), atenta a excepção dilatória do uso indevido de procedimento injuntivo para obter o pagamento das despesas de cobrança (embora não por causa da cláusula penal, que não foi accionada), importa apreciar a última questão invocada, atinente à violação do princípio do contraditório, alegando a recorrente que não foi ouvida previamente à decisão proferida pelo tribunal a quo.
Estabelece o art.º 3º/3 do Código Processo Civil que:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Trata-se de um princípio geral estruturante do processo civil, reconhecendo-se-lhe também uma matriz constitucional, enquanto integrador e enformador do princípio do Estado de Direito democrático e do acesso à justiça e aos tribunais, como tal incluído no cerne da previsão dos artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
O princípio do contraditório é o contraponto do princípio do pedido ínsito no art.º 3º/1 do Código Processo Civil, proibindo-se as decisões-surpresa, ou seja, decisões em que o juiz decida questões de direito ou de facto sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, Almedina, 1997, pág. 107).
Como escreve Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, vol. 1, 3ª edição, pág. 97), “Relativamente às questões de direito, o princípio conclama que, antes de ser proferida a sentença ou qualquer outra decisão interlocutória ou incidental, seja facultada às partes a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a mesma se baseie. Gozando embora o tribunal de plena liberdade de dizer e aplicar o direito (art.º 5º/3 do Código Processo Civil), o direito de audiência visa prevenir as chamadas «decisões-supresa», intrinsecamente atentatórias do dever de lealdade que deve presidir à actividade dos agentes, intervenientes ou operadores judiciários (princípio da cooperação e dever de boa-fé processual plasmados nos artigos 7º e 8º, respectivamente).”
(sublinhado nosso)
Tal como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objectivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório, sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título excepcional, apenas se justificando quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 22, anotação 14).
 Volvendo ao caso vertente, não oferece dúvida de que o tribunal a quo não podia proferir decisão sem dar ao exequente e executado a oportunidade de se pronunciarem, sob pena de proferir decisão-surpresa, dessa forma violando o princípio do contraditório, assim como os princípios da cooperação e lealdade processual a que está vinculado (art.º 7º do Código Processo Civil).
A inobservância do princípio do contraditório subjacente à prolacção de uma decisão-surpresa tem sido objecto de posições distintas, podendo ser enquadrada, designadamente:
- como nulidade processual (secundária), nos termos previstos no art.º 195º/1 do CPC – v., entre outros, os acórdãos: RP 27-01-2015 (M. Pinto dos Santos), P. 1378/14.4TBMAI.P1; RG 19-04-2018 (Eugénia Cunha), P. 533/04.0TMBRG-K.G1; RP 02-12-2019 (Eugénia Cunha), P. 14227/19.8T8PRT.P1; e STJ 13-01-2005 (Araújo de Barros), P. 04B4031; ou
- como nulidade da sentença, decorrente de excesso de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º/1 d) do mesmo código – v. acórdãos: RP 8-10-2018 (Ana Paula Amorim), P. 721/12.5TVPRT.P1; STJ 13-10-2020 (António Magalhães), P. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1; STJ 16-12-2021 (Luís Espírito Santo), p. 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1;
Por outra banda, como referido no acórdão desta secção proferido em 24/10/2023 no P. 5173/19.6T8FNC-B.L1 (relator Diogo Ravara), subscrito pela ora relatora como 2ª adjunta, “alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia – v. entre outros os acórdãos: RP 15-12-2021 (Isoleta Almeida Costa), p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.”
Em caso semelhante ao nosso, veja-se o acórdão de 26/9/23, P. 7165/22.9T8LSB.L1-7, relator Diogo Ravara (acessível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se pode ler:
“I.–A prolação de decisão de rejeição da execução, nos termos previstos no art.º 734º do CPC, sem prévia audição das partes, configura uma decisão-surpresa, decorrente da omissão de um ato legalmente prescrito, a saber a observância do princípio do contraditório (art.º 3º, nº 3 do CPC).
II.–Quando o Tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art.º 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, conhece de matéria que, naquelas circuntâncias, não podia apreciar.
Na esteira da jurisprudência citada, concluímos que a prolacção de decisão de rejeição da execução com fundamento em vício que nenhuma das partes invocou e sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar, configura uma decisão-surpresa e consequentemente acarreta a nulidade de tal decisão (art.º 615º/1d) do CPC). Mesmo configurando-se in casu uma nulidade processual, esta acaba por inquinar a decisão (de rejeição da execução), perdendo autonomia, assumindo-se como vício autónomo e relevante a nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art.º 615º/1 d) Código Processo Civil, decorrente da violação do contraditório.
Por fim, importa sublinhar que não se coloca aqui a questão deste Tribunal ad quem se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art.º 665º do CPC, na medida em que isso impediria as partes de exercer o devido contraditório, para além de suprimir um grau de recurso.
Em face de todo o exposto, mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões, designadamente a questão dos efeitos na presente execução da inadmissibilidade da injunção para obter o pagamento de parte da quantia em questão (relativa aos encargos das despesas de cobrança).
Em conclusão, deve a decisão recorrida ser anulada e substituída por outra que, após observância do contraditório, se pronuncie sobre a matéria em causa.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, após observância do contraditório, se pronuncie sobre a matéria em causa.
Sem custas (art.º 527º do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 22 de Outubro de 2024
Ana Mónica C. Mendonça Pavão
Cristina Silva Maximiano
Carlos Oliveira