PROCESSO DE INVENTÁRIO
QUESTÃO PREJUDICIAL
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
ACTO DISCRICIONÁRIO
Sumário

Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, pelo que respeitando a controvérsia à definição de direitos de interessados diretos na partilha, a situação cabe no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que prevê que o juiz remetendo os interessados para os meios comuns, deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2. O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito.
3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.

Texto Integral

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Vem A … intentar o presente processo especial de inventário para separação de meações contra B …, na sequência do divórcio de ambos, por não estarem de acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal.
O Requerente foi nomeado cabeça de casal e veio apresentar a relação de bens a partilhar, nela descriminando 37 verbas, mais duas verbas relativas a passivo correspondente a créditos bancários hipotecários, começando pelos Direitos de Crédito, nos seguintes termos:
Verba 1
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 22.445,00 sobre os bens comuns do casal, montante que foi investido na construção do prédio urbano construído pelo casal, conforme docs n.ºs 1 e 2 que ora se juntam.
Verba 2
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 117.217,00 sobre os bens comuns do casal, porquanto o lote de terreno onde se encontra implantado o prédio urbano identificado na verba 37 da relação de bens foi comprado pelo requerente em 18 de maio de 2005 no estado de solteiro, conforme documento n.º 3 que ora se junta. A inscrição matricial do prédio urbano só ocorreu em 28-05-2009, conforme doc nº 4 que ora se junta.
Com a Relação de Bens o cabeça de casal juntou documentos.
A Requerida veio reclamar da Relação de Bens, nos termos do art.º 1104.º do CPC, defendendo, designadamente, quanto àquelas duas verbas a sua exclusão da relação de bens, referindo que: o crédito descriminado na verba n.º 1 não existe, por não ter existido nenhuma mais valia que tenha sido reinvestida na construção do imóvel pelo casal; o crédito descriminado na verba n.º 2 não existe, já que o casamento teve lugar menos de três meses depois da aquisição do lote de terreno, tendo sido contraído um empréstimo bancário de € 105,495,76 que foi aplicado na sua aquisição, tendo todos os empréstimos bancários contraídos e garantidos por hipoteca constituído uma obrigação do casal e as prestações liquidadas com o rendimento do trabalho de ambos os cônjuges.
Com a oposição à relação de bens a interessada apresentou dois documentos e arrolou uma testemunha.
O cabeça de casal veio pronunciar-se sobre a reclamação apresentada, pugnando pela manutenção da verba n.º 1 referindo que ambos os cônjuges subscreveram à data uma declaração onde indicam que “o valor das mais valias que pretendia reinvestir sem recurso ao crédito seria de € 22.445,00”, o que ficou a constar do anexo G da declaração modelo 3 de IRS, de modo a que o cabeça de casal ficasse excluído de tributação em sede de mais valias, o que constitui uma presunção legal de veracidade, de acordo com o art.º 75.º n.º 1 da Lei Geral Tributária; mais alega que na Relação de Bens apresentada quando do divórcio por mutuo consentimento, a interessada admitiu que existia um crédito do cabeça de casal de € 10.000,00; quanto à verba n.º 2 defende a sua manutenção com a redução do seu montante para € 20.550,38 sendo € 11.721,74 relativa à diferença do valor de aquisição do terreno e montante do mútuo bancário contraído e o restante relativo a vinte e quatro prestações pagas pelo cabeça de casal relacionadas com a aquisição do lote de terreno da sua exclusiva responsabilidade. Juntou mais um documento.
Foi realizada audiência prévia, na qual o cabeça de casal e a interessada chegaram a um acordo parcial de partilha, nos seguintes termos que da ata consta: a) Acordam em excluir da Relação de Bens as Verbas 24, 26, 27, 28, 32 e 33.
b) Acordam em atribuir às Verbas 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 29, 30, 31, 34 e 35 o valor global de €5.000,00.
c) Acordam que as Verbas referidas na alínea b) fiquem adjudicadas à Interessada pelo valor de €5.000,00.
d) Acordam que a Verba 36 fica adjudicada ao Cabeça de Casal, também, pelo valor de €5.000,00.
Seguidamente, relativamente ao Bem Imóvel – Verba 37.
Pela Interessada foi dito que propõe assumir o pagamento total do crédito e, se esse valor for inferior ao valor do imóvel que está na Relação de Bens, é acertar o remanescente e dividir em partes iguais. 
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Pelo Cabeça de Casal foi dito que propõe ficar na totalidade desonerado do passivo das dívidas que existem perante a Instituição Bancária, é feita, tendo em conta a alteração da oferta de mercado nesses últimos anos, uma avaliação judicial sobre o imóvel, depois é deduzido o passivo ainda existente perante a Caixa Geral de Depósitos e o remanescente será dividido em partes iguais.
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A 30-10-2023 veio a ser proferida decisão sobre a reclamação à relação de bens apresenta pela interessada, com o seguinte teor que se reproduz:
“Reclamação à relação de bens apresentada pela interessada B …
I – Direitos de Crédito (verba nº 1 e 2)
Conforme decorre da reclamação apresentada à relação de bens, não concorda a interessada com a existência do direito de crédito que o cabeça de casal alega titular sobre a mesma.
Ora, restam dúvidas que tal matéria é controvertida e de natureza complexa.
Dispõe-se no art. 1093º, nº 1 do C. P. Civil: “Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”.
Resulta daqui, que tudo deve ser examinado e decidido à luz da complexidade da matéria subjacente às questões suscitadas, utilizando-se um são critério, quer para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, quiçá com implicação da redução das garantias das partes, quer para não excluir as que, aí, podem e devem obter solução adequada.
Todavia, como ensina Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais” – Vol. I, 4ª Edição, pág. 539: “há certas questões em relação às quais pode afoitamente concluir-se que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não consentirá fazer decidir aqui”.
Por conseguinte, a prova as partes terão de produzir para a decisão da questão em apreço manifestamente extravasa a natureza incidental da decisão da reclamação à relação de bens, devendo, consequentemente, tal questão ser objecto de processo autónomo.
Assim sendo, não resta outra alternativa, que não seja remeter os interessados para os meios comuns, o que se determina atento o disposto no art. 1093º, nº1 do C. P. Civil.
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II .- Bens móveis (verbas 3 a 36)
Quanto a estes, consensualizaram cabeça de casal e interessada, conforme resulta da acta da audiência prévia.
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Da avaliação do imóvel
Na audiência prévia, requereu o Cabeça de Casal a avaliação do imóvel.
Assim sendo, determina-se a avaliação do imóvel descrito na verba nº 37 da relação de bens, devendo a secção indicar pessoa idónea para intervir nos autos como perito avaliador, o qual se nomeia desde já, fixando-lhe 30 dias para apresentar o relatório respectivo, devendo o mesmo prestar o seu compromisso de honra nos termos do artº 581º, nº 3, do Código do Processo Civil, na redacção aplicável aos presentes autos.”
Notificado desta decisão, o cabeça de casal veio a 15.11.2023 interpor recurso da mesma, na parte em que remete os interessados para os meios comuns, requerendo a sua revogação, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
I. A Mma. Juiz do a quo, determinou, ao abrigo do disposto no nº1 do art. 1093º do NCPC, que se abstinha de decidir, remetendo as partes para os meios comuns, em despacho de que ora se recorre, datado de 30/10 p.p., para aí ser solucionado o problema levantado pela Ré/recorrida, em sede da sua reclamação sobre a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, ora apelante, referente à necessidade de, no seu ver, se anularem as verbas nºs 1 e 2, plasmadas por este no item “Direitos de Crédito”.
II. Entende a mesma Senhora Juiz, tratar-se de uma questão complexa, cuja apreciação no tribunal a quo implica a redução das garantias das partes,
III. Extravasando da natureza incidental da decisão sobre a reclamação de créditos,
IV. E, logo, os limites traçados no nº1 do art. 1093º do NCPC.
V. O recorrente discorda dos fundamentos de facto e de direito.
VI.Quanto aos de direito, porque entende que, quando muito, o caso se subsume no disposto ou na al. b) do nº1 do art. 1092º do NCPC,
VII. E respectivo nº2,
VIII. E que, assim sendo, a Senhora Juiz teria que forçosamente ter suspendido a vertente instância,
IX.Por imposição do estatuído no corpo do nº1 do mesmo artigo,
X. O que permitiria que este recurso se estribasse, não na al. h) do nº2 do art. 644º do NCPC como foi feito,
XI.Embora entendamos que o mesmo também ali se pode subsumir, aliás com toda a pertinência, razão pela qual o fizemos,
XII. Visto a remessa para os meios comuns ir necessariamente implicar atrasos de monta na partilha aqui em causa,
XIII. Vindo, o recurso desta decisão, a ser a todos os títulos inútil, se só subir com o eventual recurso da decisão final,
XIV. Por não impedir os aludidos atrasos,
XV. O que permitiria que este recurso se estribasse, não na al. h) do nº2 do art. 644º do NCPC como foi feito – dizíamos – mas antes no disposto na al. c) do nº2 do mesmo artigo.
XVI. Ora, como o que acabámos de dizer consubstancia matéria de direito,
XVII. Sendo por isso de conhecimento oficioso,
XVIII. Requer-se que V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, procedam à correcção do enquadramento de direito feito pela Senhora Juiz do a quo,
XIX. Reconhecendo que, com os fundamentos por si apresentados, o que está em causa é o disposto na al. b) do nº1 e nº 2 do art. 1092º do NCPC,
XX. Determinando, em consequência, que a instância seja suspensa, conforme comanda o corpo do nº1 do mesmo artigo,
XXI. E admitindo este recurso ao abrigo do disposto na al. c) do nº2 do art. 644º do NCPC. Isto dito,
XXII. Quando a A./cabeça de casal e recorrente e a Ré/recorrida contraíram casamento em 6/8/05, sob o regime de comunhão de adquiridos, aquele possuía, como bem próprio, um lote de terreno para construção,
XXIII. E uma casa, que era a sua habitação.
XXIV. A casa, vendeu-a em 24/11/2006,
XXV. E, o lote, serviu para nele implantar, com recurso, para além dos meios comuns do casal, às mais valias de €22.445,00 que fez naquela venda, a casa de morada de família (cfr. o modelo 3-anexo G de 2006, junto pelo A., quando requereu a abertura de inventário após divórcio),
XXVI. A qual obteve a licença de utilização em 19/5/09, e foi registada em 25/8/09 (doc. 4 do A).
XXVII. Porque a prova de haver recebido aquelas mais valias é plena (documento autêntico que não foi posto em causa pela Ré), e já consta dos autos – o aludido anexo G ao IRS de 2007 -, não pode a Ré requerer, como requereu, que seja retirada da relação de bens a verba nº1, respeitante ao crédito do A. daquelas mais valias, por o mesmo se não haver provado.
XXVIII. Ora, assim sendo, como é, não se vê que se tenha de recorrer aos meios comuns, para aí ser reconhecido aquilo que já consta dos autos, ou seja, que com a venda do seu imóvel o A. auferiu aquelas mais valias,
XXIX. E que a verba nº1 se tem de manter como está.
XXX. Depois do casamento, e a exclusivas expensas do património comum do casal, este edificou, no lote de terreno para construção, que era só do A., por o haver adquirido em 18/5/05, a casa de morada de família, dotando-a de todas as comodidade, bem como dos respectivos cómodos, aprestos e adereços.
XXXI. Chegados que somos, agora, à fase da partilha pós-divórcio do mesmo casal, pôs indevidamente, a Ré, em causa a verba nº2, por entender que: “(…) a partir da data do casamento todas as obrigações do casal, nomeadamente os pagamentos das prestações hipotecárias eram liquidados com o rendimento proveniente do trabalho de ambos os cônjuges (...)”,
XXXII. Já que, na dita verba, o A. reclama(va) como crédito seu, o montante de €117.217,50, que pagara pelo lote de terreno para construão, e onde, após o casamento, foi edificada a casa de morada de família.
XXXIII. É certo que, a questão é mais sofisticada do que aparece nesta verba,
XXXIV. Mas de modo alguma a mesma pode ser eliminada, como pede a Ré, XXXV. Já que algum crédito tem o A. a haver, a este propósito.
XXXVI. Portanto, o linimento é adaptá-la à realidade,
XXXVII. Conferindo-lhe nova redacção, de acordo com quanto se vai dizer abaixo,
XXXVIII.E que - mais uma vez se enfatiza -, para ser cabalmente resolvida, dispensa que as parte sejam remetidas para os meios comuns.
XXXIX. Com efeito, sabendo-se que o recorrido era já proprietário de um lote de terreno para construção,
XL. E que, depois da contracção do casamento com a Ré, sob o regime de comunhão de adquiridos, ambos os conjuges se puseram de acordo em construir, nesse mesmo lote de terreno, a sua residência permanente,
XLI. Tendo, para tal, lançado mão de dinheiros e bens exclusivamente comuns,
XLII. É fácil concluir que, saber quem deve o quê a quem, se dirime lançando mão dos sumários e fundamentos dos seguintes arestos acima citados, que se pede vénia para aqui dar por inteiramente reproduzidos, ou seja, os Acs. da Relação de Guimarães de 30/6/22, tirado no proc. nº32/22.8T8BRG-A.G1, relatado por José Alberto Moreira Dias, e dessa Relação de Évora de 25/3/2010, tirado no proc. nº 454/05.9TBFAR.E1, relatado por Bernardo Domingos.
XLIII. Sem olvidar o Ac. RG acima citado, que pedimos vénia para aqui dar por inteiramente reproduzido, no sumário e fundamentos, permitimo-nos chamamos agora expressamente à colação o Ac. RE por, no entender do A., constituir uma síntese do que se diz naquele acórdão,
XLIV. O que nos evita a reprodução dos dois.
XLV. Lê-se nas súmulas III a V do Ac. da Relação de Évora de 25/3/2010, tirado no proc. nº 454/05.9TBFAR.E1, relatado por Bernardo Domingos: III– De acordo com o artigo 1726, nº 1, do Código Civil, no regime de comunhão de adquiridos, os bens comprados em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações, donde resulta que, sendo as duas prestações de desigual montante, o bem adquirido terá a natureza de bem próprio ou de bem comum, conforme seja uma ou outra a prestação de mais elevado montante. IV – Estando demonstrado que a prestação dos bens comuns do casal é substancialmente superior à prestação dos bens próprios da apelante, na contribuição dada para a aquisição/construção da moradia, impõe-se concluir que o prédio urbano constituído pela moradia e terreno onde foi implantada, tem a natureza de bem comum do casal. V – Porém o património conjugal onde se integrou o prédio urbano assim constituído, deve, compensar o cônjuge, dono do terreno, pela deslocação patrimonial realizada com a entrada do seu bem próprio – o
terreno onde foi implantada a moradia. Compensação devida nos termos do n.º 2 do art.º 1726º do CC e naturalmente sujeita a actualização.
XLVI. Face a uma tal eloquência, desnecessárias se tornam mais quaisquer palavras!
XLVII. No ver do A./recorrente, no vertente caso, ao invés de se remeter para os “meios comuns” como decidiu a Mma. Juiz da 1ª Instância,
XLVIII. Haverá, isso sim, é que mandar avaliar, por perito ou colégio de peritos abalizado, o valor do lote de terreno para construção do apelante,
XLIX. E o da habitação com garagem nele implantada, a expensas exclusivas do património comum,
L. Coisa que se requer agora que V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, determinem,
LI.Depois de deferirem o vertente recurso do A.,
LII. E preferencialmente como requerido no capitulo “I” ut supra, cujo teor se pede vénia para aqui dar por inteiramente reproduzido, para todos os legais efeitos,
LIII. Assim se apurando os valores envolvidos,
LIV. Bem como, em consequência, quem é credor de quem,
LV.E o respectivo quantum,
LVI. Coisa que será depois vertida na verba 2, como sua nova redacção.
A interessada Requerida não veio responder ao recurso.
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da remessa dos interessados para os meios comuns sempre ter que determinar no caso a suspensão da instância;
- da (in)devida remessa dos interessados para os meios comuns;
III. Fundamentos de facto
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito
- da remessa dos interessados para os meios comuns sempre ter que determinar no caso a suspensão da instância
Alega o Recorrente que o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, de que o tribunal a quo se socorreu para remeter as partes para os meios comuns com vista à decisão da questão controvertida, não é aplicável ao caso, que quando muito se integra no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC o que sempre determinaria a suspensão da instância, até à sua resolução.
A decisão recorrida estribou-se no art.º 1093.º n.º 1 do CPC para fundamentar a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista à decisão relativa aos direitos de crédito sobre os bens comuns relacionados pelo cabeça de casal nas verbas 1 e 2 da relação de bens, cuja existência a interessada contestou.
O art.º 1092.º do CPC, referindo-se à suspensão da instância, rege nos seguintes termos:
“1-Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.
3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;
c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
4 - À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.”
Por seu turno, o art.º 1093.º do CPC, com a epígrafe “Outras questões prejudiciais”, estabelece:
“1.Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.
Da conjugação destes dois artigos, verifica-se que o art.º 1092.º n.º 1 al. b) e o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, reportando-se ambos a questões prejudiciais, têm um diferente âmbito de aplicação que é delimitado por duas vias: uma objetiva que distingue as questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo das que não respeitem a essa admissibilidade; e uma subjetiva que distingue consoante está em causa a definição de direitos de interessados diretos na partilha ou a definição de direitos que não respeitem a estes interessados.
Na situação em presença a controvérsia está nas verbas 1 e 2 identificadas na Relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, como constituindo um crédito deste sobre os bens comuns.
Se é certo que a questão controvertida não respeita à admissibilidade do processo de inventário, que não está em discussão, a verdade é que se trata da definição de direitos de um interessado direto na partilha, já que é o cabeça de casal que pretende ver reconhecido aquele seu crédito que relacionou.
O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, o que manifestamente não é o caso, uma vez que se verifica a previsão do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC.
Os efeitos da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns também são, pelo menos num primeiro momento, diferentes, já que de acordo com o art.º 1092.º n.º 1 al. b) o juiz deve suspender a instância, sem prejuízo de autorizar o seu prosseguimento, nos termos e nas situações previstas no n.º 3 deste artigo; em contrário, no âmbito do art.º 1093.º n.º 2 a suspensão da instância não decorre necessariamente da remessa dos interessados para os meios comuns, podendo, no entanto, vir a ser determinada pelo juiz, se verificados os pressupostos previstos em tal norma.
Nestes termos, já se vê que o Recorrente tem razão quando refere que foi indevidamente aplicado o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, que visa as questões que não respeitem à definição de direitos de interessados diretos na partilha, já que respeitando a questão em litígio a estes interessados, a situação integra-se no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que estabelece que o juiz deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
- da (in)devida remessa dos interessados para os meios comuns
O Recorrente considera que o tribunal a quo andou mal ao remeter os interessados para os meios comuns, concluindo que os elementos constantes dos autos já permitem reconhecer o seu direito ao crédito identificado na verba n.º 1 relativo ao valor de mais valias que investiu no imóvel comum do casal e quanto ao seu crédito identificado na verba n.º 2 está reconhecida a sua existência “havendo que adaptá-lo à realidade”.
O tribunal a quo afirmou de forma conclusiva que “tal matéria é controvertida e de natureza complexa” e que “a prova que as partes terão de produzir para a decisão da questão em apreço manifestamente extravasa a natureza incidental da reclamação à relação de bens”, remetendo os interessados para os meios comuns.
Vejamos em concreto a questão controvertida que se reporta aos créditos relacionados pelo cabeça de casal nas verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, nos seguintes termos:
Verba 1
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 22.445,00 sobre os bens comuns do casal, montante que foi investido na construção do prédio urbano construído pelo casal, conforme docs n.ºs 1 e 2 que ora se juntam.
Verba 2
Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 117.217,00 sobre os bens comuns do casal, porquanto o lote de terreno onde se encontra implantado o prédio urbano identificado na verba 37 da relação de bens foi comprado pelo requerente em 18 de maio de 2005 no estado de solteiro, conforme documento n.º 3 que ora se junta.
A Requerida veio reclamar da relação de bens apresentada, pugnando pela inexistência destes créditos, afirmando quanto à verba n.º 1 que o cabeça de casal não investiu dinheiro próprio na construção do imóvel comum e quanto à verba n.º 2 que o terreno foi adquirido com recurso a um crédito hipotecário, tendo após o casamento, ocorrido menos de três meses depois da aquisição, o pagamento das prestações ao banco sido suportado por ambos os membros do casal com os seus rendimentos do trabalho.
Na resposta à reclamação, o cabeça de casal veio esclarecer que o valor da verba n.º 1 se reporta às mais valias pela venda de um imóvel próprio, que investiu na construção do imóvel comum, conforme foi declarado em sede de IRS; quanto à verba n.º 2 admitiu que depois do casamento o mútuo hipotecário contraído para a aquisição do terreno foi pago com o rendimento proveniente do trabalho de ambos os cônjuges, retificando o crédito que reclamou nesta verba para a quantia de € 20.550,38 correspondente à diferença do valor de aquisição do terreno e prestações do mútuo bancário que pagou da sua responsabilidade.
Em primeiro lugar, importa sublinhar, que o Recorrente vem agora em sede de recurso suscitar questões novas relativas à verba n.º 2, que não cabe a este tribunal decidir, ainda para mais passando por cima do que foi a sua conduta processual anterior.
O cabeça de casal começou por identificar na verba nº 2 um crédito sobre os bens comuns do casal no montante de € 117.217,50, valor pelo qual adquiriu o terreno onde foi implantado o imóvel comum, no estado de solteiro; na sequência da impugnação da cabeça de casal, o mesmo veio retificar o valor daquele crédito para € 20.550,38 admitindo que o crédito hipotecário depois do casamento foi pago por ambos os cônjuges com os rendimentos do seu trabalho, chegando a este valor somando € 11.721,47 (correspondente à diferença entre o valor de aquisição e o valor do crédito contraído) e € 8.828,64 (relativo a 24 prestações de € 367,86 cada que pagou até 25 de maio de 2007); agora em sede de recurso, passando por cima de tudo isto, recusando a remessa das partes para os meios comuns, vem requerer que este tribunal determine a avaliação do lote de terreno, com vista à definição deste seu invocado crédito.
O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo.
Não é controvertido e decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, e apenas a título de exemplo, o Acórdão do TRL de 14-02-2013, no Proc. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt
Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.”
O que se impõe então avaliar é o invocado erro da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns para discutirem as verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, não cabendo a este tribunal pronunciar-se sobre diligências requeridas pelo cabeça de casal no recurso.
No processo de inventário, deve o cabeça de casal nomeado proceder à apresentação da relação de bem, nos termos previstos nos art.º 1097.º n.º 1 e 3 al. c) e art.º 1098.º do CPC com especificação, por meio de verbas, dos bens que integram a herança ou, no caso, o património comum dos cônjuges, indicando o seu valor.
Apresentada a relação de bens, podem os restantes interessados reclamar contra ela, nos termos do art.º 1104.º n.º 1 al. d) do CPC, no que a lei vem configurar como um verdadeiro incidente tramitado nos próprios autos, regulamentado no art.º 1105.º do CPC, com a realização das diligências probatórias necessárias com vista à sua decisão – neste sentido diz-nos Carla Câmara in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 70: “Apresentado articulado de oposição, impugnação ou reclamação, prossegue o conhecimento das questões objeto deste requerimento, com a natureza de incidente, podendo ocorrer tantos incidentes quantas as questões suscitadas à apreciação.”
Nos termos do mencionado art.º 1105.º n.º 1 do CPC, tendo sido apresentada reclamação à relação de bens, os interessados que tenham legitimidade para se pronunciar sobre as questões suscitadas têm o prazo de 30 dias para responder, indicando com a resposta a prova que tenham por conveniente, de acordo com o n.º 2 deste artigo, na configuração de uma tramitação processual quanto à apresentação de prova, idêntica à dos incidentes da instância, regulada nos art.º 293.º n.º 1 do CPC.
Quer o reclamante, quer o cabeça de casal, têm o ónus de indicar os elementos de prova no requerimento respetivo em que deduzem a reclamação ou respondem a ela, conforme dispõe o art.º 1105.º n.º 2 do CPC, ao prever que sendo deduzida oposição ou impugnação as provas são indicadas com os requerimentos e resposta.
O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC.
Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 544, em anotação ao art.º 1092.º do CPC: “Em princípio, o inventário tem potencialidade para apreciar todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem necessidade de recurso aos meios processuais comuns. (…) o facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não se justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito.”
No mesmo sentido também se pronuncia Carla Câmara, in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 132 quando refere: “A decisão de qualquer questão, seja ela relativa à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, ou a qualquer outra questão, cabe ao tribunal onde o processo se inventário corre seus termos. É este tribunal, onde corre o processo de inventário, que tem competência para dirimir todas as questões atinentes à definição do acervo hereditário a partilhar e dos interessados pelos quais vai ser partilhado aquele acervo. A remessa das partes para os meios comuns ocorre excecionalmente.
O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.
 No âmbito do processo de inventário, as questões controversas que se coloquem seguem a tramitação dos incidentes, o que pode não se mostrar adequado para assegurar as garantias dos interessados, já que desde logo tem associada uma maior simplificação e limitação probatória do que o processo comum, podendo suscitar-se questões, que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto subjacente não se coadunem com uma tramitação mais simplificada.
São estes os critérios que têm de estar na base da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o que implica a avaliação em concreto das questões a dirimir e dos factos que têm subjacentes, salientando-se que não constitui fundamento para remeter os interessados para os meios comuns a insuficiência de meios de prova apresentados pelas partes com vista ao esclarecimento dos factos que alegam – neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 30-06-2011 no proc. 2083/05.8TMLSB-B.L1-1 in www.dgsi.pt quando refere: “Ora, a lei não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados.”
Se se avaliar em concreto as questões a dirimir e os factos a ela subjacentes invocados pela interessada na oposição à relação de bens e na reposta do cabeça de casal, não pode deixar de verificar-se que não há grande complexidade na matéria de facto que se impõe apurar.
A verba n.º 1 da relação de bens indica um valor que terá sido investido pelo cabeça de casal na construção do prédio comum. Competindo-lhe a prova de tal facto, o mesmo veio invocar que tal corresponde às mais valias que teve com a venda de imóvel anterior, juntando os documentos que teve como pertinentes para o demonstrar, constatando-se que nos respetivos articulados ambos os interessados juntam documentos e só a Requerida arrolou uma testemunha.
Quanto à verba n.º 2 representa um alegado crédito do cabeça de casal pelo facto de ter adquirido o terreno onde foi implantada a construção que é imóvel comum do casal. O cabeça de casal já reconheceu que o mútuo hipotecário relativo àquele terreno, depois do casamento, teve as respetivas prestações pagas por ambos os cônjuges, fixando aquele crédito na quantia que pagou pelo mesmo que não foi abrangida pelo crédito hipotecário, acrescida das prestações que pagou da sua responsabilidade.
Avaliando a controvérsia exposta pelos interessados nos respetivos articulados, não se vê como qualificar de complexa a matéria de facto que lhes está subjacente e que importa apurar, sendo certo que também não se vislumbra que as partes vejam de alguma forma comprimidas as suas garantias, se as questões forem resolvidas incidentalmente, com recurso à prova que cada uma delas oportunamente apresentou.
Em face do que fica exposto, considera-se que não estão reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns, nos termos previstos no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, para decidir estes dois direitos invocados pelo cabeça de casal, impondo-se a revogação da decisão recorrida que o determinou, devendo os autos prosseguir com a decisão incidental das mesmas no âmbito do processo de inventário.

V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o recurso intentado pelo cabeça de casal, revogando-se a decisão recorrida na parte em que remete os interessados para os meios comuns, devendo os autos prosseguir com a decisão das questões controvertidas no âmbito do processo de inventário.
Custas pelo Recorrente – art.º 527.º n.º 1 in fine do CPC, nada havendo a pagar atento o prévio pagamento da taxa de justiça.
Notifique.
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Lisboa, 24 de outubro de 2024
Inês Moura
Pedro Martins
João Paulo Raposo